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A competência legislativa em conflito: a análise da Lei estadual mineira nº 14.309/2002 em face do novo Código Ambiental

A competência legislativa em conflito: a análise da Lei estadual mineira nº 14.309/2002 em face do novo Código Ambiental

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Sobrevindo a Lei Federal de normas gerais, suspende esta a eficácia da Lei Estadual no que esta compreender princípios, normas gerais e no que convier também, abordando particularidades incompatíveis com a norma geral federal.

O Direito é por si só, um instrumento de controle social complexo, dinâmico e multiforme, esgotando e, ao mesmo tempo, sedimentando novas perspectivas acerca dos fatos, fundamentando-os com matizes próprios, pois esta é sua função precípua, sua essência produtiva. De certa forma, ele é ubíquo.

O ideal do Direito reside na ambiguidade intrínseca do conceito que o nutre, pois está carregado de um paradoxo obstinado que se relaciona indelevelmente com as mais íntimas pretensões da sociedade, que, não obstante, aspira por Justiça e Igualdade, embora Justiça, muita das vezes, seja diametralmente oposta ao próprio Direito.

O Direito, entendido e potencializado por sua mais célebre manifestação – estudo, epistemológico, da norma jurídica - acaba por tocar alguma corda secreta nos homens que, antes jamais tocada os faz sentir, vibrar e latejar em pulsações singulares.

Com efeito, o Direito, analisado por este ângulo, pode ser equiparado à música, que estremece e admira a alma humana. Mas a música não é articulada. Não um novo mundo, e sim mais um caos, ele cria. Normas! Meras normas! Quão inspiradoras são! Quão claras, vívidas e até, por vezes, cruéis! Delas, ninguém consegue escapar. Mas que mágica sutil contém! Parecem capazes de dar forma plástica a coisas amorfas e, ao mesmo tempo, conter uma melodia própria, doce como a da viola, do alaúde.

Mas estas, as Normas (em sentido amplo), sintetizam mais do que as aspirações dos homens, condensando também comandos, diretrizes e metas. A metamorfose da ideia normativa, compilada e alicerçada nos propósitos do Direito leva a crer em um sistema organizado e pautado preambularmente nessas premissas. No entanto, as deturpações dos entendimentos presentes nos instrumentos legais acabam por remetê-la ao abismo das contradições, exaurindo-lhe a segurança que emprestava às relações estabelecidas, o que está sendo vivenciado às claras, hoje, por todos.

Neste sentido, a Norma que outrora guarnecia o universo jurídico de estabilidade e segurança se transmuta, tornando-se venenífera, dando ensejo e originando uma realidade problemática.

Muitos dos mal entendidos na discussão deste problema têm origem no fato de haver quem fale só da ideia e quem fale só da realidade do fenômeno, enquanto seria preciso confrontar esses dois elementos – normas ideais e deturpação do entendimento normativo – considerando a realidade à luz da ideologia que a domina e a ideologia do ponto de vista da realidade que a sustenta. Um verdadeiro sincretismo.

Esse antagonismo se faz presente em todas as relações normatizadas, pois a lei, em sua forma embrionária, está imantada de subjetivismo, permitindo desta feita que os facínoras de plantão, que não raramente se autodenominam “operadores do Direito” as moldem de acordo com suas vis conveniências. Mal sabem estes gatunos oportunistas que as paixões que mais tiranizam o Ordenamento Jurídico são aquelas que o homem nutre em relação à origem de seus enganos.

Os motivos mais débeis são aqueles de cuja natureza se tem consciência. Então, uma vez que se valem da interpretação normativa, ou dos vácuos legais em prol de suas torpes ambições, podem, em um primeiro momento, se satisfazer pelo feito, mas denigrem e desestabilizam o tênue tecido social que encontra segura paragem e se ancora na Norma (jurídica) que, inadvertidamente, burlam.

A mesma, e talvez, mais intensa dilapidação da estrutura jurídico-normativa ocorre por força dos conflitos normativos, principalmente quando estes fazem frente às normas constitucionais instituídas. Na teoria, a solução mostra-se evidente, e até mesmo óbvia. Na prática, tem-se um embate, acreditem, de forças quase similares, que acabam por colocar em risco a própria estrutura constitucional vigente. Konrad Hesse[1] já discernia a respeito desta questão, sobre a força normativa de uma Constituição, reconhecendo, mesmo que empiricamente, a existência de uma Constituição formal e outra, real.

Ao passo que uma norma de caráter infraconstitucional converge diametralmente da constitucional, deparamo-nos com a mais severa forma de mutilação do Ordenamento Jurídico pátrio. A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade.

Essa pretensão de eficácia não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão de diferentes formas numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem e não devem ser desconsideradas. A despeito de todas as diferenças de ponto de vista que se entrelaçam no tema pertinente aos conflitos normativos propriamente ditos, essa concepção da estrutura do Direito não se perdeu no passado recente e no presente, integrando a realidade do homem.

É indubitável que, dentro da esfera dispositiva de atuação da norma constitucional, consta categoricamente um enunciado pleno, bem como, os pressupostos objetivos a serem seguidos por todos os demais diplomas legais em escala de subordinação e acatamento. Nela se caricaturam todas as emanações normativas e, por conseguinte, toda uma série de reações que culminam em um comando único.

Hodiernamente, por intermédio de um surto anômalo e indescritível, pode-se visualizar uma série de conturbações endereçadas a promover um colapso sem precedentes na estrutura jurídica, que acaba por motivar e disseminar virulentos conflitos normativos. Ditos conflitos vem à tona devido à falta de critério para se estabelecer os limites de competência, tanto da União, como dos estados-membros, e, principalmente, devido ao desrespeito sucessivamente apoiado pelo Legislativo - na maioria das vezes vinculado às Assembléias Legislativas dos respectivos entes federativos - contra a aplicação do Texto Constitucional que delimita a prática das competências afeitas a qual ou tal ente.

 Por definição, a própria Constituição Federal do Brasil propala, ao tratar da competência legislativa concorrente, a utilização do artigo 24, mostrando sua preocupação em manter a hierarquia das leis nacionais[2], e em alguns casos federais, em relação aos demais diplomas legais editados pelos estados-membros.

Fácil se torna este entendimento, ao se vislumbrar a fixação do §1° do respectivo artigo, que, taxativamente, aponta que a competência da União será para estabelecer normas gerais, sem, no entanto, ofertar qualquer definição ou mesmo uma delimitação plausível do conteúdo da expressão. Neste diapasão, mesmo a melhor doutrina, ao dispor sobre o tema, se restringe a analisar somente o significado semântico de “normas gerais”, o que não é suficiente para dirimir as dúvidas que surgem nos casos concretos.

Dentro desta proposição, claro está o campo de fomentação conceitual das normas, como também, seus limites de aplicação. Por assim dizer, no que toca a exposição supramencionada, o princípio da autonomia dos estados-membros precisa se redefinir, e essa redefinição só se processará se estes encontrarem harmonia no sistema legislativo, de forma que todos se sujeitem as regras gerais da União tendentes a afastar os conflitos.

Quando aqui se propôs enveredar nas nuances dos conflitos normativos, apontando sequencialmente suas causas primárias, se quis justamente adentrar no aspecto teleológico do tema, pois somente desta maneira se pode chegar ao cerne da discussão. Assim sendo, quando anteriormente se apontou as infindáveis violações constitucionais, que por consequência lógica e inevitável ensejam os conflitos acenados, não se fez por acaso, mas antes, para se criar um mínimo aproximativo suficientemente capaz de nortear esta querela.

Ao passo em que ocorre o descumprimento das diretrizes constitucionais, haverá, correlatamente, visceral ruptura dos preceitos jurídicos fundamentadores do Direito, que, por extensão, há de se remeter aos conflitos normativos. Pode-se, portanto, de antemão, chegar à conclusão de que por via de uma pormenorizada análise perfunctória, o descumprimento das normas gerais, imantadas de força constitucional por via do artigo 24 da Lei Maior, em toda sua completude, representa frontal desacato à própria essência do Ordenamento Jurídico que o flexibiliza.

Como a proposta inaugural desta sutil compilação possui foco específico, e optou-se por perfilhar sem reservas os motivos determinantes dos conflitos normativos dentro do orbe jurídico e, obviamente, como a pedra de toque de toda problematização guarda raízes profundas no Processo Legislativo, como na competência concorrente impetrada no artigo 24 da Lex Fundamental, não se poderia deixar de preconizar determinadas particularidades intimamente relacionadas ao citado artigo.

Dentro da ótica construtiva do artigo multicitado, está contido o entendimento de que a União preocupou-se e, de fato, deveria mesmo preocupar-se com a unidade e coesão do Sistema Legislativo, razão pela qual, expõe com magistral patente que as disposições estaduais ou municipais contrárias à Lei Nacional, ou mesmo Federal, dependendo do caso, são compreendidas como ilegais, ficando sujeitas a não prosperar. Nestes termos, as leis estaduais perdem aplicabilidade, e só recuperam sua eficácia caso a norma geral – instituída por lei nacional (ou federal, como já dito) – seja revogada, deixando um vazio.

Os estados-membros só podem legislar quando existir uma Lei Nacional (ou Federal, conforme o caso), de forma suplementar, como prevê o §2° do artigo 24 da Norma Jurídica Máxima. Ferraz Júnior[3], ao postular sobre a questão, descreve com muita propriedade que a competência suplementar não é para a edição de legislação concorrente, mas antes, para a edição de legislação decorrente, que é uma legislação de regulamentação, portanto, de normas gerais que regulam situações já configuradas na legislação nacional (ou federal) e às quais não se aplica o disposto no §4° - ineficácia por superveniência de legislação nacional (ou federal) – posto que com elas não concorrem – se concorrem, podem ser declaradas inconstitucionais.

A sapiência e profundidade do jurista em relação à exposição do tema possuem um alcance interessante, pois neste interregno tem-se, por intermédio de suas palavras, tratar-se de competência que se exerce a luz de normas gerais da União e não na ausência delas, como no caso de aplicação do §3° do artigo 24 da Constituição Federal do Brasil.

Nos dias atuais, tornou-se corriqueira a edição, por parte dos estados-membros, de normas obtusas e desguarnecidas de coerência jurídico-constitucional, que no afã de se fazerem valer pecam por exorbitarem os limites de sua competência, como prevê a regra imposta pelo artigo 24 da Lei Maior. Por via de consequência, há até situações embaraçosas que se divorciam da realidade jurídica vigente, gerando indecoroso e abrasivo transtorno no sistema normativo.

A título exemplificativo pode-se citar a situação vivenciada no estado-membro de Minas Gerais, no tocante à questão ambiental. Recentemente, houve a publicação do novo Código Florestal Brasileiro, editado pela Lei Federal 12.651 de 28 de maio de 2012, e Medida Provisória 571, com a respectiva data de publicação. Naquele ente federativo, vigora a Lei 14.309 de 19 de junho de 2002 – Código Ambiental Estadual – que pela data de edição, pauta-se ainda na anterior Lei Florestal Federal – 4.771 de 15 de setembro de 1965.

O curioso e, até por este motivo está sendo citado dentro do contexto deste compêndio a título de reflexão, é que, com a revogação do antigo diploma legal Federal, poder-se-ia entender que houve o esvaziamento normativo da Lei Estadual, pois o §2° do artigo 24 da Norma Fundamental, traduz a idéia de ser a legislação estadual decorrente da federal – observe-se aqui, a atribuição de um novo significado a “competência suplementar” – ou seja, aquela que só é possível se a legislação federal existir, e se presta a tornar viável e mais eficiente a aplicação desta.

Como houve a revogação da Lei Florestal Federal – 4.771 de 15 de setembro de 1965, a Lei 14.309 de 19 de junho de 2002 reflexamente perderia sua substância, uma vez que esta se pautava naquela. No entanto, é aqui que se apoia a quintessência produtiva da questão, pois a Lei estadual possui autonomia jurídica própria, distanciando-se deste intrincado entendimento.

Desnecessário, aqui, esquadrinhar, em profundidade, os contornos utilizados para se efetivar a manutenção da tormentosa lei em Minas, restando, no entanto, comentar o porquê de tal decisão.

A resposta se apóia no posicionamento de que a Lei Estadual é mais restritiva, e, portanto, mais benéfica ao estado-membro do que a nova Lei Federal (no sentido de Lei Nacional). Sustenta-se nesse ente federativo – Minas Gerais - que a Lei n. 12.651, de 28 de maio de 2012, se aplicada, desarticularia o atual panorama ambiental ali instituído, fomentando sensível e irreparável dano ao meio ambiente.

Se há coerência nesta afirmativa, pouco importa, pois quem irá mensurar, etimologicamente falando, a acepção do que é, ou não mais restritivo? Qual o conceito de mais restritivo? Esses seriam os primeiros passos para, desapaixonadamente, enfrentar o dilema.

Pondera Bessa[4] que, do ponto de vista puramente ambiental, nem sempre a intervenção mais suave sobre o meio ambiente é a melhor ou necessária. Muitas vezes, em função de intervenções muito pequenas sobre o meio ambiente, surgem situações de profundo desequilíbrio ambiental.

Afirma, ademais, que a restrição que o estado-membro está autorizando legitimamente opor a uma atividade submetida à competência concorrente não pode ir ao ponto de descaracterizar as normas federais (novamente, entenda-se nacionais). Trocando em miúdos, um estado-membro não pode, por exemplo, proibir em seu território um produto que esteja autorizado pela União, ainda que sob o pretexto de estar exercendo a sua competência concorrente em matéria de proteção ao meio ambiente.

Por fim, planifica que, como todo regime federal, a constante fricção entre os diferentes entes federativos no que se refere à definição precisa dos limites de sua competência, sobretudo legislativa, se faz pelo chamado controle de constitucionalidade das leis. Controlar a constitucionalidade das leis é uma tarefa atribuída ao Poder Judiciário, que a exerce por dois caminhos básicos: a) o concentrado; e b) o difuso.

O controle concentrado, no que se refere à constitucionalidade de uma norma em relação ao Texto Constitucional Federal, é exercido pelo Supremo Tribunal Federal[5]. É controle essencialmente político, no sentido elevado do termo, e pode ser considerado como a pedra angular do federalismo. Já o controle difuso é aquele realizado por qualquer juiz em uma situação concreta.

É importante assinalar o fato de que, na via concentrada, a decisão é obrigatória e geral, o que não ocorre quando a declaração de inconstitucionalidade é fruto de controle difuso. A Corte Constitucional, ao examinar a lei concretamente considerada, não indagará se ela é mais ou menos restritiva. Indagará isto sim, se ela está, ou não, compreendida na esfera de competências do Órgão que a introduziu no universo jurídico.

Para o inolvidável Bessa[6], o conceito traduzido e tendencialmente imposto de que vale o mais restritivo não passa de mais uma ficção, de um costume veiculado e, portanto, convencionado, que povoa o Direito Ambiental, nada mais do que isso, uma vez que não existe nada na legislação que o digne ou mesmo o eleve a condição de lei.

Faz-se importante pontuar que realmente não há, como nunca houve, sequer uma menção legal para apoiar a tese de aplicabilidade do mais restritivo, portanto, seria um tanto despropositado o emprego deste preceito.

No campo das variações pertinentes à temática ambiental, cumpre ressaltar que os posicionamentos não se encerram por aqui. Em tal contexto, crescentemente insurge uma nova visão da coisa ambiental, tendo à frente Antônio Herman Benjamin[7], que com primorosa sagacidade escreveu sucintas, porém profundas palavras acerca do Princípio da Proibição do Retrocesso Ambiental.

O autor expõe que,

[...] no plano dogmático, o princípio da proibição do retrocesso vem recebendo marcante atenção na esfera dos direitos humanos e sociais e que, em nenhuma outra área dos chamados direitos novos é mais vívida a imperiosidade ético-política e a viabilidade jurídico-material de garantir a manutenção e o progresso das existentes medidas legislativas protetórias do que no Direito Ambiental, disciplina na qual, segundo abalizada lição de Ingo Wolfgang Sarlet, acha-se uma importante e peculiar manifestação da vedação das medidas legislativas retrocessivas[8].

Pode-se perceber pelas instigantes palavras asseveradas pelo Ministro, que este avoca a partir desta terminativa manifestação, redigida de forma audaz, produto de um senso de beatitude motivador, uma nova veste, um novo ponto de vista para fundamentar a proteção do meio ambiente, que se apresenta não na forma de uma realidade tópica, resultado de referência em dispositivo específico e isolado, mas sim, como um princípio sistêmico, que se funda e decorre da leitura conjunta e diálogo multidirecional das normas que compõem a totalidade do vasto mosaico do Direito Ambiental.

Na melhor das hipóteses, o arguto Benjamin, por meio de sua proposição, promove a proibição de retrocesso ao patamar de princípio geral do Direito Ambiental, pois este não se encontra inserido, ou mesmo consagrado na Constituição, nem em normas infraconstitucionais. Meticulosamente, afirma que aludida proibição de retrocesso foi fundida e consolidada na aspiração das massas e que nela encontrou seu alvorecer e fonte inesgotável de alimento, pois a previsão normativa explícita não se antepõe como pressuposto insuperável ao seu reconhecimento.[9]

A tenacidade de suas colocações são realmente inspiradoras, porém, adentrar nestas considerações seria o mesmo que revisitar a velha e desgastada dicotomia a muito superada entre heterenomia – vontade do Estado sobre as relações de fato e de direito – e autonomia – a insopitável vontade de se fazer prevalecer as manifestações individuais sobre as estatais.

É uma bela moldura. Todavia, a pintura já se firmou na imagem resplandecente da autonomia do Estado, tanto no campo normativo como no social de estabilização e controle das relações por intermédio das leis.

As implicações de se volatizar o posicionamento ancorado e, não obstante, imiscuído de um lado por um “princípio geral do Direito Ambiental” e, por outro, em um costume popularizado – restritividade - pode macular o Ordenamento Jurídico pátrio, disseminando instabilidade e controvérsias irreparáveis.

Toda disposição que possui como eixo, ou ponto de apoio, a regra incondicional de vitalidade jurídica praticada no Brasil busca amparo no Positivismo, que tende a reduzir o Direito a uma série de ordens emanadas do Estado, almejando encontrar as fontes da ordem jurídica unicamente nas normas elaboradas ou aprovadas formalizadamente pelos Órgãos do Poder Público.

Nestes termos, tem-se que o poder de editar regras imperativas é cedido a órgãos especiais, criados para esta finalidade, que representam toda a comunidade social e possuem, portanto, autoridade para estabelecer em seu nome, regras obrigatórias para todos. Essas regras são as leis, que se apresentam como expressão de uma vontade jurídica consciente e deliberada, constituindo o grau mais elevado e perfeito de formação do direito positivo.

É sabido que a legislação jamais conseguirá englobar todos os casos e peculiaridades ocorridos no seio da vida social, podendo apenas estabelecer uma limitação negativa, isto é, que não se poderá retirar, das outras fontes – analogia, costumes, princípios gerais do direito e jurisprudência (embora alguns autores não considerem esta fonte do Direito) – regras que estejam em contradição com a própria lei.

Como profetizou o célebre Ministro Benjamin é pungente o surgimento de uma visão ambiental mais ampla e protetória, que virá recriar o meio ambiente e salvá-lo de um puritanismo severo e inconveniente que experimenta, bem nos dias atuais, curioso renascimento. Pode-se crer, que esta nova visão se mostrará útil para o intelecto, é claro, mas jamais, do ponto de vista da dogmática jurídica se poderá aceitar ou comportar qualquer teoria ou sistema que envolva o sacrifício dos preceitos normativos em prol da manutenção de um princípio ou mesmo de um costume.

A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB – aponta a Lei como epicentro da relação jurídica estabelecida em seu artigo 4°, que tacitamente apregoa: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Mesma colocação está disposta no art. 126 do Código de Processo Civil Brasileiro.

Analisando-se por esta perspectiva, não restam dúvidas de que todos os particularizados instrumentos arguidos em prol da manutenção da Lei n. 14.309 de 19 de junho de 2002 não se justificam, aliás, tampouco se fundamentam.

Enaltecer um costume – restritividade – amalgamado a um princípio – retrocesso ambiental – colocando-os acima da expressão normativa típica é um erro crasso, um verdadeiro contrassenso.

Portanto, como se expôs com a devida vênia, em Minas Gerais não deve prosperar o entendimento difundido no acatamento do diploma legal estadual que, para todos os efeitos, está suspenso por força do artigo 24, §4° da Constituição Federal do Brasil.

Visando estabelecer o viés de aplicabilidade do mencionado artigo, tem-se primeiramente que entender a permeabilidade conceitual empreendida pela delimitação da competência concorrente dos estados-membros. Em síntese, o gérmen, a pedra angular de definição da competência concorrente gira em torno de duas premissas, sendo uma de natureza endógena – aplicação do §4° - e outra exógena – apreciação da regra contida no §2°.

Neste sucedâneo, partindo-se do pressuposto de que a delimitação da citada competência depende do grau de suplementação permitido pela legislação federal que não tem limites, pode-se chegar a conclusão de que quando existir legislação federal que fixe os princípios gerais, cabe complementação ou suplementação somente para o preenchimento de lacunas para aquilo que não corresponda à generalidade, ou para a definição de peculiaridades regionais.

Assim, partindo-se da premissa chave acima apontada, havendo normas federais, os estados-membros só terão competência legislativa se couber complementação ou suplementação, o que, em um primeiro momento, parece desconsiderar o §1° do artigo 24, segundo o qual “no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais”.

Como se depreende da argumentação sustentada, a legislação dos estados-membros, havendo Lei Federal a respeito, podem suprir vazios deixados por esta no tocante a princípios gerais, e tem competência exclusiva, respeitada a legislação federal de normas gerais, para disciplinar, dentro de seus respectivos territórios, tudo que saia da esfera de generalidade, já que isso recai na competência implícita dos estados-membros.

Quando, porém, a competência da União extravasa os limites dos princípios gerais os estados-membros tem, a propósito, como parte do arcabouço de locução disponibilizado, competência supletiva, ou seja, a de legislar nos vazios da legislação federal.

Com efeito, como já se apontou anteriormente, em matéria ambiental deparamo-nos na atualidade com um canhestro descompasso de ordem prática, que insurge pelos canais do conflito normativo configurado em Minas Gerais, pois como acenado, de um lado se tem a edição de uma norma geral, por força de Lei Federal – 12.651 de 28 de maio de 2012 – que dispõem sobre as novas variações ambientais/florestais a serem seguidas por todos os entes federativos, em contraposição gritante com a Lei 14.309 de 19 de junho de 2002 que negligenciando a Lei Federal, se mantém em uso.

Aparece, por certo, um novo reduto de polemizadas controvérsias, um sedutor e pitoresco tema teórico ainda não discutido expressamente pela doutrina e jurisprudência, mas que merece formal e incondicional estudo.

Por todo o alegado, não se pode cogitar deliberadamente outra opção, que não o acatamento dos preceitos normativos oriundos da recente Lei Federal, pois o artigo 24 §4° da lei maior é claro ao preceituar que “a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.

Mostra-se nítido, para não se dizer incontestável, que por via da orientação presente neste parágrafo, se deva de forma cabal e veemente seguir o entendimento contido na Lei Federal por ser superveniente à estadual que lhe é contrária. Via de regra, a cálida expressão que corrobora os meandros de aplicabilidade do artigo 24, em específico, no que toca ao §4°, encerra depuradamente as terminações e restrições impostas por intermédio do controle constitucional à limitação avultada pela faculdade legiferante dos estados-membros, quando da superveniência da lei federal sobre normas gerais.

Dito mecanismo serve para salvaguardar a regra constitucional aplicada da erosão das ações contrárias, da mixórdia e da vulnerabilização, como vem ocorrendo no estado-membro de Minas.

Faz-se imperioso ressaltar, que tal situação experimentada neste estado-membro é descabida, teratológica e capaz de fomentar a fragilização do sistema federativo de formulação normativa, cerceando por completo sua tenacidade e dando ênfase à aparição da fantasmagórica e combatida insegurança jurídica, que contraria vertiginosamente a estrutura de formação que dá fôlego e sentido lógico ao ordenamento jurídico nacional, pois claro está que a União tem absoluta liberdade para editar as normas, descendo às especificidades tanto quanto entender necessário, inclusive, retirando o poder de regulamentação dos estados-membros.

Em esquematização diferente, mas, mantendo-se o ponto de fixação e epicentro da discussão pautado no estudo da aplicabilidade do artigo 24 e parágrafos da Carta Constitucional, restou esclarecido que a competência da União é para editar normas gerais - §1°. Essa competência, entretanto, não exclui a competência suplementar dos estados-membros - §2°. Tem-se, na hipótese do §2°, competência para o preenchimento de vazios da lei federal, assim, competência concorrente vertical, não cumulativa. As normas gerais da União existem e a legislação estadual simplesmente as suplementará em termos de regulamentação.

Já a competência concorrente, apontada no §3° remete-nos ao entendimento de que o direito federal afasta o direito estadual - §4°. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, exercerão os estados-membros competência legislativa plena, a fim de preencher a lacunas, no caso, de ausência de Lei Federal. Assim o farão, entretanto, para atender suas particularidades - §3°.

Sobrevindo a Lei Federal de normas gerais, suspende esta a eficácia da Lei Estadual no que esta compreender princípios, normas gerais e no que convier também, abordando particularidades incompatíveis com a norma geral federal. E o caso, portanto, do direito federal afastando o direito estadual. Daí a questão que inopinadamente surge, pois a partir desta assertiva, indaga-se até que ponto seria legítimo ao estado-membro, utilizando-se da competência concorrente, editar normas legais.

Certamente, considera-se incontroverso que a aplicabilidade da norma a todos os entes federativos é característica básica, e, por coseguinte, essencial para que ela seja dita de caráter geral, o que confirma sobremaneira a tese de que somente a União possui a capacidade para legislar sobre normas gerais. No entanto, quando ela for omissa, deixando de editar normas gerais, os estados-membros estarão aptos a exercer competência legislativa plena.

No que tange às especificidades inerentes ao conteúdo normativo ora em discussão, tem-se por certo, que dentro deste movimento pendular que caracteriza o federalismo brasileiro, com momentos de grande concentração de poder nos pilares da União, e outros, de grande desconcentração em favor dos demais entes federativos, verifica-se que, paulatinamente, caminha-se, na verdade, para um Estado unitário descentralizado, haja vista as recentes reformas: judiciária, administrativa, previdenciária e tributária.

Observa-se também, que, na engrenagem mestra que delimita a competência concorrente prevista no artigo 24 da Carta Constitucional, cada vez mais se vê esvaziada a competência dos estados-membros de legislar supletivamente, porque a União, quando legisla, esgota o assunto, não se limitando a editar normas gerais.

Neste sentido, reafirma-se que todo este buliçoso conflito, arguido pela dicotomia presente no eixo de formatação taciturnamente apresentado, ao qual, de um lado confronta-se a Lei Estadual – 14.309 de 19 de junho de 2002 – elaborada na vigência da anterior Lei Federal – 4771 de 15 de setembro de 1965 – com a norma federal vigente – Lei 12.651 de 28 de maio de 2012 – mostra-se inócuo e pueril, pois sendo a norma geral, na vertente principiológica, aquela que emite um comando passível de uma aplicabilidade federativa uniforme, não há que se discutir esta questão, pois a regra aqui contida é de natureza axiológico-normativa, restando tão somente a exigência de se aplicar a Lei Federal vigente devido à suspensão da Lei Estadual que se apresenta neste cenário como anacrônica.

Por fim, cabe salientar que as restrições meramente especulatórias vinculadas ao ditame materializado nas emanações normativas, são produto da análise pormenorizada de alguns elementos jurídicos de ordem prática, intimamente relacionada à atividade de fomentação interpretativa dos operadores do Direito.

No entanto, por vezes, esta interpretação se perde na vasta campina das variações subjetivas, calcando, e, ao mesmo tempo, oferecendo um contraproducente e voraz perigo às relações jurídico-constitucionais estabelecidas.

Portanto, o nevoeiro da hipocrisia e da falta de bom-senso jamais se dissipara enquanto a Lei Estadual em comento, que, repita-se, esta suspensa por força da aplicação do artigo 24 §4° da Carta Magna não deixar de vigorar, uma vez que se perdeu no abismo do anonimato ao tempo em que publicou a nova norma florestal federal.


Notas

[1] In: A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.

[2] A denominação “Lei Federal” deve ser utilizada para nominar leis que se dirigem ao âmbito federal, da União, tal como a Lei n. 8.112/90 (estatuto dos servidores públicos federais). A nomenclatura “Lei Nacional” é a que se enquadra naquele conjunto de normas dirigidas a todos os entes federativos, ou melhor, a todo o país, tal como o Código Civil.

[3] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente: uma exegese do art. 24 da CF. RDP, n. 7, p. 16-20, 1994.

[4] BESSA, Paulo. Vale o mais restritivo? Disponível em: <http://www.oeco.com.br/todos-os-colunistas/43-paulo-bessa/16877-oeco_13503>. Acesso em: 02 ago. 2012.

[5] Já que os Tribunais de Justiça podem exercer dito controle, no âmbito de atuação de suas respectivas Constituições estaduais.

[6] BESSA, Paulo. Vale o mais restritivo? Disponível em: <http://www.oeco.com.br/todos-os-colunistas/43-paulo-bessa/16877-oeco_13503>. Acesso em: 02 ago. 2012.

[7] Notório jurista e Ministro do Superior Tribunal de Justiça, além de professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília.

[8] BENJAMIN, Antônio Herman. In: BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle. O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 55-72.

[9] Op. Cit.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gustavo Ribeiro. A competência legislativa em conflito: a análise da Lei estadual mineira nº 14.309/2002 em face do novo Código Ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3386, 8 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22764. Acesso em: 19 abr. 2024.