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Vicissitudes da democracia brasileira

Vicissitudes da democracia brasileira

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A corrupção é antidemocrática em essência. Se não a afugentarmos, aí sim, a democracia corre risco. O titular da soberania popular se transformou em mero eleitor. Entre nós, predomina o tipo representativo (formal) de democracia. Enquanto formal, ela é elitista, excludente, desigual.

Resumo: O modelo de gestão do Estado brasileiro é conhecido teoricamente como democracia representativa. Nesta forma de governo, a soberania popular é efetivada nos marcos de um processo de escolha (eleições periódicas, com votação obrigatória, individual e secreta) de concidadãos, alçados à condição de elites mandatárias com prerrogativas de administrar o bem comum, ou o patrimônio de um Estado autocaracterizado republicano. A crítica desta reflexão, de cunho bibliográfico, é que o modelo de gestão do País cerceia o exercício do poder justamente aqueles a quem a Constituição afirma pertencer a soberania. Pensamos que as elites dirigentes do Brasil não estão preocupadas com esse problema. Talvez, esta seja a razão de não constatarmos iniciativas para mudar o status quo. Mesmo que tais iniciativas sejam apenas exercitar mais os mecanismos de democracia direta existentes na atual Carta Magna.

Palavras-chave: Democracia brasileira. Democracia representativa. Eleições. Elites mandatárias. Democracia direta.


1  Considerações iniciais

Em artigo recentemente publicado, renomado ministro do STF destacou os princípios federativo, republicano e democrático como o “núcleo essencial” da regra maior do nosso ordenamento jurídico: a Constituição brasileira de 1988. Esclarece o magistrado, que é também Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que tais princípios constitucionais, “longe de configurarem meras recomendações de caráter moral ou ético, consubstanciam regras jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e positivamente vinculantes” (LEWANDOWSKI, 2012, p. 15).

De acordo com o Federalismo, doutrina constituída pela cultura política como fruto das inquirições sobre o tema, o princípio federativo tem como característica essencial a ideia da

[...]

pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre eles, de modo tal que ao Governo federal, que tem competência sobre o inteiro território da federação, seja conferida uma quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados federais (sic), que tem competencia cada um sobre o próprio território, sejam assinalados os demais poderes (BOBBIO, 1986, 481).

O objeto da reflexão do ministro no artigo referido é, conforme evidenciado no próprio título, destacar a importância estruturante ou identitária que o princípio republicano representa para a Constituição brasileira vigente. Contudo, ao conduzir adiante sua tarefa, o ministro efetiva, propositada ou inadvertidamente, uma vinculação conceitual entre os princípios republicano e democrático, útil ao objeto deste trabalho. Assim, com o propósito de enfatizar a natureza ontológica do ente que representa a materialidade do princípio republicano, Lewandowski (2012) define a República como algo que encerra a idéia de coisa comum, de bem coletivo, e para tornar compreensível a ideia de bem comum, ele recorre a considerações sobre o tipo de gestão sem o qual não se pode considerar uma organização política como uma res publica ou res populi. Ou seja, o ministro defende a tese, pleito ao qual nos juntamos, de que não há como garantir a quem pertence um bem sem apontarmos a forma como o mesmo é gerido, o que inclui, necessariamente, a finalidade da gestão e por quem é conduzida.

A relevância para o desenvolvimento das organizações sociais contemporâneas do modo como os homens se organizam política e socialmente, identificado em Ciência Política pelo conceito de democracia, provavelmente seja a mais importante das várias categorias conceituais formuladas pela Teoria Política. O conceito de democracia remete a um fenômeno da vida social aparentemente de fácil acesso ao conhecimento de todos: de especialistas da área a articulistas, de políticos profissionais a dirigentes sindicais. Enfim, mesmo na manifestação daqueles que abordam o tema a partir do senso comum, constata-se que, no Brasil, as pessoas se referem ao conceito com uma naturalidade surpreendente.

Esta salutar referência generalizada a um fenômeno social tão importante é louvável, mas contém uma dimensão negativa: em regra, ela consiste em um limite de abordagem da questão, ao funcionar como uma barreira que impede a consideração crítica e avaliação do tipo de democracia existente na sociedade brasileira. A presente reflexão, de cunho essencialmente bibliográfico, tem o objetivo de pontuar algumas características da democracia à brasileira e, com esse propósito contribuir para ampliar o escopo de sua compreensão.

Nesta direção, ressalta com magnitude inescapável à percepção acurada, que a gestão democrática da sociedade brasileira sofre de um profundo deflacionamento. Isso significa, em primeiro lugar, que a hegemonia valorativa da dimensão política em comparação com a econômica é consolidada de forma quase inabalável em nossa gestão social. Em segundo lugar, colocando entre parênteses, por necesidade de continuidade da reflexão, o contrassenso da valoração anterior e concentrando a atenção agora sobre a dimensão política, constatamos que o modelo representativo, de inspiração ideológica liberal, predomina em detrimento de formas diretas de participação popular na gestão da sociedade brasileira.

Em terceiro lugar, a concepção representativa de gestão social vigente no País assume uma forma bastante restritiva, também, ao fixar em processos eleitorais, quase que exclusivamente, a relação dos representados com os representantes. Essas três reduções essenciais por nós apontadas caracterizam rigorosamente o que chamamos deflação da nossa democracia, ao fazermos seu confronto com a tipificação teórica dessa forma de organização social pela Ciência Política.

Por outro lado, a julgar pelo discurso alarmista que irrompe frequentemente contra virtuais ameaças à democracia, chamamos a atenção para o fato de que o modelo representativo de democracia se afigura satisfatório e suficiente às elites[1] dirigentes da Nação. E aqui podemos ressaltar que a anuência à democracia representativa é um sentimento cultuado pelas elites dirigentes de praticamente todas as instituições e setores sociais que compõem a estrutura pública do País. Por fim, ressaltamos a necessidade de aprofundamento da discussão sobre a forma de gestão social que temos, precipuamente defendendo a necessidade de dar mais efetividade aos mecanismos de democracia direta existentes no nosso ordenamento jurídico, bem como através da criação de outros. Acreditamos que isso é exequível mesmo nos marcos do sistema capitalista.


2  Sobre o conceito de democracia

 A consideração da relevância do fenômeno da democracia, para a nossa e para qualquer sociedade e a crítica e avaliação do tipo de democracia existente na sociedade brasileira, com o propósito de destacar a importância da ampliação de seus limites, exige a identificação de elementos, teóricos e práticos, complexos e importantes na discussão da questão e, consequentemente, de sua melhor compreensão.

Na literatura especializada, a questão preliminar na inquirição sobre as formas de gestão de uma sociedade é abordada como classificação das formas de governo. Dois tipos extremos são caracterizados: o governo em que o poder de decisão pertence a poucos ou a um só (autocracias) e o governo no qual o poder de decisão pertence e é exercido por e para muitos (democracias). Essa separação nos permite passar à identificação dos elementos teóricos da segunda forma de governo, ou seja, à definição conceitual da forma de gestão social democrática. Trata-se da referência principiológica aos fundamentos mais significativos a embasar a noção de democracia.

A definição mais adequada de uma gestão social democrática deve estabelecer, preliminarmente e da forma o mais precisa possível, a finalidade de uma república; ou seja, deve apontar para quem é exercido o poder em uma sociedade desse tipo. Com esse mister, não é possível desviar-se da obrigação de apontar que a condição sine qua non da democracia plena reside na observância dos princípios da igualdade e da justiça social. O primeiro determina que a sociedade democrática deve prover condições necessárias ao desenvolvimento de todos; isto é, todos devem ter oportunidades para buscar a realização de seu potencial. O segundo determina que a sociedade democrática deve prover os meios necessários ao acesso de todos a condições de vida não degradantes quanto à saúde, à educação e à segurança, principalmente.[2]

A definição mais adequada de uma gestão social democrática deve estabelecer, em segundo lugar e da forma também o mais precisa possível, a quem compete o poder de decisão em uma república. Com esse mister, não é possível desviar-se da obrigação de apontar que a outra condição sine qua non da democracia plena reside na observância do princípio da soberania popular – o poder de decisão tem como autoridade maior a coletividade. Além disso, é inerente à concepção do último princípio a necessidade de apontar por quem é exercida a soberania popular em uma sociedade democrática.

O último aspecto nos remete às formas de exercício do poder democrático, classificadas, polarizadamente, em:

a) Democracias representativas ou formais – na qual a soberania popular é entendida em termos de direitos civis (liberdade de pensamento, de religião, de reunião, de opinião etc.) e direitos políticos (votar e ser votado etc.), exclusivamente, na perspectiva individual. Aqui a tomada de decisões é feita, não diretamente pelo povo, mas pelos representantes ou mandatários eleitos.

b) Democracia direta ou substancial – na qual a soberania popular exerce-se em duas frentes: 1) democracia política, na qual a participação do povo ocorre diretamente através de decisões políticas (por exemplo, a participação em referenduns, plebiscitos, em conselhos político-administrativos), e 2) a democracia econômico-social, na qual a participação popular ocorre através do controle e direção de órgãos econômicos, empresas etc.

Às características teóricas delineadas, essenciais à definição de um governo democrático, a Teoria Política agrega regras práticas para a aferição do funcionamento dessa forma de gestão social. Robert Dahl busca critérios de funcionamento de uma sociedade democrática em aspectos de ordem efetivamente sociais, tais como: a) Todos os membros de uma organização social devem escolher as alternativas (políticas ou líderes) apresentadas; b) O voto de cada um deve ter o mesmo peso; c) Deve haver a possibilidade de inserção de outras alternativas dentre as apresentadas; d) Todos devem possuir informações idênticas sobre as alternativas apresentadas; e) A alternativa mais votada deve ser a vencedora; e f) As alternativas eleitas devem ser obedecidas e executadas. Norberto Bobbio acrescenta duas regras à lista: g) Os membros do órgão legislativo e dos órgãos executivos devem ser eleitos pelo povo e todos devem poder se candidatar e h) As decisões tomadas por maioria não devem limitar os direitos da minoria.

As características teóricas, e o conjunto de regras práticas, do conceito de democracia que, sucintamente, apontamos, são suficientes para constituição do pano de fundo para a compreensão da nossa análise e da validade da crítica que desenvolvemos. O conceito de democracia  construído em afinidade com um paradigma que a concebe de forma plena ostenta uma extensão dessa forma de gestão social bastante ampla, porque concebe esse fenômeno como crucial às várias dimensões da vida humana, precipuamente aquelas relacionadas à existência dos homens, e isso não significa apenas sobrevivência animalesca, mas existência com acesso a padrões de dignidade quanto a aspectos como saúde, educação, segurança, saneamento, habitação, lazer etc. Assim concebida, a forma de gerenciamento social dita democrática se configura em fenômeno que inevitavelmente transcende ao restritivo modo de gestão social representativo consagrado entre nós.


3  Vicissitudes da democracia brasileira

3.1  Os meios sobrepujam os fins

Ao efetivar um confronto dos aspectos reais presentes na estrutura organizacional política e social do Brasil com os elementos tipificadores de uma gestão democrática, discriminados no tópico anterior, constararemos, de imediato, que, em nosso caso, a gestão da coisa pública ostenta, em primeiro lugar, uma fissura entre os princípios fundamentais antes elencados. Há, em nossa gestão social, uma flagrante preferência pelo modo por quem é exercido o poder na sociedade (ou pelo princípio da soberania popular) em detrimento da finalidade para quem é exercido esse poder (ou dos princípios da igualdade e da justiça social).

A análise da forma de gestão de uma sociedade ganha substância e objetividade quando leva em consideração as iniciativas destinadas ao modo como é distribuída sua riqueza, por meio dos processos utilizados à alocação de recursos para enfrentar suas necessidades. Se uma sociedade se nos afigura democrática por se afirmar como um regime do povo e para o povo, só pode ser na sua dimensão econômica que deve ser buscado o primeiro critério de aferição dessa caracterização.

Deste modo, como um desses processos utilizados na alocação de recursos para enfrentar as necessidades sociais, a construção do orçamento de um país configura-se, ao apontar o planejamento governamental para a aplicação da riqueza pública, critério incomparável na revelação do grau de democracia de sua gestão. As leis orçamentárias fundamentam-se, essencialmente, na Constituição do País e em leis de diretrizes orçamentárias (LDOs), aprovadas anualmente antes das primeiras. Nesta reflexão, utilizamos a análise do Orçamento da União de 2012, para imprimir maior solidez à nossa argumentação na caracterização da natureza da democracia brasileira.

A Lei n. 12.595, de 19.01.2012, que “estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2012”, divide o orçamento geral em três suborçamentos: o fiscal, o da seguridade social e o de investimentos. Podemos ver, na Tabela 1, a definição, o valor da despesa total fixada para cada um, inclusive a relação percentual, bem como o montante geral do Orçamento do ano de 2012.

TABELA 1

Orçamento do Brasil – Exercício Financeiro de 2012 – Previsão de Despesa Total

Tipo

Definição

Valor

%

Orçamento fiscal

Plano de atuação fiscal do setor público para um determinado exercício, isto é, a sistematização das intervenções pelas quais serão implementadas as políticas fiscais estabelecidas. Refere-se ao orçamento dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, seus fundos, órgãos e entidades das administrações direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público

1.552.248.267.328,00

68,77

Orçamento da seguridade social

A seguridade social é uma política pública que tem como meta a proteção da cidadania. Ela engloba a Saúde, a Assistência Social e a Previdência Social.

598.210.600.179,00

26,50

Orçamento de investimentos

Orçamento que especifica o capital a ser aplicado em meios que impulsionem a capacidade produtiva (instalações, máquinas, meios de transporte) ou em obras infraestruturais (saneamento, rodovidas, comunicações) das empresas da União

106.830.455.030,00

4,73

Orçamento geral

O orçamento público é um documento legal estimando a receita e fixando a despesa da União para o exercício financeiro de um ano.

2.257.289.322.537,00

100,00

Fonte: Lei n. 12.595, de 19.01.2012 (publicada no DOU de 20.01.2012, Seção I, p. 1). Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretaria.asp?cat=50&sub=539&sec=8. Acesso em: 17 abr. 2013.

A despesa total prevista para o orçamento de investimentos foi fixada em percentual de apenas 4,73%. Somados, o orçamento fiscal e o da seguridade social tiveram despesas totais fixadas em percentual de 95,27% do orçamento geral do ano de 2012. O Anexo II, Volume I, da Lei n. 12.595/2012 fixa a despesa dos dois últimos orçamentos, por órgão orçamentário. Na Tabela 2 apresentamos os valores estipulados para cada órgão, bem como os respectivos percentuais.

TABELA 2

Orçamento do Brasil – Exercício Financeiro de 2012

Despesa Total dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, por Órgão Orçamentário

Discriminação

Valor

%

Câmara dos Deputados

Senado Federal

Tribunal de Contas da União

Supremo Tribunal Federal

Superior Tribunal de Justiça

Justiça Federal

Justiça Militar da União

Justiça Eleitoral

Justiça do Trabalho

Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Conselho Nacional de Justiça

Presidência da República

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

Ministério da Fazenda

Ministério da Educação

Ministério do Desenvol., Indústria e Comércio Exterior

Ministério da Justiça

Ministério de Minas e Energia

Ministério da Previdência Social

Ministério Público da União

Ministério das Relações Exteriores

Ministério da Saúde

Ministério do Trabalho e Emprego (exclusive o disposto no Artigo 239 Parágrafo 1º da Constituição)

Ministério dos Transportes

Ministério das Comunicações

Ministério da Cultura

Ministério do Meio Ambiente

Ministério do Planejamento, Orçamento E Gestão

Ministério do Desenvolvimento Agrário

Ministério do Esporte

Ministério da Defesa

Ministério da Integração Nacional

Ministério do Turismo

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Ministério das Cidades

Ministério da Pesca e Aquicultura

Conselho Nacional do Ministério Público

Encargos Financeiros da União

Reserva de Contingência

Transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios

Ministério do Trabalho e Emprego (conforme o disposto no Artigo 239 Parágrafo 1º da Constituição)

Operações Oficiais de Crédito

Refinanciamento da Dívida Pública Mobiliária Federal

4.234.169.286,00

3.353.657.687,00

1.376.371.562,00

525.207.236,00

964.712.754,00

7.279.847.920,00

388.205.646,00

5.398.864.227,00

13.525.956.290,00

1.756.308.454,00

235.842.984,00

7.779.177.476,00

10.376.929.928,00

8.485.606.284,00

21.306.835.968,00

74.280.373.427,00

3.364.760.593,00

12.436.253.312,00

8.038.326.438,00

329.784.715.600,00

3.941.628.106,00

2.069.628.931,00

91.754.806.614,00

46.212.535.986,00

22.388.470.289,00

5.492.082.026,00

2.130.549.414,00

3.647.818.647,00

8.225.542.823,00

5.035.372.170,00

2.617.848.045,00

64.794.765.301,00

7.702.917.323,00

2.674.514.247,00

55.129.821.734,00

22.010.370.703,00

324.534.113,00

71.869.217,00

372.882.893.361,00

12.919.099.435,00

202.049.249.429,00

15.061.301.166,00

34.191.072.131,00

652.238.053.224,00

0,20

0,16

0,06

0,02

0,04

0,34

0,02

0,25

0,63

0,08

0,01

0,36

0,48

0,39

0,99

3,45

0,16

0,58

0,37

15,34

0,18

0,10

4,27

2,15

1,04

0,26

0,10

0,17

0,38

0,23

0,12

3,01

0,36

0,12

2,56

1,02

0,02

17,34

0,60

9,40

0,70

1,59

30,33

Total

2.150.458.867.507,00

100,00

Fonte: Lei n. 12.595, de 19.01.2012, Volume I, Anexo II (publicada no DOU de 20.01.2012, Seção I, p. 1). Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretaria.asp?cat=50&sub=539&sec=8. Acesso em: 17 abr. 2013.

A contemplação dessas tabelas e a interpretação das informações nelas contidas dão substância e objetividade à nossa afirmação de que a valoração maior subjacente ao modo efetivo de gestão da democracia à brasileira sobrepuja os princípios fundamentais da igualdade e da justiça social.

Com relação ao orçamento de investimentos (Tabela 1), lembremo-nos dos problemas do País por falta de investimentos infraestruturais nas áreas de saneamento, rodovidas, comunicações, para termos ideia de como o limitado percentual de investimento previsto configura prejuízo para a qualidade de vida do povo. Os problemas persistentes enfrentados pela população no setor de energia elétrica, bem como no de preservação dos nossos recursos naturais são indicativos inquestionáveis das prioridades estabelecidas nos planejamentos governamentais.

Com relação aos orçamentos fiscal e da seguridade social (Tabela 2), podemos constatar que os dois maiores percentuais – 17,34% (encargos financeiros da União), e 30,33% (refinancimento da dívida federal) – totalizando quase metade do orçamento geral (47,67%), destinaram-se ao cumprimento de demandas eminentemente financeiras junto aos credores. Considerando-se apenas o menor montante dos dois – encargos financeiros da União – seu percentual (17,34%) é superior àquele destinado às despesas com Previdência Social (15,34%); e àqueles percentuais destinados, somados, às depesas com Educação (3,45%); com Saúde (4,27%); com Transportes (1,04%); com Programas de Proteção ao Trabalho e ao Emprego (2,85%); com Desenvolvimento Agrário (0,23%); e Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2,56%). O percentual total destinado aos gastos nessas importantes áreas sociais ficou em 14,10%.

É interessante destacar, en passant, que para fazer face às despesas com o segundo montante dos dois itens acima – refinancimento da dívida federal, percentual de 30,33% – o orçamento de 2012 determinou que vinte milhões, trinta e quatro mil e duzentos e quarenta e sete reais seriam oriundos do orçamento da Seguridade Social. O valor pode parecer irrisório, mas curioso é o que a medida simboliza: a inversão de prioridades que estamos caracterizando nesta reflexão. Convém observar, ainda, que esse percentual de 30,33% é superior à soma de todos os percentuais destinados às áreas sociais mencionados no parágrafo anterior, que, incluindo-se aquele destinado à Previdencia Social, representa 29,44% dos gastos orçamentários do ano de 2012. 

As considerações precedentes significam muito ao nosso propósito de caracterização da democracia brasileira. Tais considerações sustentam duas conclusões sobre a forma de gerenciamento desta sociedade. Por um lado, nos marcos do planejamento orçamentário analisado, não há como contemplar os princípios democráticos da igualdade e de justiça social da forma necessária.

Parece suficiente, para subsidiar a afirmação acima, fazer referência a um diagnóstico óbvio, quanto ao desenvolvimento da sociedade brasileira. Decorridos vinte anos de exercício do poder, por elites partidárias que, quando na oposição, ostentavam um discurso de matiz ideológico, em princípio, afinado com a defesa de gestões de cunho popular para a nossa sociedade (social-democratas, esquerdistas), o País continua a ocupar um lugar pífio na hierarquia classificatória de IDH.[3]

A outra conclusão é que aqui o obstáculo à democracia plena é um problema endêmico. Trata-se da determinação da forma como a sociedade é gerida pelo sistema econômico nela predominante. Trata-se, enfim, da indissolúvel vinculação existente entre política e economia, ou melhor, da determinação da política pelo sistema econômico dominante. A discussão sobre o sistema econômico vigente no País e no mundo entra, inevitavelmente, na pauta sobre as considerações da gestão democrática de uma sociedade. Contudo, esse objeto transcende ao nosso propósito nesta reflexão.

3.2  Soberanos carecem de mandatários

A constatação do fato de que a gestão da República brasileira inverte a prioridade entre os princípios basilares da democracia é, de longe, a crítica mais devastadora que se pode dirigir à forma de gerenciamento efetivo de nossa sociedade. Em nossa democracia, os fins são literalmente atropelados pelos meios. Contudo, mesmo diante de tamanho contrassenso, a análise de todas as dimensões da democracia brasileira impõe o reconhecimento da importância da avaliação também da forma de efetivação do princípio da soberania popular na gestão de nossa sociedade.

Para realizar tal propósito, inicialmente, voltamos ao que apontamos no tópico sobre o conceito de democracia como regras práticas para a aferição do funcionamento de uma gestão social deste tipo.

Ao tomar tais regras práticas, e confrontá-las com aspectos reais presentes na estrutura organizacional política e social do País, temos que apenas uma parcela dessas regras tem efetividade na vida pública. Assim: (1) devemos reconhecer que, praticamente, todos os brasileiros hoje votam (o voto é obrigatório para os maiores de 18 e menores de 70 anos e opcional acima dos 70 e entre 16 e 18 anos), embora as mulheres só tenham conquistado esse direito em 1946 e os analfabetos em 1988; (2) em geral, das alternativas apresentadas, a mais votada tem sido aclamada vencedora; e (3) os membros que ocupam postos nos órgãos legislativos e os dirigentes dos orgãos executivos têm sido eleitos pelo povo.

Outra parcela dessas regras não é contemplada na gestão de nossa sociedade. Neste segmento, destacamos que (4) nem todos os brasileiros são considerados cidadãos em sentido pleno; ou seja, há uma parcela significativa da população que é impedida de candidatar-se. O paradoxal aqui é que os impedidos, como no caso dos analfabetos, não possuem as capacidades legais exatamente porque a gestão social não garante as condições para que eles conquistem tais capacidades; (5) quanto ao peso do voto, devemos reconhecer uma desigualdade, na medida em que os votos do Norte e Nordeste têm mais peso do que os do Sul do País – um deputado federal desta última região é, geralmente, mais votado do que um das primeiras.

Podem ser ainda mencionadas como integrantes do último grupo: (6) nem todas as alternativas eleitas são obedecidas e executadas. Notórios, a título de exemplo aqui, são os inúmeros preceitos estatuídos na própria Constituição do País com status de direitos fundamentais, cuja falta de efetividade pode ser atestada justamente pela posição do País no ranking de IDH da ONU;[4] (7) A posição do Brasil no ranking de IDH da ONU pode ser também um atestado para a afirmação de que apenas uma pequena parcela da população brasileira possui informações apropriadas para o embasamento de tomada de decisão sobre as alternativas apresentadas; enfim, destacamos que os brasileiros (8) enfrentam obstáculos praticamente intransponíveis quando intentam inserir alternativas àquelas apresentadas pela gestão de nossa sociedade. Aqui podemos ilustrar fazendo referência às dificuldades impostas à população caso esta pretenda exercer a prerrogativa constitucional da propositura popular de leis ao Congresso Nacional (veja adiante).

O confronto acima dos parâmetros práticos democráticos delineados pela Ciência Política com a forma de efetivação dos mesmos na gestão social brasileira revela um outro tipo de redução, diferente daquele apontado no item anterior (Os meios sobrepujam os fins), porque agora diz respeito ao outro princípio da democracia. O confronto precedente revela também um deflacionamento na forma de efetivação do princípio da soberania popular, justamente aquele mais festejado pela democracia representativa. Contudo, engana-se quem pensa que está esgotado o perfil redutivo ostentado por este princípio na gestão de nossa sociedade.

De acordo com o Art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, na República Federativa do Brasil “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ao eleger este como seu princípio fundamental, o Brasil optou pela forma de gestão social predominante em quase todos os Estados modernos. A característica peculiar às chamadas democracias representativas ou formais é a institucionalização de formas de governo na qual a soberania popular é entendida em termos de direitos civis (liberdade de pensamento, de religião, de reunião, de opinião etc.) e direitos políticos (votar e ser votado etc.), exclusivamente, na perspectiva individual. Aqui a tomada de decisões é feita, não diretamente pelo povo, mas pelos representantes ou mandatários eleitos.[5]

É verdade, que o princípio legal transcrito também menciona formas diretas de exercício do poder pelo povo, como nos casos do referendo e do plebiscito. E, para sermos mais exatos, o § 2º do Art. 61 da Lei Maior prevê inclusive a posssibilidade de iniciativa popular na propositura de leis. Contudo, ainda nestes casos, o exercício desses direitos políticos por parte do povo revela o limitado grau da extensão da soberania popular quando praticado nos marcos de uma democracia representativa.

Nos casos de participação do povo em referenduns e plebiscitos, os mesmos só ocorrerão quando da autorização ou da convocação por parte do Congresso Nacional, que detém a exclusividade dessas competências (art. 49, inciso XV). Talvez, seja essa a causa do fato singular de que, durante vinte e cinco anos de vigência da atual Carta Magna, o povo brasileiro tenha sido convocado para participar de apenas um plebiscito e de um referendo. Em contrapartida, no mesmo período, tivemos eleições, municipais ou gerais, a cada dois anos, além da realização de um incontável número de eleições municipais suplementares em vários municípios do País.

No caso da posssibilidade de iniciativa popular na propositura de leis, também sérias restrições são colocadas, as quais terminam funcionando como entraves à sua efetivação. Duas restrições aqui são dignas de notas. A primeira diz respeito ao quorum: enquanto, de acordo com o caput do

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República... [...]

Aos cidadãos,

[...]

Art. 61.

§ 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (CF).

A segunda restrição à prerrogativa popular da iniciativa popular de leis diz respeito aquilo que pode ser postulado. Rigorosamente, não se trata aqui de um entrave, mas de efetiva negação do preceito. Existe um conjunto de questões do mais alto interesse social, sobre os quais a soberania popular jamais poderá exercer alguma influência. A interpretação hermenêutico-sistemática da Constituição Federal nos leva a  constatar, estupefatos, que o Art. 68 simplesmente anula o princípio estatuído no transcrito Art. 1º acima. Existem matérias cujos atos legislativos constitutivos são de competência exclusiva das elites mandatárias, que não serão objeto de delegação, nem mesmo ao Presidente da República e, portanto, jamais ao alcance da soberania popular, tais como as referentes a:

I – Organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros.

II – Nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais.

III – Planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos (CF).

Ademais, a iniciativa popular de leis é um processo cuja efetivação, ou sua transformação em lei, depende, na realidade, da decisão dos legislativos municipal, estadual e federal.

Esta é a essência da democracia representativa, consagrada em todo o mundo e é também a forma de gestão da sociedade brasileira. Dessa perspectiva podemos ver clara e objetivamente a (não)efetividade nas formas de gestão social dos Países atuais, dos princípios essenciais à definição do modo genuinamente democrático de gerenciamento das sociedades. O princípio da soberania popular é tão vilipendiado quanto os princípios da igualdade e da justiça social nas democracias representativas.

3.3  De soberanos a meros eleitores

Há ainda outra dimensão da reflexão sobre a forma de governar a sociedade brasileira que caracteriza a singularidade do modelo representativo de gestão existente entre nós. Em contraposição à fragilidade dos mecanismos de exercício direto da soberania popular, previstos no nosso ordenamento jurídico, há o cultuamento de outros mecanismos que implicam o fortalecimento desse modelo e em uma direção que podemos considerar ainda mais restritiva.

A relação da coletividade com os mandatários fixou-se, no Brasil, em momentos exclusivos, os das eleições para escolha dos últimos. O titular da soberania popular se transformou em mero eleitor. O País repete esses momentos a cada dois anos. Em um ano, são as chamadas eleições gerais, para eleger o Presidente da República, seu vice, os governadores das vinte e sete unidades da Federação, e seus vices, os deputados que constituirão a Câmara Federal e os senadores, os parlamentares que comporão as Assembleias Legislativas dos vinte e seis Estados e a Câmara Distrital da Capital Federal. Dois anos depois, são realizadas as eleições municipais, para eleger os prefeitos e seus vices, mais os vereadores que integrarão as Câmaras Municipais dos mais de 5.500 municípios brasileiros. Entrementes, ocorrem regularmente eleições municipais suplementares em inúmeros municípios do País.

Um dos aspectos que atraem a atenção da reflexão está relacionado à estrutura destinada à garantia da realização do processo eleitoral. Especialistas têm assinalado a ocorrência de um fenômeno novo quanto ao papel das instituições judiciais nas sociedades atuais. Está em curso um processo de protagonização política do Poder Judiciário no Brasil e no mundo. Talvez, possamos situar a expansão da Justiça Eleitoral brasileira como manifestação desse fenômeno. Além do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a estrutura desta justiça especializada conta ainda com vinte e sete Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e três mil e trinta e sete Cartórios Eleitorais, distribuídos por todo o País.

A alocação de recursos para gerenciamento da Justiça Eleitoral é, certamente, um critério objetivo de aferição do porte da estrutura à disposição da reprodução e manutenção da nossa democracia representativa. Na Tabela 3 apresentamos os valores e os percentuais constantes do Orçamento de 2012, ano de Eleições Municipais, destinados às despesas da Justiça Eleitoral e de outras importantes instituições ou segmentos da sociedade brasileira, integrantes ou vinculados ao Poder Judiciário Federal.

TABELA 3

Orçamento do Brasil – Exercício Financeiro de 2012

Despesa Total dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, por Órgão do Judiciário Federal

Discriminação

Valor

%

Tribunal de Contas da União

Supremo Tribunal Federal

Superior Tribunal de Justiça

Justiça federal (1ª e 2ª Instâncias)

Justiça Militar da União

Justiça Eleitoral

Justiça do Trabalho

Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Conselho Nacional de Justiça

Ministério Público da União

1.376.371.562,00

525.207.236,00

964.712.754,00

7.279.847.920,00

388.205.646,00

5.398.864.227,00

13.525.956.290,00

1.756.308.454,00

235.842.984,00

3.941.628.106,00

0,06

0,02

0,04

0,34

0,02

0,25

0,63

0,08

0,01

0,18

Fonte: Lei n. 12.595, de 19.01.2012, Volume I, Anexo II (publicada no DOU de 20.01.2012, Seção I, p. 1). Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretaria.asp?cat=50&sub=539&sec=8. Acesso em: 17 abr. 2013.

Na Tabela 4 apresentamos os cinco maiores valores constantes do Orçamento de 2012, ano de Eleições Municipais, destinados às despesas apenas de órgãos ou segmento da Justiça Eleitoral.

TABELA 4

Orçamento do Brasil – Exercício Financeiro de 2012

Despesa Total dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, por Órgão da Justiça Eleitoral

Discriminação

Valor

Tribunal Superior Eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais

Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro

Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo

Fundo Partidário

1.314.210.700,00

370.886.530,00

400.973.708,00

459.991.416,00

324.739.508,00

Fonte: Lei n. 12.595, de 19.01.2012, Volume III (publicada no DOU de 20.01.2012, Seção I, p. 1). Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretaria.asp?cat=50&sub=539&sec=8. Acesso em: 17 abr. 2013.

A consideração das Tabelas 3 e 4 impõe algumas conclusões de relevância incontestável, quando pensamos em uma administração pública compromissada com os anseios e necessidades coletivas. A Tabela 3 mostra que a Justiça Eleitoral teve o terceiro maior orçamento do ano de 2012, do Judiciário Federal. Suplantou o orçamento de instituições que administram áreas socialmente, no mínimo, igualmente relevantes, como, por exemplo, a destinação de recursos para a estruturação de mecanismos mais eficazes de fiscalização das contas públicas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), ou, ainda, a destinação de mais recursos para aparelhamento do trabalho do Ministério Público da União (MPU), a quem compete o trabalho de fiscalização de exação da efetividade e cumprimento da legislação.

A Tabela 4 mostra que, se consideramos apenas o orçamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de quase igualar-se ao do Tribunal de Contas da União (TCU), supera, esmagadoramente, aquele destinado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que tem a função de guadião da Constituição Federal, além de ser a última instância de apelação, e aquele destinado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que podemos considerar, talvez, a maior corte de Justiça do País, por suas competências em decidir as demandas recursais, seja da Justiça Federal de Primeira e Segunda Instâncias, seja de significativa parcela daquelas oriundas dos Tribunais de Justiça de todos os Estados da Federação.[6] A Tabela 4 revela, ainda, outra preciosidade, ou seja, o montante do fundo partidário, verba pública destinada a sustentar a democracia representativa, ocupa a 5ª posição no ranking de dotações dos tribunais eleitorais.

Há, ainda, a considerar outro aspecto relacionado à onerosidade do processo eleitoral no qual se estriba a democracia representativa brasileira. O processo eleitoral brasileiro é algo sui generis, um misto de prática política eleitoral feudal somada a um aparato tecnológico de última geração. Uma de suas peculiaridades é que só quem tem muito dinheiro pode se candidatar na perspectiva de eleger-se mandatário no País. O processo eleitoral é um momento de apostas financeiras altíssimas. Estima-se que a eleição de um deputado federal ou senador pelo Piauí custou, nas Eleições Gerais de 2010, para muito além do patamar de um milhão de dólares (quase dois milhões de reais).

Impõe-se desconcertante indagação: – Por que se faz necessário tanto dinheiro para eleger-se representante do povo? E aqui vai uma pista: no transcurso das eleições de 2010 e 2012, no Piauí, o Ministério Público Eleitoral Federal no Estado solicitou e a Justiça determinou que nenhum banco pagasse cheque de valor acima de dez mil reais nos dias imediatamente anteriores aos dois pleitos. Certamente, essas medidas visavam impedir a disponibilidade de recursos financeiros, in natura, algo que poderia exercer tentação e seduzir virtuais inescrupulosos a utilizá-los no azeitamento dos processos eleitorais para a escolha dos futuros mandatários. Caso essa especulação tenha o condão da veracidade, isso pode significar algo terrível sobre a natureza da participação popular nas eleições que dão sustentação à democracia representativa: – Será que o voto tornou-se uma simples mercadoria, como quase tudo no capitalismo?

No que concerne às eleições, existem ainda outros aspectos tão ou mais intrigantes. Quem reúne tais condições financeiras para postular candidaturas, notadamente naquele que é considerado um dos Estados mais carentes da Federação? Os salários dos parlamentares, mesmo os federais, e dos eleitos para cargos executivos não ultrapassam, segundo a lei, o teto da remuneração de um magistrado do Supremo Tribunal Federal (STF). Então, qual a razão da atração por ocupar um cargo parlamentar ou executivo a ser disputado em um processo eleitoral oneroso?


Considerações Finais

Ao finalizar esta reflexão, pontuamos outra questão que entendemos intrínseca ao perfil da democracia representativa no Brasil. A hegemonia da prática política cultivada, defendida, legitimada, impregnada nas ações políticas, governamentais, administrativas etc, tem um dos seus principais pilares no fato das elites do País, inclusive as elites intelectuais, sentirem-se confortáveis nos seus marcos.

Em dezembro de 2010, quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Ricardo Lewandowski escreveu sobre a grandiosidade, eficiência, segurança, planejamento e transparência que marcaram as eleições gerais daquele ano. Após ilustrar sua percepção pontuando aspectos técnicos das eleições – com destaque especial à credibilidade conquistada pela urna eletrônica, como instrumento capaz de garantir a expressão, o mais livre e imaculada possível, da vontade dos eleitores, e da diplomação como, quiçá o mais significativo ato do processo eleitoral – Lewandowski exara a seguinte conclusão: “Com a diplomação dos (...) eleitos para os cargos de presidente e vice-presidente da República, restou para todos que trabalharam nessas eleições a sensação do dever cumprido e a satisfação de ver o País completamente pacificado e de volta à normalidade” (2010).

Confessamos aqui os limites de nossa capacidade compreensiva para identificar o que acabava de ser completamente pacificado e de volta à normalidade no Brasil, com a finalização das eleições de 2010, mas, certamente, podemos afirmar nosso inabalável convencimento de que a afirmação do ministro expressava seu completo contentamento em testemunhar o reinado imperturbável do status quo.

Uma forma habitual de manifestação do contentamento das elites com o atual modelo de gerenciamento da sociedade brasileira pode ser identificado no discurso alarmista que irrompe frequentemente contra o que consideram virtuais ameaças à democracia. Atitude desse tipo se configura em procedimento por parte de autoridades sempre que estas se deparam com um movimento social, popular ou sindical mobilizado em defesa de seus direitos. Em geral, tais pronunciamentos apresentam um formato padrão: o movimento dos que estão reivindicando e se manifestando ostensivamente é legítimo, mas não tanto quando confrontado com algo vinculado às instituições que compõem e que esses dirigentes consideram mais legítimo.

A democracia brasileira, mesmo a despeito de seu caráter incipiente, como delineamos de modo bastante fundamentado e objetivo nestas reflexões é, realmente, ameaçada por conflitos sociais, inevitáveis em uma sociedade desigual?

Podemos responder com um sim e com um não. Por um lado, há que se destacar que um potencial inimigo da democracia, o militarismo de direita, está desmobilizado, sem identidade com o povo e em ostracismo histórico. Além disso, a sociedade tem conduzido, de forma razoável, institucionalmente, alguns de seus problemas, embora na maioria dos casos ainda exale um forte cheiro de pizza e prolifere a hipocrisia política. Mas é inquestionável que alguns processos que experimentamos nos últimos anos, como, por exemplo, a campanha das diretas, o impeachment de Collor, as CPIs do orçamento e do Judiciário, o julgamento dos mensaleiros, mais recentemente, têm favorecido um salto de qualidade na consciência da coletividade quanto à importância da questão política para as vidas de todos nós. Isso é fundamental e tem que ser fortalecido.

Contudo, também podem ser vistos sérios perigos à consolidação e ampliação da democracia entre nós. Mencionamos dois aspectos objetivos. O uso do patrimônio público pelas autoridades em proveito pessoal, como grassa em nosso País, nos níveis municipal, estadual e federal, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é uma ameaça realmente séria. A corrupção é antidemocrática em essência. Se não a afugentarmos, aí sim, a democracia corre risco.

Entretanto, vemos como maior desafio à democracia brasileira a existência da primeira restrição que caracterizamos nesta reflexão no item Os meios sobrepujam os fins, aquilo há muito conhecido como apartheid social. O fortalecimento da democracia, ou a estruturação de uma genuina democracia entre nós, passa pelo fim da miséria e da ignorância do nosso povo. Não podemos festejar nenhuma democracia que aceite os níveis de pauperização da maioria dos brasileiros, como grassa em nosso País.

Portanto, o balanço efetivo, teórico e prático, aponta a caracterização incipiente da nossa democracia. Resta comprovado que, entre nós, predomina o tipo representativo (formal) de democracia. Enquanto formal ela é elitista, excludente, desigual etc. É preciso lembrarmo-nos disso, quando dizemos que a democracia é uma conquista a ser preservada. A democracia é, em realidade, como todos os fenômenos culturais, um processo em construção em nossa sociedade.

Existem alternativas, mesmo nos marcos da ordem capitalista vigente, de transformação qualitativa da forma hegemônica de gestão da sociedade brasileira. Assim, é preciso explicitar os elementos que queremos ver nela predominantes. Sugerimos que, além de tornar mais usual a utilização dos mecanismos de democracia direta já existentes em nosso ordenamento jurídico, é possível e imprescindível a implementação de outros. Felizmente, há literatura abundante acerca do tema, cujo escrutínio exige espaço que transcende a esta reflexão.


Referências

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Notas

  1. O uso do conceito de elites aqui tem referência teórica, mas não comprometimento ideológico com a Teoria das Elites. Esta teoria remonta ao final do século XIX, foi reelaborada durante o século XX e ainda é referência na Ciência Política. Seus autores precursores são Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Roberto Michels. Nos anos 30 do século passado, entra nas universidades americanas, sendo reelaborada por autores como C. Wright Mills (sociologia) e Robert Dahl (política). Em contraposição ao uso do conceito de classes econômicas pela Teoria Marxista, a noção de elite é formulada porque, do ponto de vista da morfologia social, existe uma minoria que controla a soberania do Estado, bem como de outras instituições sociais, e controla também, em consequência, a riqueza e o prestígio. Assim, essa minoria que detém todas as vantagens grassa pelos vários setores e níveis da sociedade: há uma elite política em sentido estrito, uma elite empresarial, uma elite militar, uma elite sindical, uma elite burocrática etc.
  2. Aos adversários dos princípios democráticos da igualdade e da justiça social faz-se necessário enfatizar uma obviedade: que nem todos reagirão às oportunidades de modo igual nem conquistarão os mesmos benefícios. Portanto, os referidos princípios são uma condição necessária à gestão social democrática, mas eles não têm como consequência inevitável a eliminação das diferenças entre as pessoas. Isso não é algo merecedor de louvores, mas pode servir como um tranquilizante para os adversários da democracia.
  3. Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esse índice reflete as condições de vida das populações em relação a aspectos como renda, educação e saúde. Em março último, a ONU divulgou o Relatório de IDH de 2012, e o Brasil, embora tenha melhorado seu índice, ainda mantém a 85ª posição no ranking mundial, a mesma de 2011. Segundo o Portal G1, o Brasil está atrás de quatro países da América do Sul, como Chile (40º lugar), Argentina (45º), Uruguai (51º) e Peru (77º). Entre outros vizinhos, fica na frente de Equador (89º) e Colômbia (91º).
  4. Uma Comissão composta de deputados e senadores foi criada no Congresso Federal para revisar cento e dezessete dispositivos da Constituição Federal não colocados em prática porque ainda não foram regulamentados. Alguns desses dispositivos já contam com leis aprovadas, que, contudo, não contêm definição sobre sua aplicação. A lista inclui temas como a proibição do consumo de cigarro em ambientes fechados, direitos autorais e até alguns direitos fundamentais, como, por exemplo, o da liberdade de crença religiosa. Segundo o Portal Conjur, “a falta de regulamentação incomoda até organismos internacionais. É o que acontece com o direito de greve do servidor público. Há uma convenção mundial que dá aos funcionários dos Estados o direito de paralisação dos serviços. Cada país precisa regulamentar suas regras, de modo até que essas greves não prejudiquem a população” (Disponível em: http://www.conjur.com.br. Acesso em: 08 abr. 2013).
  5. Não é pertinente aqui fazer referência ao debate teórico ocorrido dentro do campo contratualista entre a defesa por Rousseau de um regime político no qual o exercício do poder seria feito diretamente por parte da população, e aquele defendido por Kant, oposto, defendendo o regime representativo. Interessa registrar o fato de que o último consagrou-se, mundialmente, como modelo padrão de democracia.
  6. Segundo o Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, “o Tribunal Superior Eleitoral é o braço do Poder Judiciário com menor demanda de serviços. Em 2009, ele recebeu somente 4.514 processos. No mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal recebeu mais de 103 mil ações e o STJ e o TST julgaram 354 mil e 204,1 mil processos, respectivamente. (...)”, apud CABRAL, et al. Qual é o palácio mais suntuoso do Poder Judiciário? (Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21574>. Acesso em: 7 maio 2013.)

Autor

  • Vicente de Paula Gomes

    Doutor em Filosofia pela UNICAMP (com tese crítica sobre o uso do princípio de causalidade nas inquirições de episódios científicos, um dos pilares do programa forte em Sociologia da Ciência defendido pela Escola de Edimburgo). Mestre em Filosofia pela UNICAMP (com dissertação sobre a estruturação da Sociologia do Conhecimento por Karl Mannheim). Especialista em Filosofia Contemporânea, convênio UFPI-UFRJ (com monografia sobre O Conceito de Existência em Heidegger). Graduado em Filosofia pela UFPI. Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Trabalha nas áreas acadêmicas de Ética, Filosofia da Ciência, Metodologia da Ciência, Teoria do Conhecimento, Filosofia Social, Filosofia Contemporânea, Metodologia Filosófica, Sociologia da Ciência. Analista Judiciário do Quadro de Pessoal da Secretaria do TRE-PI.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Vicente de Paula. Vicissitudes da democracia brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3638, 17 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24720. Acesso em: 18 abr. 2024.