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A política urbana à luz da Constituição Brasileira de 1988

A política urbana à luz da Constituição Brasileira de 1988

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INTRODUÇÃO

A política urbana pela primeira vez foi tratada em âmbito constitucional. Isto decorreu do processo de urbanização acelerado por qual passou o Brasil. Tendo em vista a adequação da Constituição à realidade o constituinte originário entendendo a importância do assunto trouxe ao viés constitucional a necessidade de serem elaborados projetos de desenvolvimento urbano.

Apesar de clara, as disposições constitucionais precisam ser interpretadas pois como principal fonte do ordenamento jurídico, sendo o fundamento primeiro e último de legitimidade da ordem vigente é assaz importante que não pairem dúvidas a seu respeito.

Através deste trabalho pretende-se, mediante uma análise sob três óticas, a do direito constitucional geral, a do direito constitucional comparado e a do direito constitucional especial, verticalizando os estudos neste último, responder alguns questionamentos, e delinear situações que a primeira vista se nos apresentam com clareza, mas que na verdade carecem de uma análise mais profunda.

A partir de pesquisa histórica, bibliográfica, considerações doutrinárias e análise da legislação positivada serão feitas as explanações para o entendimento do assunto

No capítulo inicial, faz-se uma breve análise da política urbana dentro do direito constitucional geral que é bastante pertinente para um primeiro contato com a matéria.

No capítulo subseqüente, é tratada a evolução da legislação urbanística no Brasil em nível infraconstitucional e constitucional e ainda, compara-se o modelo adotado pela Constituição pátria ao modelo adotado na ordem alienígena.

Num terceiro momento, são abordados os aspectos de cada artigo que compõe o capítulo referente á política urbana na Constituição. São traçadas diretrizes dos mais importantes institutos que cada artigo trata.


1.A POLÍTICA URBANA NO DIREITO CONSTITUCIONAL GERAL

1.1.A pertinência do trato constitucional da política urbana

Uma Constituição somente se perfaz como legítima quando coaduna com as aspirações populares. Oportuno lembrar Ferdinand Lassalle que entendia como boa e duradoura a Constituição escrita que correspondesse à Constituição real e tivesse suas raízes nos fatores do poder que regiam o país, e completava "Onde a Constituição escrita não corresponder à real, surge inevitavelmente um conflito que não é possível evitar e, mais dia menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá, forçosamente perante a Constituição real, a das autênticas forças vitais do país"(1).

No estudo da teoria constitucional ponto relevante é saber quais matérias devem estar presentes numa Constituição. Mister se faz ressaltar que a missão originária desta consiste em determinar os princípios norteadores do Estado, estabelecer um catálogo de direitos fundamentais e delimitar a atuação e as competências das funções estatais, firmando a separação de poderes. Não se pode olvidar a classificação da Constituição quanto à sua extensão em analítica ou dirigente e em sintética. Esta prevê somente os princípios e as normas gerais de regência do Estado, organizando-o e limitando seu poder, por meio de estipulação de direitos e garantias fundamentais, aquela examina e regulamenta todos os assuntos que entende relevante à formação, destinação e funcionamento do Estado(2).

Dependendo da realidade do país e da finalidade da Constituição, seja ela dirigente ou sintética, sem se abster daquelas missões originárias, serão delimitadas as matérias tratadas por ela.

Política quer dizer modo de organização e urbana, oriunda do latim urbanos, significa referente a urbes ou cidade. A partir do estudo etimológico das palavras que compõem a expressão Política Urbana extraímos sua função, isto é, tratar do modo de organização das cidades, isto é feito através de metas traçadas e executadas pelo Poder Público visando ordenar o crescimento urbano.

Hodiernamente, a Lei Maior perpassa sua missão original e assume papel integrante entre a Sociedade e o Estado portanto, para que, uma matéria seja erigida à tônica constitucional deve estar de alguma maneira contribuindo para o equilíbrio entre as estruturas de ordem e poder. A pertinência do trato constitucional da política urbana reside em sua significação de ordem pragmática. É notória a necessidade do planejamento urbano sob dois aspectos: a vinculação dos cidadãos; bem como, a vinculação da próprio Poder Público que, nada obstante, tê-lo elaborado deve também respeitá-lo. Esta dicotomia Sociedade x Estado deve ser superada e a política urbana, a medida que, busca um equilíbrio se constitui como um meio para isto.


2. A POLÍTICA URBANA NO DIREITO COMPARADO

2.1. Evolução no Direito brasileiro

Constituições anteriores (3)

Constituição Política do Império do Brasil, de 1824 omissa

Constituição de 1891, omissa

Constituição de 1934, art. 125:

Constituição de 1937, art. 148

Constituição de 1946, art. 156, §3º

Legislação Infraconstitucional (4)

-Ordenações Filipinas................................................L. 1, T. 1, §§6º., 13, 14 e 17

-Carta Régia de 3-3-1755 – criou a capitania de São José do Rio Negro(Amazonas)

-Lei de 1º.-10-1828....................................................art. 66, §§1º., 2º., 3º., 4º. E 6º.

-Lei n. 4.380, de 21-8-1964 (BNH)

-Lei n. 7.805, de 1º.-11-1972, modificada pelas Leis n. 8.001, de 24-12-1973, e 8.328, de 2-12-1975

-Lei n. 6.602, de 7-12-1978 – autoriza a desapropriação por utilidade pública para a execução de planos de urbanização

O Brasil passou por um forte processo de urbanização a partir de 1930. O equilíbrio entre meio rural e urbano foi quebrado, houve migrações no sentido campo-cidade que geraram graves conseqüências.

Isto torna-se notório na obra de direito urbanístico do douto Toshio Mukai (5):

"O mencionado fenômeno da industrialização, auxiliado pelo desenvolvimento dos meios de transportes, provoca violentas modificações nas antigas e equilibradas relações entre o meio rural e o meio urbano. A intensa urbanização, fenômeno conseqüente do primeiro e que significa a criação de novas áreas urbanas e intensificação do gênero urbano de vida de todas as áreas já existentes, é acontecimento típico da era que se seguia à Revolução Industrial. Da necessidade de impedir o aparecimento inevitável de inúmeros males ligados a esse crescimento desordenado, começou a surgir uma especialização nova que visa não só ordenar a cidade, mas, agora com uma preocupação de maior alcance, qual seja a de disciplinar e conseguir estabelecer técnicas de intervenção no processo de ocupação do espaço"

O legislador foi coagido pela realidade a adotar medidas no sentido de remediar os problemas. Tal fato gerou um processo de produção de leis visando regulamentar a nova situação. Dentre os quais pode-se apontar: o Decreto-lei n.º 25/37, que cuida da proteção ao patrimônio histórico-cultural, o Decreto-lei n.º 58/37, que estabeleceu normas sobre, parcelamento do solo urbano para venda de lotes a prestações, o Decreto-lei n.º 4.132/62, que tratou da desapropriação por interesse social.

No período pós 2ª Guerra esse processo foi intensificado, não podia mais a situação ser apenas remediada. Começou a se fazer presente a necessidade de planejamento. Mas este ainda era insuficiente, quando não era inexistente. Vale lembrar, novamente, Toshio Mukai (6) segundo o qual "no período que medeia entre o após-guerra imediato e a década de 60, um trabalho apenas se destaca no quadro de planejamento da Região (São Paulo): é o estudo elaborado pela equipe SAGMACS, sob coordenação do Padre Lebret."

Desde então, o processo de expansão das cidades se acelerou. E se já na década de 60, havia críticas pela falta de normas gerais a tratar do assunto (7), no final da década de 80, as legislações esparsas não eram suficientes face à realidade que se apresentava. Era clara a necessidade de o planejamento urbano ser tratado pela Carta Magna, lembrando, mais uma vez que esta assume necessariamente seu papel ao se adequar à realidade, tratando dos mais diversos assuntos, posto que é dirigente (8).

A matéria foi pela primeira vez tratada por uma Constituição em 1988. Não resta dúvidas que foi tendo em vista os problemas decorrentes da urbanização desordenada que o constituinte originário de 1988, trouxe ao viés constitucional alguns meios de compatibilizar o conceito de propriedade do código civil, que permite o usar, gozar e usufruir da propriedade quase ilimitadamente, às novas necessidades pragmáticas. Segundo os arts. 182 e 183 o Poder Público municipal, que é a quem compete o planejamento urbano, é munido inclusive de meios de coagir o proprietário a dar uma utilização social à propriedade o que aproxima da realização de um ideal de justiça.

2.2. Direito estrangeiro

Mais uma vez insurge a problemática de saber quais matérias devem se fazer presentes numa Constituição. Tomando por base as considerações feitas no capítulo inicial deste trabalho, recordamo-nos que a Constituição deve se adequar à realidade do seu país, sob pena de ser apenas uma "folha de papel"(9).

Procedeu-se a uma análise da legislação alienígena(10) e constatou-se que Bélgica, Espanha, França, Itália e EUA, diferentemente do Brasil, não erigiram ao tratamento constitucional o tema em tela.

Pode se configurar um questionamento: o constituinte brasileiro equivocou-se ao tratar da política urbana? A resposta é simples e clara, não. Ele agiu de acordo com as necessidades nacionais. A Constituição pátria tem aspectos peculiares a diferenciá-la das constituições de tais países. A Constituição americana, por exemplo, é sintética, principiológica, adotando o que alguns doutrinadores intitulam o Federalismo "original". O poder constituinte derivado decorrente e a legislação infraconstitucional estadunidense são capazes de suprir as aspirações de ordem prática concernentes à política urbana. Já a Constituição brasileira aborda os mais diversos campos entendeu necessário dispor acerca da matéria em tela. Outra consideração a ser feita é em relação ao período histórico em que foram promulgadas tais constituições. A norte-americana é de 1787, enquanto a brasileira data de 1988, cumpre-nos observar que são conjunturas totalmente diferentes as quais foram levadas em consideração na elaboração das mesmas. Quando foi a primeira promulgada, não havia como se cogitar os processos radicais de urbanização.

Procede, neste ponto, a observação de Kingsley Davis (11):

"Antes de 1850 nenhuma sociedade poderia ser descrita como predominantemente urbana. Em 1900 apenas a Grã-Bretanha atingia essa condição (...) às vésperas da Revolução Industrial, a Europa era uma região quase completamente agrária, tendo sido a industrialização que a transformou radicalmente."

Já na data de promulgação da Carta Magna brasileira o processo de urbanização das cidades apresentava-se de maneira gritante não podendo ser ausente o constituinte originário diante de fato tão palpável.

Acerca disto novamente é cabível citar Kingsley Davis(12):

"No período de 1950-1960, a proporção da população das cidades de cem mil habitantes ou mais aumento 30% mais rapidamente nos países subdesenvolvidos do que nos países já desenvolvidos."

Com relação aos demais países mencionados, ressalvadas adaptações, deve-se utilizar a mesma linha de raciocínio para um entendimento do porquê há apenas a regulamentação infraconstitucional.

A título ilustrativo encontra-se a seguir a legislação infraconstitucional sobre política urbana dos países supracitados:

Bélgica

Lei Orgânica de Orientação do Território e do Urbanismo de 29-3-1962 modificada pelas Leis de : 22-4-1970, 22-12-1970 e 25-7-1974

Espanha

Ley del Suelo de 12-5-1956 reformada pela Lei n. 19, de 20-5-1975

França

Lei de Orientação Imobiliária de 30-12-1967

Itália

Lei n. 1.150, de 17-8-1942

Tabela 1 (13)


3. A POLÍTICA URBANA NO DIREITO CONSTITUCIONAL ESPECIAL – CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

O Direito Constitucional Especial é aquele que objetiva estudar princípios de uma constituição concreta de um Estado específico, compreende a interpretação, sistematização e crítica das normas jurídico constitucionais desse Estado, tal como configuradas na Constituição vigente, nos seus legados históricos e sua conexão com a realidade sócio-cultural existente (14).

O esclarecimento do parágrafo anterior é pertinente para ficar a ressalva que o objetivo maior deste trabalho é o estudo da política urbana no direito constitucional especial. Para tanto segue-se uma análise, sobre os mais diversos aspectos, dos artigos 182 e 183 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que encerram o Capítulo II - DA POLÌTICA URBANA, contido no Título VII que trata da ordem econômica e financeira.

3.1. Da política urbana

Antes mesmo de iniciar o estudo pormenorizado de cada artigo, deve ser feita uma observação quanto a adequação ou não deste capítulo ao titulo que o insere. O título trata de aspectos relevantes para ordem econômica e financeira. A política urbana traz repercussões econômicas mas os impactos mais profundos estão situados predominantemente no quadro social. Esse é o entendimento também de Celso Ribeiro Bastos, para quem, "a natureza de uma cidade não pode se processada apenas na base econômica: a cidade é, antes de tudo, um resultado social". Embora traga repercussão econômica melhor teria sido tratada no capítulo referente à ordem social.

É de opinião unívoca Ayrton Pinassi que ao comentar o capítulo da política urbana afirma: (15)

"Não entendo ser este um capítulo da ordem econômica e financeira, assim como não vejo nesse título o capítulo seguinte. Deveriam eles estar inseridos no título referente às políticas sociais pela sua própria essência sociológica no mundo atual. Mas assim não quiseram os legisladores e assim foi feito."

3.2. Art. 182, caput

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Os objetivos da política de desenvolvimento urbano, que encontram-se expressa no próprio texto legal, consistem em: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Estes objetivos se constituem, por si só, como meios de alcançar os objetivos da República Federal do Brasil elencados no art. 3º da Constituição Federal.

É inegável que a melhor maneira para a consecução de fins é um prévio planejamento dos meios, com projeção das metas a serem cumpridas. Isso é aplicável a qualquer situação.

Oportuno se torna a lição de Celso Ferrari, segundo o qual:

"Em um sentido amplo, planejamento é um método de aplicação, contínuo e permanente, destinado a resolver, racionalmente, os problemas que afetam uma sociedade situada em determinado espaço, em determinada época, através de uma previsão ordenada capaz de antecipar suas ulteriores conseqüências"(16).

Indubitável é a importância do artigo em tela, pois vincula o Poder Público a implementar um planejamento urbano, que ora se apresenta de maneira relevante para os objetivos nacionais.

Convém ressaltar que esta ordenação não pode cercear outras garantias constitucionalmente postas. Embora o interesse social deva prevalecer em relação ao interesse individual, o planejamento não pode coagir o particular quanto à destinação de cada imóvel. Deve-se buscar um equilíbrio, o dos valores constitucionalmente postos, como: a propriedade, a livre empresa, o livre exercício de atividades profissionais e o próprio direito de locomoção.

O constituinte originário agiu com muita propriedade ao estipular que a competência para promover o adequado crescimento da cidade pertence ao Município, pois cada localidade apresenta suas peculiaridades e as soluções se perfazem de acordo com os recursos disponíveis no caso concreto.

Cumpre lembrar Ayrton Pinassi quando destaca que:

"...deixando ao Município a competência de executar a política de desenvolvimento urbano, considerou, com habilidade, que só o Município tem plena capacidade e conhecimento de suas realidades. Pela imensa área, pelo grande número de municípios, seria uma tarefa inglória e mesmo impossível o Poder Público Federal querer disciplinar a vida de cada uma das suas comunas" (17).

Registre-se, ainda, que a política de desenvolvimento urbano deve ser executado pelo Poder Público Municipal, "conforme diretrizes gerais fixadas em lei". Convém esclarecer a quem compete editar esta lei. Através do estudo sistemático da Constituição Federal de 1988, obtém-se a resposta.

Dispõe o artigo 21, XX in verbis:

Art.21: Compete à União:

XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano.

É até desnecessário aludir ao art.21, pois o termo "gerais" da expressão traz, de per si, a resposta, tendo em vista, o modelo de repartição de competências adotado pela Carta Magna segundo o qual a edição de norma geral cujo compete à União, cabendo ao Município editar leis implementadoras das diretrizes adotadas. E ainda, nos termos do art.24, temos que a edição de legislação urbanística no que concerne ao estabelecimento de normas gerais será de competência da União.

Mais uma vez o constituinte foi exato, pois ao limitar o Poder Público Municipal às diretrizes federais, evitou a utilização de medidas ímpares quando não descabidas de uma ou outra cidades. Desta forma, o dispositivo constitucional consegue se adequar à razoabilidade e à proporcionalidade.

Conveniente concluir com a lição de Ayrton Pinassi (18):

"...reservou-se à União o poder de regulamentar as linhas gerais da política urbana; esta é uma forma de cercear o prodigalismo de certos prefeitos com o dinheiro público."

3.3. Art. 182, § 1º

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

Plano Diretor

3.3.1.Definição

O plano diretor vem a ser o instrumento pelo qual os municípios definirão os objetivos a serem atingidos, estabelecendo o zoneamento, as exigências quanto às edificações e um sem número de outras matérias fundamentalmente pertinentes ao uso do solo (19).

Interessante a elucidação de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento sobre o porquê e um plano diretor:

"No exame analítico da expressão, é plano porque equaciona e estabelece objetivos a serem, pela sua execução, alcançados, e é diretor porque fixa regras básicas ou diretrizes a serem satisfeitas." (20)

3.3.2.Fundamento

O plano diretor tem sua razão de ser no fato inegável que o crescimento desordenado das cidades, passando por processos de evolução próprios, pode gerar graves problemas, cuja reparação é mais difícil que a procura de soluções preventivas. Consiste num trabalho preventivo de planejamento cujo aspecto teleológico é evitar a ocorrência de situações caóticas que se não são impossíveis são ao menos mais difíceis de ser resolvidas.

3.3.3.Função e elaboração

Segundo Hely Lopes Meirelles(21), plano diretor ou plano de desenvolvimento integrado consiste no "complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade local."

A partir da visão do ilustre doutrinador acerca do plano diretor ou plano de desenvolvimento integrado extraímos sua função, melhor, entretanto, pluralizarmos esta. Deveras o plano diretor apresentar-se sob o aspecto multifuncional, buscando o desenvolvimento econômico, social, administrativo, bem como o desenvolvimento físico do território municipal.

Com base ainda nas considerações de Hely Lopes(22) aludimos a elaboração do plano diretor. Cabe a Câmara dos vereadores elaborar, porém, deve-se, para tanto, argüir a vontade popular, as necessidades locais, sem olvidar pareceres técnicos das mais diversas áreas. Busca-se o pleno desenvolvimento municipal, logo, a opinião do povo, que é o mais diretamente interessado, é fundamental.

3.3.4.Limitações ao plano diretor

A finalidade do plano diretor é ordenar o processo de desenvolvimento urbano, consiste pois, numa reação contra a espontaneidade do processo desenvolvimentista. O poder público se encontra munido de meios para organizar a cidade, que no entanto não podem ser absolutos.

As limitações ao Plano Diretor encontram-se na própria CF/88. Questão relevante é equilibrar a necessidade de impor parâmetros ao crescimento urbano, preservando outros valores como a liberdade, a propriedade privada e o direito de locomoção que são também constitucionalmente postos.

3.3.5.Solução em caso de omissão legislativa

A ação cabível é a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102 §1º) pois é a única que permite o controle de ato municipal em face da CF.

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental está prevista na Constituição Federal de 1988, no artigo 102, § 1º, tendo sido recentemente regulamentada pela Lei n.º 9.882, de 1999. Sua previsão é revestida de um potencial de aperfeiçoamento do controle de constitucionalidade pátrio, contendo inovações relevantes no sentido de dar uma maior segurança jurídica ao ordenamento, tendo em vista que amplia a possibilidade se excluir atos contrários à Carta Magna.(23)

No caso subxamine há uma omissão legislativa, cabe ao rol dos legitimados no art. 103 da CF proceder a argüição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal.

3.4. Art. 182, § 2º

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Já no art.5º, XXII o constituinte originário estabeleceu que "a propriedade atenderá a sua função social". Função significa a atividade própria ou natural de um órgão, na vida do organismo. Social é algo relativo à sociedade.

A expressão função social indica o uso pleno do bem imóvel, podendo ele ser urbano ou rural. Para este, o art.186 da Constituição Federal de 1988 traz claramente, em seus quatro incisos, os requisitos que atendidos, simultaneamente, indicam que a propriedade rural está atendendo sua função social. Os requisitos são: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Já em relação ao imóvel urbano de maneira diversa se posiciona o constituinte. O parágrafo em epígrafe trata o assunto, e, ao estipular que sua função social será atendida de acordo com às suas exigências de ordenação da cidade, expressas no plano diretor, delega à lei Municipal a qualificação quanto ao aproveitamento do imóvel urbano. Logo, cabe à disposição do plano diretor identificar se o imóvel é usado de maneira a atender sua finalidade social.

Antes de passarmos adiante é indispensável tocar num questionamento relevante: e quanto aos municípios que não tenham plano diretor? Como definir a função social da propriedade urbana em tal caso?

Há dois entendimentos. Celso Ribeiro Bastos entende que no caso de propriedade situada em município sem plano diretor, ou excluído de sua área de atuação, só é possível fazer exigências de cunho abstrato fundadas nos arts. 5º, XXIII e 170, III. De sorte que, sendo a caracterização de estar ou não cumprindo sua função social, requisito preliminar para aplicação do § 4º este não será aplicado, pois exige requisitos específicos delimitando-se sua aplicação à existência do Plano Diretor(24).

Já para Carlos Cal Garcia(25):

" Não quer dizer, todavia, que nos Municípios menores, com população inferior à indicada na norma, não haja obrigação de cumprir, a propriedade urbana, sua função social. Ficam eles, apenas, dispensados do plano urbanístico, mas não do atendimento às exigências fundamentais de ordenação da cidade".

Esse último posicionamento dá maior aplicabilidade ao preceito ora comentado. Caso contrário, poderia o particular pretender se eximir de tornar útil seu bem em virtude da ausência do plano diretor.

3.5. Art. 182, § 3º

§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.

A constituição resguarda, no quadro de suas garantias fundamentais o direito a propriedade, mas em outro patamar e tão importante quanto este está o instituto da desapropriação que se configura como um poder-dever do Estado visando promover o interesse social, é um ato unilateral, por meio do qual o proprietário é obrigado a entregar aquilo que lhe pertence. Um bom fundamento para a o instituto da desapropriação pode ser extraído dos dizeres de Beccaria acerca do direito de punir estatal(26):

" Homem algum entregou gratuitamente parte da própria liberdade, visando ao bem público (...) Se isso fosse possível, cada um de nós desejaria que os pactos que ligam os outros não nos ligassem. Cada homem faz de si o centro de todas as combinações do globo(...) Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade. É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível, apenas a suficiente para induzir os outros a defendê-lo. O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir. O resto é abuso e não justiça, é fato, mas não direito. (...) Por justiça entendo o vínculo necessário para manter unidos os interesses particulares, que, do contrário, se dissolveriam no antigo estado de insociabilidade."

A Constituição, no entanto, limita a desapropriação do livre arbítrio estatal, o art. 5º, XXIV, estabelece que será necessária a indenização prévia e justa e só depois de implementado o quantum poderá se realizar a expropriação. O parágrafo em análise, repete a disposição da regra geral. Não fosse o parágrafo quarto que traz uma exceção, viabilizando a expropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública resgatáveis em até dez anos, esta disposição seria dispensável.

Pelo exposto, nota-se a finalidade do parágrafo terceiro, qual seja a preocupação do constituinte originário de deixar claro que a regra geral é o pagamento prévio, só configurando-se o parágrafo subseqüente nos casos perfeitamente amoldados às suas condições, caso falte um deles incide aquele.

3.6. Art. 182, § 4º

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I – parcelamento ou edificação compulsórios;

II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

Este parágrafo inova no ordenamento pátrio pois possibilita ao Poder Público debelar situações em que o proprietário por ter todas prerrogativas inerentes a sua situação, negava-se a manter uma postura condizente com o interesse social.

As prerrogativas supramencionas decorrem do Código Civil de 1916, produto da doutrina liberal, que caracterizou um direito à propriedade quase ilimitado, tendo sido previstas apenas limitações externas como o direito a vizinhança.

Cumpre que, hodiernamente, com a urbanização crescente, ser o direito do proprietário muito amplo gera situações injustas. Uma possibilidade de o Poder Público amenizá-las reside neste parágrafo.

Observe que este capítulo a todo instante volta-se para a consecução de um fim: que a propriedade cumpra sua função social. Através das medidas aqui previstas o proprietário é coagido a efetivar a função social. E se não o fizer irá perdê-la.

No entanto para a incidência das medidas é necessária a existência de alguns requisitos. Preliminarmente, compete apenas a Município utilizá-las. Logo, é imprescindível uma lei municipal que defina, dentro do espaço coberto pelo plano diretor, a região que estará sujeita a aplicação dos remédios constitucionais. A outra exigência parte da atitude do proprietário que não edifica, subutiliza ou não utiliza seu imóvel urbano, ou não lhe dá função social (27). Se o imóvel possuir destinação social, não pode sofrer as cominações aqui previstas.

A primeira das medidas é o parcelamento ou edificação compulsórios. Este consiste na construção sobre o solo, aquele seria o loteamento, a subdivisão do terreno em lotes a serem melhor aproveitados. O proprietário é compelido a adotar uma das medidas. No entanto, tem o direito de escolher qual delas utilizar, desde que esteja dentro dos limites legais. Não pode, por exemplo, se propor a construir uma indústria em área residencial tomando por justificativa o fato de ser compelido.

Continuando inerte o proprietário, o Poder Público poderá adotar a medida seguinte que consiste no imposto sobre a propriedade predial e territorial com alíquota progressiva no tempo. Isto quer dizer que, a cada ano deverá o imposto ter sua alíquota majorada. Importante ressaltar que mesmo com a progressividade no tempo, o imposto não pode assumir caráter confiscatório, posto que a Constituição adota o princípio da vedação do confisco.

Não chegando-se ao fim de dar uma utilização social, o Poder Público terá o poder-dever de adotar a medida mais grave, a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública. A indenização deverá ser justa mas o pagamento será feito por títulos da dívida pública cuja emissão tenha sido autorizada pelo Senado Federal.

3.7. Art. 183

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou a mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

A Constituição Federal trouxe novamente o usucapião "pro labore" ou especial. E ainda, inovou pois não existia a modalidade urbana criada pelo artigo em tela. Havia apenas a modadlidade rural.

Este tipo de usucapião se concretiza com existência dos seguintes requisitos:

1.tempo, que é de cinco anos;

2.a área do imóvel a ser usucapido não ser superior a 250 m2 ;

3.utilização para a moradia;

4.não ser o usucapiente proprietário rural ou urbano ;

5.posse mansa e pacífica.

Aspectos peculiares desta forma de usucapião são o tempo mínimo exigido que é menor e a inexigibilidade da boa-fé. Eles decorrem da finalidade que se pretende dá ao instituto que é premiar aqueles que realizam a função social da propriedade.

Por fim, um esclarecimento quanto à área de 250 m2, esta é de terreno, ou de área construída? A doutrina diverge, mas o mais importante é buscar a razão da limitação, qual seja, o constituinte procura com o usucapião especial pretende proteger aqueles que detenham a posse de porções moderadas de áreas urbanas. Se não houve distinção no texto legal não cabe ao intérprete fazê-la. Entenda-se, pois, que deve ser englobado a área construída e a do terreno.

O parágrafo primeiro é uma maneira de garantir o direito de ambos os sexos, que poderiam eventualmente ser questionados se não eram unidos por casamento, tendo sido somente a um dado o direito mas que tinha por finalidade beneficiar ambos.

O parágrafo segundo visa impedir que o mesmo indivíduo possa se beneficiar mais de uma vez pelo mesmo instituto. Se já tiver usucapido anteriormente e não é mais proprietário poderá utilizar o instituto, desde que não tenha sido através do usucapião especial.

O parágrafo terceiro fundamenta-se na razão da proteção da destinação que será dada ao imóvel. É relevante esclarecer que para não ser usucapido o imóvel público, não basta sua titularidade, deve apresentar-se factualmente como tal. Caso contrário, poderá ser usucapido. Assim ocorre com as terras devolutas, que apesar de pertecerem ao Poder Público não apresentam destinação a atingir um fim público sendo usucapíveis.


CONCLUSÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inovou ao tratar sobre política urbana. Atendeu as necessidades pragmáticas e dotou o Poder Público de meios de propiciar um melhor aproveitamento da propriedade. Possibilitou uma adequação do ordenamento jurídico pátrio às novas necessidades que surgiram com a evolução urbana e social.

Há ainda imperfeições. Entretanto, a disposição constitucional atende sua finalidade à medida que regula situações outrora esparsas, regulamentadas apenas em nível infraconstitucional e que podiam ferir a segurança jurídica.


NOTAS

1- LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição?. Tradução de Manoel Soares. São Paulo, Global Editores, p. 56.

2- MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo, Atlas, 2000, p. 38.

3- Observação: essas disposições previstas não tratavam do assunto de forma lato sensu, mas, apenas, no sentido estritcto sensu, ou seja, somente havia disposição do usucapião presente na Constituição atual no artigo 183, então considera-se que foi a primeira vez a ser tratada a política urbana pela Carta Magna de 1988.

4- BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. Vol. VII. São Paulo, Saraiva, 1990, p. 201.

5- MUKAI, Toshio apud BASTOS, Celso Ribeiro. Id. Ibid., 1990. p. 200

6- MUKAI, Toshio apud BASTOS, Celso Ribeiro. Id. Ibid., 1990. p. 200

7- Hely Lopes Meirelles, em 1965, na Revista dos Tribunais, p.108, se insurgia contra a falta de uma normatividade geral a respeito: "As Constituições brasileiras, por sua vez, nada dispuseram sobre o assunto, sendo necessário lançar mão de uma interpretação construtiva dos textos para deles extrair autorizações para edição das normas de urbanismo".

8- Vide 1.1

9- Expressão utilizada por Ferdinand Lassalle

10- Vide tabela no final deste tópico

11- DAVIS, Kingsley apud BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit. 1990, p. 199.

12- Id. Ibid., 1990, p. 199.

13- BASTOS, Celso Ribeiro. Op. Cit., 1990, p. 202.

14- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. São Paulo, Malheiros, 1999.

15- PINASSI, Ayrton. Direito Municipalista Constitucional. São Paulo, Conan, 1995. P. 228

16- FERRARI, Celso. Direito e Legislação Urbanística no Brasil. Saraiva, 1988. P.99.

17- PINASSI, Ayrton. Op. Cit., 1995, p. 229.

18- Id. ibid, 1995, p. 229.

19- BASTOS, Celso Ribeiro. Op. Cit., 1990, p.212.

20- NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. A ordem econômica e financeira e a nova Constituição. [s.n.t.], p. 78.

21- MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 3 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 611.

22- Id. ibid, p. 612.

23- Maiores esclarecimentos do instituto encontram-se em nossa pesquisa, realizada para apresentação no XIX Encontro de Iniciação à Pesquisa, realizado pela Universidade Federal do Ceará.

24- BASTOS, Celso Ribeiro. Op. Cit., 1990, p. 216.

25- GARCIA, Caros Cal. Linhas Mestras da Constituição de 1988. [s.n.t.], p.178

26- BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de José Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2 ed. revista. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996, p. 28 e 29.

27- Sobre função social vide 3.4.


BIBLIOGRAFIA

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BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de José Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2 ed. revista. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996.

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FERRARI, Celso. Direito e Legislação Urbanística no Brasil. Saraiva, 1988.

GARCIA, Caros Cal. Linhas Mestras da Constituição de 1988. [s.n.t.].

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. São Paulo, Malheiros, 1999.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAÇANHA, Ludiana Carla Braga. A política urbana à luz da Constituição Brasileira de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2334. Acesso em: 19 abr. 2024.