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O crime de evasão de divisas visto sob uma perspectiva constitucional

O crime de evasão de divisas visto sob uma perspectiva constitucional

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Na conduta do agente que deixa de comunicar a existência de depósitos no exterior ao Banco Central, procedendo à comunicação à Receita Federal, não há lesão ao bem jurídico reservas cambiais nacionais, tampouco elemento subjetivo do tipo.

Resumo

O presente artigo visa fornecer, desde uma perspectiva constitucional, uma perfunctória análise do delito de evasão de divisas. Para tanto, discorre sobre a constitucionalidade das normas penais em branco heterogêneas antes de demonstrar que o sentido do dispositivo legal que criminalizou a evasão de divisas (art. 22 da Lei 7.492/86) somente pode ser extraído após a publicação de Lei Complementar, ainda inédita. Por fim, comenta a evasão de divisas imprópria, concluindo que a conduta do agente que mantém depósitos não declarados no exterior carecerá de lesividade, ou lesionará bem jurídico não tutelado pela norma penal em comento (o patrimônio fiscal), atraindo a incidência de normas penal-tributárias, consoante o princípio da consunção.

Palavras chaves: Evasão de Divisas. Norma Penal em Branco. Reservas Cambiais. Consunção.


1.INTRODUÇÃO

A redação da Lei 7.492/86, conhecida como lei do Colarinho Branco, ficou a cargo, quase que exclusivamente, de economistas, com injustificável exclusão dos juristas penais (TÓRTIMA; TÓRTIMA, 2009). Disso decorre, logicamente, a má técnica legislativa empregada, que perpassa todo o texto da lei e, principalmente, o art. 22, que trata do delito de evasão de divisas.

Quando da tipificação legal da evasão de divisas, optou-se por criar uma norma penal em branco, carecedora de complementação que, por força de determinação expressa do art. 192 da superveniente Constituição da República, deverá advir necessariamente de Lei Complementar.

Todavia, essa Lei Complementar jamais foi votada, razão pela qual, desde uma perspectiva constitucional, a eficácia do art. 22 da Lei 7.492/86 para a solução de casos concretos postos à apreciação do judiciário deve ser questionada.

Nesse desiderato, o presente artigo inicialmente discorre sobre o bem jurídico tutelado pelo enunciado normativo mencionado alhures, bem como sobre as condutas por ele proibidas, para então ingressar na análise das consequências práticas da previsão constitucional de Lei Complementar (art. 192 da CR) para que o interprete possa extrair o sentido das normas constantes do art. 22 da Lei 7.492/86.

Por fim, o texto procura demonstrar a inaplicabilidade da parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 ao(s) depósito(s) não declarado(s) mantido(s) no exterior, haja vista que, (I) ou essa conduta carecerá de lesividade ao bem jurídico tutelado (reservas cambiais nacionais), ou (II) lesionará bem jurídico diverso (patrimônio fiscal), atraindo a incidência de norma penal incriminadora diversa, consoante princípio da consunção.


2.BEM JURÍDICO TUTELADO E CONDUTAS PROIBIDAS

A norma penal incriminadora do art. 22 da Lei 7.492/86 visa proteger, mediante a cominação de sanção penal, as reservas cambiais brasileiras. Nesse sentido:

a ênfase do escopo de tutela da norma do art. 22 e de seu parágrafo único é a preservação das reservas cambiais do país, com todos os reflexos na estabilidade do Sistema Financeiro Nacional, em particular, e da própria economia, como um todo (TÓRTIMA; TÓRTIMA, 2009, p. 15, destaque dos autores).

Sobre a necessidade de se conferir proteção jurídica às reservas cambiais, Tórtima e Tórtima (2009) destacam que os déficits no balanço de pagamentos tornam os países mais vulneráveis, o que, por conseguinte, aumenta o seu endividamento externo, pela elevação das taxas de juros cobradas nos financiamentos e empréstimos concedidos pelas instituições financeiras internacionais. Os autores ainda afirmam que

reduzidos estoques de divisas inviabilizam a importação de bens de capitais (máquinas pesadas, fábricas, turbinas, etc), para o desenvolvimento de novos projetos estratégicos, indispensáveis à expansão da economia e ao fortalecimento e ampliação de sua infraestrutura (energética, de transportes, etc), além de tornar os países menos atraentes para os investimentos externos (TÓRTIMA; TÓRTIMA, 2009, p. 18).

A manutenção das reservas cambiais nacionais em patamares elevados é, portanto, essencial ao regular exercício das relações econômico-financeiras internacionais envolvendo governos. Tais relações são alicerçadas, em boa medida, na fidúcia existente entre seus gentes, sendo as reservas cambiais, se não o maior, um dos maiores indicadores da capacidade dos governos de honrarem seus compromissos internacionais.

Nesse mesmo diapasão, Bitencourt e Breda (2011), após demonstrarem a impossibilidade de uma norma penal incriminadora tutelar uma função de governo (a política cambial brasileira, a política econômica do Estado, etc), como admitido acriticamente por inúmeros penalistas, também concluem que a finalidade do art. 22 da Lei 7.492/86 é assegurar “o equilíbrio e o controle das reservas cambiais (BITENCOURT; BREDA, 2011, p.301)”.

Nesse desiderato, o legislador originário previu, no art. 22 da Lei 7.492/86, o crime de evasão de divisas, verbis:

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país.

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Portanto, no enunciado normativo transcrito acima estão descritas três condutas distintas que, praticadas isolada ou cumulativamente, caracterizam a prática do delito em comento.

No caput, do artigo, proíbe-se a realização de operação de câmbio não autorizada. A elementar “não autorizada” indica a necessidade de norma permissiva da autorização de câmbio, ou melhor, que a operação de câmbio seja realizada em conformidade com as normas que regem a matéria, sendo despicienda a existência de autorização prévia para a realização da operação. O texto legal não exige lei, bastando, portanto, a desconformidade com ato normativo do executivo, v.g., as circulares do Banco Central, para que a ocorrência do delito reste caracterizada (BITENCOURT; BREDA, 2011).

À prática da operação de câmbio não autorizada deve se somar o elemento subjetivo especial do tipo, ou especial fim de agir, que é a vontade preordenada e consciente de remeter divisas para fora do Brasil. Destarte, um vez realizada a operação de câmbio ilegal, e presente a vontade do agente, no sentido de enviar as divisas para o estrangeiro, o delito se consumará, ainda que referidas divisas jamais saiam do território brasileiro.

A primeira parte do parágrafo único do enunciado normativo em apreço, por seu turno, trata de hipótese na qual não existe uma prévia operação de câmbio, mas ainda assim o agente promove, a qualquer título, a evasão de moedas ou divisas, sem autorização legal.

Inexiste, na espécie, a exigência de elemento subjetivo especial do tipo. Assim, o delito se consumará apenas com a efetiva disponibilidade das divisas no exterior.

Ademais, a presença da elementar “sem autorização legal” demonstra que a remessa de divisas para o exterior, para se enquadrar na tipificação legal da primeira parte do parágrafo único, deverá ser contrária a disposições de lei, assim entendido o provimento normativo decorrente da atividade do Congresso Nacional, após regular sanção do Presidente da República. Portanto, inexistindo prévia operação de câmbio, só haverá o crime de evasão de divisas se a conduta do agente estiver proibida por lei, sendo insuficientes eventuais proibições constantes de atos normativos provenientes do Executivo (BITENCOURT; BREDA, 2011).

Já a parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 cuida de hipótese na qual o agente apenas deixa de declarar à autoridade federal competente a existência de depósitos no exterior. Referido crime só se consuma com o transcurso do termo final para a declaração à autoridade competente sem que o autor assim proceda, permanecendo inerte até o fim do prazo legal ou regulamentar (TÓRTIMA; TÓRTIMA, 2009).


3. DA INEXISTÊNCIA DE COMPLEMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO CAPUT E DA PRIMEIRA PARTE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 22 DA LEI 7.492/86

Consta do caput do art. 22 da Lei 7.492/86 uma norma penal em branco. As normas penais em branco são normas cujo conteúdo é incompleto, razão pela qual a sua abrangência material – o seu sentido – deve ser buscado em outra norma. A norma penal em branco será homogênea ou homóloga quando a norma acessória, que complementa seu sentido, advier da mesma fonte normativa, ou seja, do Congresso Nacional, mediante lei devidamente sancionada. Será, todavia, heterogênea ou heteróloga quando a norma que lhe complemente tiver origem distinta, enfim, quando não for uma lei em sentido estrito, a exemplo dos decretos, portarias e resoluções.

Lecionando sobre o tema, Rogério Greco assim se manifestou:

Diz-se homogênea, ou em sentido amplo, a norma penal em branco quando o seu complemento é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma que necessite desse complemento (...).

Diz-se heterogênea, ou em sentido estrito, a norma penal em branco quando seu complemento é oriundo de fonte diversa daquela que a editou (...).

Assim, para que possamos saber se uma norma penal em branco é considerada homogênea ou heterogênea é preciso que conheçamos, sempre, sua fonte de produção. Se for a mesma, será ela considerada homogênea; se diversa, será reconhecida como heterogênea (GRECO, 2002, P. 25)

Assim, transparece de tudo que foi exposto que consta do caput do art. 22 da Lei 7.492/86 uma norma penal em branco heterogênea, na medida em que a expressão “não autorizada” necessariamente remete o interpreta a outra norma que, como visto alhures, não precisará ser lei em sentido estrito, mas simples ato normativo do executivo.

Todavia, no limite as normas penais em branco heterogêneas permitem que órgão ou autoridade pública distinta do Congresso Nacional legisle sobre matéria criminal, haja vista que a palavra final sobre a tipicidade em abstrato da conduta será dada por esses órgãos e/ou autoridades, em detrimento da competência exclusiva que a Constituição da República atribuiu ao Legislativo, em homenagem ao princípio constitucional da legalidade (CR, art. 5º XXXIX):

Art. 5º. (...)

XXXIX – não há crime sem lei, anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (destaque nosso).

Outro não é o entendimento de Greco, para quem, no caso das normas penais em branco heterogêneas,

o conteúdo da norma penal poderá ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei são submetidos a apreciação de ambas as casas do Congresso Nacional, sendo levada em consideração a vontade do povo, representado pelos seus deputados, bem  como a dos estados, representados pelos seus senadores, além do necessário controle exercido pelo poder executivo, que exercita o sistema de freios e contra-pesos (GRECO, 2002, p. 27).

No entanto, a inconstitucionalidade das normas penais em branco heterogêneas não é ponto pacífico entre os doutrinadores e/ou operadores do direito, sendo amplamente majoritária a corrente que advoga a tese contrária, ou seja, que reconhece a constitucionalidade de referidas normas.

Todavia, e apenas a título de argumentação, ainda que admitida a conformidade das normas penais em branco heterogêneas com a Constituição da República, a inconstitucionalidade do preceito penal em estudo permaneceria insofismável.  Com efeito, o art. 192 da CR dispõe que o sistema financeiro nacional será regulamentado por Lei Complementar e o art. 68, § 1º, também da CR, aduz que as matérias reservadas à Lei Complementar não serão objeto de delegação ao Presidente da República.

Ora, se é inadmissível a delegação ao Presidente da República, com mais razão é vedada a delegação a órgão hierarquicamente inferior, que não poderá regular o sistema financeiro nacional por meio de decretos, resoluções, portarias, circulares, etc., por expresso impedimento constante do art. 192 da Constituição da República.

O mesmo raciocínio aplica-se à primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, que exige desconformidade com a lei em sentido estrito para que a conduta do agente se subsuma ao tipo legal. Todavia, referida lei deverá ser Lei Complementar, novamente por força do sobrecitado art. 192 da CR.

No entanto, o enunciado normativo que complementa a norma penal em branco em apreço é o art. 65[1] da Lei Ordinária 9.069/95. Sendo referida lei posterior à promulgação da Constituição da República, não há que se falar em recepção pela nova ordem Constitucional, como se Lei Complementar fosse. Destarte, a Lei 9.069/95, votada mediante maioria simples, a despeito de a Constituição exigir maioria qualificada nas matérias afeitas ao sistema financeiro nacional, é formalmente inconstitucional, por insuperável inobservância do devido processo legislativo, razão pela qual seu conteúdo é imprestável para complementar o sentido do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86.

Outro não é o posicionamento de Bitencourt e Breda:

mais que estabelecer a competência do Congresso Nacional para regular o sistema financeiro nacional, (a Constituição) determina, como já destacamos, que essa disciplina deve realizar-se através de Lei Complementar (art. 192). Logo, além de a Constituição federal fixar a exclusividade da competência do Congresso Nacional para legislar, determinou que sobre o sistema financeiro nacional o fizesse somente mediante Lei Complementar (BITENCOURT; BREDA, 2011, p. 296).

E ainda:

da previsão constante do art. 192 da Constituição Federal decorre a inidoneidade da Lei nº 9.069/95 para completar a norma penal em branco constante do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86. Com efeito, a Lei nº 9.069/95 é flagrantemente inconstitucional tanto quando limita ou condiciona a saída de moeda ou divisa, como quando delega ‘competência normativa’ ao Conselho Monetário Nacional, para legislar sobre a entrada e saída de moeda ou divisa do país, matéria diretamente relacionada ao sistema financeiro nacional. Na realidade, ante o conteúdo do art. 192 da Carta Magna o regramento dessa matéria é da competência exclusiva do Congresso Nacional (BITENCOURT; BREDA, p.297).

Portanto, a aplicação do caput e da primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 a eventuais casos concretos levados à apreciação do judiciário dependerá do advento de Lei Complementar regulamentando a matéria. Até lá, referido preceito normativo subsistirá no ordenamento jurídico apenas como indelével atestado da ineficiência do Congresso Nacional, não podendo ter aplicação prática, sob pena de se negar vigência aos artigos 68, § 1º e 192, ambos da Constituição, assim como ao princípio da legalidade, postulado inarredável do direito penal nos estados democráticos.


4.DA PARTE FINAL DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 22 DA LEI 7.492/86: AUSENCIA DE LESIVIDADE AO BEM JURÍDICO TUTELADO PELA NORMA E CONSUNÇÃO

A terceira conduta vedada pelo art. 22 da Lei 7.492/86 é a manutenção, no exterior, de depósitos não declarados à repartição federal competente. A repartição federal a que alude o texto legal é o Banco Central, responsável pela condução da política cambial brasileira. Assim, os depósitos no exterior deverão ser declarados tanto ao Banco Central quanto à Receita Federal, a título de obrigação acessória referente ao imposto de renda. A Declaração junto à Receita não isenta o agente de declarar seus depósitos externos também ao Banco Central (BITENCOURT; BREDA, 2011).

Assim, a ausência de declaração junto ao Banco Central, ainda que prestadas todas as informações perante a Receita, não teria o condão de tornar atípica a conduta, haja vista que as obrigações são distintas.

Contudo, é curial ressaltar que o bem jurídico tutelado pela norma em apreço são as reservas cambiais brasileiras, e a manutenção de depósitos não declarados no exterior, por si só, não afeta referidas reservas. Em outros termos, da omissão de declaração não resulta lesão, ou perigo de lesão, às reservas cambiais, razão pela qual a tipificação legal constante da parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 viola frontalmente o princípio da lesividade ou ofensividade.

Bitencourt explica que

o princípio da ofensividade no direito penal tem a pretensão de que seus efeitos tenham reflexos em dois planos: no primeiro, servir de orientação à atividade legiferante, fornecendo substratos político-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha verdadeiro conteúdo ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes; no segundo plano, servir de critério interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto indispensável lesividade ao bem jurídico protegido (BITENCOURT, 2008, p.22, itálicos do autor).

Desde esse ponto de vista (necessidade de ocorrência, em concreto, de lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico tutelado), faz-se necessário distinguir a conduta do agente que deixa de comunicar a existência de depósitos no exterior ao Banco Central, procedendo à comunicação à Receita Federal, da conduta daquele indivíduo que não realiza qualquer das duas comunicações.

No primeiro caso, além da inexistência de lesão ao bem jurídico reservas cambiais nacionais, verifica-se também a ausência do elemento subjetivo do tipo, na medida em que é ilógico pensar que o agente, de livre e espontânea vontade, se dirigisse à Receita Federal com o fito de informar a existência de depósitos no exterior, sabendo de antemão que referidas declarações inexoravelmente serão repassadas ao Banco Central. É insofismável que, em casos tais, a ausência de declaração ao Banco Central decorre de simples esquecimento, desconhecimento da obrigação ou mesmo impossibilidade jurídica ou material de prestar as informações devidas, e não de dolo de lesar as reservas cambiais brasileiras.

Nesse sentido:

a eventual omissão da declaração ao Banco Central, havendo a inclusão dos depósitos mantidos no exterior na declaração destinada à Receita Federal, não pode configurar o crime que ora se examina, limitando-se a um ilícito administrativo financeiro por ausência de ofensa ao bem jurídico tutelado. Comportamento como esse afasta, no mínimo, o dolo, representado pela vontade consciente de omitir das autoridades monetárias a declaração de seus bens tidos e/ou mantidos no exterior (BITENCOURT; BREDA; 2011).

Situação distinta é a do agente que, concomitantemente, deixa de declarar os depósitos no exterior à Receita Federal e ao Banco Central. Nesta hipótese, a lesão ao patrimônio fiscal, bem jurídico tutelado pela Lei 8.137/90, estaria, ao menos em tese, configurada. Mas, mesmo em casos tais, a incidência da parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 deve ser afastada. Com efeito, na situação descrita, é forçoso admitir, a vontade consciente do agente está voltada para a fraude ao fisco, sendo a ausência de declaração ao Banco Central um mero meio de obtenção do resultado almejado, razão pela qual deverá ser absorvido pelo delito tributário, consoante o princípio da consunção.

Bitencourt explica que

há consunção, quando o crime meio é realizado como uma fase ou etapa do crime fim, onde vai esgotar seu potencial ofensivo, sendo, por isso, a punição somente da conduta criminosa final do agente (BITENCOURT, 2008, p. 202).

E, sobre a possibilidade de aplicação do princípio da consunção em crimes cometidos contra bens jurídicos distintos, como no caso em comento (patrimônio fiscal e reservas cambiais), Bitencourt acrescenta que

Não é (...) a diferença dos bens jurídicos tutelados, e tampouco a disparidade de sanções cominadas, mas a razoável inserção na linha causal do crime final, com o esgotamento do dano social no último e desejado crime, que faz as condutas serem tidas como única (consunção) e punindo-se somente o crime último da cadeia causal, que efetivamente orientou a conduta do agente (BITENCOURT, 2008, p. 202).

O mesmo pensamento é esposado por Tórtima e Tórtima, para quem

a maioria das contas mantidas clandestinamente no exterior tem por finalidade a ocultação de recursos tributáveis, mas não devidamente oferecidos à tributação (...). Sendo, portanto, um meio para, com maior garantia de impunidade, sonegar a informação que deveria o agente prestar ao Fisco, não seria desarrazoado sustentar que a manutenção de depósitos não declarados no exterior configuraria o fenômeno da consunção em relação ao delito tributário. De fato, se restasse demonstrado, que o injusto do art. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86, última parte, teria, no caso concreto, esgotado sua capacidade lesiva no dano ao patrimônio fiscal, não haveria mesmo como negar sua condição de crime-meio impunível, ou norma consumida, em relação ao crime-fim, tributário (TÓRTIMA; TÓRTIMA, 2009, p.68).

Sendo, portanto, eminentemente tributária a questão da manutenção de depósitos não declarados no exterior (TORTIMA; TÓRTIMA, 2008), os órgãos encarregados da persecução penal devem voltar seus esforços para a apuração, julgamento e punição dos agentes pela prática de delitos contra a ordem tributária, deixando a apreciação da (i)legalidade dos depósitos mantidos no exterior para as autoridades administrativas.


5.CONCLUSÕES

A Lei 7492/86, visando tutelar as reservas cambiais brasileiras, tipificou, em seu art. 22, três condutas distintas: (I) realizar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas; (II) promover, a qualquer título e sem autorização legal, a saída de moeda ou divisas e (III) deixar de declarar à repartição federal competente a existência de depósitos no exterior.

As duas primeiras normas são normas penais em branco cuja complementação depende, por força do art. 192 da CR, de Lei Complementar, até hoje não votada, razão pela qual referidos dispositivos não prestam, desde uma perspectiva constitucional, à solução de casos concretos. Acrescente-se, ainda, que a primeira norma (realizar operação de câmbio não autorizada) é uma norma penal em branco heterogênea e, portanto, de constitucionalidade duvidosa.

A manutenção de depósitos não declarados no exterior, por seu turno, é conduta que não violenta o bem jurídico reservas cambiais brasileiras ou, na pior das hipóteses, lesa bem jurídico diverso, qual seja, o patrimônio fiscal, razão pela qual, consoante o princípio da consunção, o agente deverá ser punido apenas pela prática de crime contra a ordem tributária.

Conclui-se, portanto, que até o advento da Lei Complementar a que se refere o art. 192 da CR, o art. 22 da Lei 7.492/86 não possui utilidade prática e não deve ser aplicado, sob pena de violação formal à Constituição, bem como de inobservância a princípios fundamentais do direito penal nos estados democráticos, v.g. a legalidade e a lesividade.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. – 13ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2008;

BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011;

GRECO, Rogério. Curso de direito penal. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Impetus, 2002;

TÓRTIMA, Fernanda Lara; TÓRTIMA, José Carlos. Evasão de divisas: uma crítica ao conceito territorial de saída de divisas contido no parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492. – 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009;


Abstract

The present article aims to provide, from a constitutional perspective, a glimpse to the capital flight crime. To this end, analyses the constitutionality of criminal laws that require completion of infralegal rules before demonstrating that the meaning of the legal provision that criminalized capital flight can only be extracted after the publication of Supplementary Law. Finally, comments on improper capital flight, concluding that the agent who does not declare deposits abroad would not damage the legal well protected by the rule or will damage another legal well (the tax equity), attracting the incidence of another rules.


Notas

[1] Art. 65. O ingresso no país e a saída do país, de moeda nacional e estrangeira, serão processados exclusivamente através de transferência bancária, cabendo ao estabelecimento bancário a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário.

§1º. Excetua-se do disposto no caput deste artigo o porte, em espécie, dos valores:

I – quando em moeda nacional, até R$ 10.000,00 (dez mil reais);

II – quando em moeda estrangeira, o equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais);

III – quando comprovada a sua entrada no país ou sua saída do país, na forma prevista na regulamentação pertinente.

Verifica-se, portanto, a autorização legal para a livre saída de quantias não superiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Acima desse limite, preceitua a lei que a remessa de divisas deverá ser feita apenas mediante o concurso de instituição financeira credenciada.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DALLE, Ulisses Moura. O crime de evasão de divisas visto sob uma perspectiva constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3270, 14 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22004. Acesso em: 19 abr. 2024.