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Tributação dos bens tangíveis no comércio eletrônico, sob a perspectiva do ICMS

Tributação dos bens tangíveis no comércio eletrônico, sob a perspectiva do ICMS

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É inconstitucional a pretensão de tributar as operações interestaduais que envolvam mercadorias destinadas a compradores não contribuintes do ICMS, enquanto novo regime de repartição de competência tributária não for fixado.

I. Introdução

As transformações das últimas décadas, com a evolução das tecnologias da informação e de transmissão de dados e a expansão da internet, implicaram em grandes mudanças sociais, econômicas e jurídicas.

Nesse novo cenário, cada vez mais globalizado, aparece, como grande inovação do mundo econômico, o comércio eletrônico, possibilitando a realização de operações comerciais corpóreas (tangíveis) e incorpóreas (intangíveis), sem a definição exata do local de origem.

Essa nova realidade desafia diversos elementos da regra-matriz de incidência tributária, tornando-os inseguros ou indetermináveis. Conceitos fundamentais - como critério espacial (domicílio fiscal, estabelecimento permanente, competência e jurisdição tributária) e critério material (fonte e classificação da natureza de mercadorias, serviços e rendimentos), sem contar as repercussões nos preços de transferência - sobre os quais se alicerçam sistemas tributários de todo o mundo, veem-se abalados.

Neste contexto é que surgem grandes oportunidades e riscos para as empresas atuantes no e-commerce[1], em especial nas modalidades business-to-consumer (B2C)[2] ou business-to-business (B2B)[3].

O presente texto se propõe a identificar as controvérsias atuais em torno da tributação dos bens tangíveis transacionados por meio do e-commerce, sob a perspectiva do ICMS, questão que enfrenta calorosas discussões em nossos tribunais (por meio de Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, inclusive) e no Congresso Nacional, com probabilidade de solução mais palpável.

Como ponto de partida, elencaremos as principais conclusões da Conferência Ministerial realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, em Otawa, outubro de 1998, quando firmados os primeiros entendimentos acerca dos aspectos que concernem à tributação do e-commerce.

Esses entendimentos ainda hoje são atuais e veem pautando as decisões dos governos, assim como os estudos que se desenvolvem sobre o tema, no que respeita às multifacetadas implicações do e-commerce. Além disso, auxiliam na identificação de questões que interessam ao comércio eletrônico e que à primeira vista poderiam passar despercebidas.

Na sequência, discorreremos sobre o Protocolo de ICMS nº 21, de 1º de abril de 2011 (marco da guerra fiscal instituída pela modalidade do e-commerce B2C) e seus principais desdobramentos, quando delinearemos os aspectos nucleares das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, e concluiremos com abordagens acerca das Propostas de Emenda Constitucional nºs 56, 103 e 113 de 2011, em trâmite no Congresso Nacional. É de se conferir.


II. A OCDE e a Tributação do E-commerce[4]: Guideline para a Solução dos Desafios que se Apresentam.

As conclusões da Conferência Ministerial realizada pela OCDE, em 1998, representam, até hoje, as principais diretrizes em torno da tributação do e-commerce.

Estampadas no Relatório Fiscal da OCDE (Taxation Framework Conditions) partem de três premissas nucleares.

A primeira, no sentido de que os princípios fiscais que regem os governos em relação ao comércio convencional também devem guiar o comércio eletrônico.

A segunda, no sentido de que as regras em vigor podem efetivar esses princípios, sem prejuízo de que venham a ser modificadas ou de que novas medidas legislativas ou administrativas sejam implementadas. As mudanças devem ser no sentido de efetivar os princípios fiscais e não devem impor um tratamento fiscal discriminatório em relação às operações de e-commerce.

A terceira, no sentido de que a aplicação desses princípios deve preservar a soberania fiscal dos Países, para que seja alcançada uma justa partilha e evitada uma não intencional dupla não tributação.

Os princípios gerais tal como identificados no Relatório Fiscal da OCDE são:

· Neutralidade: A tributação deve ser neutra e equitativa entre as formas convencional e eletrônica do comércio. As decisões de negócios devem ser motivadas por fatores econômicos, em vez de considerações fiscais. Os contribuintes em situações semelhantes e que realizem operações também semelhantes devem estar sujeitos a níveis equivalentes de tributação.

· Eficiência: Os custos dos contribuintes com o cumprimento de obrigações fiscais e os custos administrativos das autoridades fiscais devem ser minimizados na medida do possível;

· Certeza e simplicidade: A compreensão das regras fiscais deve ser clara e simples de tal forma que os contribuintes possam antecipar as consequências fiscais antes da realização de uma operação, inclusive quando, onde e como o imposto deve ser apurado.

· Eficácia e equidade: A tributação deve produzir a quantidade certa de imposto, no momento certo. O potencial para a fraude e a evasão fiscal deve ser minimizado, mantendo medidas reativas proporcionais aos riscos envolvidos.

· Flexibilidade: Os sistemas de tributação devem ser flexíveis e dinâmicos para garantir que eles mantenham o ritmo do desenvolvimento tecnológico e comercial.

Na seara dos impostos do consumo também são balizares as diretrizes do Relatório Fiscal, segundo o qual:

· As regras para a tributação do consumo de comércio transnacional devem resultar em tributação na jurisdição onde o consumo ocorre e um consenso internacional deve ser obtido sobre as circunstâncias que o caracterizam.

· Para efeitos de impostos sobre o consumo, o fornecimento de produtos digitalizados não deve ser tratado como uma entrega de bens.

· Quando negócios e outras organizações adquirirem bens e serviços intangíveis de fornecedores situados em outra jurisdição, os países devem examinar o uso de mecanismos que deem a imediata proteção à sua fonte de receita e aos fornecedores domésticos.

· Os países devem assegurar que o método de coleta de impostos sobre bens importados seja (iv.a) desenvolvido em cooperação com a Organização Mundial Alfandegária, em consulta com operadores e outras partes interessadas e que (i.b) não impeça indevidamente a cobrança de receitas ou a entrega eficiente dos produtos aos consumidores.

Embora de difícil alcance, somos do entendimento de que essas diretrizes devem orientar todas as questões que se apresentem às autoridades fiscais (em controvérsias internacionais e domésticas), governos, magistrados e demais atores do cenário do comércio eletrônico, como forma de estimular o crescimento econômico, a arrecadação dos países e a preservação das soberanias fiscais.

O e-commerce, assim, representa um desafio atual e sobre o qual não há um consenso internacional ou doméstico.

No Brasil, no entanto, tudo está a indicar que o primeiro consenso será alcançado no comércio eletrônico de bens físicos, na modalidade B2C. Caminham neste sentido as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal – STF e os esforços legislativos para a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 103 (PEC 103) sobre os quais nos referiremos a seguir. Antes, porém, trataremos do Protocolo ICMS nº 21, de 1º de abril de 2011, como já assinalado, marco da guerra fiscal instituída pela referida modalidade de e-commerce.


III. As Vendas Não Presenciais e o Protocolo ICMS nº 21/2011.

O Constituinte Originário da Carta Republicana de 1988 optou por um modelo híbrido de partilha da competência do ICMS, conforme se depreende do disposto no artigo 155, VII, segundo o qual:

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

(...)

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

(...)

VII - em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:

a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;

b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;

VIII - na hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;”

Como se vê, o modelo constitucional de partilha do ICMS adota como critério-padrão o Estado de origem da mercadoria, com as seguintes especificações:[5]

a) Operações interestaduais cuja mercadoria é destinada a consumidor final contribuinte do imposto: O estado de origem aplica a alíquota interestadual, e o estado de destino aplica a diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual. Há, portanto, tributação concomitante, ou “partilha simultânea do tributo”. Quer dizer, ambos os estados cobram o tributo, nas proporções já indicadas;

b) Operações interestaduais cuja mercadoria é destinada a consumidor final não-contribuinte: Apenas o estado de origem cobra o tributo, com a aplicação da alíquota interna; e

c) Operações interestaduais cuja mercadoria é destinada a quem não é consumidor final: Apenas o estado de origem cobra o tributo, com a aplicação da alíquota interestadual.

Ainda que se possa questionar se o critério é adequado ou inadequado em termos sociais, não há dúvidas quanto à opção política feita pelo constituinte originário, que é precisa e nítida: Prevalece o critério de origem, mitigado na hipótese de operação realizada com consumidor final que também seja contribuinte do tributo.

Inobstante a clareza constitucional no tocante à partilha do ICMS, alguns Estados de destino passaram a tributar as mercadorias adquiridas de forma não presencial por consumidores finais não-contribuintes, ao principal argumento de que a tributação exclusiva na origem aumentaria as disparidades regionais.

O marco desta nova guerra fiscal entre os Estados cristalizou-se no Protocolo ICMS nº 21/2011, por meio do qual as unidades federadas signatárias acordaram exigir, a favor da unidade federada de destino da mercadoria ou bem, a parcela do ICMS devida na operação interestadual em que o consumidor final adquire mercadoria ou bem de forma não presencial[6].

O Protocolo foi firmado em 2011 pelos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Sergipe e o Distrito Federal. Posteriormente; aderiram os Estados de Mato Grosso do Sul e Tocantins, através dos Protocolos ICMS nºs 30/2011 e 43/2011, respectivamente.

Em decorrência do Protocolo firmado, diversos Estados signatários editaram atos normativos[7] com o propósito de alterar o regime constitucional de incidência do imposto.

Os atos normativos e Protocolo foram desafiados por Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade[8] tendo como principais argumentos:

·   Violação ao princípio da liberdade de tráfego (arts. 150, V e 5º, XV);

·  Violação ao princípio da não-discriminação (art. 152). Precedentes citados: ADIs 3.389; 3.673; 2.377-MC e 1.655;

· Bitributação (vedada pelo art. 155, § 2º, VII, b), na medida em que a Constituição Federal define as alíquotas apenas em razão da situação do consumidor final – se contribuinte ou não. Precedente citado: ADIs 3936-MC/PR;

· Ofensa ao princípio do pacto federativo, com a criação de novo tributo, caracterizado pelo acréscimo de percentual antecipado (7% ou 12%, cf. o Estado de origem). Precedentes citados: ADIs 1.247-MC e 2.377-MC;

·  Ofensa ao art. 150, I, segundo o qual a hipótese de incidência de qualquer exação tributária deve restar expressamente prevista em lei ordinária (hipótese dos Estados que instituíram a cobrança do ICMS por Decreto);

·  Violação ao art. 150, IV que veda a utilização do tributo com efeito de confisco;

·  Ofensa ao art. 154, I que atribui exclusivamente à Lei Complementar o poder para instituição de novo tributo;

· Ampliação do âmbito de incidência do ICMS, com a instituição de percentuais inferiores aos previstos para as operações interestaduais (previstos na Res. do Senado nº 22/89). Artigos vulnerados: 150, I; 155, II; 155, § 2º, IV e VI;

· Violação aos arts. 155, II; 5º, XV e 150. A tributação sobre mera circulação física de mercadoria não tem guarida constitucional. Precedente: RE 74.852 (DJ 10.11.72).

Com efeito, enquanto novo modelo constitucional não é definido, é inequívoca a inconstitucionalidade de qualquer tentativa de tributar as operações que envolvam mercadorias destinadas a compradores não contribuintes do imposto e localizados em outro Estado.

Nesse sentido tem se manifestado o Supremo Tribunal Federal - STF, como se vê da decisão proferida em Sessão Plenária (havida em 07.04.2011) para suspender a eficácia prospectiva e retrospectiva (ex tunc) da Lei nº 6.041/2010 do Estado do Piauí, ipsis litteris.

EMENTA: CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL. LEI 6.041/2010 DO ESTADO DO PIAUÍ. LIBERDADE DE TRÁFEGO DE BENS E PESSOAS (ARTS. 150, V E 152 DA CONSTITUIÇÃO). DUPLICIDADE DE INCIDÊNCIA (BITRIBUTAÇÃO – ART. 155, § 2º, VII, B DA CONSTITUIÇÃO). GUERRA FISCAL VEDADA (ART. 155, § 2º, VI DA CONSTITUIÇÃO). MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

Tem densa plausibilidade o juízo de inconstitucionalidade de norma criada unilateralmente por ente federado que estabeleça tributação diferenciada de bens provenientes de outros estados da Federação, pois:

(a) Há reserva de resolução do Senado Federal para determinar as alíquotas do ICMS para operações interestaduais;

(b) O perfil constitucional do ICMS exige a ocorrência de operação de circulação de mercadorias (ou serviços) para que ocorra a incidência e, portanto, o tributo não pode ser cobrado sobre operações apenas porque elas têm por objeto “bens”, ou nas quais fique descaracterizada atividade mercantil-comercial;

(c) No caso, a Constituição adotou como critério de partilha da competência tributária o estado de origem das mercadorias, de modo que o deslocamento da sujeição ativa para o estado de destino depende de alteração do próprio texto constitucional (reforma tributária). Opção política legítima que não pode ser substituída pelo Judiciário. (Medida Cautelar na ADI 4.565; Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão unânime – votaram: Ayres Britto, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Luiz Fux; DJe 27.06.2011; g.n.).

O entendimento manifestado à unanimidade em sede de Medida Cautelar pelo Plenário do STF prestigia, assim, o modelo constitucional vigente de partilha da competência tributária do ICMS incidente sobre as operações de circulação interestadual de mercadorias.

Mas não é só. Repudia o STF o uso pelos Estados de sua competência legislativa privativa ou concorrente para retaliar outros entes federados, sob qualquer pretexto e, em especial de corrigir desequilíbrio econômico, consignando que a sua solução deve ser buscada legitimamente junto ao Congresso Nacional, por meio de Proposta de Emenda à Constituição, como preceitua o texto constitucional. Eis os exatos termos da decisão em apreço:

EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL. COBRANÇA NAS OPERAÇÕES INTERESTADUAIS PELO ESTADO DE DESTINO. EXTENSÃO ÀS REMESSAS PARA CONSUMIDORES FINAIS. COMÉRCIO ELETRÔNICO. “GUERRA FISCAL”. DENSA PROBABILIDADE DE VIOLAÇÃO CONSTITUCIONAL. LEI 9.582/2011 DO ESTADO DA PARAÍBA. MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA. 1. A Constituição define que o estado de origem será o sujeito ativo do ICMS nas operações interestaduais aos consumidores finais que não forem contribuintes desse imposto, mas a legislação atacada subverte essa ordem (art. 155, § 2º, II, b da Constituição). 2. Os entes federados não podem utilizar sua competência legislativa privativa ou concorrente para retaliar outros entes federados, sob o pretexto de corrigir desequilíbrio econômico, pois tais tensões devem ser resolvidas no foro legítimo, que é o Congresso Nacional (arts. 150, V e 152 da Constituição). 3. Compete ao Senado definir as alíquotas do tributo incidente sobre as operações interestaduais. 4. A tolerância à guerra fiscal tende a consolidar quadros de difícil reversão. (Medida Cautelar na ADI 4.705; Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão unânime – votaram: Cezar Peluso, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber; Sessão Plenária do dia 23.02.2012; DJe 19.06.2012; g.n.).

A Cobrança de ICMS em comércio eletrônico também é tema de Repercussão Geral. O Supremo Tribunal Federal (STF), por decisão publicada no Diário de Justiça Eletrônico do dia 10.12.2012, reconheceu, por meio de votação no Plenário Virtual, a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada no Recurso Extraordinário (RE) nº 680.089, em que se discute a possibilidade de a cobrança do ICMS, pelo estado de destino da mercadoria, nas operações interestaduais de venda de mercadorias a consumidor final, realizadas de forma não presencial.

No RE em comento, o Estado de Sergipe questiona uma decisão favorável a empresa de comércio eletrônico, que lhe assegurou o direito a recolher o imposto somente no estado remetente da mercadoria (e não no de destino). Confira-se a ementa da decisão que reputou constitucional e reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. PROTOCOLO CONFAZ Nº 21/2011. VENDA REALIZADA DE FORMA NÃO PRESENCIAL A CONSUMIDOR FINAL NÃO CONTRIBUINTE DO IMPOSTO. RECOLHIMENTO DO ICMS EM FAVOR DO ESTADO DE DESTINO DA MERCADORIA. REPERCUSSÃO GERAL. ARTIGO 155, § 2º, VII, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. QUESTÃO DE FUNDO SIMILAR À TRATADA NA ADI 4628. RELEVÂNCIA DA MATÉRIA E TRANSCENDÊNCIA DE INTERESSES. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL.

Inequívoco, portanto: (i) que a questão deve ser pacificada no âmbito do STF no sentido da inconstitucionalidade da pretensão do Estado de destino de tributar as operações de e-commerce de venda interestadual de mercadorias destinadas a não contribuintes do ICMS; e (ii) que cabe aos Estados buscar junto ao Poder Legislativo a alteração do critério de partilha de competência.

É nesse contexto que ganham relevo as Propostas de Emenda à Constituição – PECs nºs 56, 103 e 113 de 2011, que buscam alterar a sistemática constitucional de arrecadação em vigor.


IV. As Propostas de Emenda à Constituição Federal em trâmite no Congresso Nacional.

As Propostas de Emenda à Constituição nºs 56, 103 e 113 de 2011 buscam alterar as regras de arrecadação do ICMS sobre o comércio eletrônico (e-commerce), com a canalização de parte dos recursos auferidos pelo recolhimento do ICMS ao Estado de destino. É que, conforme antes exposto, na sistemática constitucional de arrecadação em vigor apenas o Estado de origem da mercadoria detém legitimidade para tributar.

Devido ao caráter novo da incidência que se propõe, cabe registrar algumas particularidades de tais projetos, especialmente considerando as suas redações originais e as características nucleares do texto consolidado.

Nesse sentido, a PEC 56/2011 altera o regime de tributação do ICMS nas operações interestaduais decorrentes de faturamento direto para o consumidor final localizado em outro Estado, abrangendo tão somente as de comércio eletrônico (e-commerce).

Na PEC 103/2011 o texto original propõe que Resolução do Senado Federal defina as futuras alíquotas, propondo percentuais provisórios até que referida regra seja editada. Nos termos iniciais da PEC em análise, a repartição provisória asseguraria ao Estado de localização do destinatário da mercadoria 70% do ICMS correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual.

Por sua vez, o PEC 113/2011 altera o regime de tributação do ICMS nas operações interestaduais decorrentes de faturamento direto para o consumidor final localizado em outro Estado, abrangendo não somente o comércio não presencial ou eletrônico (e-commerce), como na PEC 103/2011, como também o comércio presencial.

Dado o escopo das propostas, as PECs receberam tramitação conjunta, com o arquivamento dos processos referentes às PECs 56 e 113, devendo os seus desdobramentos ser acompanhados junto à PEC 103.

Em decorrência, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ emitiu o Parecer de nº 817/2012 acerca das 3 PECs, concluindo pela aprovação da Emenda Substitutiva nº 5-CCJ. O Parecer da CCJ foi aprovado, e o texto final da emenda substitutiva remetido em 09.07.2012 à Câmara de Deputados para exame.

Eis os termos da emenda substitutiva proposta pela CCJ para os incisos VII e VIII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal:

“Art. 155. ............................................................................................................................

.............................................................................................................................................

§ 2º ......................................................................................................................................

.............................................................................................................................................

VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, aplicar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre:

a) a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual, quando o consumidor final for contribuinte do imposto;

b) a alíquota interna do Estado remetente e a alíquota interestadual, quando o consumidor final não for contribuinte do imposto.

VIII – a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída:

a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;

b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto;

..............................................................................................................................................” (NR)

Do texto consolidado apresentado pela CCJ, pode-se concluir que a emenda substitutiva se diferencia do texto original das PECs para prever que: (i) em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizados em outro Estado, aplicar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre (i.a) a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual, quando o consumidor final for contribuinte do imposto; (i.b) a alíquota interna do Estado remetente e a alíquota interestadual, quando o consumidor final não for contribuinte do imposto.

Ademais, com o propósito de evitar que o remetente, localizado em outro Estado, torne-se substituto perante o Estado de destino, atribui-se a responsabilidade pelo recolhimento do imposto ao (ii.a) destinatário, quando este for contribuinte do imposto; e (ii.b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto.


V. CONCLUSÃO.

Os desafios e consequências advindos do e-commerce (que surge como verdadeiro propulsor da economia mundial e grande deflagrador da quebra de dogmas e conceitos há muito sedimentados) não podem ser invocados para a quebra da regra constitucional de repartição da competência tributária, com o propósito de obter, à fórceps, o deslocamento da sujeição ativa para o estado de destino.

É, portanto, manifestamente inconstitucional a pretensão de tributar as operações interestaduais que envolvam mercadorias destinadas a compradores não contribuintes do ICMS, enquanto novo regime de repartição de competência tributária não for fixado.

Recomendamos o acompanhamento da tramitação da PEC 103/2011, do RE (680.089) em que declarada a Repercussão Geral da Controvérsia em torno da constitucionalidade do Protocolo ICMS n.º 21/2011 do CONFAZ, e da ADI 4.628, e, até que seja alterado o regime constitucional de partilha de competência tributária dos Estados, sejam propostas medidas assecuratórias judiciais, com vistas a impedir que os Estados de destino das mercadorias busquem tributar indevidamente as operações de circulação interestadual de bens adquiridos na modalidade não presencial por não contribuintes do ICMS.


Notas

[1] De acordo com a 13ª pesquisa ‘Comércio Eletrônico no Mercado Brasileiro’ divulgada em abril de 2011 pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), o comércio eletrônico B2C alcançou 33,02% do total de transações feitas no ano de 2010. Nas chamadas operações B2B o número é ainda maior, representando 66,25% do total. O comércio foi o setor que mais se utilizou do e-commerce destinado ao consumidor, com 34,01% das transações. Os setores de serviços e indústria não ficaram muito atrás, com 33,07% e 31,34% do total negociado. Outro destaque é a utilização do e-commerce na integração entre empresas e fornecedores no setor de comércio, que chegou a 72%.

[2] Esta modalidade de e-commerce envolve a venda direta ao consumidor. São exemplos os sites populares como a Americanas.com, Submarino e Amazon.com.

[3] Trata-se de modalidade de comércio eletrônico entre duas empresas, também conhecido por Electronic Data Interchange (EDI). Estudos revelam que o maior potencial de crescimento do e-commerce esteja associado a esta modalidade.

[4] As conclusões listadas neste tópico têm como fonte os relatórios elaborados pela OCDE, os quais estão disponíveis em: http://www.oecd.org/tax/taxtreaties/taxationaspectsofelectroniccommercepublicationofreportsandtechnicalpapers.htm Acesso em: 02.08.2012. A tradução é livre.

[5] Como sabido, quando a operação envolve combustíveis e lubrificantes a competência para cobrança é do estado de destino da mercadoria, e não do estado de origem. Por esta razão, optamos por não tratar desta especificidade por fugir ao escopo do Protocolo ICMS nº 21/2011 e, portanto, da controvérsia objeto do presente texto.

[6] Por força de expressa disposição do Protocolo ficaram excluídas as operações com veículos automotores novos de que trata o Convênio ICMS nº 51/2000, hipótese em que devem ser aplicadas as regras específicas relativas ao faturamento direto ao consumidor pela montadora ou pelo importador.

[7] Exemplificativamente: Arts. 1º e 2º do Decreto nº 13.162/2011 – Mato Grosso do Sul; Art. 11 da Lei nº 14.237/2008 – Ceará; Art. 9º do Decreto nº 2.748/2011 e art. 8º do Decreto nº 4.028/2011 – Amapá; Arts. 1º, XIX, 2º, X, do Decreto 12.831/2011, que alteraram o Decreto Estadual nº 6.284/1997 (RICMS); Art. 352-B, caput do RICMS; Item 30 do Anexo 86 do RICMS – Bahia; Art. 1º do Decreto nº 2.767/2011; Art. 1º, IV do Decreto nº 2.839-R/2011; Arts. 269-B a 269-G do Decreto nº 1.090-R/2002 (RICMS) - Espírito Santo; Decreto nº 7.303/2011 – Goiás; Decreto nº 27.505/2011 – Maranhão; Decreto nº 312/2011; art. 398-Z-5 do Decreto nº 1.944/1989 (RICMS); Decreto nº 79/2011 – Pará; Lei nº 9.582/2011 – Paraíba; Art. 2º, II do Decreto nº 12.659-E/2011; Decreto nº 12.660-E/2011 – Roraima; Decreto nº 15.846/2011 – Rondônia; Decreto nº 28.064/2011 – Sergipe; Decreto nº 32.933/2011; Decreto nº 33.341/2011 - Distrito Federal.

[8] ADIs: 4.565; 4.596; 4.599; 4.642; 4.705; 4.712; 4.628; e 4.713, estas duas últimas arguindo a constitucionalidade do Protocolo ICMS nº 21/2011.


Autor

  • Michele Viegas Gordilho

    Michele Viegas Gordilho

    Graduada pela Universidade Candido Mendes – UCAM/Centro (RJ - 2003); especializada em Direito Tributário pelo Curso de Aperfeiçoamento Profissional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – CEPED/UERJ (2006), em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, e em Direito Tributário Avançado pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-Rio (2011), é sócia de Andrade Advogados e Associados.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GORDILHO, Michele Viegas. Tributação dos bens tangíveis no comércio eletrônico, sob a perspectiva do ICMS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3495, 25 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23547. Acesso em: 26 abr. 2024.