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O desenvolvimento na Constituição Federal e sua qualificação como direito fundamental

O desenvolvimento na Constituição Federal e sua qualificação como direito fundamental

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Desde a garantia da propriedade privada, a liberdade de trocas em um ambiente livre, até a garantia da igualdade material mediante atos de redistribuição de renda poderiam ser abrangidos pelo direito fundamental completo ao desenvolvimento.

Resumo: O presente artigo tem por finalidade discutir o tratamento constitucional da questão do desenvolvimento e investigar sua possível configuração como direito fundamental. Para isso, serão abordadas as várias concepções de desenvolvimento adotadas desde o segundo pós-guerra, até a definição dada ao desenvolvimento por Amartya Sen. Questiona-se a possibilidade e a utilidade de abordar o desenvolvimento sob a ótica dos direitos fundamentais em razão, primeiro, da problemática da existência de um direito ao desenvolvimento e, segundo, pelas dificuldades encontradas para a definição de seu âmbito de proteção.


1. Introdução: o tema do desenvolvimento nas Constituições

A relação entre desenvolvimento e constituição, e mesmo entre desenvolvimento e direitos fundamentais, não é algo usual tanto pela doutrina constitucionalista quanto pela literatura sobre desenvolvimento. De parte a parte, pouca ou nenhuma relevância é conferida aos possíveis intercâmbios entre esses dois campos de pesquisa.

VIEIRA e DIMOULIS[1] chamam a atenção para o fato de que na substanciosa obra Curso de Direito Constitucional de J.J. Gomes Canotilho não se encontra referência à questão do desenvolvimento, mesmo levando em consideração que essa obra tem como referência a constituição portuguesa de 1975, que é tida como desenvolvimentista. Por outro lado, os pesquisadores sobre a relação entre direito e desenvolvimento, sejam eles economistas, cientistas sociais ou juristas, também ignoram a constituição no âmbito de suas investigações. Como um exemplo, na obra organizada por TRUBEK e SANTOS, simplesmente não há referências à constituição[2].

A escassa literatura sobre esses dois grandes tópicos, contudo, não quer dizer que constituição e desenvolvimento não possam guardar interessantes formas de relação. A Constituição guarda relações com diferentes aspectos da realidade político-social e, com a questão do desenvolvimento, não poderia ser diferente[3]. Tal como ressaltam VIEIRA e DIMOULIS:

“A principal razão pela qual a Constituição e o desenvolvimento possuem conotações positivas é sua proximidade a ideologias emancipatórias ou progresso da humanidade, cultivados a partir do iluminismo.”[4]

É possível perceber que a proximidade entre esses temas pode ser alterada conforme o momento histórico. Durante o liberalismo constitucional, houve uma especial proteção ao direito de propriedade, o que possibilitou uma novas oportunidades para o desenvolvimento entendido como a simples geração de riquezas. Por exemplo, a inviolabilidade da propriedade privada, garantida pelo art. 17 da Declaração Francesa de 1789, e a garantia da propriedade sobre invenções, determinada pelo art. I, 8, da Constituição dos Estados Unidos da América, propiciaram as bases econômicas para o surgimento e crescimento do regime capitalista de produção. Como afirmam VIEIRA e DIMOULIS:

“Nessa perspectiva, o desenvolvimento e o progresso se dão por intermédio da autorregulamentação da sociedade e da remoção dos obstáculos para que cada um possa perseguir seu próprio interesse, que, por intermédio da competição natural, irá redundar no progresso e na prosperidade de todos.”[5]

Após o segundo pós-guerra, houve uma nova geração de constituições dos países que estavam no processo de reconstrução, bem como de novos Estados que conseguiram sua independência das metrópoles europeias[6]. Nestas, a relação com o desenvolvimento foi reposicionada, não bastando a possibilidade da busca da felicidade individual, mas também, com uma nova concepção de justiça social, impondo a transformação da realidade para um determinado fim constitucionalmente estabelecido. Com esse novo contexto, a constituição brasileira de 1988 pode ser mencionada como um exemplo de reencontro entre o texto constitucional e a questão do desenvolvimento.

Não é apenas no caso brasileiro que o desenvolvimento é expressamente mencionado no corpo de constituições contemporâneas. Se as constituições do século XIX se destacavam pela omissão do próprio termo, as constituições do século XX colocavam o desenvolvimento como meta do Estado de bem-estar social. Em especial nas constituições denominadas dirigentes ou transformadoras o termo, é encontrado com frequência[7].

Dessa forma, percebe-se que as relações entre a constituição e o desenvolvimento não podem ser negadas, sob pena de se desconsiderar a vigência de dispositivos contidos pelas constituições contemporâneas.


2.  O desenvolvimento na Constituição brasileira de 1988

Em uma análise meramente quantitativa, descontadas aquelas circunstâncias em que o termo aparece ligado a uma política setorial específica (como educação ou inovação tecnológica), o termo desenvolvimento aparece vinte e oito vezes na Constituição Federal de 1988.

Já no preâmbulo da lei fundamental brasileira, o desenvolvimento é posto como um fim ao qual o Estado Democrático deve se dedicar.No corpo principal, a primeira referência do termo desenvolvimento é na qualidade de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme consta do art. 3º:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Adiante, no inciso IX do art. 21 da Constituição Federal, é previsto como competência da União “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”. Outra referência que vale menção é o § 1º do art. 174. O caput do art. 174 dispõe sobre a competência normativa e reguladora do Estado sobre a atividade econômica, especificando as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. Por sua vez, o § 1º prevê a necessidade de uma lei que harmonize os planejamentos nacionais e regionais de desenvolvimento.


3. Que desenvolvimento?

Como demonstrado acima, não se pode desconsiderar as referências que as constituições contemporâneas fazem ao desenvolvimento, incluindo em especial a Constituição brasileira de 1988. Contudo, o próprio significado desse conceito tem apresentado significativas alterações históricas, cujo entendimento é necessário para a interpretação desses dispositivos constitucionais.

a) Desenvolvimento como crescimento econômico: A noção de desenvolvimento relacionada ao crescimento econômico é a clássica entre os teóricos econômicos. Assim, essencial para o desenvolvimento de um país é a acumulação de capital por meio da poupança interna e externa. A concepção é extremamente universal e restritiva, como se a condição socioeconômica dos países desenvolvidos pudesse ser estendida a todos os demais países do mundo, bastando que os países subdesenvolvidos superassem as etapas necessárias de acumulação de capital. Outra concepção também clássica de desenvolvimento é a de transformação da economia baseada na agricultura em uma economia industrializada. Para essa concepção, os conceitos-chave de desenvolvimento são urbanização e industrialização. As mesmas críticas sobre reducionismo e universalismo são aplicáveis a esse entendimento.

Por fim, outra concepção importante sobre o desenvolvimento é a vertente neoliberal, expressão do consenso de Washington com muita importância durante os anos de 1980 e 1990. Segundo o receituário neoliberal para o desenvolvimento econômico, dez medidas são necessárias, como resume PFEIFFER:

“(1) disciplina fiscal (com o argumento de que atos e contínuos déficits fiscais contribuem para a inflação e fugas de capital); (2) redução dos gastos públicos; (3) reforma tributária; (4) taxas de juros de mercado (ou seja, ela não deve ser determinada pelo Estado, mas pelo mercado); (5) taxa de câmbio competitiva (ou seja, que favoreça exportações, tornando-as mais baratas para o comércio exterior); (6) abertura comercial (eliminação de barreiras para o comércio exterior); (7) investimento direto estrangeiro, com redução (ou até mesmo eliminação) de restrições; (8) privatização das empresas estatais; (9) desregulamentação; e (10) proteção dos direitos de propriedade”.[8]

b) O poder econômico da mudança: Joseph Schumpeter:Outra teoria econômica sobre o desenvolvimento é a de Joseph Schumpeter, que defende a constante inovação tecnológica, que é o motor capaz de proporcionar à sociedade o potencial de crescimento, ou na terminologia de Schumpeter o poder econômico da mudança. 

c) As duas correntes da CEPAL: A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe foi criada em 1948, com o objetivo de servir como um núcleo de planejamento econômico para a região. Os teóricos ligados à CEPAL passaram a investigar o fenômeno do desenvolvimento a partir dos países subdesenvolvidos da América Latina. De tradição cepalina, duas correntes surgiram que merecem destaque. A primeira corrente de tradição da CEPAL é a teoria estruturalista, a qual defende, em síntese, que as estruturas atualmente existentes influenciam no processo de desenvolvimento e que não só o crescimento econômico é relevante para o desenvolvimento, mas também a distribuição de renda.

Por outro lado, a segunda vertente corresponde à teoria da dependência, de matiz econômico e sociológico, a qual prega que questões políticas também são capazes de determinar o desenvolvimento de determinados países, formando os países de centro, ao lado dos países de periferia. Para essa corrente, não há uma “simples diferença de etapa ou estágio de sistema produtivo, mas também de função ou posição dentro de uma mesma estrutura econômica internacional de produção e distribuição.”[9]

d) Nova economia institucional: A nova economia institucional (NEI) também é uma reação ao que pode ser denominado do “fundamentalismo do capital” das teorias de desenvolvimento como crescimento econômico. Como visto acima, esse fundamentalismo defende que todas as questões do subdesenvolvimento seriam resolvidas pela acumulação de capitais. Essa visão é atacada quando se analisa que o capital tende a fluir entre países ricos e não destes para países pobres e, também importante, que a falta de capital é um sintoma e não uma causa do subdesenvolvimento[10]. Para os economistas da nova teoria do crescimento[11], o desenvolvimento não deve ser mais visto como um simples acúmulo de capital, mas sim como um processo de mudança organizacional. Nesse contexto, as instituições têm um papel relevante, pois são essas que amoldam a organização de um determinada sociedade e, assim, determinam como o processo econômico de produção, distribuição e consumo irá ocorrer, contrariando pressupostos neoclássicos de atuação individual de maximização de utilidade[12].

e) Desenvolvimento como liberdade: Para esta concepção de desenvolvimento, desenvolvida por Amartya Sen, o principal meio e a principal finalidade do desenvolvimento de uma sociedade é a liberdade humana, seu alargamento e sua expansão, a fim de que as pessoas possam decidir levar a vida que consideram dignas viver. A liberdade, assim, possui duas dimensões distintas: uma instrumental e outra constitutiva do desenvolvimento humano, e o desenvolvimento deve se dar tanto pela remoção de obstáculo quanto pela propiciação de oportunidades para os indivíduos exercerem e usufruírem de suas liberdades pessoais.

Nas palavras de Sen, “as liberdades não são apenas os fins primordiais do desenvolvimento, mas também os meios principais”[13] e, ainda de acordo com esse entendimento, o elenco das liberdades instrumentais é o seguinte: (1) liberdade políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência e (5) segurança protetora.

f) Concepção jurídica de desenvolvimento: Também é possível partir de uma análise jurídica do conceito de desenvolvimento. Segundo essa vertente, os três princípios fundamentais de uma concepção jurídica de desenvolvimento são[14]: (i) o princípio redistributivo, pois não é possível conceber o desenvolvimento em uma sociedade sem que seus frutos sejam compartilhados e também é necessário como meio de estímulo à demanda; (ii) a difusão do conhecimento econômico, que ocorre por meio da diluição dos poderes econômico e político; e (iii) o estímulo à cooperação, como forma de estimular o desenvolvimento e acabar com o individualismo exacerbado[15].

A adoção de uma concepção jurídica do desenvolvimento requer a criação de um novo Estado desenvolvimentista. São necessárias, portanto, mudanças no direito administrativo moderno, a fim de redefinir a forma de intervenção do Estado e reestruturar a relação das esferas pública e privada. Ademais, a própria função planejadora do Estado deve ser revista, pois o planejamento deve permitir o Estado adquirir conhecimento sobre o setor e requisitos para o desenvolvimento. E, por último, deve o Estado rever sua função reguladora, pois é a pouca difusão do conhecimento econômico pela sociedade e não a falta de eficiências alocativas uma das causas do subdesenvolvimento[16].

Como os diferentes entendimentos sobre desenvolvimento expostos acima demonstram, pode-se concluir que, começando de uma definição muito restritiva e universalista, o desenvolvimento é compreendido de forma muito mais abrangente, compreendendo diversos aspectos da liberdade humana e a preocupação com sua constante expansão e alargamento.


4. Desenvolvimento como direito fundamental

No âmbito da Constituição brasileira de 1988, pode-se encontrar alguma dificuldade em perceber a existência de um direito ao desenvolvimento, na medida em que este, no texto constitucional, figura como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, não constando no rol dos direitos individuais do art. 5º.

Contudo, na esfera internacional, encontramos a Resolução nº 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986, que dispõe sobre o direito ao desenvolvimento, a qual estabelece que o “desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento de bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes.”

Esta mesma declaração afirma o direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável e reconhece que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. Além disso, é conferido ao Estado papel de protagonista da efetivação dessa categoria de direito, tal como pode ser percebido em alguns dos artigos da mencionada declaração:

Art. 2.3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa e no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.

Art. 6.3. Os Estados devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Art. 8.1. Os Estados devem tomar, em nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade a todos, no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habilitação, emprego e distribuição equitativa da renda. (...) Reformas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas à erradicação de todas as injustiças sociais.

Art. 8.2. Os Estados devem encorajar a participação popular em todas as esferas, como um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos humanos.

Dessa forma, no direito internacional, é possível perceber a existência de um direito ao desenvolvimento, cuja efetivação é confiada principalmente às atividades e medidas dos Estados nacionais, como é verificado dos artigos transcritos acima. Ainda assim, persiste saber se, na ordem constitucional pátria, é possível afirmar a existência de um direito fundamental ao desenvolvimento, tal como previsto na Declaração das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento.

Retomando os conceitos de direitos fundamentais, podemos distinguir algumas variações. Por exemplo, direitos fundamentais podem ser definidos como “direitos ou posições jurídicas subjectivas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição material – donde, direitos fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em sentido material” e também como “direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade”[17].

Por sua vez, Robert ALEXY também defende suas acepções dos direitos fundamentais, uma no sentido formal e outra no sentido material. Em sentido formal direitos fundamentais “são posições que são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples”.[18] Sob o ponto de vista substancial, a noção de direitos fundamentais é determinado pelo conceito de dignidade da pessoa humana.

PIEROTH e SCHLINK, sobre o conceito de direitos fundamentais, trazem uma interessante síntese das diversas posições existentes no debate. Para os referidos autores:

43 A evolução histórica permite reconhecer duas linhas: por um lado, os direitos fundamentais são entendidos como direitos (humanos) do indivíduo anteriores ao Estado; a liberdade e a igualdade dos indivíduos são condições legitimadoras da origem do Estado, e os direitos à liberdade e à igualdade vinculam e limitam o exercício do poder do Estado. Por outro lado, na evolução alemã, também se entendem como fundamentais os direitos que cabem ao indivíduo não já como ser humano, mas apenas enquanto membro do Estado, direitos que não são anteriores ao Estado, mas que só são outorgados pelo Estado. Porém, também aqui os direitos fundamentais são direito individual e, por via da construção da autovinculação, produz-se um compromisso do exercício do poder do Estado sobre os direitos fundamentais: as ingerências na liberdade e na propriedade carecem de lei para a sua justificação.[19]

Tem-se assim, de um lado, a ideia de direitos fundamentais prévios ao Estado, que defendem os indivíduos da atuação deste, e, por outro lado, a ideia de direitos fundamentais que existem na medida em que os cidadão estejam organizados em sociedade e, desse modo, permite a proteção de determinados valores socialmente relevantes[20].

Considerando que não está expressamente elencado no rol de direitos fundamentais da constituição brasileira, cumpre questionar se é possível se extrair dos fundamentos do Estado um direito fundamental, de matiz individual, ao desenvolvimento.

Sobre a existência de direitos fundamentais ausentes do rol do art. 5º da Constituição brasileira, Ingo Wolfgang SARLETsustenta a possibilidade de afirmação de novos direitos tanto escritos (constantes em outros dispositivos da constituição ou de tratados internacionais) quanto não-escritos (deduzidos a partir dos princípios fundamentais). No entanto, para o mesmo autor, em ambos os casos os direitos fundamentais fora do catálogo devem preencher alguns critérios de conteúdo e importância (substância e relevância) a fim de serem equiparados com os direitos fundamentais expressamente previstos no rol do art. 5º da Constituição Federal[21].

Sustentamos que, a partir dos dispositivos constantes na constituição brasileira, seria possível afirmar a existência de um direito ao desenvolvimento decorrente dos princípios da constituição, um direito fundamental não-escrito. Se se considera que o desenvolvimento nacional – seja em quaisquer das concepções adotadas – é um fundamento da República brasileira, há uma obrigação para o Estado de tomar todas as medidas necessárias para promover o desenvolvimento do País e, conforme argumento R. ALEXY, todo dever é correlativo a um direito de alguém a alguma coisa[22]. E, se ao Estado é incumbido o dever de promover o desenvolvimento, ao sujeito é conferido do direito a esse algo, neste caso, ao desenvolvimento. Direito a algo podem ser divididos, segundo o autor acima mencionado[23], tanto em (I) direitos a ações negativas, subdivididos em (a) direitos ao não-embaraço de ações, (b) direitos à não-afetação de características e situações e (c) direito a não-eliminação de posições jurídicas, quanto em (II) direitos a ações positivos, subdivididos, por sua vez, em (a) direitos a ações positivas fáticas e (b) direitos a ações normativas.

No entanto, no caso da constituição brasileira, não seria necessário um esforço interpretativo para inserir o direito ao desenvolvimento no catálogo de direitos fundamentais a serem defendidos e promovidos pelo Estado brasileiro, uma vez que este se encontra na categoria dos direitos fundamentais decorrentes, por força do § 2º do art. 5º da Constituição da República[24] e da Declaração das Nações Unidas sobre o direito ao desenvolvimento.


5.Estrutura e natureza do direito ao desenvolvimento

Entre as possíveis classificações e categorizações a que o direito ao desenvolvimento pode se sujeitar, a primeira que merece referência seria quanto às gerações dos direitos. Trata-se de um direito fundamental de terceira geração[25], que se destacam por possuírem uma titularidade difusa, de natureza coletiva, tais como o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Em direitos desta geração, o Estado possui um importante papel para sua efetivação e expansão.

Ainda, esse direito, na nomenclatura adotada por Robert ALEXY, corresponde a um direito a prestação, pois demanda uma atuação ativa do Estado, em oposição aos direitos de defesa, que impõe ao poder público um dever de abstenção, de não atuação. Tais direitos a prestação podem ser divididos em três grupos distintos: (a) direitos de proteção; (b) direitos a organização e procedimento; e (c) direitos a prestação em sentido estrito. Marcando as principais características de cada grupo, conforme ALEXY, poder-se-ia afirmar que os direitos de proteção são aqueles direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros; que os direitos à organização e procedimento traduzem os meios capazes de produzir um resultado conforme os direitos fundamentais; e que os direitos a prestação em sentido estrito refletem o direito a algo que, se o indivíduo dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse oferta no mercado, poderia obter de particulares.

A categorização dos direitos a prestação em sentido amplo apresentada em resumo acima tem por finalidade demonstrar a dificuldade de enquadramento do direito fundamental ao desenvolvimento. Como demonstrado acima, a concepção de desenvolvimento e, por conseguinte, de direito ao desenvolvimento é variável no tempo e conforme a orientação teórico-política[26].

O mesmo Robert ALEXY apresenta, uma possível solução para direitos desse tipo, ao mencionar a existência de “direitos fundamentais completos”, em cuja efetivação estão envolvidos uma liberdade jurídica, um direito de abstenção e um direito a ação positiva[27]. Essa categoria de direitos é definida como um feixe de posições definitivas e prima facie, relacionadas entre si por meio de uma relação de especificação, uma relação meio-fim e uma relação de sopesamento, e que são atribuídas a uma disposição de direito fundamental.

Exemplo trazido pelo autor é o direito ao meio ambiente, segundo o qual pode incorporar, em um mesmo feixe, um direito a que o Estado se abstenha de determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa), um direito a que o Estado proteja o titular do direito fundamental contra intervenções de terceiros que sejam lesivas ao meio ambiente (direito a proteção), um direito a que o Estado inclua o titular do direito fundamento nos procedimentos relevantes para o meio ambiente (direito a procedimentos) e um direito a que o próprio Estado tome medidas fáticas benéficas ao meio ambiente (direito a prestação em sentido estrito). Outros exemplos são o direito à vida e o da liberdade de expressão.

Nessa linha de raciocínio, o direito ao desenvolvimento também deve ser considerado como um direito fundamental completo, pois seus reflexos podem ser encontrados em diversos desdobramentos da atuação estatal, incluindo obrigações de não intervenção do Estado[28]. Assim, desde a garantia da propriedade privada, a liberdade de trocas em um ambiente livre, até a garantia da igualdade material mediante atos de redistribuição de renda poderiam ser abrangidos por esse direito fundamental completo ao desenvolvimento.


6.Delimitação problemática do âmbito de proteção do direito fundamental ao desenvolvimento

Apesar de sua alta complexidade, ALEXY defende que a categoria de direitos fundamentais completos, no qual podemos encontrar o direito ao desenvolvimento, não seria inescrutável. Contudo, somando-se ao fato do direito ao desenvolvimento configurar-se, conforme a doutrina mencionada, um direito fundamento completo as diferentes concepções político-econômicas sobre essa questão, não é difícil perceber que alguns problemas poderão surgir para a jurista tanto na análise teórica quanto na efetivação em concreto.

O principal desses problemas, que abordaremos neste artigo, é quanto à delimitação do âmbito de proteção do direito ao desenvolvimento. PIEROTH e SCHLINK[29], de forma lapidar, definem âmbito de proteção como o domínio da vida protegido pelos direitos fundamentos, refletido na formação de direitos subjetivos e também na concessão de significado jurídico-objetivo.

No caso do direito ao desenvolvimento, podemos perceber que, a depender da concepção político-econômica de desenvolvimento, o suporte fático do referido direito torna-se de difícil apreensão e, consequentemente, de difícil efetivação. Mesmo de natureza ampla e complexa, é possível verificar a existência e a estrutura do direito ao desenvolvimento, bem como de outros direitos econômicos, sociais e culturais. A discussão, assim, girará em torno da justiciabilidade de tais direitos e dos limites da apreciação judicial desses direitos.

Não se discorda da doutrina que esse tipo de direito fundamental é plenamente justiciável, apesar de suas características especiais que fogem aos contornos de direitos fundamentais de natureza liberal[30], sob a possível consequência de se desprezar o conteúdo das Constituições.

Contudo, a delimitação desse direito será de tal maneira ampla que não será possível perceber se o que foi levado a juízo é o próprio direito ao desenvolvimento ou alguma posição fundamental acessória igualmente protegida[31], dada a alta complexidade de sua estrutura. A essa mesma conclusão chegam ABRAMOVICH e COURTIS, sobre a exigibilidade judicial de direitos econômicos, sociais e culturais, partindo inicialmente da tese oposta (a não exigibilidade desses direitos):

“En sínteses, si bienpuedeconcederse que existenlimitaciones a lajusticiabilidad de losderechos económicos, sociales y culturales, cabe concluir em el sentido exatamente inverso: dada sucompleja estrutura, no existe derechoeconómico, social o cultural que no presente al menos alguna característica o faceta que permite suexigibilidad em caso de violación.”[32] (grifos no original)


7.  Conclusão

A essa possibilidade de sempre haver “alguma característica” do direito ao desenvolvimento que pode ser demanda perante o Poder Judiciário, deve-se aliar o risco de que, com a intenção de possibilitar uma maior definição ao direito ao desenvolvimento, sejam adotadas concepções político-econômicas mais restritivas e universais, tal como a de matiz neoclássico, com fundamento no aumento de utilidade individual ou na busca incessante de eficiência, sem preocupações distributivas.

Esse é, como conclusão, um dos principais problemas de se trabalhar o desenvolvimento com as categorias de direitos fundamentais. Não se está aqui a negar que, de fato, o direito ao desenvolvimento é um direito fundamental existente na ordem jurídica brasileira. Contudo, ou o referido direito apresentará contornos muito amplos e gerais e pouca operabilidade pelo jurista e pelos poderes constituídos (em função das diversas concepções de desenvolvimento e de sua natureza de direito fundamental completo), ou corre-se o risco de, na tentativa de conferir maior efetivação a esse direito, seja adotada alguma concepção de desenvolvimento demasiada restritiva.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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Notas

[1] VIEIRA, Oscar Vilhena, DIMOULIS, Dimitri. Constituição e desenvolvimento. IN: Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011, p. 45 e ss.

[2] TRUBEK, David M.; SANTOS, Alvaro (orgs.). The New Law and Economic Development.Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

[3] VIEIRA, Oscar Vilhena, DIMOULIS, Dimitri. Constituição e desenvolvimento. In: Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011, p. 46.

[4]Id., ibidem, p. 47.

[5]VIEIRA, Oscar Vilhena, DIMOULIS, Dimitri, Op. cit., p. 50.

[6] Exemplos são a Constituição indiana de 1950, a Lei Fundamental alemã de 1949, a constituição portuguesa de 1975, a constituição brasileira de 1988 e a constituição sul-africana de 1993.

[7] Essa contagem é feita por VIEIRA e DIMOULIS (2011): constituição da Índia de 1950 (22 vezes), de Portugal de 1975 (28 vezes), do Brasil de 1988 (28 vezes), da Colômbia de 1991 (58 vezes), da África do Sul de 1996 (10 vezes) e da Venezuela de 1999 (39 vezes).

[8] PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Desenvolvimento. In: Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011, p. 17-29.

[9] CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org.). Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 26.

[10] EVANS, Peter. Challenges of the ‘Institutional Turn': New Interdisciplinary Opportunities in Development Theory. In: NEE, Victor, SWEDBERG, Richard (org.). The Economic Sociology of Capitalism.Princeton: Princeton University Press, 2005, pp. 90-116.

[11] Entre eles se destacam Karla Hoff e Joseph Stiglitz.

[12] EVANS, Peter. Op.cit.

[13] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de bolso, 2010, p. 25.

[14] SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002.

[15]Obviamente, quando a cooperação existir somente para a manutenção do status quo, deve ser severamente perseguida e punida pelo Direito, como no caso dos cartéis.

[16] SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit.

[17] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1988, t. 4, p. 7-9.

[18] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2ª ed., 2011, p. 446.

[19] PIEROTH, Bodo, SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011.

[20] Essa linha de raciocínio é relevante na medida em que, como no caso brasileiro, o Estado é chamado a desenvolver o papel de propulsor do desenvolvimento.

[21] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 10ª ed.,2011.

[22] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2ª ed., 2011, 211 e ss.

[23] ALEXY, Robert. Op.cit., p. 203.

[24] Art. 5º (...)§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[25] A divisão dos direitos fundamentais em diferente gerações é uma posição metodológica adotadas por diversos autores nacionais e estrangeiros. Ressalte-se que a teoria das “Gerações de Direitos” foi desenvolvida pelo jurista francês KarelVasak em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos, no ano de 1979. Vasak classificou em três gerações os Direitos Humanos e fundou o seu pensamento em um dos dísticos da Revolução Francesa de 1789 (liberté, egalité et fraternité), qual seja, a solidariedade.

[26]Assim, ao se adotar uma concepção neoliberal do direito ao desenvolvimento, por exemplo, sequer um direito a prestação em sentido amplo ele seria.

[27] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2ª ed., 2011, p. 248.

[28] Semelhante conclusão atingem ABRAMOVICH e COURTIS, com relação aos DESCs – direitos econômico, sociais e culturais, outra classificação cabível ao direito ao desenvolvimento. Segundo esses autores, esses direitos impõem a obrigação o Estado (i) a estabelecer algum tipo de regulação, (ii) a limitar ou restringir a faculdade dos indivíduos ou impor obrigações de algum tipo, e (iii) a cumprir sua obrigação de prover serviços à população, seja de forma mista ou exclusiva.V. ABRAMOVICH, Víctor, COURTIS, Christian. Los derechossociales como derechosexigibles. Madrid: Ed. Trotta, 2002.

[29] PIEROTH, Bodo, SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 114.

[30]Ver ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2ª ed., 2011, eABRAMOVICH, Víctor, COURTIS, Christian. Los derechossociales como derechosexigibles. Madrid: Ed. Trotta, 2002.

[31] Veja-se que Amartya SEN, Op. cit., fala sobre liberdades instrumentais.

[32] ABRAMOVICH, Víctor, COURTIS, Christian. Los derechossociales como derechosexigibles. Madrid: Ed. Trotta, 2002.


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BIANCHI, José Flávio. O desenvolvimento na Constituição Federal e sua qualificação como direito fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3584, 24 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24249. Acesso em: 19 abr. 2024.