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O autogoverno no Ministério Público brasileiro: alternativas para reduzir a politização da instituição

O autogoverno no Ministério Público brasileiro: alternativas para reduzir a politização da instituição

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Há um crônico deficit democrático na gênese e estruturação dos órgãos diretivos do MP, como Conselho Superior e Colégio de Procuradores, e na forma de escolha do chefe da instituição, o Procurador-Geral.

Sumário: 1- Introdução. 2- Autogoverno: conceito. 3- A politização na escolha do Procurador-Geral (nos Estados e na União). 4- Outros aspectos negativos sobre o atual modelo de seleção do Procurador-Geral. 4.1- Conformismo diante do fato consumado. 5- Efeitos sobre a independência funcional. 6- A hipertrofia de poderes do Procurador-Geral. 7- A democracia interna no Ministério Público. 8- Conclusões.


1- Introdução

Basicamente, há duas formas de influência, que nos arriscaríamos dizer decisivas, do Executivo sobre o Ministério Público dos Estados: a elaboração do orçamento com o repasse mensal dos duodécimos e a nomeação do Procurador-Geral de Justiça. Interessa-nos aqui analisar detidamente esta segunda forma de influência que se liga ao proclamado autogoverno do Ministério Público.

Algumas questões relacionadas com o Ministério Público, embora repudiadas por todos ou pela maioria, não recebem, curiosamente, a devida atenção. O motivo deste silêncio em torno de temas tão importantes parece-nos estar relacionado com a constitucionalidade de que se revestem[1]. Dentre esses temas situa-se o autogoverno.

Qualquer livro ou manual que se presdiponha a analisar os meandros da instituição ministerial repete unissonamente: o autogoverno foi uma conquista da Constituição Federal de 1988 (Burle Filho, 1989, p. 246). Mas até onde nos é dado conhecer, não conseguimos vislumbrar autogoverno no Ministério Público. Como se não bastassem as restrições sempre crescentes dos repasses financeiros ao Ministério Público (que tendem sempre, sub-repticiamente ou não, a ser usados como moeda de troca ou à guisa de pressão política) e a forma espúria (embora constitucional) do fiscal ser nomeado pelo fiscalizado, há ainda as intervenções do Conselho Nacional do Ministério Público, mecanismo criado para remendar o ineficiente pacto federativo vigente no país. O somatório de tudo isso retira do MP a capacidade de se reger livremente, sem interferências de órgãos estranhos ou de interesses incompatíveis com a missão constitucional atribuída ao órgão.

A falta de discussões em torno do tema parece indicar que acreditamos (ou aceitamos) em algo sem pensar, pelo simples fato de todos repetirem, mecanicamente, esse atributo ministerial. Esse extraordinário silêncio ou consenso no exame da matéria demonstra, talvez, a completa similaridade das consciências jurídicas, parafraseando Nietzsche (2004, p. 35). Mas essa despreocupada crença coletiva (communis opinio doctorum) só pode existir até o momento em que é posta em dúvida[2], indagada sobre seus fundamentos e razões, ressaltada suas contradições e discrepâncias, e exposta a sua fragilidade estrutural (que ressai do contraste de seu perfil teórico com as exigências práticas).

Sigamos, portanto, em busca de ideias claras, de evidências seguras, com as quais possamos, ao final do estudo, dar por cumprida nossa tarefa especulativa, pois como diz Ortega y Gasset (1993, p. 11), a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida.


2- Autogoverno: conceito

O Ministério Público, mercê da dignidade que alcançou com a CF/88, não conta ainda com um pleno poder de autogoverno. Entende-se por autogoverno o poder conferido a determinado órgão (Judiciário, p. ex.) ou Coletividade (Estados-membros e Municípios) de escolherem seus próprios dirigentes, desenhando e executando sua própria política institucional sem influência externa. Cabe aos próprios Tribunais (sejam eles integrantes do Judiciário ou não – Tribunais de Contas, v.g.) eleger seus dirigentes, mas ao Ministério Público tal garantia se faz de forma enviesada.

Em relação ao Ministério Público, infelizmente, o constituinte não foi tão longe. Não conferiu aos membros do MP poder para escolherem os seus dirigentes. Mas é de se convir que a forma de investidura dos Procuradores-Gerais da República (na União) ou de Justiça (nos Estados) recebeu inegável desenvolvimento. Antes da Constituição de 1988, os respectivos Procuradores-Gerais (do MPU ou do MPE) constituíam cargos de provimento em comissão, razão pela qual podiam, os Chefes do Poder Executivo (Federal ou Estaduais), livremente nomeá-los e demiti-los[3]. O que implicava no ilogismo de um membro ter mais garantias do que o Chefe da Instituição. A nova Constituição, porém, modificou radicularmente a sistemática. Por isso que, agora, o Procurador-Geral da República (Chefe do Ministério Público da União) é nomeado, dentre os integrantes da carreira, pelo Presidente da República após a aprovação de seu nome pela expressiva manifestação da maioria absoluta do Senado Federal (art. 128, §1º, CF)[4]. Quanto à destituição, essa só poderá ocorrer com autorização do Senado, também por força da maioria absoluta de seus membros. A nomeação implica o exercício de cargo a prazo certo (e não de um mandato, como erroneamente traz a Constituição) de dois anos. Já os Procuradores-Gerais de Justiça (Chefes dos Ministérios Públicos locais) são nomeados pelo Chefe do Poder Executivo Estadual, dentre os integrantes de listas tríplices formadas por todos os membros da carreira (CF, art. 128,§3º).

A Constituição quando se refere ao mandato do Procurador-Geral da República (art. 128, §1º) permite “a recondução”; quando trata dos Procuradores-Gerais de Justiça, referindo-se à mesma hipótese, faz uso da seguinte locução: “permitida uma recondução” (art. 128, §3º, bem como o art. 9º da LONMP, vera-efígie do dispositivo em comento). Portanto, conclui-se, que no âmbito local é permitida uma única recondução.

Outro fator que causa espécie é a razão inspiradora da diferença dos sistemas federal e estadual de escolha do Procurador-Geral: lista tríplice no âmbito local, sem participação do Legislativo, e participação do Legislativo (Senado Federal) no âmbito federal, sem a prévia elaboração de uma lista tríplice (art. 25, da LC n. 75, de 20.05.1993).

O principal obstáculo que se coloca ao Ministério Público para sua completa inserção na essencialidade do Estado, como função totalmente independente, jaz na inexistência de autogoverno. Enquanto o Poder Político, especialmente o Executivo, mantiver qualquer tipo de ingerência na elaboração ou execução da política institucional do Ministério Público, seja de forma direta (nomeação do Procurador-Geral de Justiça), seja de forma indireta (p. ex., resistência sutil ou ostensiva à plena autonomia financeira e administrativa), não teremos no Ministério Público uma função totalmente soberana.

A independência, não é demais lembrar, concretiza-se por intermédio de uma formação independente (cada ramo do poder estabelece-se sem interferência do outro ramo, por exemplo, mediante eleições próprias e independentes), de uma organização e estruturação interna básica independente, de um mínimo de competências próprias, exclusivas e privativas, de condições que permitam atuação e funcionamento independentes ou autônomos, e de discricionariedade no uso de suas faculdades próprias (escolha de meios e definição de oportunidade de ação, sem interferência ou imposição de outro poder, com o limite ditado tão-somente pela Constituição).

O Estado de Direito exige que todos se achem submetidos à lei, sejam governantes ou governados. A submissão dos governantes à lei não é assegurada quando quem tenha a seu encargo uma função de controle (art. 129, inc. II, da CF) seja nomeado por aqueles que devem ser controlados. E a formação de lista tríplice não elimina essa dificuldade, pois a escolha não deixa de ser arbitrária, embora dentro de um espaço limitado. Isso evidencia que a Procuradoria-Geral de Justiça é um órgão autocrático[5], ou seja, seu agente é nomeado por um outro órgão estranho e revogável em moldes semelhantes (art. 128, §§3º e 4º, CF), numa combinação execrável de elementos democráticos com elementos autocráticos, não raro sob à luz de critérios político-partidários.

É uma absurda contradição, uma instituição encarregada de defender o regime democrático tendo em seu bojo órgãos verticalizados e com nítido viés autocrático. Certamente, o sistema de lista tríplice e posterior nomeação pelo chefe do executivo estadual representou um avanço significativo, mas que se revelou desde o início insuficiente.

Se uma lição segura pode ser extraída da história política é a seguinte: as diretrizes políticas adotadas como soluções para problemas existentes convertem-se, finalmente, em fontes de novas dificuldades, exigindo novas soluções. Jamais existe algo que se possa considerar fixo ou definitivo no processo da evolução social. Dos “remédios” que uma geração administra, resulta uma “doença” que a geração seguinte procura sarar (Lipson, 1966, p. 289). A lista tríplice representou um avanço se comparada com o modelo anterior, mas atualmente não atende mais às demandas de uma instituição, não apenas inserida num ambiente democrático, mas absolutamente funcional às expectativas democráticas de uma sociedade cada vez mais exigente e participativa, ávida por transparência e imparcialidade.


3- A politização na escolha do Procurador-Geral (nos Estados e na União)

Tudo é muito claro e se arrasta desde a promulgação da Constituição Federal, há mais de 20 anos. A prova de que a nomeação do procurador-geral é um ato que violenta o senso jurídico ordinário (embora com previsão constitucional) extrai-se do fato, comprovável na prática, de que contagia, desde o início, a forma de seleção[6]. A formação da lista tríplice, salvo honrosas exceções de que não temos conhecimento, é um retrato antecipado do humor do governante de plantão. É uma influência sutil, ambígua e que não se personifica claramente (Foucault, p. 160), mas ao fim se revela determinante. Ou seja, se o candidato que se apresenta à classe pleiteando o cargo máximo da instituição não tiver viabilidade política perante o governador, suas expectativas de compor a lista viram pó e se a compuser será como decorrência de estratégias políticas ou de um ato elogiável (e raro) de rebeldia da classe.

Diante dessa realidade, soam algo metafísicas as palavras de Mazzilli (2007, p. 199):

“Ao menos no tocante à investidura dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados, as eventuais influências externas em sua escolha podem ser mitigadas pela classe, que tem o poder de formar livremente a lista tríplice que limita o rol entre os quais o governador pode escolher seu preferido”.

Isso sem falar daqueles doutrinadores que se apegam a clichês do tipo:

“A lealdade dos agentes das procuraturas não se dirige aos Governos mas à ordem jurídica a que todos devem servir com elevação e independência…” (Moreira Neto, 1992, p. 95).

São lições que se assemelham mais a pregações morais do que a descrições da realidade. Ideias de sacristia. São teóricos que se esquecem da práxis, como se o Direito fosse um mundo perfeito, autossuficiente, autotélico e autorreferente, sem contato com a prática, ou pior ainda, sem uma função a exercer no comércio real da vida humana[7]. Esquecem ademais, presos a concepções antigas, que a mera enunciação normativa ou positivação constitucional não é suficiente para tornar realidade um desejo de perfeição do constituinte ou do legislador.

Como salienta Agustin Gordillo (1977, p. 14), o importante é que as construções jurídicas não se façam somente com base em valorizações apriorísticas, mas também com base num conhecimento da realidade mesma.

De modo análogo às virtudes pessoais, que se revelam nos hábitos e nos costumes, as construções ou instituições jurídicas não são construídas a partir de conceitos abstratos, senão sobre a base da consciência jurídica concreta que se expressa na prática. As ideias encontram terreno fértil quando as circunstâncias da história favorecem sua aceitação, mas não subsistem nem deitam raízes por si mesmas (Bourie, 2001).

Muitos dos que pensam a instituição do Ministério Público teimam em pervagar os olhos no sublime céu da normatividade positivista, numa espécie de “terra normativa do nunca”, enquanto os pés tropeçam nos precipícios da realidade. São teóricos que “uivam para a lua”.

Essa normatividade positivista é uma doutrina exegética e dogmática, que se satisfaz em polir e repolir normas jurídicas, esquematicamente, sem a preocupação de verificar sua funcionalidade sobre a realidade a que são chamadas a atuar. Ainda no século XIX, E. Durkheim (1975, p. 101) advertia: os melhores espíritos reconhecem hoje ser necessário que o estudante de direito não se limite a estudos de pura exegese. Com efeito, se despende todo o seu tempo a comentar os textos e se, por conseqüência, a propósito de cada lei, a sua única preocupação consistir em procurar adivinhar qual teria sido a intenção do legislador, adquirirá o hábito de ver na vontade legisladora a única fonte do direito. Ora, isso seria tomar a letra pelo espírito, a aparência pela realidade. É nas próprias entranhas da sociedade que o direito se elabora e o legislador não faz mais que consagrar um trabalho que se produziu sem ele. Necessário é, portanto, ensinar ao estudante como o Direito se forma sob a pressão das necessidades sociais, como se fixa pouco a pouco, por que graus de cristalização passa sucessivamente, como se transforma. Necessário é mostrar-lhe ao vivo como nasceram as grandes instituições jurídicas, como a família, a propriedade, o contrato, quais as suas causas, como variaram, como provavelmente variarão no futuro. Então já não considerará mais as fórmulas jurídicas como sentenças, oráculos cujo sentido por vezes misterioso precisa de adivinhar; saberá determinar o seu alcance, não segundo a intenção obscura e muitas vezes inconsciente dum homem ou duma assembleia, mas segundo a própria natureza da realidade.

Como já sugerimos, os mecanismos jurídicos não são criados a partir do nada e nem se prestam apenas a enfeitar cânones normativos. Eles são colhidos das nossas experiências, da prudente observação da vida humana e social, através do comportamento dos homens em sociedade. E se prestam a atuar sobre este mesmo panorama, para estabilizá-lo e proporcionar um crescente aperfeiçoamento.

Há na doutrina citada acima, uma espécie de sobrevivência do espírito pré-científico em que não se procurava conhecer o que realmente eram os fenômenos sociais ligados à experiência jurídica, sua natureza e origem, mas o que eles deveriam ser; seu objetivo não é oferecer uma imagem da natureza social e política tão verdadeira quanto possível, mas confrontar nossa imaginação com a idéia de uma sociedade perfeita, um modelo a ser seguido[8].

De fato, não é possível afirmar que determinado mecanismo jurídico ou certa situação normativamente prevista é preferível a outra ou que apresenta certa eficácia, sem tentar apoiar sua afirmação em provas, e essas provas têm de se basear em alguma realidade. Se se considera que o MP goza de independência funcional, devemos contrastar a normatividade jurídica com a realidade onde ela incide, analisando se, efetivamente, a eficácia normativa se verifica na prática social, se apresenta eficácia institucional ou social.

Ninguém, em sã consciência, duvida que o Direito ou a ordem jurídica enfeixa-se num sistema lógico e racional, principalmente aceitas as prescrições teóricas de Kelsen (e sua validação piramidal). O Ministério Público, portanto, como instituição jurídico-social com berço constitucional, insere-se nesse sistema lógico. Se a nomeação do procurador-geral pelo governador contamina todo o processo de seleção (como demonstramos acima), desde o início, então, decididamente, esse ato político, mesmo com previsão constitucional, constitui-se num erro de lógica jurídica ou política[9].

A consequência disso é a transformação dum ato jurídico composto[10] (formação da lista e nomeação pelo governador) num ato escancaradamente político, formalmente dividido em duas fases, mas de fato, consolidado numa apenas: o ato político do governador, cuja influência se expande acima e abaixo, absorvendo e orientando a vontade de todos. Esquematicamente temos um ato jurídico na forma, mas político na função. É um cenário que muda rapidamente de ópera séria para ópera-bufa.

O suposto “autogoverno” do Ministério Público tem, portanto, origem na vontade e nos desejos, expressos ou velados, do chefe do Executivo. E esta influência não se limita a um momento institucional, alonga-se, dominando e condicionando a política interna e externa da instituição, principalmente naqueles aspectos que se ligam às atribuições do Procurador-Geral (que são as mais importantes e extensas)[11], dada a incompreensível hipertrofia legal do órgão.

Se ao fim o que temos é um ato político com respaldo constitucional, é ingenuidade lidar com ele com mecanismos jurídicos ou com gestos vazios de discordância ou de censura[12]. O que se impõe é tratá-lo de acordo com a sua natureza e dentro destes limites, de forma legítima e inteligente, fazer prevalecer o desejo da classe (livre da ascendência política do governador de plantão). E este desejo existe e pode ser legitimamente garimpado, afastando-se a politização instaurada por estes enviesados mecanismos constitucionais.

Numa instituição, assim como no corpo humano, há certos elementos que se ligam aos outros e cuja presença requer, com freqüência, um tratamento clínico. No caso em que estamos analisando, duas ordens de cogitação são possíveis para repor o sistema a serviço da instituição, restabelecendo o equilíbrio perdido. Essas alternativas são de natureza política e jurídica.

Juridicamente, compartilhando, neste aspecto, da opinião de Mazzilli (2008, p. 52), um dos pontos fundamentais de aprimoramento da instituição, de lege ferenda, consistirá em abolir definitivamente a interferência do Poder Executivo na escolha do procurador-geral de justiça, porque a experiência tem demonstrado que não raro os procuradores-gerais se integram à Administração Pública, até buscando e querendo mesmo servir o chefe da administração, de quem recebem orientação política em sua atuação funcional.


4- Outros aspectos negativos sobre o atual modelo de seleção do Procurador-Geral

A politização ou partidarização do MP resulta destas injunções externas, e tende, com o tempo, a integrar os hábitos institucionais, revelando um “espírito de paróquia”, onde os grupos são lançados uns contra os outros (Lapassade/Lourau, 1972, p. 126), numa luta encarniçada por espaços de poder sob o revelho signo schmittiniano amigo/inimigo, moldando uma instituição obscurecida por imagens de rivalidade e de desconfiança.

O impulso moral de quem almeja comandar a sorte da instituição já não é mais a missão constitucional, a justiça ou a verdade, mas o desejo de permanecer no poder pelo máximo de tempo permitido constitucionalmente. Este desejo de alcançar e permanecer no poder leva, de passagem, à renúncia de muitos princípios e valores caros ao Ministério Público e à sociedade democrática. Como diz Nietzsche (2001, pp. 37/39), quem aspira à glória deve renunciar à honra.

 A este processo de concentração ou monopolização de poder corresponde uma permanente divisão e fragmentação interna entre os membros, com a formação de grupos de interesses, completamente descomprometidos com os objetivos institucionais e com as necessidades sociais. O sistema que deveria se reger por elevados princípios jurídicos acaba completamente apoliticalhado.

A forma de escolha do Procurador-Geral combinada com a natural hipertrofia das funções afetas à Procuradoria-Geral faz com que toda a instituição dependa do “estofo moral” de um indivíduo. De fato, onde a plenitude do poder reside num órgão com poucas restrições, somente podem encontrar-se garantias contra o abuso na natureza contingente da pessoa que detém o poder. Mas, por outro lado, o exercício do poder num meio democrático é institucional e não pessoal.

Não é à consciência da autoridade que pode ficar entregue a limitação do seu próprio poder. Não é à sua virtude pessoal que pode ficar confiada a certeza de que será exercido legitimamente o seu poder. Essa limitação há de ser prudentemente traçada por lei. A previsibilidade das consequências jurídicas dos atos humanos é essencial em qualquer regime de legalidade. E a democracia é como nenhum outro, um regime de legalidade estrita (Souza, 1979, p. 191), em que todas as ações, direta ou indiretamente, encontram autorização ou proibição.

Aceitar essa dependência é renegar a existência de qualquer ordem institucional determinada por um sistema. Como a vontade de um indivíduo é variável e incerta[13], sucede que a instituição termina por se prestar como instrumento das paixões, apetites e ambições de um indivíduo ou de um grupo dominante. A ausência de um sistema justo e politicamente adequado funciona como uma bomba de combustão de projetos políticos ou carreiristas estranhos à instituição.

Cada mecanismo jurídico ou político é criado e se dirige a uma categoria de homens, modelando-os para torná-los aptos ou funcionais àquilo que deles se espera. A divisão em partidos ou grupos e a fragmentação dos interesses entre os membros do MP como conseqüência direta e imediata da forma de seleção do Procurador-Geral confere a este mecanismo constitucional um indisfarçável caráter maquiavélico de enfraquecer o MP naquilo que lhe é mais precioso: a unidade de ação. Dividida, a instituição se converte num domínio aberto para as intervenções e influências perniciosas de órgãos e poderes estranhos.

Não podemos fugir à evidência dos fatos: aquele que foi nomeado Procurador-Geral, o foi porque conta com a confiança pessoal e política do chefe do Executivo. O único critério no momento da nomeação é exclusivamente político. Ocorre no seio do Ministério Público o mesmo que se passa nos Tribunais Superiores do país onde, segundo a fala destemerosa da Ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon, “hoje é a política que define o preenchimento de vagas nos tribunais superiores... Há uma mistura e uma intimidade indecente com o poder. Para ascender na carreira, o juiz precisa dos políticos. Nos tribunais superiores, o critério é única e exclusivamente político”[14].

Espera-se de toda forma de seleção que, ao final, resulte na obtenção do melhor e mais capaz administrador. O atual sistema de lista tríplice e de nomeação pelo chefe do Executivo, paradoxalmente, privilegia a esperteza raposina, o poder da sugestão e do ludíbrio, a capacidade de entabular alianças políticas, a sedução do discurso adaptado, artificiosamente, ao perfil de cada eleitor (propostas caça-votos), em prejuízo do governo dos melhores e dos mais capazes. O método de escolha do PGJ não eleva o futuro administrador ao primeiro plano e não o torna um intérprete fiel das aspirações institucionais. Assemelha-se, em tudo, a uma estreita eleição de paróquia e contribui para dar ao colégio eleitoral a sua fisionomia distorcida pelo entrechoque dos interesses mais primários. Com isso, não estamos pondo em xeque a capacidade gerencial daqueles que assumem o cargo servindo-se das falhas do sistema vigente, mas apenas destacando que o sistema, com seus desdobramentos práticos, não exige e nem estimula, em toda sua extensão, atributos de capacidade administrativa. Infere-se, pelo atual sistema, que a conquista do poder e da chefia ministerial sobreleva o seu exercício. Se ao fim, a instituição tiver o melhor administrador não será em virtude do sistema, mas um feliz acidente do acaso, ou como quer Mazzilli, pelo “estofo moral” de um indivíduo.

Temos algo a dizer sobre esse “estofo moral” do Procurador-Geral de plantão. Por ora, é suficiente observar que nele confiar como mola propulsora de uma sã e reta política institucional, implica supor a existência de uma comunidade de anjos, um sistema que pudesse funcionar sem qualquer espécie de pressão, baseando tudo num consenso absoluto e espontâneo (Mannheim, 1980, p. 178). O que é absolutamente utópico.

Não podemos esquecer que a boa administração não é um dom da generosidade natural das coisas, mas um produto da inteligência e do talento dos homens. Como o Procurador-Geral é eleito sobre o gelo fino das alianças e das estratégias grupistas, torna-se refém, quando da formação de seu quadro administrativo auxiliar, de grupos e indivíduos sem pendor ou preparo para os desafios administrativos. Ao invés dos mais capazes e comprometidos com a missão constitucional do MP, são guindados à cúpula aqueles cujo único mérito é saber se mover de acordo com os ventos da conveniência (tal como as aves de rapina que sabem aproveitar uma corrente de ar para economizar energia vital).

Um sistema, definitivamente, qualquer que seja ele, não pode depender, exclusivamente, do estofo moral, do senso de decência ou da consciência de uma pessoa, pois fica a mercê de quaisquer fatores acidentais que por acaso moldem ou determinem as emoções dessa pessoa.

4.1- Conformismo diante do fato consumado

Outro aspecto negativo atribuível ao sistema de seleção do Procurador-Geral digno de menção é a rendição dos membros do MP ao conformismo diante do fato consumado. Como o futuro Procurador-Geral será aquele previamente ungido com as bênçãos ou a simpatia política do chefe do Executivo, a maioria dos membros resigna-se a votar no favorito. E a recorrência desta atitude reflete-se numa apatia e desengajamento com os rumos administrativos adotados pela instituição. Os membros recolhem-se ao seu mister forense e processual, e se se voltam para a administração, o fazem apenas para defender interesses pessoais.

O comportamento da maioria dos membros da instituição assume uma feição mecânica. O propósito da instituição é o interesse público, mas o objetivo dos agentes é receber salários e defender outros interesses pessoais. Subjetivamente, não há qualquer propósito comum. O fim unificado só existe para grupinhos que anseiam a cúpula da administração e, por isso mesmo, é muito restrito. Esse mal, dentre outros fatores, encontra na politização da escolha do Procurador-Geral, o grande e decisivo responsável.

O espírito institucional de engajamento e comprometimento desfaz-se na mesma medida em que a seleção da administração superior se personaliza e no mesmo ritmo em que os princípios e os valores elevados jazem amontoados (usados apenas como um canto de sereia durante a eleição para a formação da lista tríplice). Tudo passa a ser visto e sentido como pessoal; surgem caracteres patológicos que se entregam a inimizades e disputas gratuitas ao invés de se irmanarem numa corrente de cooperação e de comunhão; cria-se um ambiente asfixiante e antropofágico de intrigas, quase hobbesiano, onde as energias são desperdiçadas em sucessivos conflitos internos. A tarefa de julgar as ações e medidas administrativas é entregue à sanção suprema dos interesses em conflito. É a partidarização política; é a pulverização da instituição em grupos de interesses.

Essa pulverização da instituição em grupos rivais acaba refletindo, negativamente, na atuação funcional e na prestação dos serviços à sociedade. Por conta disso, por exemplo, o diálogo institucional entre os diversos órgãos e agentes acaba sendo prejudicado. E isso nos faz lembrar de uma antiga lição de Sêneca (1952:48):

“Las virtudes están donde hubiere conformidad y unidad, y que los vicios andan siempre en continua discórdia”.

Todavia, o mais grave são os efeitos para o futuro, pois esta mentalidade personalista e estreita se reproduz, por um processo de contágio social, nos novos membros que, em teoria, deveriam ser o oxigênio renovador dessas práticas caducas. Perdem-se gerações de bons Promotores de Justiça e Procuradores da República, de membros imbuídos de uma velha e saudável combatividade, seja para o próprio sistema (com suas viciosas práticas), seja para outras instituições (uma fuga para melhores ambientes de trabalho).


5- Efeitos sobre a independência funcional

Há quem sustente que a influência do poder político sobre os membros do Ministério Público, quando existiu, nunca se exerceu diretamente, antes foi sempre amortecida pela figura do Procurador-Geral (Moura, 2002, p. 09). Tal entendimento é reforçado pelas garantias funcionais reconhecidas aos membros do MP pela Constituição e pela lei, com o objetivo de garantir-lhes a independência perante os governos ou governantes. Embora no âmbito administrativo, os membros da instituição submetam-se à hierarquia da Administração Superior, não é possível admitir a imposição a um membro do Ministério Público, no exercício de suas funções, por órgão da Administração Superior ou qualquer outra autoridade estatal, de um comportamento em relação a determinada matéria cuja solução dependa de sua convicção (Sauwen Filho, 1999, pp. 212-213).

A doutrina que prega o posicionamento acima esquece que pontos sensíveis da carreira de um membro do Ministério Público dependem basicamente da atuação administrativa do Procurador-Geral e dos demais órgãos da Administração Superior, como: gestão disciplinar, progressão funcional (promoções e remoções) e remuneração. Apenas quem já foi ou é promotor de justiça no interior recuado do país sabe dimensionar com exatidão a importância de uma remoção ou promoção. E diante da possibilidade de ficar esquecido por anos a fio (situação que não tem nada de rara ou excepcional nos anais da instituição), vendo suas pretensões serem preteridas sucessivamente, o agente tende a contemporizar. E é nesta contemporização para conseguir progredir na carreira que a independência funcional corre sérios riscos.


6- A hipertrofia de poderes do Procurador-Geral de Justiça

O Procurador-Geral concentra uma quantidade formidável de poder político dentro e fora da Instituição, fazendo dele o primus inter pares[15] ou inter stellas luna minores[16], numa espécie de apoteose da individualidade. Isso faz com que o Ministério Público apresente, usando as palavras de Durkheim (2008, p. 41), “o aspecto de um monstro, no qual apenas a cabeça é viva, tendo absorvido todas as energias do organismo”.

Não se vai tanto tempo da época em que os Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados eram nomeados e demissíveis ad nutum pelo chefe do respectivo Poder Executivo. Não se vai tanto tempo, pois os resquícios ainda são encontrados até hoje em quase todos os Estados, da época em que todo poder da Instituição emanava do Procurador-Geral de Justiça, que designava, removia e avocava atribuições, exercendo as que bem lhe aprouvesse; que compunha os órgãos colegiados com escolhas dos amigos do dia (Carneiro, 1996, p. 160).

Internamente, cabe ao chefe da instituição exercer uma série de atribuições, como: presidir os órgãos colegiados da Administração Superior; apresentar o Plano Anual de atividades do Ministério Público; elaborar as propostas de orçamento anual, fixação de subsídio, criação e extinção de cargos; decidir questões referentes à administração e à execução orçamentária; proceder à edição de atos que impliquem em movimentação na carreira, como promoção, remoção, permuta, convocação ou designação de membros e servidores; editar atos de aposentadoria; decidir processo disciplinar contra membro ou servidor e aplicar as sanções adequadas; rever o arquivamento de procedimento investigatório, nos casos legais.

Os poderes do procurador-geral de justiça se refletem no cenário político externo quando lhe compete processar criminalmente os Prefeitos, os Juízes Estaduais, os Membros do Ministério Público, os Deputados Estaduais e o Vice-Governador. E originariamente promover o inquérito civil e a ação civil pública quando a autoridade for o Governador do Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa ou o Presidente do Tribunal. E ainda representar ao Procurador-Geral da República para processar por crime comum o Governador do Estado, os desembargadores e os membros dos Tribunais de Contas.

Mas como observa o Ministro do STF Celso de Mello, “o poder do procurador-geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável”[17].

 


7- A democracia interna no Ministério Público

Uma coisa é a democratização do Estado (democracia política), obtida com a extensão do sufrágio (sufrágio universal), outra é a democratização da sociedade civil (da família à escola, da empresa à gestão dos serviços públicos) que se obtém pelo número de instâncias estruturadas e governadas democraticamente. Nem sempre a democracia política implica em democracia social. Dentro de um Estado democrático podem existir setores ou instâncias sociais (instituições, órgãos etc.) que não sejam estruturados ou governados democraticamente. Isso torna a democracia integral (democracia política + democracia social) um ideal distante.

Muitas instâncias ou instituições sociais como o matrimônio, a família[18], a propriedade e a empresa, assim como os diversos grupos territoriais e pessoais, são, historicamente, anteriores ao Estado e, por conseguinte, não foram criados por força da correspondente função jurídica daquele, mas que são, na sua origem, resultado de forças sociais que o Estado não organizou (Heller, 1968, p. 226). Isso explica o desnível de democraticidade entre as duas esferas (social e política).

As relações estabelecidas entre o povo e os líderes governamentais de modo algum esgotam a democracia. A democracia é apropriada para todos os modos de associação humana: a família, a escola, a indústria, a religião ou qualquer outro local de interações entre as pessoas, amplas e duráveis, que as afetem mutuamente (Dewey, 1927:143).

Isso nos leva a uma conclusão parcial referendada por Bobbio (1986:28): quando se quer saber se houve um desenvolvimento da democracia num dado país o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este direito. Ou seja, se os valores democráticos penetraram nas diversas instâncias sociais (instituições, organizações etc.).

Essa expansão democrática (política e social), atingindo todas as instâncias, tem a sua importância localizada justamente no fato de fazer os cidadãos (nas mais diversas qualidades: servidor público, consumidor, trabalhador, empregador etc.) adquirirem hábitos, experiências e disposições democráticos.

No Ministério Público[19], em todas as leis estaduais de regência, sem exceção, percebe-se uma formidável concentração de poder de cúpula (estrutura de dominação), enfeixado nas mãos do Procurador-Geral de Justiça e Procuradores de Justiça (Conselho e Colégio de Procuradores)[20]. Os reais poderes do Ministério Público e da Magistratura, diz Mazzilli (2008, p. 53), com frequência não são efetivamente usados contra os governantes e os poderosos, pois se concentram propositadamente nas mãos de umas poucas pessoas, os procuradores-gerais e os colegiados políticos, que muitas vezes fazem parte da estrutura de poder.

O fluxo do poder, como diz Bobbio (1986:54), só tem duas direções: ou é descendente, ou seja, desce do alto para baixo (autocrático), ou é ascendente, quer dizer, vai de baixo para cima (democrático). No MP, o fluxo de poder é descendente e pouco expansivo, na medida em que todas as decisões importantes na carreira (progressão funcional, punição disciplinar, aumento de subsídios, elaboração/aprovação da proposta orçamentária anual, criação e extinção de cargos etc.) são tomadas pelos órgãos superiores que não têm nenhuma representatividade da classe. Encontramo-nos diante de uma estrutura vertical de poder, estrutura que é oposta à que corresponderia, por definição, a uma lógica democrática (Yannuzzi, 2007:217).

A teoria democrática toma em consideração o poder autocrático, isto é, o poder que parte do alto, e sustenta que o remédio contra esse tipo de poder só pode ser o poder que vem de baixo (Bobbio, 1986:60; Yannuzzi, 2007:217). Há, portanto, como decorrência desse esquema simplificado, a necessidade de distribuição de poder entre os diversos membros integrantes da instituição (pluralismo institucional) e da exaltação do poder de baixo contraposto ao poder de cima (poder hierárquico). Isso porque, as organizações e as instituições reproduzem, em escala reduzida, a estrutura do Estado democrático.

É uma contradictio in adjectu, uma instituição encarregada de defender o regime democrático com uma postura democrática, mas dependente de uma estrutura política interna com fortes traços autocráticos e hierárquicos. A explicação que se dá é a mesma dada para a hipertrofia do Executivo: aqui viabilizar o Estado; lá viabilizar a instituição do Ministério Público. Todo poder centralizado, todavia, é um convite ao abuso, ensina a teoria política (Dahl, 1998:86; Azambuja, 1945:25).

Como elementos autocráticos ou monocráticos podem encontrar solo fértil numa instituição com vocação democrática, encarregada, ainda por cima, de defender a democracia? Essa contradição confere certa ambigüidade ao Ministério Público, impedindo que sua identidade institucional seja traçada de uma vez por todas. Por esse ângulo, o MP só pode ser compreendido à luz dos objetivos de uma sociedade democrática, daquilo que busca alcançar com sua estrutura e organização.

Embora tenha a Constituição destinado o Ministério Público à defesa do regime democrático[21], não cuidou de instituir suficientes instrumentos para fazer dele próprio uma instituição mais democrática, ou seja, uma instituição cujos membros tenham investidura, ação e destituição mais bem controladas pelo titular último da soberania, que é o povo (Mazzili, 2007, p. 78).

O poder, enquanto categoria política, contém elementos fortemente antidemocráticos. O poder encerra em si mesmo um processo de perversão nunca superável. Poder e corrupção andam necessariamente juntos (Yannuzzi, 2007:227). E a concepção democrática não leva em conta esse aspecto há muito registrado por Maquiavel: a crua realidade do poder, objeto único e verdadeiro da política. Desse modo, o órgão ou instituição será estruturado e, principalmente, governado (ou gerido) de acordo com a relação que estabelece com o poder. Se o objetivo central da instituição, como o partido político, é alcançar o poder (vontade de poder), “por definição, este tipo de organização não pode ser democrática” (Yannuzzi, 2007:217)[22]. Se, todavia, a relação estabelecida é a de controlar e fiscalizar o exercício do poder (vontade de contenção), como se passa com o Ministério Público, sua estrutura e sua gestão hão de ser, necessariamente, cortadas pela lógica democrática e por uma inafastável contenção ética.

No cotejo entre o Ministério Público dos Estados e o Ministério Público Federal vemos que este apresenta uma estrutura interna mais democratizada. Enquanto no Ministério Público Federal o Colégio de Procuradores é integrado por todos os membros da carreira em atividade (de 1ª. e 2ª. instância)[23], no Ministério Público dos Estados é composto apenas por membros que atuam perante a 2ª. instância (Procuradores de Justiça). Ou seja, um grupo funcional minoritário.

Se as teorias da democracia requerem que os servidores públicos sejam responsáveis perante o povo e sejam controláveis pelos eleitores, não poderá o mesmo aplicar-se aos dirigentes das instituições públicas? Pode um Estado democrático coexistir com instituições públicas dotadas de estruturas internas autocráticas? O fato do MP não ser uma instituição representativa (pelo viés estrito da representação política) não impede que sua estrutura interna seja democratizada, permeável aos valores democráticos.

As corporações, organizações administrativas e instituições públicas (de caráter político ou jurídico) são um componente inevitável da vida moderna. Mas, infelizmente, como ensina R. Michels (s/d, p. 15), quem diz organização, diz tendência para oligarquia. Em cada organização quer se trate de um partido, de um sindicato, de uma união de ofícios, etc., a tendência aristocrática em seu funcionamento interno manifesta-se de forma bastante pronunciada. É a lei de bronze da oligarquia que vem limitar a democracia nas grandes organizações e instituições. Mas é preciso ir mais longe: a deterioração dessas organizações não é determinada exclusivamente pelos processos internos; relaciona-se com a história, com a conjuntura (Lapassade/Lourau, 1972, p. 124).

É certo que existem instituições dentro de um Estado democrático cuja estrutura interna não pode ser democraticamente desenhada. Exemplo é o Exército. O Exército, em si, não pode ser governado democraticamente, ou com justiça e humildade, no dizer de Sun Tzu (2007, p. 44), pois seria um instrumento ineficiente. Tem de funcionar dentro dos princípios da disciplina e da autoridade. As ordens devem ser obedecidas sem discussão (Lindsay, 1962:182). Todavia, instituições como o Ministério Público, criadas e estruturadas para servir de garantia a uma sociedade democrática, que não se subordinam aos princípios da hierarquia, disciplina e autoridade, não podem adotar outro modelo de organização que não seja essencialmente democrático. É possível imaginar um Procurador-Geral com a mesma autoridade incontrastável de comandantes de um exército? Ou o Colégio de Procuradores de Justiça ter a autoridade equivalente à de uma Junta Militar?

O que se impõe numa instituição como o Ministério Público com objetivos constitucionais tão nobres, onde a disciplina não substitui a discussão e nem a hierarquia predomina sobre a independência funcional? Impõe-se a democracia local em pequena escala em todos os assuntos internos ou a democratização do comando, no dizer de RUSSELL (2001, p. 20); órgãos monocráticos e colegiados de cúpula devem ser eleitos por aqueles sobre quem devam ter autoridade administrativa. Membros natos, indicados ou nomeados não conferem legitimidade e representatividade aos órgãos que compõem, sejam unipessoais ou colegiados. Se há uma grita em relação à forma de investidura do Procurador-Geral, esquecemos que a estrutura de direção (colegiada) da instituição não constitui melhor exemplo.

Passados 20 anos da promulgação da Constituição brasileira e do entusiasmo que cercou o novo perfil e as novas garantias do Ministério Público, é chegado o momento de repensar os mecanismos institucionais, verificando se os mesmos são compatíveis com a atual conjuntura histórica, política e social. É uma tarefa árdua, pois o passado continua exercendo influência sobre as instituições e seus hábitos procedimentais: ainda que as raízes já estejam mortas, a vida permanece nos ramos por certo tempo.

Uma coisa é certa: há espaço suficiente para mais democracia na estrutura administrativa do Ministério Público. Ao que já tem o verniz democrático (do ponto de vista procedimental[24]) como o dever constitucional de fundamentação das decisões, a publicidade oficial, a transparência dos gastos, pode ser acrescentado um reforço institucional a partir de mecanismos que extraiam maior grau de democraticidade. Nos pontos onde há um crônico deficit democrático como a gênese e a estruturação dos órgãos diretivos (Conselho Superior e Colégio de Procuradores) pode-se repensar o modelo para nele inserir novos princípios de contraforças e de equilíbrios.


8- Conclusão

Diante disto podem ser aventadas algumas alternativas que devidamente sopesadas podem representar a nossa silent revolution:

I- um pacto, difusamente institucionalizado e assumido perante toda a classe, de que todos os candidatos que não consigam encabeçar a lista como primeiro colocado, renunciam a uma possível nomeação. Isto obrigaria o governador a nomear o candidato mais votado pela classe e, portanto, a vontade da maioria dos membros do MP prevaleceria;

II- Se o consenso em torno do pacto não for obtido resta a alternativa de mobilização classista para pressionar pela nomeação que respeite a vontade da maioria dos membros eleitores.

III- Há espaço para mais democracia na estrutura interna do Ministério Público. Aos mecanismos democráticos já existentes (o dever de fundamentação das decisões, a publicidade oficial, a transparência dos gastos etc.), podemos acrescentar um reforço institucional a partir de mecanismos que extraiam maior grau de democraticidade e representatividade. Onde há um crônico deficit democrático como a gênese e a estruturação dos órgãos diretivos (Conselho Superior e Colégio de Procuradores) pode-se repensar o modelo para nele inserir novos princípios de contraforças e de equilíbrios, como a eleição entre todos os membros da instituição e não apenas entre os Procuradores de Justiça.


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Notas

[1] O que nos remete para a lição de Wiese (1932, p. 146): “La esencia de las cosas aparece frecuentemente más clara en la forma que en el contenido”.

[2] O conhecimento lógico está sempre em busca de verdade e harmonia, não se conformando com arranjos conjunturais que afrontam noções mínimas de justiça e de utilidade social.

[3] “O Procurador-Geral da República demissível é deturpação completa da sua figura. Torna-se agente político do governo. Como se há de esperar que denuncie altas autoridades da administração financeira e da polícia quem, com tal atitude, se exporia à demissão? ...Onde não há garantias a quem denuncia não há regime de responsabilidade” (Miranda, 1973, p. 409).

[4] Consoante Paulo Napoleão Nogueira da Silva (1992, p. 107) “o texto constitucional vigente eliminou a subordinação do Procurador-Geral da República ao Poder Executivo. Se a sua nomeação é de livre escolha do Presidente da República, no entanto, além da necessidade de aprovação da indicação pelo Senado, passou ele a ter um mandato fixo de dois anos, podendo ser reconduzido. Tornou-se, assim, um órgão da sociedade, para pleitear pelos interesses gerais desta, e não pelos interesses localizados do ocupante do poder. Em conformidade, aliás, com a nova e mais adequada natureza do Ministério Público, que deixou de ser vinculado ao Executivo (Tit. I, cap. VII, seção VII), como era até a Constituição passada...”.

[5] Talvez seja exagero linguístico qualificar esse órgão de autocrático, mas certamente apresenta um sensível deficit democrático.

[6] Por isso, pode-se afirmar sem receio que a lista tríplice e a nomeação do Procurador-Geral pelo chefe do Executivo não passa de um ignominioso ato de falsificação da vontade institucional.

[7] Como diz G. Burdeau (s/d, p. 127), o reino do direito não é um fim, é um meio para atingir um fim.

[8] Émile Durkheim, ob. cit., 2008, p. 18.

[9] Erro de lógica política, certamente, pois não é sustentável, em parte nenhuma da Lógica, que o fiscal seja designado pelo fiscalizado. É uma completa inversão, que pode até funcionar em sociedades mais evoluídas politicamente, não num país como o Brasil que ainda tenta consolidar um ambiente democrático, lutando contra um passado (autoritário) morto que teima em governar os vivos! Como diz Bertrand Russell (1967, p. 223), num sistema lógico, um único erro, em geral, invalida tudo. E isto é fácil de verificar no Ministério Público brasileiro.

[10] Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, São Paulo:Saraiva, 5ª. ed., 2001, p. 239.

[11] Francisco António Cluny, Pensar o Ministério Público hoje, Lisboa:Cosmos, 1997, p. 132.

[12] De acordo com Georges Burdeau, a indignação não é uma atitude científica (cit., p. 94), e, sendo assim, é inútil para encontrar soluções.

[13] Spinoza, Tratado político, trad. bras., SP:Ícone, 1994, p. 101. Antes, à pág. 78, Spinoza diz que “se tudo, portanto, dependesse da vontade inconstante de um só, nada haveria de fixo”. Para obviar o abuso e o desmando, não podemos nos fiar apenas nas qualidades dos governantes e dos administradores, mas em mecanismos impessoais de estrutura de poder.

[14] Revista Veja, “A Corte dos padrinhos”, edição 2184, ano 43, n. 39, 29.09.2010, p. 112.

[15] Primeiro entre os seus iguais.

[16] Uma Lua entre estrelas menores.

[17] HC 67759/RJ, de 06/08/1992 - Tribunal Pleno.

[18] A instituição família vem, claramente, democratizando-se ao longo dos anos: o pátrio poder cedeu espaço ao poder familiar (CC, 2002), a entidade familiar ampliou o conceito de família (CF, 1988) etc.

[19] O MP é uma instituição jurídico-social (Rodrigues, 1999, p. 39), ou seja, é a institucionalização de uma função indispensável ao bom desenvolvimento social. É uma estrutura estatal que, de toda maneira, saiu da coletividade, sendo controlada em seus objetivos pela sociedade e tendo um papel positivo a desempenhar no alargamento do horizonte social, jurídico e político das massas. Insere-se, portanto, como uma instância social permeável aos ares democratizantes.

[20] Não podemos ir ao exagero de dizer que esses órgãos superiores (Procuradoria-Geral de Justiça, Conselho Superior e Colégio de Procuradores) são autocráticos, pois em suas deliberações precisam respeitar certos princípios democráticos, mas certamente há um inocultável deficit democrático em sua gênese, em sua composição e em seu funcionamento. E, definitivamente, exercem um poder monocrático.

[21] E a defesa do regime democrático ou do Estado de Direito Democrático nem de longe pode ser um conceito vazio; o significado material desse novo paradigma de Estado é que deve nortear a atuação da instituição ministerial (Streck, 2008, p. 137), tanto interna como externamente.

[22] “La vocación de poder en los partidos políticos modernos trae como contrapartida lógica y necesaria el desarrollo de tendencias autocráticas en su seno” (Yannuzzi, 2007:217).

[23] LOMPU, art. 52: “O Colégio de Procuradores da República, presidido pelo Procurador-Geral da República, é integrado por todos os membros da carreira em atividade no Ministério Público Federal”.

[24] A democracia é algo mais que a simples adesão a processos formalmente prescritos. 


Autor

  • João Gaspar Rodrigues

    Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. O autogoverno no Ministério Público brasileiro: alternativas para reduzir a politização da instituição . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3234, 9 maio 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21722. Acesso em: 25 abr. 2024.