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Prisão civil sem lei.

Um equívoco

Prisão civil sem lei. Um equívoco

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"Punir constantemente a insolvabilidade pela prisão; confundir a miséria com o crime; cobrir o inocente de toda a infâmia da perversidade, em lhe arrancando a honra; forçá-lo a renunciar a virtude; tirar de um homem de bem infeliz até a propriedade do seu corpo, que o destino inexorável lhe há deixado; fazê-lo comprar por um suplício, muitas vezes eterno, o ligeiro alívio, que ele tinha obtido em seu infortúnio; condenar à inação, aos tormentos e aos vícios, que a acompanham, aquele que não tem mais que os seus braços, ou os esforços do seu espírito, para fazer subsistir sua família e pagar seu credor; privar a sociedade de um homem que não a tem ofendido, e que lhe poderia ser útil; dar a um credor implacável o poder de conservar o seu devedor neste estado de opróbio e de desolação tanto tempo quanto ele quiser, e de satisfazer sua vingança com as armas da lei; em uma palavra, ofender a justiça, ultrajar os direitos mais preciosos do homem e do cidadão, e multiplicar as infelicidades da indigência sem favorecer as propriedades – tais são os abusos da prisão por dívidas, estabelecida em todos os países da Europa mesmo entre aqueles que mais se gloriam da sua humanidade e de sua liberdade." (Filangiere, «apud» Lobão, Execuções, pág.145, § 181).

O Direito científico – doutrina e jurisprudência –, através de sua artéria consagradora da prisão civil por dívida, para fazer sentir como normal o propósito de coartar por isto a liberdade do devedor, nada mais tem feito que iludir as regras do depósito civil, ao entrever no contrato de financiamento com pacto de alienação fiduciária, a cláusula adjeta legal de depósito como já passível de aplicação.

Carece, todavia, de razão, pois, quando o Decreto-Lei 911/69 estipula o depósito a surtir efeitos somente no caso de falta de implemento da obrigação pecuniária, esse depósito não corres-ponde à figura jurídica determinada no Código Civil.

Assim também quando prevê que o pagamento de mensalidades durante determinado prazo, embora haja obrigação como fiel depositário, implica colocação da coisa na titularidade dominial do devedor, pois, há aí algo que se assemelha à reserva de domínio, ou ao penhor, a que remete o Dec.-Lei 911/69, art. 1º, § 7º, c/c art. 802-I/CC.

Nessas mesmas condições se o devedor dá um fiador e principal pagador (art. 6º, do Dec.-Lei 911/69), garantia que não convive com o depósito.

Ainda que haja no Dec.-Lei 911/69 estipulação de depósito, não é este o regulado pelo Código Civil, visto que as obrigações do devedor fiduciante são alternativas – com faculdade alternativa – sendo a primeira, em ordem inalterável, de pagar, e a segunda, de entregar o bem, se descumprir aquela, não tendo o Dec.-Lei 911/69 regulado espécie própria de depósito, e a modalidade não tem como ser inserida na previsão do art. 1.265, do C. Civil.

De fato, "o Código só considera depósito o que os autores denominam depósito regular, isto é, a entrega para guardar, de coisa natural ou convencionalmente não fungível, isto é, que não possa, na restituição, ser substituída por outra." (João Luiz Alves, Código Civil, Rio, Borsoi, 1958, 3ª ed., 4º vol., pág. 362, destacamos).

No que diz sobre o depósito, aquele mencionado no Dec.- Lei 911/69 não tem como ser regido subsidiariamente pelo Código Civil, pois este, ao tratar do depósito voluntário, conforme ensina Clóvis Beviláqua, «in» Código Civil Comentado, vol. 5º, pág. 15, estabelece como característico do contrato de depósito voluntário civil, a tradição real com a efetiva entrega da coisa, ao depositário, sendo, portanto, da essência do depósito, a custodia rei, a simples guarda da coisa. Em faltando esse requisito, não há depósito.

O Dec.-Lei 911/69, a seu turno, diz, em seu art. 1º:

"Art. 1º. O art. 66, da Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, passa a ter a seguinte redação: ‘Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal." (Gr.).

Aparece no texto, a expressão «depositário», mas, como lembra Alberto G. Spota, «in» Contratos, Buenos Aires, Depalma, 1983, vol. VIII, pág. 370, n. 1.803, ao referir-se aos Caracteres do Contrato de Depósito,

"Se trata de un contrato típico, no porque cuenta con un nomen juris (art. 1143) sino porque tiene en la ley una regulación propia."

Ao que se vê, portanto, deste apanhado, a lei especial não disciplinou o regime jurídico do depósito a que se refere, estabelecendo apenas os efeitos da responsabilidade, remetendo para a Lei civil e penal, que cominam penas de prisão.

Ao dizer que no caso dispensa-se a tradição efetiva da coisa, o faz exclusivamente com relação ao domínio e à posse indireta atribuídos ao credor; não ao depósito, que aparece empós, com referência ao devedor somente e sem relegar o requisito da tradição para este fim.

"Nesta matéria, em que está em jogo a liberdade do cidadão, a interpretação tem que ser stricti juris, não sendo dado aplicar a pena de prisão por analogia, extensão ou paridade." (Mário Guimarães de Souza, Da Prisão Civil, Recife, Jornal do Commercio S.A., 1938, pág. 116).

E, por que valem-se das disposições sobre o depósito voluntário, para chegar a estas conclusões?

Ao dispor sobre o depósito necessário, no seu art. 1.282 o Código Civil prevê o depósito legal (inciso I), que se faz em desempenho de uma obrigação assim vista.

Segue no art. 1.283, o CC a determinar:

"Art. 1.283. O depósito de que trata o artigo antecedente, n. I, reger-se-á pela disposição da res-pectiva lei, e, ao silêncio, ou deficiência dela, pelas concernentes ao depósito voluntário (arts. 1.265 a 1.281)." (Gr.).

Assim, o depósito, no caso da alienação fiduciária, por ser legal, necessário, e tendo a lei que a regula (a alienação) sido omissa quanto à sua regência (do depósito), haveria de ser disciplinado pelo que o Código Civil estabelece com relação ao depósito civil.

"Com base na sua disciplina e interpretação, os contratos classificam-se em: típicos ou nominados, os que a lei expressamente prevê e regula através de normas que, enquanto tais, valem no silêncio das partes..." (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 1984, 4ª ed. pág. 173, gr.).

Acontece, todavia, que, ao aplicar a regra civil definidora do instituto ao depósito mencionado no Dec.-Lei 911/69, ela entra num conflito indissolúvel com este Decreto-Lei, a partir do exame da sua constituição, eis que o depósito em si, contemplado no Código Civil, só existe se houver a tradição com a intenção precípua de devolver, e se puder ser exigido a qualquer tempo, pois, conforme ensina Mário Guimarães de Souza, obr. cit., pág. 114,

"E o remédio heroico, de que dispõe o depositante para obrigar o depositário recalcitrante, é a medida compulsória da prisão.

"De fato, a restituição do depósito voluntário não obsta que se tenha fixado no contrato prazo, data ou termo para a entrega. [C. Civil art. 1.268].

"A existência de um prazo semelhante, no contrato, deve ser entendida, em consonância com o disposto no art. 1.270 do nosso Código Civil, como obrigando somente o depositário, a, dentro dele, não poder exonerar-se da guarda da coisa requerendo o seu depósito judicial.

"Em qualquer tempo, portanto, pode o depositante exigir a entrega da coisa depositada, podendo, se desatendido, promover contra o depositário a competente ação direta em que exige além da coisa, os seus frutos e acréscimos e as perdas e danos." (Gr.).

Daí o raciocínio no sentido de que, além de não haver hipótese de entrega efetiva da coisa pelo pseudo-depositante – Dec.-Lei 911/69 – com a intenção de reclamá-la a qualquer tempo, falta à figura aí colocada, outro requisito, qual seja, a disponibilidade da coisa pelo «depositante» até que sobrevenham o inadimplemento pelo devedor, e a frustração da busca e apreensão da coisa cuja aquisição foi financiada pelo credor fiduciário, correspondente à garantia própria da alienação fiduciária.

Conforme Francesco Messineo, Manual de Derecho Civil Y Comercial, Buenos Aires, EJEA, 1979, Tomo V, pág. 270,

"Se infiere de ello que la causa del depósito es, al menos com carácter principal, la custodia de la cosa.(...)

"Según alguna doctrina, finalidad (causa) del depósito sería, no la mera custodia, sino la disponibilidad ( por parte del depositante) de la cosa depositada."

Demais disso, havendo previsão legal especial da consolidação da propriedade em favor do devedor fiduciante se realizado o pagamento em dinheiro, que sobrepõe-se à «guarda», não há falar em depósito civil, visto que o Código remete para as disposições sobre o «mútuo», mesmo o depósito de coisa cuja restituição possa ser feita pela entrega de objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade (art. 1.280/CC), realçando-se que a simples inclusão de juros sobre o que pode ser restituído primacialmente – dinheiro – desnatura o depósito, pois,

"Em qualquer hipótese, porém, a cláusula de percepção de juros fá-lo perder o caráter de depósito regular." (Mário Guimarães de Souza, obr. cit., pág. 116).

Logo, conclui-se que, um contrato com cláusula legal de depósito, que foge às normas próprias da lei civil quanto à sua formação, e que não é regulado pela lei especial no que diz sobre este aspecto, não tem força para embasar execução mediante valimento das regras do Código Civil, sobretudo com cominação de prisão, por falta de objeto, e nem rende ensejo a ação penal.

«Nulla poena sine lege».


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES FILHO, Eulâmpio. Prisão civil sem lei. Um equívoco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2472. Acesso em: 24 abr. 2024.