Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/2243
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Direito do estado federado ante a globalização econômica

Direito do estado federado ante a globalização econômica

Publicado em . Elaborado em .

Sumário: 1.Perspectiva do federalismo brasileiro ante a redução do Estado nacional; 2. Uma questão relevante: o Estado federado sob a ótica da repartição das competências; 3. Modelo híbrido da Constituição brasileira e as dificuldades históricas de realização da competência reservada aos Estados federados; 4. Crítica à fraca realização, pelos Estados federados brasileiros, da competência legislativa concorrente; 5. Crise do Estado social e sua redução ao papel de Estado regulador; 6. Globalização econômica e efeitos nos direitos nacionais; 7. Desconstitucionalização, desregulamentação e refluxo do princípio fundamental da justiça social; 8.Interesse público estatal e interesse público social; 9. O pluralismo jurídico na perspectiva da globalização econômica e o desafio ao direito do Estado moderno; 10. Em conclusão: qual o espaço a ser ocupado pelo Estado federado?


1.Perspectiva do federalismo brasileiro ante a redução do Estado nacional

A experiência brasileira do federalismo republicano despontou para a crescente primazia do direito promanado da União (direito federal), às vezes em situações tais de quase supressão da autonomia dos Estados federados (direito estadual) que se aproximam do unitarismo imperial do século dezenove. Essa inclinação centralizadora, sem embargo da resistente cultura nacional de autoritarismo político, é justificada por muitos como necessária para fortalecer a União contra o risco de desagregação de um país continental e contra os abusos do mandonismo local, pouco afeito às regras da primazia dos interesses públicos sobre os interesses privados.

A globalização econômica, desde a década de oitenta do século vinte, tem apresentado uma característica instigante: seu avanço se dá a expensas dos direitos nacionais, é dizer, da redução dos poderes dos Estados nacionais, máxime no que concerne aos direitos sociais e econômicos. Outra característica da globalização econômica, também instigante, é a tensão que se tem manifestado entre o global e o local. Essas características parecem apontar para a superação do modelo do federalismo concentrador, despontando a responsabilidade crescente dos governos locais, a saber das unidades federadas, na realização das finalidades do Estado democrático e social de direito, o que, paradoxalmente, significará o fortalecimento da União. Ao início do século vinte e um, a globalização não é política pois os organismos internacionais são ainda frágeis para exercerem poder hegemônico e os Estados nacionais são utilizados como aliados da globalização econômica, desde que seus direitos sejam reduzidos a patamares mínimos.

No século vinte, os Estados nacionais converteram-se em Estados de bem-estar social, ampliando sua intervenção no domínio econômico, para reduzir as conseqüências negativas da ausência deliberada de sua ação positiva, a que foram relegados pela triunfante ideologia liberal do século dezenove. O Estado social, assim genericamente denominado, parecia ser o estágio mais avançado da evolução do Estado moderno e da própria modernidade. A globalização econômica, como fato de exercício de poder das nações centrais e das empresas transnacionais, e o neo-liberalismo, como fundamento teórico e ideológico desse fato, e a fortiori, do mercado livre de limitações jurídicas, têm o Estado social como alvo, com intuito de enfraquecê-lo, no que apresenta de nuclear: a promoção dos direitos sociais e a proteção dos mais fracos. Os meios são conhecidos, a saber, a desconstitucionalização e a desregulamentação de amplas matérias, reduzindo o espaço público em benefício de espaço privado subtraído à tutela jurídica.

Assim, a experiência do federalismo brasileiro, de supremacia das competências da União, tornou o direito nacional muito mais vulnerável a essas pressões, sem a contrapartida dos direitos locais que possam contrabalançar o aviltamento do sistema de garantias legais que o país construiu ao longo de sua história republicana. Um dos pilares da bem sucedida aventura humana do federalismo é a distribuição das competências entre a União e os Estados federados, que pode indicar o caminho que estes poderão seguir ou intensificar, se a Constituição de 1988 permanecer intocada nesse ponto.

Não é objeto deste estudo o papel dos municípios, em face da globalização econômica, mas as repercussões neles são evidentes. A ótica escolhida é exclusivamente jurídica, razão porque não serão trazidas à baila as preciosas análises que estão a se fazer na ciência política, nas ciências sociais, na economia, na filosofia, na história, sobre o fenômeno inquietante da globalização econômica, salvo como argumento complementar.


2.Uma questão relevante: o Estado federado sob a ótica da repartição das competências

Para melhor situarmos o campo de nossas reflexões, sempre na perspectiva dos Estados federados, recordemos que nos dois séculos de sua experiência, o federalismo surgiu como solução de organização política de povos com identidades próprias e, atualmente, como modo de otimização da democracia. Seu campo preferencial tem sido o dos países com grandes extensões territoriais, sem embargo da existência de federações em espaços pequenos, como a Suíça. No contexto mundial, de aproximadamente duzentos estados nacionais, os estados federais são minoria numérica e aqueles que se constituíram de modo artificial, sem unidade cultural, tendem a desaparecer, como sucedeu com a União Soviética e a Iugoslávia.

No Brasil, o constitucionalismo é tão cioso da natureza fundamental da organização federal, que foi incluído entre as cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º, I da Constituição Federal de 1988), como núcleo duro, imodificável mediante emenda. O país pode optar pela monarquia, mas não pode extinguir a federação.

Contudo, no que concerne à repartição das competências entre União e Estado federado, o federalismo atual apresenta três tendências distintas, o que demonstra não haver um único modelo. Sob a ótica do Estado federado, a repartição de competência pode ser:

a)de competência residual ou reservada, decorrente do assim chamado federalismo dual;

b)de competências expressamente fixadas;

c)de competência concorrente ou cooperativa.

A experiência do federalismo dual, inclusive nos Estados Unidos, sua pátria de origem, indicou um progressivo estreitamento dos "poderes reservados" dos Estados federados, em favor da supremacia da União. A idéia originária de fixar para a União um conjunto definido de poderes, reservando todos os demais aos Estados federados, não prevaleceu, por várias razões históricas e políticas, fartamente indicadas na doutrina. Tem-se, em realidade, um poder federal hegemônico. Na dúvida, o Poder Judiciário federal tende a fazer predominar a competência da União, assim nos Estados Unidos, como nos países que seguiram seu modelo.

O federalismo de competências taxativas, em princípio, favorece os Estados federados, pois estes, do mesmo modo como para a União, têm suas competências claramente definidas, neste ponto sem risco de conflito. A experiência mais conhecida é a da Índia. Os analistas desse modelo alertam para dois problemas de sua aplicação real: primeiro, as matérias não listadas tendem a cair no âmbito da competência da União; segundo, sem embargo da taxatividade, a interpretação judicial tende a favorecer o direito federal, quando ocorre conflito de competência(1).

O federalismo de competência concorrente ou cooperativo permite a comunicação entre os níveis federal e estadual, pois, no campo legislativo, a União edita as normas gerais e os Estados as ambientam, em larga margem, às suas peculiaridades locais. O essencial está no conteúdo conceptual de "normais gerais", como limite constitucional à União. O sentido de competência concorrente difere daquele que o senso comum teórico desenvolveu. Hamilton(2), um dos clássicos do federalismo americano do século dezenove, disse que a legislação concorrente resultava da divisão do poder soberano, isto é, de esferas de poder privativas da União e dos Estados federados. A acepção atual é de competências sobre matérias comuns, embora com limites de forma e conteúdo recíprocos. A saber, cabe à União fixar as normas gerais e aos Estados federados as normas específicas.


3.Modelo híbrido da Constituição brasileira e as dificuldades históricas de realização da competência reservada aos Estados federados

A Constituição brasileira de 1988, ao contrário das constituições anteriores, optou por um sistema misto, mantendo o modelo tradicional do federalismo dual e introduzindo a competência legislativa concorrente, no artigo 24, além de competências de execução comum de políticas públicas (artigo 23). Logo após o advento da Constituição, publiquei um artigo sobre essa novidade bem vinda(3), cercado de expectativa favorável de sua ampla utilização. Mais de uma década após, os resultados foram frustrantes. Os Estados federados não exerceram, como se esperava, os poderes que confiantemente a Constituição lhes delegou. Quais teriam sido as causas?

Historicamente, o sistema de poderes reservados não se ambientou em terras brasileiras, até porque nosso federalismo foi uma escolha política da Constituição de 1890, reproduzindo o modelo norte-americano, não resultando, como este, de concessão dos Estados que formaram a União, reservando para eles tudo o mais que estivesse fora dos poderes fixados expressamente. Em contrapartida, o Brasil foi, durante o Império, um país unitário. Durante a República Velha, até à década de trinta, esses poderes foram desfrutados no interesse dos mandarinatos locais, gerando abusos que desacreditaram o sistema. Note-se, todavia, que o sentimento favorável ao federalismo esteve presente em nossos estadistas, inclusive durante o Império. A esse respeito, lê-se em Alfredo Varela(4):

"O federalismo é, desde 1831, a mais ardente e generalizada aspiração do Brasil. Nos trabalhos de reforma constitucional posteriores à revolução do ano citado, chegou a adotá-lo a Câmara Temporária e, se não é a resistência da Câmara vitalícia, de há muito vigorava no País. Tão acentuadas eram as tendências reformadoras no sentido da ampla autonomia provincial, que monarquistas sinceros, da ordem de Saraiva e Nabuco, preconizavam os modelos federativos, como sendo a condição de salvação do Império, nos últimos anos dele".

Sob a égide das Constituições posteriores, a legislação brasileira substancial, em todas as áreas, concentrou-se no âmbito federal. Sob esse ângulo, a federação, no Brasil, foi e é uma das mais concentradas do mundo. A atitude normal da população dos Estados é aguardar a resolução de seus problemas pela União.

Outra causa importante é o entendimento constante do Poder Judiciário em ter como normal essa concentração, restringindo fortemente o poder dos Estados federados em cuidarem diretamente de matérias relevantes que reflitam no cotidiano dos cidadãos. Restou aos Estados federados tratarem de seus assuntos administrativos, dos impostos específicos e de alguns assuntos residuais. Antes de 1988, como exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu, freqüentemente, pela inconstitucionalidade de leis dos Estados que intentaram controlar o uso de agrotóxicos em seus territórios, no sentido da proteção ao meio-ambiente e da prevenção da saúde das populações. Para o STF essas matérias, tão sensíveis aos interesses locais, seriam de competência exclusiva da União, inibindo fortemente tais iniciativas, com reflexos até hoje.


4.Crítica à fraca realização, pelos Estados federados brasileiros, da competência legislativa concorrente

Esse caldo de cultura adverso à competência concorrente foi agravado por dificuldades que necessitam de ser superadas. Os poderes legislativos estaduais têm de estar adequadamente preparados para essas novas e relevantes funções, desenvolvendo a parte que lhes toca na realização e concretização, pela administração pública, dos direitos sociais referidos no artigo 6º da Constituição Federal (educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, moradia e assistência aos desamparados).

Há de ser vencida a incompreensão, pelos Estados federados, do imenso alcance do federalismo concorrente e cooperativo, e a impressionante inércia legislativa sobre as matérias que a Constituição a eles confiou. Muito pouco se avançou nessa área. Não tenho notícia, por exemplo, de qualquer legislação estadual que tenha regulado sobre "procedimentos em matéria processual" (art. 24, XI, da CF), que é abrangente do processo civil e do processo penal, nas jurisdições estaduais, ditas comuns ou gerais.

Os abusos já referidos da República Velha deixaram marcas muito profundas, na consciência jurídica nacional, de rejeição às competências estaduais sobre matérias que, em outras federações, são delas exclusivas. Partiu-se então para o extremo oposto, é dizer, da vedação completa aos Estados de editarem legislações próprias sobre as mais importantes matérias pertinentes às relações jurídicas dos cidadãos, a exemplo do direito processual, concentrando-se em códigos únicos aplicáveis a todo o país, sem contemplação das peculiaridades locais ou regionais. A competência concorrente, dialeticamente, intenta uma síntese mais razoável, atribuindo à União a edição de normas gerais, uniformizando os elementos básicos e estruturais e delegando aos Estados a regulação das diferenças ou das diversidades.

À omissão dos Estados federados junta-se o abuso legislativo da União a preencher os vazios normativos, em alguns casos invadindo impropriamente campos que ela não pode tratar. Dou exemplos: a legislação processual civil, inclusive a mais recente, não se contenta com normas gerais sobre procedimentos, descendo a tais minúcias que não deixa espaço à legislação estadual; a Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União e dos Estados, chega ao ponto de definir, nos mínimos aspectos, os direitos, prerrogativas, modos de provimento dos defensores públicos estaduais e até da estrutura administrativa que devem os Estados observar.

Os tribunais, notadamente os superiores, quando se deparam com normas federais que tratam das matérias listadas no artigo 24 da Constituição, ainda que expandidas a situações específicas, inclinam-se a concebê-las como gerais, elastecendo o limite que se impôs à União, de modo a tornar indistinto o que não é geral.

As normas gerais encerram uma faculdade à União, mas estão contidas em seus próprios limites, ou seja, não podem ser exaustivas. As normas gerais estabelecem princípios, regras básicas comuns, diretrizes ou diretivas de harmonização. Não podem especificar situações que, por sua natureza, são campo reservado aos Estados federados. Transpostos esses limites, as normas gerais são inconstitucionais. A Constituição foi clara quanto ao alcance da competência federal concorrente: "a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais".

Sublinhe-se que a competência legislativa concorrente não está adstrita apenas às hipóteses referidas no artigo 24 da Constituição. Nas matérias dispersas em outros artigos, para as quais a Constituição atribui à União apenas a competência de editar normas gerais, ressalta a competência concorrente dos Estados federados.

A concretização do federalismo concorrencial ou cooperativo, e o consectário fortalecimento do direito emanado dos Estados federados, é condição imprescindível para o equilíbrio de forças entre o global e o local, para contrabalançar o enfraquecimento do direito nacional e as conseqüências negativas da globalização econômica. Reside na força do direito local (Estados e municípios) a sobrevivência do Estado social, a grande aventura da modernidade solidária do século vinte.


5.Crise do Estado social e sua redução ao papel de Estado regulador

Entende-se por Estado social, no plano do direito, todo aquele que é regido por uma Constituição que regule a ordem econômica e social. Nesse sentido, substituiu o Estado liberal, cuja constituição voltava-se à delimitação do poder político ou à organização política e à garantia dos direitos individuais, deixando a ordem econômica à "mão invisível" do mercado. Um ou outro pode ser politicamente democrático ou anti-democrático, o que não interessa a este estudo. Assim, o Estado social caracteriza-se por estabelecer mecanismos jurídicos de intervenção nas relações privadas econômicas, nas dimensões legislativa, administrativa e judicial, para a tutela dos mais fracos, tendo por objetivo final a realização da justiça social. Pontificou, incontestado, desde as Constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919 até o início da década de oitenta do século vinte, quando passou a sofrer o assalto crescente do neo-liberalismo, patrocinado pelas nações centrais, e da globalização econômica, amplificada pela revolução da informática.

A crise do Estado social foi aguçada pela constatação dos limites das receitas públicas para atendimento das demandas sociais, cada vez crescentes. Portanto, a crise situa-se na dimensão da ordem social insatisfeita (garantia universal de saúde, educação, segurança, previdência social, assistência aos desamparados, sobretudo), ou do Estado providência. No que respeita à ordem econômica, todavia, a crise é muito mais ideológica que real, pois dirige-se à redução do Estado empreendedor ou empresário e do garantismo legal. Mas, na medida que o Estado substitui seu papel de empreendedor para o de regulador da atividade econômica, permanece intacta a natureza intervencionista da ordem econômica constitucional, ou a "mão visível" do Estado.

A idéia de retorno ao Estado mínimo (e nesse sentido, liberal) é a-histórica. É pouco crível que a humanidade suporte viver sem as garantias legais coletivas que duramente conquistou, nas relações de trabalho (o que envolve a extinção do direito do trabalho), nos direitos do consumidor, no direito da livre concorrência, na função social da propriedade, na preservação do meio-ambiente, enfim, sem uma ordem econômica constitucional e social.

O Estado social é vítima, nos países, de seu próprio sucesso, diz Gomes Canotilho(5), para o qual as constituições "socialmente amigas" sofrem as críticas amargas da "crise de governabilidade", do "flagelo do bem", do "fim da igualdade", da "bancarrota do Estado". Tal perplexidade está sendo aguçada, como vimos acentuando, pela globalização econômica, na medida que aprofunda a tendência pela substituição do Estado de bem-estar para o Estado regulador, enquanto for necessária essa função de garantia das regras do jogo das forças econômicas hegemônicas.

A sobrevivência do Estado social, sempre entendido como passo decisivo no processo de emancipação da humanidade, importa a própria sobrevivência do Estado moderno, para não dizer da modernidade. Não sem razão, muitos estudiosos apontam a crise do Estado social como sinal do surgimento da chamada pós-modernidade, que revela impressionantes traços feudais, de um neofeudalismo social.

As várias reformas que vem sofrendo a Constituição de 1988 reduziram fortemente seu alcance, mas não retiraram dela a natureza básica do Estado social a que se destina, comprometido com a justiça social, afirmada como princípio estruturante da ordem política e da ordem econômica (veja-se, especialmente, o caput do artigo 170, conformador da atividade econômica exercida no país).


6.Globalização econômica e efeitos nos direitos nacionais

A globalização não tem recebido sentido unívoco dos estudiosos. Se o fenômeno não é recente, como parece a alguns, suas características atuais são próprias e agudas. Não interessa para este estudo as variáveis da globalização, algumas benéficas, nos campos político, cultural, científico, dos direitos humanos, do meio-ambiente e da paz mundial, pela qual tanto pugnaram os iluministas, levando à relativização das soberanias nacionais e à primazia do direito internacional. Interessa, sim, a chamada globalização econômica, notadamente quanto a seus efeitos negativos e destrutivos sobre os direitos nacionais, máxime dos direitos sociais e da ordem econômica.

A globalização econômica, por certo, não é fato episódico ou fugaz, o que torna mais preocupantes suas conseqüências negativas. Cogita-se de um "homo globalizatus", significante de viragem cultural positiva ou de superação de paradigmas(6). Há um otimismo fantástico, no ar, enxergando-se superações de desigualdades mundiais, a exemplo da divisão entre primeiro mundo e terceiro mundo, ou a realização de um sistema racional que leve ao bem-estar de todas as regiões do globo, determinado pelos interesses dos habitantes e não dos lucros ou da guerra(7). Até agora, o que se vê é o crescimento da concentração de poder empresarial, em escala planetária impressionante, no qual os valores hegemônicos são ditados pelos interesses das grandes empresas, com força econômica e law making power superiores ao da maioria dos países. No final do século vinte, a fortuna de apenas três homens superava o Produto Interno Bruto dos quarenta países mais pobres(8). A repercussão no campo jurídico é aguda, revelando perplexidades e dificuldades ainda não totalmente apreensíveis, pois está em jogo o próprio Estado nacional e o direito que se desenvolveu em seu seio, nos últimos séculos. Todavia, a globalização econômica não está vindo secundada pela globalização política, revelando a inexistência de ordem jurídica internacional suficientemente forte para contê-la em limites razoáveis. A este respeito, agudamente observou Eric Hobsbawm(9):

"É nesse contexto que devemos nos perguntar sobre as conseqüências do enfraquecimento do Estado nacional. Será algo bom ou ruim? Ainda não sabemos. Mas é certo que os Estados nacionais não podem ser ignorados, e não podemos examinar o mundo como se não existissem ou não fossem importantes, pois não há nada além deles no campo da política. Atualmente, é simplesmente inexistente a possibilidade de que uma única autoridade global desempenhe um papel político e militar efetivo".

A globalização econômica procura transformar o globo terrestre em um imenso e único mercado, sem contemplação de fronteiras e diferenças nacionais e locais. Tende a uma padronização e uniformização de condutas, procedimentos e relevâncias relativamente aos objetivos de maximização econômica e de lucros, a partir dos interesses das nações centrais e empresas transnacionais que, efetivamente, controlam o poder econômico mundial, sem precedentes na história.

Todo o aparato legal que se constituiu em torno do Estado social, densificando os princípios e regras consitucionais, tem sido desafiado pela globalização econômica. O desafio apresenta-se sob dois aspectos principais: o primeiro, vem em forma de pressão para remoção ou aviltamento dos direitos sociais e de redução substancial do sistema legal de intervenção e controle da ordem econômica, sob pena de retaliações difusas ou diretas, inclusive de recusa de investimentos ou saída de capitais do país; o segundo, pela desconsideração do direito nacional ou sua utilização, naquilo que convém. Ambos levam ao notável enfraquecimento do direito nacional, que se torna impotente para fazer face a eles.

A remoção do Estado social, ou sua substancial redução, é a conseqüência lógica da globalização econômica, pois esta é naturalmente excludente, na medida em que o garantismo legal dos interesses dos mais fracos dificulta sua expansão. Niklas Luhmann, um crítico tenaz do projeto do Estado social (para ele irrealizável), reconhece que "a realização do princípio da inclusão no âmbito funcional da política tem como conseqüência o trânsito ao Estado de Bem-Estar Social" pois este, em suma, é "a realização da inclusão política"(10).

A inexistência de uma ordem jurídica internacional, mercê de ausência da globalização política, tem estimulado as empresas transnacionais a assumirem esse papel, em seu interesse, como ocorreu com a tentativa, felizmente fracassada, de um Acordo Multilateral sobre Investimentos, mediante o qual seriam dotadas de direito unilateral de processarem diretamente Estados que adotassem políticas prejudiciais a seus lucros. Se a idéia tivesse prosperado, as empresas transnacionais seriam equiparadas aos próprios Estados.

O meio mais eficiente de desconsideração do direito nacional é o da utilização massificada de condições gerais dos contratos. Sob a aparência de contrato, esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente revelável, que ostenta características assemelhadas às da lei. A lei, no Estado moderno, ostenta características que a distanciam de qualquer ato de particulares ou de grupos. São eles: a generalidade, a abstração, a uniformidade e inalterabilidade. Pois bem, as condições gerais dos contratos apresentam as mesmas características. São gerais, porque se aplicam a todos os destinatários, sem individualização. São abstratas, porque são predispostas para regerem situações futuras, e não à situação concreta e determinada. São uniformes, porque padronizadas para utilização com todos os que necessitarem dos produtos ou serviços fornecidos. São inalteráveis, porque insuscetíveis de negociação individual com cada interessado. Quem edita a lei é um ente neutro, a saber, o Estado, poder político legitimado pela coletividade. Quem edita ou predispõe as condições gerais é a parte interessada. As condições gerais são o mais eficiente instrumento do poder normativo das corporações econômicas, que dispensam ou tangenciam os direitos nacionais, pois lidam com as necessidades reais ou induzidas de produtos e serviços, que desejam ser satisfeitas. A globalização econômica potencializou esse poder normativo, que ultrapassa fronteiras, pois as empresas transnacionais utilizam as mesmas condições gerais, emanadas de suas sedes, em todos os países onde fornecem produtos e serviços, apenas vertendo-as ao idioma local, quando o fazem. De modo geral, tangenciam ou desconsideram os sistemas de garantias dos direitos locais, ou pressionam fortemente para mudá-los.


7.Desconstitucionalização, desregulamentação e refluxo do princípio fundamental da justiça social

A repercussão mais viva da globalização econômica, no direito, deu-se nas últimas décadas pelos fenômenos da desconstitucionalização e da desregulamentação, notadamente nos países de economia periférica, como o Brasil. Argumenta-se, a partir das demandas insatisfeitas pelo Estado social, que há direito demais e economia de menos.

A desconstitucionalização afeta fundamentalmente a ordem econômica e social, o núcleo do Estado social, reduzindo ou extinguindo partes do sistema tutelar dos mais fracos e, por consequência, do poder de intervenção estatal. Nessa linha, a Constituição deveria retornar à função que exerceu no Estado liberal, refluindo para a organização política e garantia das liberdades individuais, retirando-se da direção da ordem econômica e social ou estabelecendo apenas princípios genéricos que não afetem o mercado.

A desregulamentação surge com o discurso sedutor da desburocratização. Tem por fito, no entanto, tornar o mercado mais livre dos controles coletivos ou sociais. Por conseqüência, a administração pública tem reduzido, substancialmente, seu poder de intervenção nas atividades econômicas.

A conseqüência de tal processo é o "o deslocamento da produção jurídica em direção aos poderes privados econômicos", como diz Arnaud(12), passando a competirem com o Estado os códigos de conduta privados, o desenvolvimento do direito negociado e a jurisdicização crescente da normalização técnica(12).

Essa genérica deslegalização da vida econômica tem trazido a expansão das exclusões sociais e regionais. Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido(13). No artigo 170 da Constituição brasileira, a justiça social é macroprincípio que se concretiza em vários outros, para conformação e condicionamento da atividade econômica. Diferentemente da justiça comutativa, própria dos contratos paritários, ou da justiça distributiva, que trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, a justiça social é uma justiça promotora, pois submete as atividades da vida privada à promoção das superações ou reduções das desigualdades sociais e regionais (artigos 3º, III, e 170, VII, da Constituição).

A incompatibilidade da ideologia neoliberal, que lastreia o avanço da globalização econômica, com a Constituição brasileira é total, pois esta tem seus fundamentos no Estado democrático e social de direito, naturalmente intervencionista, e determinada por direitos fundamentais(14). As diversas emendas que sofreu a Constituição têm reduzido o alcance de seus fundamentos, na razão inversa do favorecimento dos interesses do poder econômico. Mas, essencialmente, o Estado social permanece fincado na Constituição e, apesar dos esforços em reduzi-la, a ideologia do interesse social consegue abrigar espaços de contraposição, como se deu com a mudança do artigo 6º, ampliando-se o rol de direitos sociais, para incluir a moradia.


8.Interesse público estatal e interesse público social

Muito importante tem sido a distinção entre interesse público estatal e interesse público social, que tem tido curso independente do fenômeno da globalização. É muito mais conseqüência do amadurecimento do Estado social que passou a ter convivência menos traumática com a sociedade civil organizada. Durante o período do Estado liberal, havia nítida separação entre o que era público, sempre no sentido de estatal, e o que era privado. Todavia, o interesse público não está contido apenas no poder político organizado; pode estar na sociedade, de modo transubjetivo, para além dos interesses particulares, não se confundindo com a soma destes. E pode, até mesmo conflitar com o interesse público estatal. Veja-se o exemplo do meio ambiente, pois interessa a todos, à toda sociedade que seja preservado, mesmo que a administração pública tenha entendido que deva ser sacrificado ou limitado em benefício do progresso econômico. Às vezes, e infelizmente com freqüência, o poder público está em total sintonia com o poder econômico, especialmente nessa era de sujeição dos Estados à globalização econômica, o que faz emergir o contraponto do interesse (público) social, especialmente por esse achado da cidadania ativa que são as ações coletivas (no Brasil, especialmente as ações civis públicas e as ações populares). Quando um cidadão, na ação popular, ou o membro do Ministério Público, na ação civil pública, postula a defesa do meio ambiente contra decisões e escolhas legítimas da Administração Pública, dentro do campo indiscutível do interesse público, o conflito se dá com o interesse público social.

Durante a hegemonia do Estado liberal, a desapropriação de bens particulares apenas seria possível se ficasse constatado interesse público, mediante a transferência forçada do domínio privado para o domínio público (estatal), e desde que houvesse o pagamento de justa e prévia indenização em dinheiro. O Estado social, no entanto, patrocinou o surgimento da desapropriação por interesse social, que não se confunde com o interesse público clássico, pois há transferência forçada de domínio particular para domínio particular, sem prévia e justa indenização em dinheiro, como se dá, por exemplo, com os artigos 182, § 4º, III e 184 da Constituição de 1988, nas hipóteses de glebas urbanas coletivamente apossadas ou de reforma agrária. Nesse tipo de desapropriação, o Estado realiza o interesse social, como agente ativo de promoção da justiça social.

Essa distinção, portanto, se contrapõe ao fundamento nuclear da globalização econômica e, a fortiori, da ideologia do neoliberalismo, que propugnam pela resolução dos conflitos no ambiente do mercado, sem qualquer interferência do Estado e sem consideração de justiça social.


9.O pluralismo jurídico na perspectiva da globalização econômica e o desafio ao direito do Estado moderno

O Estado moderno trouxe a si a exclusividade ou o monopólio da produção do direito, como pedra de toque da superação dos localismos jurídicos da cultura medieval, do direito estamental, dos privilégios. Esse é um dos mais importantes traços da modernidade, no campo jurídico.

O pluralismo jurídico, entretanto, sempre esteve permeando as reflexões dos juristas, alimentado, especialmente, pelos estudiosos da sociologia do direito. Para muitos, com especial insistência nas últimas décadas, a produção do direito não é exclusividade do Estado, pois a regulação de condutas pode derivar de várias fontes sociais concorrentes, que produzem direito reconhecível pelos destinatários ou utentes, de modo muito mais eficaz (no sentido de eficácia social) que o direito oficial. Assim os direitos praticados por comunidades diversas, por movimentos sociais, por minorias, por entidades associativas, por empresas, pela tradição de grupos sociais, enfim, por novos sujeitos coletivos(15). Esses direitos seriam secundum legem (supletivos do direito estatal) ou mesmo contra legem. Essas correntes partem sempre da ótica dos excluídos dos benefícios da ordem jurídica. Porém, o Estado social sempre teve uma certa dose de adaptabilidade para recepcionar essas expressões extra-oficiais de normatividade, incorporando-as à sua própria ordem jurídica, como meio prático de inclusão e superação dos conflitos sociais, ainda que simbólico, em grande medida. Desse modo, as correntes do pluralismo jurídico não questionam o prevalecimento do direito estatal, mas sua exclusividade.

De outra natureza são os fenômenos impulsionados pela globalização econômica, constituintes de um pluralismo jurídico anti-estatal ou supra-estatal.

Estudiosos da filosofia, da sociologia e da ciência política têm vislumbrado sinais de pós-modernidade, que não significa juízo de valor positivo(16). A modernidade trouxe injustiças, por seu impiedoso individualismo e exasperação dos valores patrimoniais, que reduzem o número dos titulares reais dos direitos subjetivos, mas trouxe avanços que marcaram indelevelmente a emancipação humana. Na perspectiva do direito, sua mais importante realização diz com a igualdade de todos perante a lei, libertando os homens dos vínculos a corpos intermediários, ordens, corporações e estamentos. Os direitos subjetivos, a todos formalmente conferidos, vieram substituir os direitos privilegiados, que decorriam de concessões em razão do lugar ou da posição ocupada na rígida hierarquia da ordem social. No último estágio conhecido do Estado moderno, o Estado social procurou oferecer oportunidade de realização da igualdade de todos na lei, mediante a concretização da justiça social. A repersonalização das relações jurídicas atinge grau mais elevado da emancipação do homem, pois busca superar o exclusivo sujeito patrimonializante, no Estado liberal, e realizar o princípio da dignidade da pessoa humana, em suas dimensões ontológicas. Desse modo, a modernidade expandiu seu ciclo.

Atualmente, assiste-se a um retorno preocupante a certos traços da cultura pré-moderna, o que pode prenunciar um neofeudalismo(17) das relações jurídicas, ao lado da revalorização do homo aeconomicus. Substituem-se os vínculos diretos entre cidadão e Estado pela superposição de corpos intermediários. Passam a ser mais importantes os vínculos obrigacionais contraídos com grandes empresas, pelo temor do desemprego e de insuficiência da previdência social, ou com fornecedores de serviços e produtos, que produzem suas próprias ordens normativas.

Alguns fatores têm contribuído para essa situação de perplexidade, de quase dispensa do direito estatal, podendo ser assinalados:

a)superposição de vínculos jurídicos, especialmente com macro-empresas transnacionais, com organizações não governamentais de caráter nacional ou transnacional, com instituições políticas, culturais, filantrópicas, esportivas, com credos e instituições religiosas;

b)dispersão da consciência de res publica, de obrigação cívica com o bem público, no Brasil agravada com uma tradição privatista do público, quase sempre entendido como extensão do espaço doméstico e familiar;

c)contratualização do direito, o que leva a que os poderes normativos das empresas tenham a aparência contratual, principalmente mediante condições gerais dos contratos, fundando-se na legitimidade aparente da autonomia dos sujeitos, os quais são a elas, de fato, submetidos;

a)redução substancial dos direitos garantidos em lei (garantismo legal), de modo a que os mais fracos dependam de garantias convencionais, obtidas em negociação com os mais fortes, inclusive mediante organizações profissionais;

b)ontratualização das políticas públicas, abdicando o Estado do seu poder de império, para assumir posição de contratante paritário, como se dá com os contratos de gestão;

c)cerco à ordem econômica fundada na justiça social;

d)redirecionamento do papel do juiz, suprimindo-lhe o poder de intervenção na atividade econômica, como o da revisão dos contratos iníquos, para garantia da lógica dura do mercado;

e)predomínio de uma lex mercatoria ditada pelos poderes hegemônicos globais, que se distancia dos tradicionais costumes mercantis consolidados.

Talvez o fator mais decisivo para o desenvolvimento de relações jurídicas que tangenciam os direitos nacionais seja a rede de informação mundial, a Internet, que propicia a realização de inúmeros atos jurídicos, sem contato pessoal, à distância, para os quais os Estados e suas ordens jurídicas diferenciadas constituem estorvo. As pessoas adquirem ou utilizam produtos e serviços oriundos de outros países, com legislações civil, contratual, tributária e de direito internacional privado divergentes, que são desconsiderados quando participam dessas transações. Para os Estados federados brasileiros, que tributam a circulação de mercadorias e prestação de serviços de transportes e de comunicação, é desafiador o tratamento tributário nesses casos, até porque a Internet foi concebida para fluir sem controles públicos ou privados.

O papel do Estado vem sendo crescentemente desafiado pela importante atuação de organizações não governamentais (ONGs), que nunca foram tão fortes quanto na atualidade. Em alguns casos, substituem o Estado, quando passam a desenvolver as políticas públicas que ele abandonou ou reduziu, ou quando reagem às direções tomadas em sentido contrário ao que elas postulam. No Brasil, a Lei nº 9637, de 15 de maio de 1998, que disciplina as chamadas organizações sociais, transforma as ONGs em parceiras das tarefas estatais, transferindo-lhes recursos financeiros públicos ou competências de execução, mediante contratos de gestão e parceria. Os serviços públicos que podem ser alcançados pelas organizações sociais são amplos: ensino, pesquisa, desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, cultura e saúde.


10.Em conclusão: qual o espaço a ser ocupado pelo Estado federado?

A experiência histórica do federalismo em muitos países, como o Brasil, depara-se com a lógica anti-estatal da globalização econômica, ao início do século vinte e um, quando os centros reais de poder se deslocam para as empresas transnacionais. O federalismo tem sido concebido como vitorioso mecanismo de democratização do poder político, na medida em que desconcentra as decisões públicas e permite maior grau de participação popular na organização política. Os dois fenômenos, o federalismo e a globalização econômica, parecem incompatíveis. Todavia, uma análise mais detida demonstra que global e local não se repelem, podendo daí nascer um sistema eficaz de reação aos efeitos negativos da globalização econômica, que não contempla as diferenças e aprofunda exclusões regionais e sociais. A reação do local ao global faz despontar a importância dos Estados federados, para preservação do itinerário emancipador dos direitos sociais e econômicos. Assim, ao menos em princípio, os Estados federados estão melhor preparados para defesa dos interesses locais do que os países organizados sem federação, pois a redução dos direitos nacionais neles é maior.

O mais bem sucedido processo de integração supranacional, a União Européia, encaminha-se no sentido de uma organização federativa, o que parece ser inevitável. A União Européia constrói um federalismo em novas bases, distanciando-se dos três modelos tradicionais acima referidos, pois, ao contrário da centralização tendencial deles, não se pretende abdicar da soberania nacional e, por conseqüência, da soberana edição de direito próprio, sem embargo da harmonização legislativa, a partir de normas gerais, nomeadamente das diretivas. As diretivas não constituem normas jurídicas auto-aplicáveis, pois dependem de integração aos direitos internos de cada país, salvo a hipótese de flagrante colisão das duas ordens, quando devem prevalecer, segundo entendimento que se consolida no Tribunal de Justiça europeu.

O alcance e os limites das normas gerais sobrelevam no federalismo brasileiro, pois a competência legislativa concorrente (artigo 24 da Constituição) e a competência comum de execução de políticas públicas (artigo 23 da Constituição) podem se converter em poderosos instrumentos de fortalecimento dos Estados federados, máxime no que diz respeito à realização dos direitos sociais e econômicos. Desse modo, o enfraquecimento dos direitos nacionais, provocado pela globalização, pode ser compensado, com vantagens, pela atuação renovada dos Estados federados, preservando-se os objetivos realizáveis do Estado social.

Será mister, todavia, que se repense o federalismo praticado no Brasil ou o que, no jargão político, costuma-se denominar de "pacto federativo", com mais nítida repartição de competências, encargos e receitas públicas. Os Estados federados têm de se preparar para esse desafio, máxime, sem qualquer preocupação de ordem ou exaustão:

a)reforçando o que é público;

b)garantindo as políticas públicas de inclusão, especialmente a educação;

c)intervindo mais fortemente, inclusive mediante a competência concorrente, na realização dessas políticas públicas;

d)reforçando a administração pública direta, com mecanismos que facilitem a prestação de serviços;

e)pugnando pela simplificação processual, desjudicializando o que for possível;

f)eliminando a autofagia da guerra fiscal que a todos avilta, mas que lamentavelmente prossegue, apesar da Constituição e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Os Estados estão concedendo tantos benefícios fiscais que correm o risco de não terem receita pública suficiente para manutenção de suas atividades.

O fortalecimento do federalismo atua "por baixo" da globalização, como um dos meios de fortalecimento do local, mas há de se avançar no controle "por alto", o que somente é possível com a existência de organismos políticos internacionais, que realizem a tão esperada democracia mundial(18) e, a fortiori, de um direito mundial básico que estabeleça as regras do jogo da economia mundial, no interesse de todos e não apenas dos que detêm o poder real, manejado pelos poderosos bancos centrais dos países hegemônicos e pelos conselhos de administração das empresas transnacionais. Os organismos internacionais financeiros e econômicos existentes (a exemplo da Organização Mundial do Comércio, do FMI e do Banco Mundial), funcionam dentro da lógica da expansão da globalização econômica e não para regulá-la. Somente uma ordem jurídica internacional efetiva e que contemple as diferenças poderá assegurar as autonomias nacionais e locais e a autonomia dos sujeitos, para que a dignidade da pessoa humana seja o foco principal do direito e não os fatos e interesses econômicos contingentes.


Notas

1.Rahmatullah Kahn, Harmonization of Law in the Indian Federation, Bruxelles, Bruylant, 1971, p. 107.

2.Hamilton, Madison e Jay, El Federalista, trad. Gustavo R.Velasco, México, Fondo de Cultura Econômica, 1943, p. 130.

3.Paulo Luiz Netto Lôbo, Competência Legislativa Concorrente dos Estados-Membros na Constituição de 1988, Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 101: 87-104, jan./mar.1989.

4.Direito Constitucional Brasileiro – Reforma das Instituições Nacionais, Rio, Garnier, 1902, p. 41.

5.Teoria Jurídico-Constitucional dos Direitos Fundamentais, Revista Consulex, nº 45, Brasília, set. 2000, p. 39. Em seus últimos escritos, Canotilho vem demonstrando grande desencanto com a força normativa dos princípios e regras constitucionais, especialmente os que se voltam aos direitos sociais e econômicos, pois não teriam condições de intervirem em processos de otimização econômica de natureza global.

6.Uma visão mais crítica, sem embargo de ser otimista quanto ao futuro, é a de André-Jean Arnaud, em O Direito entre Modernidade e Globalização, trad. de Patrice Charles Wuillaume, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, passim, que afirma três teses: 1) o direito está também implicado diretamente pelo processo de globalização; 2) a globalização adquiriu um valor de paradigma; 3) os juristas podem encontrar no paradigma da globalização uma nova maneira de colocar problemas considerados sem solução, e até mesmo de superar a crise permanente na qual o direito se encontra mergulhado.

7.Leia-se, nessa direção, Global Inequalities and Local Diversity, de Giovanni Arrighi, no II volume dos Anais da XVII Conferência Nacional dos Advogados, Brasília, 2000, p. 1401.

8.Apenas três cidadãos americanos – Bill Gates, Paul Allen e Warren Buffertt – possuem, juntos, uma fortuna superior ao de 600 milhões de habitantes dos países mais pobres.

9.O Novo Século: entrevista a Antonio Polito, trad. de Claudio Marcondes, São Paulo, Companhia das letras, 2000, p. 50.

10.Teoria Política en el Estado de Bienestar, trad. Fernando Vallespín, Madrid, Alianza Editorial, 1997, p.49.

11.Cf. André-Jean Arnaud, O Direito entre Modernidade e Globalização, cit., p. 157.

12.Para Tarso Genro, tudo indica que haverá uma redução do "garantismo jurídico" para flexibilizar a estabilidade do negócio jurídico; uma ampliação desmesurada do campo de aplicação da "teoria da imprevisão" (que hoje opõe, por exemplo, parte da indústria e da agricultura ao sistema bancário); a ampliação do reconhecimento da "força normativa do fáctico" de maneira inversa (dessa feita, para elidir cláusulas protetivas no âmbito do direito laboral); a redução do direito à privacidade como direito individual efetivamente assegurado, bem como o aumento das situações contratuais atípicas, para a prestação do trabalho subordinado, sem maiores garantias. Cf. A Crise do Direito na Globalização, ou depois de Kant, Kosovo, II volume dos Anais da XVII Conferência Nacional dos Advogados, Brasília, 2000, p. 1414.

13.Cf. Liberalismo: Palestras e Trabalhos, trad. Karin Strauss, São Paulo, Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1994, p. 51. Em visão claramente maniqueísta, diz que "ao contrário do socialismo, deve ser dito que o liberalismo se dedica à justiça comutativa, porém não àquilo que se denomina justiça distributiva ou, mais recentemente, justiça ‘social’ ". Para ele, em uma ordem econômica baseada no mercado, o conceito de justiça social não tem sentido, nem conteúdo. No jogo econômico, somente a conduta dos jogadores pode ser justa, não o resultado.

14.No período republicano brasileiro, o Estado liberal foi retratado na Constituição de 1891. A partir da Constituição de 1934, instituiu-se o Estado social, malgrado a pouca realização de suas promessas. Para demonstrar a incompossibilidade do discurso neoliberal e do discurso constitucional, cf. Paulo Bonavides, A Globalização e a Soberania – Aspectos Constitucionais, Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, nº 92, abr./jun. 2000, p. 27, para quem a "Constituição brasileira de 1988 é uma Constituição dos direitos fundamentais enquanto a de 1891 fora uma Constituição da separação dos poderes".

15.Por todos, veja-se Antônio Carlos Wolkmer, Pluralismo Jurídico, São Paulo, Alfa Omega, 1994, passim, para quem o monismo jurídico integra o projeto da modernidade burguês-capitalista. Ao que ele denomina "pluralismo conservador" decorrente do avanço do neoliberalismo, contrapõe o "pluralismo progressista" de teor democrático-participativo (p. 321), o que bem demonstra o estado de perplexidade em que se encontra a teoria jurídica.

16.Habermas reage, com fina ironia, contra os que já vêem "pós" quando estamos em pleno "ainda". Cf. The New Conservatism, Cambrigde, MIT Press, 1990, p. 3-5.

17.Advirta-se que esse "neofeudalismo" não significa o desaparecimento total da modernidade nem um simples retorno à organização política e econômica medieval, pois ostenta complexidade diferenciada, mais sofisticada, sem embargo da preocupante característica antidemocrática que ele revela. Para José Eduardo Faria, O Direito na Economia Globalizada, São Paulo, Malheiros, 1999, p. 325, ele se assenta "nos interesses e na vontade dos atores políticos e econômicos – as "organizações complexas" – com maior poder de articulação, mobilização, confronto, veto, barganha, decisão de investimento e capacidade de geração tanto de emprego quanto de receitas", e não está mais baseado "no nascimento, na etnia, na nobreza, na religião, no credo político ou na ocupação dos sujeitos".

18.Para Sérgio Paulo Rouanet (A democracia mundial, Jornal do Brasil, Ideias, 4), "só uma democracia mundial teria condições de resistir às pressões que vêm do mercado e às que vêm de Estados nacionais hegemônicos, habilitando o homem a realizar o sonho mais alto do Iluminismo, a capacidade de pensar e agir livremente, sem submissão a vontade alheias: o sonho da autonomia".


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito do estado federado ante a globalização econômica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2243. Acesso em: 25 abr. 2024.