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Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade

Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade

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Trata-se de análise das excludentes de ilicitude civil, consistente em nova edição de livro da autora publicado pela Editora Del Rey, agora atualizado conforme o novo Código Civil.

Ao amor que não morre

Igor e Yuri

Sumário: CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO . 1  Ilicitude e Antijuridicidade. 2  Justiça de Mão Própria ou autotutela. 2.1    Paralelismo entre a autotutela e o Estado de Necessidade  . Capítulo II – LEGÍTIMA DEFESA. 1  Antecedentes históricos. 2  Conceito. 3  Legítima defesa e autotutela ou justiça de mão-própria. 4  Legítima defesa e Estado de Necessidade -  paralelismo. 5  Estado de Coação. 6  Legítima defesa contra ato em estado de necessidade. 7  Tutela preventiva  e legítima defesa. 8  Legítima defesa putativa. 9  Omissão. 10 Pressupostos da legítima  defesa. 11 Meios de defesa- Excesso. 12 Sujeitos -.      12.1 Pessoa Jurídica. 13 Consentimento do ofendido. 14 Bens tutelados. 15 Legítima defesa de terceiro. 16 Legítima defesa que atinge terceiro –. 17 Direito positivo estrangeiro. Capítulo III -  EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO RECONHECIDO. 1  Antecedentes históricos. 2  Conceito. 3  Pressuposto. 4  Colisão jurídica. 5  Onus probandi. 6  Campo de atuação. 7  Proteção preventiva. 8  Características do exercício regular no direito brasileiro. 9  Limites do exercício. 10  Abuso do direito. 10.1 Requisitos. 10.2 Ofensa ao destino econômico e social, princípios da boa-fé e dos bons costumes. 10.3 Silêncio como abuso  do direito. 10.4 Atos emulativos. 10.4.1 Conceito. 11  Concorrência de culpas. 12  Natureza da responsabilidade no exercício do direito. 13  Direito de crítica. 14  Atos de parlamentares. 15   Atos judiciais. 16  Direito de estar em juízo e litigância de má-fé. 17  Execução provisória de sentença. 18  Estrito cumprimento de dever legal. 19  Direito positivo estrangeiro. Capítulo IV -  ESTADO DE NECESSIDADE. 1  Antecedentes históricos. 2  Conceito. 3  Natureza jurídica. 4  Bens tutelados. 5  Distinção entre estado de necessidade e  demais atos. 5.1 Estado de necessidade - caso fortuito e força maior.. 5.2 Estado de necessidade e justiça de mão própria. 6  Estado de necessidade putativo. 7  Coisa perigosa. 8   Pressupostos do Estado de necessidade. 9   Estado de perigo simples, qualificado e estado de perigo putativo. 10  Sujeitos da relação jurídica. 11  Fonte do perigo. 12  Fundamento do estado de necessidade. 13  Excesso. 14  Interesse coletivo. 15  Culpa. 16  Concorrência de causas no estado de necessidade - parcela de culpa. 17  Culpa de terceiro. 18  Âmbito de aplicação do art. 188, II, combinado com o art. 929. 19  Mal causado a si mesmo para evitar um mal a outrem - ato de sacrifício. 20  Mal causado a alguém para evitar um outro a essa pessoa. 21  Ação regressiva. 22  Responsabilidade civil – Fundamento e espécie . 23  Direito positivo estrangeiro. Capítulo V – REFLEXO  DA COISA  JULGADA  PENAL  NA  JURISDIÇÃO  CIVIL E SUSPENSÃO  DO  PROCESSO CIVIL. CAPÍTULO VI - JURISPRUDÊNCIA. 


CAPÍTULO I –INTRODUÇÃO. 

Expressava o artigo 160 do Código Civil brasileiro de 1916:

“Não constituem atos ilícitos:

l - Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido. 

ll - A deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente (arts. I.519 e 1.520).

 Parágrafo único -  Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”

Art. 1.519: 

“Se o dono da coisa, no caso do art. 160, n. ll, não for culpado do perigo, assistir-lhe-á o direito à indenização do prejuízo que sofreu”.

Art. 1520 : “Se  o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este ficará com ação regressiva, no caso do art. 160,ll, o autor do dano, para haver a importância, que tiver ressarcido ao dono da coisa.

Parágrafo único - A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se danificou a coisa (art. 160, l).”

Dispõe o Código Civil de 2002:

TÍTULO III - Dos Atos Ilícitos

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.

Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”

“Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I)”.

O Código Civil de 2002, originado do Projeto de Lei nº 634/75, após longa tramitação no Congresso Nacional, pôde, enfim, vir à luz, mediante Lei nº 10.406, de 10.1.2002. Da leitura comparativa dos dispositivos anteriores e atuais sobre as excludentes aqui tratadas, não se percebem alterações substanciais. O avanço maior deu-se com a positivação da teoria do Abuso no exercício do direito, caracterizado como ato ilícito, teoria que se sedimentou amplamente na doutrina e na jurisprudência. O legislador, afastando-se da linha individualista dos Códigos posteriores ao Código Civil francês, estabeleceu como linha mestra o homem em sua convivência em sociedade; erigiu princípios básicos que compõem a ossatura de todos os institutos do Código.  Examinando detidamente seu corpo jurídico, ao longo dos anos de sua elaboração, nele temos o princípio da socialidade (pelo qual prevalece o valor coletivo), o da eticidade (valorização do ser humano, no qual a ética, a boa-fé, os bons costumes, etc, regem os elementos da licitude da conduta e se determina aos julgadores guiar-se por eles); o princípio da operatividade/concretude (que direciona as normas jurídicas à aplicação efetiva, real e rápida aos anseios do homem, pois, direito que não se realiza ou direito que tarda a vir é direito inexistente, é “não direito”). Enfim, assenta as normas diretrizes de uma sociedade justa e solidária.  E isto é muito bem destacado pelos doutrinadores.

01 - ILICITUDE E ANTIJURIDICIDADE

ILICITUDE encerra o comportamento humano infringente da ordem jurídica. Implica na lesão a um direito, decorrente da violação do dever jurídico. Para o direito romano, era toda ação contra o direito (injuria).

J.     DELIYANNIS, em sua festejada obra “La notion d’acte illicite considéré en sa qualité d’élement de la faute délictuelle”, observando que a noção de ilicitude suscita grandes controvérsias, expõe as duas principais teorias:

  •  teoria subjetiva - para a qual a provocação constitui um ato ilícito a menos que seu autor tenha agido com direito, ou seja, em virtude de uma autorização jurídica expressa. Tem por característica principal considerar o problema do ponto de vista do agente. Tudo que não é expressamente permitido a ele é considerado como ilícito. Age ilicitamente quem age  sem direito.
  •  teoria objetiva – nesta, a ilicitude é apreciada em relação à pessoa da vítima. Consiste o ilícito no atentado a um direito, na violação das obrigações, que se tem em relação aos outros, e, por via de consequência, à esfera jurídica de outrem. Tudo o que não é proibido é lícito; só o que é proibido pelo Direito é ilícito. Considerou ser a doutrina prestigiada pelos autores e pela jurisprudência, tanto na França quanto em outros países. (Cf. DELIYANNIS, J. La notion d’acte illicite. Paris: LGDJ, 1952, p. 6-7).

Acreditou o autor que as diferentes teorias sobre a noção do ato ilícito não são inconciliáveis. Todas se reconduzem à ideia de que um ato ou uma abstenção são objetivamente ilícitos e, por conseguinte, faltosos, desde que seu autor tenha violado uma regra de conduta, uma norma do regime jurídico. Em primeiro lugar, isto é certo para as denominadas teorias objetivas. Efetivamente, aquele que prejudica o direito de outrem ou viola obrigações, deveres, que tem em relação a outrem, ou, enfim, aquele que não se conduz como homem prudente ou se conduz de modo anormal, viola uma regra de conduta, que lhe impede a violação do direito alheio ou que lhe impõe o dever ou a conduta, cuja inobservância é considerada como ato ilícito. (Cf. Op. Cit., p. 8).   

O constatado acima é concernente também à teoria subjetiva, segundo a qual age ilicitamente aquele que age sem direito. Quando é que ocorre agir sem direito, indaga o autor. Seria necessário acreditar que o regime jurídico elaborasse uma listagem de tudo o que ele permite aos particulares fazer, para proibir-lhes, em seguida e por via de consequência, tudo o que não lhes permite expressamente? Simples leitura das diversas disposições do direito escrito basta para convencer-nos da inexistência de um igual sistema.

De fato, o direito apenas define o que as pessoas devem e o que não devem fazer. É, consequentemente, por injunções (imposições) e proibições jurídicas que ele fixa, de uma maneira negativa, os limites nos quais os indivíduos estão autorizados a agir livremente.

Portanto, age sem direito aquele que ultrapassa esses limites negativos da sua liberdade, isto é,  aquele que viola as injunções ou as proibições do regime jurídico. ( Id. Ibid., p. 8).

Não se torna, portanto, evidente que, mesmo no espírito dos partidários da teoria subjetiva, não é o que não é permitido, mas antes o que é proibido que é ilícito? E que, consequentemente, mesmo essa teoria reconduz-se de fato à ideia de que o caráter ilícito de um ato consiste na violação de uma regra de conduta objetiva, de uma norma do regime jurídico? O ato ilícito é definido como o ato realizado em violação de um dever ou de uma norma jurídica. (Cf.idem, p. 9).

Nas conclusões de sua obra, DELIYANNIS reconhece ser necessário dar maior amplitude à noção do ato ilícito; todo ato contrário aos princípios próprios da  ordem jurídica, ou  seja, todo ato injusto ou simplesmente antissocial deve ser considerado, segundo o autor, como ilícito, mesmo se ele não é proibido expressamente pela lei. (Cf. Op. Cit., p. 328).

Há juristas que distinguem entre ilicitude (ou antijuridicidade) formal e material, sendo este último um conceito mais enriquecido (material), que leva igualmente em consideração a lesão ao bem jurídico protegido pela norma respectiva, JESCHEK destaca:

 “a) ilicitude material seria ponto de referência para a criação de tipos legais e sua aplicação ao caso concreto, para a graduação do injusto e sua influência na dosimetria da pena, finalmente, para a interpretação teleológica dos tipos;

b) consequência da ilicitude material seria a possibilidade de admissão de causas supralegais de justificação, com base no princípio da ponderação dos bens”. (APUD TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 149-150).

ASSIS TOLEDO apoia a corrente que considera dispensável a distinção mencionada e que a ilicitude só pode ser uma:  a material, pois  a ação humana que se antagoniza com a ordem jurídica não deixa de expor a perigo de lesão os bens jurídicos protegidos por essa mesma ordem jurídica. Em sentido formal, a ilicitude seria a relação de contrariedade entre o fato e a norma jurídica. (Cf. Op. Cit., p.149-150).

Firmando a noção de ato ilícito, PIETRO TRIMARCHI (Illecito. Diritto privato. Enciclopedia del diritto. Torino. Giuffrè Editore, V. XX, p. 90-106), citado por Antônio Chaves (Tratado de direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, v.1, t. II, p. 1542), tece ligeira distinção:

“O ilícito tem, portanto, uma significação mais restrita e precisa do que o conceito de antijuridicidade, entendido, este último, na acepção daqueles escritores que dele fazem o requisito de qualquer fato ou situação (e portanto não somente de atos humanos ) que não esteja conforme ao direito.

Mesmo silenciando a dificuldade de uma definição exata desta não conformidade ao direito, resulta claro que de qualquer modo é demasiado amplo para ser proveitoso. Compreende, com efeito, situações demasiado diferentes entre si: o enriquecimento sem causa, por exemplo, e o prejuízo ocasionado com um ato lícito que seja, porém, fonte de responsabilidade são fatos e situações disparatadas, que não é útil cotejar ao ato ilícito”. 

De acordo com o direito positivo brasileiro, ato ilícito é o praticado por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, que implica em violação de direito e cause dano a outrem, patrimonial ou não, ou seja, independente de reflexo patrimonial (art. 186 do Código Civil). Adota nosso Estatuto a teoria subjetiva. É ato culposo, seja intencional ou não, desde que seja imputável ao agente por qualquer motivo; abrange toda espécie de comportamento contrário ao direito ( culpa em sentido amplo).

O ato ilícito consiste na violação do direito, causando dano a alguém seja por dolo ou culpa. Decorre de tal fato, por ser contrário ao direito, ofensivo da ordem jurídica, a obrigação de reparar o dano. Nosso Código Civil conceitua-o no art. 186:

“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.  O atual Código melhorou a redação anterior; substituiu a conjunção alternativa ou pela aditiva e. Quem, culposamente, fere o direito de terceiro, causando-lhe dano, obriga-se  a repará-lo.

Também comete ato ilícito quem abusa de seu direito ao exercê-lo (art.187). O legislador de 2002 entendeu que devia incluir na categoria genérica da ilicitude, como espécie de ato ilícito, o abuso de direito, afastando a controvérsia reinante sobre a figura, demonstrando a relatividade dos direitos e não o absolutismo individual. Portanto, deve o exercício ser contido dentro dos limites de seu fim econômico ou social, da boa-fé, dos bons costumes. (O tema será tratado com maior abordagem no capítulo III).

A configuração do ilícito reúne três elementos, quais sejam, a culpa do agente, ocorrência do dano patrimonial ou extrapatrimonial, nexo causal entre o dano e a conduta do agente. Desaparece essa relação de causalidade quando a causa única do evento for a ação da vítima, atendendo-se ao princípio QUI SUA CULPA DAMNUM SENTIT, DAMNUM SENTIRE NON VIDETUR (Quem, por sua culpa sofre o dano, não parece que sofre o dano).

Se a culpa for do agente e do lesado, emprega-se o princípio da concorrência de culpas, refletindo-se na indenização o critério da proporcionalidade na apuração do QUANTUM.

A responsabilidade pelo dano, de regra, cabe ao autor causador do evento, mas pode incidir sobre pessoa diversa, como no caso dos genitores, comitentes, patrões, proprietário ou detentor de animal, etc., como responsabilidade pela guarda ou fato de outrem (os quatro incisos do artigo 1.527, do Código anterior, foram eliminados, passando a redação para: “se não provar culpa da vítima ou força maior”; art. 932 do Código Civil brasileiro).

Assentado, portanto, o princípio de ILICITUDE, dele deriva a regra de que o dano causado por alguém a outrem, de modo que aquele pudesse prever e evitar, acarreta presunção de falta e, consequentemente, de responsabilidade. No campo da responsabilidade civil, encontramos as excludentes dessa responsabilidade. No campo das EXCLUDENTES DE ILICITUDE CIVIL, a matéria é diversa, já que se assenta em fundamentos outros. O princípio NEMINEM LAEDERE (não prejudicar a ninguém) está sujeito a exceções. Como bem enfoca SAVATIER, ele deixa de vigorar nos casos onde a equidade reconhece a existência de um direito de causar prejuízo a outrem.

“Ïmposé par l’equité, il cesse de jouer dans tous les cas où l`équité reconnait à l`agent un droit de porter préjudice à autrui”.

O mestre francês, no estudo da matéria, não adota a expressão excludente de ilicitude; reconhece o direito de causar prejuízo, classificado como se vê:

- direito de concorrência;

- direito de defesa (legítima defesa, direito de estar em juízo, estado de necessidade) ; 

 - direito de promiscuidade e de vizinhança;

 - direito de expressão do pensamento ou de informação;

- direito de abstenção. (Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: LGDJ, 1939, t, l, p. 51, 52).

ANTIJURIDICIDADE encerra uma ideia básica, qual seja, contrariedade ao direito, às várias normas existentes, aos princípios e fundamentos nos quais se assentam a lei e o próprio sistema jurídico e não apenas à lei; sua noção é mais ampla do que ilicitude. Antijuridicidade e ilicitude, por vezes, são expressões empregadas como sinônimas. A doutrina penal brasileira comumente emprega a expressão antijuridicidade, influenciada por autores espanhóis e italianos, utilizando-a “Para exprimir um dos elementos fundamentais do conceito jurídico de crime”. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, com supedâneo em CARNELUTTI, diz não ser feliz tal opção, pois é um equívoco atribuir ao delito, que é um fenômeno jurídico, caráter de antijuridicidade, o que soa contraditório, quer dizer, “...que o delito seja um fato ou um ato jurídico e, ao mesmo tempo, um fato antijurídico”. Por ser o delito ou ilícito um fato jurídico, classificado, dentre esse, como fato ilícito, pode-se atribuir-lhe a ilicitude, sem incorrer na contrariedade apontada. (Cf. Op. Cit., p. 147-149). Ilícito é o fato que contraria o ordenamento jurídico.

“A ilicitude é uma relação ou propriedade que se atribui ao fato típico penal. Com isso queremos dizer que o termo ilicitude exprime a ideia de contradição, de antagonismo, de oposição ao direito”. Aduz que a reforma ocorrida na Parte Geral do Estatuto Penal andou bem ao empregar o termo correto ilicitude (quando se refere ao erro sobre a ilicitude do fato, consciência da ilicitude do fato, exclusão de ilicitude) e que a questão não é meramente terminológica, mas de fundo. (Cf. ASSIS TOLEDO. Op. Cit., p. 147-149).

Por seu turno, PONTES DE MIRANDA  enumera como atos de pré-exclusão da contrariedade a direito: legítima defesa; exercício regular do direito reconhecido; estado de necessidade, ou destruição ou deterioração da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente; a justiça de mão própria, autotutela ou desforço (art. 502 do Código Civil anterior e atual 1210, parágrafo 1º); o servidor público, que tem permissão legal para intrometer-se na esfera jurídica de outrem (desinfecção de casa, medição de luz); intromissão na esfera jurídica de outrem quando corresponde à vontade ou presumível vontade do interessado (gestão de negócios, atendimento médico a quem está inconsciente ou incapacitado, a atuação do advogado com a caução DE RATO ou gestão do negócio extrajudicialmente); consentimento na ofensa pelo ofendido. (Tratado de direito privado. Parte geral, tomo ll, Rio Janeiro: Ed. Borsoi, 1954, p. 271,272).

GIOACCHIONO SCADUTO e DOMENICO RUBINO, na análise do ato ilícito, destacam que a antijuridicidade costuma apresentar-se em duas acepções diversas, não contraditórias:

  •   subjetiva - em seu significado mais difundido, a antijuridicidade coloca-se como critério de avaliação entre aquilo que é e o que deve ser, designando uma relação de contrariedade ou  oposição ao ordenamento jurídico, em contraste a uma relação de conformidade. Sob este aspecto, antijurídico é apenas o ato do homem capaz de entender e querer, pois, só por ato do homem, em posse da capacidade natural, é concebível um contraste entre o ser e o dever ser. Neste sentido,  antijuridicidade e  sem direito são sinônimos de ilicitude.
  •      objetiva- este é um significado menos difuso. A antijuridicidade pode assumir-se como expressão de uma particular relevância jurídica de um ato, por indicar que a esse o ordenamento jurídico reage, removendo a situação criada para restaurar a preexistente situação, ou aparelhar de qualquer modo medidas iguais e contrárias, para restabelecer o equilíbrio turbado do próprio ordenamento. Sob este aspecto, a reação do ordenamento jurídico não avalia aquilo que é em relação a aquilo que deve e poderia ser, mas assume o ato na sua essência objetiva, abstraindo-se de qualquer relação de causalidade com o agente; considera o ato como fato (em sentido estrito), e ao agente reverte na consideração dos efeitos do ato, enquanto esses incidem em sentido oposto na esfera de dois sujeitos. Assim, seria antijurídico o ato de alguém privado da capacidade natural de entender ou de querer.

A ilicitude reporta-se ao preceito, considera, em primeiro lugar, o ato independentemente das suas consequências; na antijuridicidade objetiva não falta o preceito, mas pela natureza ou posição do destinatário, o ato ou o fato vêm considerados sobretudo em ordem aos seus efeitos materiais, e, correspondentemente, na norma  a sanção alcança elevado relevo.

A antijuridicidade objetiva pressupõe o preceito proibitivo, e exclui a ilicitude só porque uma avaliação de licitude não é proponível pelo ato, não fosse outro, porque o agente não está em culpa. O ato objetivamente antijurídico não é lícito nem ilícito; a antijuridicidade objetiva não se contrapõe à licitude nem à ilicitude, mas está sobre um plano diverso. (Cf. SCADUTO, Gioacchino et RUBINO, Domenico. In : Nuovo Digesto Italiano. Torino: U.T.E.T., 1938, v. VI, p. 702-708).

A distinção entre antijuridicidade e ilicitude atualmente é encontrada na doutrina brasileira. HERMES LIMA a ela se referiu sinteticamente, sem se deter no emaranhado das teses apresentadas:

“Resumindo, podemos repetir que, do ponto de vista geral da antijuridicidade, o ato humano pode ser ilegal, ilícito ou excessivo. Ilegal, o realizado sem direito; ilícito, o de que resultou violação do direito alheio ou o prejuízo a outrem; excessivo, o que resultou do uso imoderado de prerrogativas jurídicas. Modalidade de ato ilícito, o abuso de direito, porém, com ele não se confunde, pois o abuso decorre do exercício de um direito: “é lícito na sua morfologia, mas não o é na sua gênese””. (LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 30ª. ed. R. Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p. 92).

Como se vê, as noções de antijuridicidade e ilicitude embaraçaram os doutrinadores. A amplitude ao conceito de ato ilícito colocá-lo-ia em igual noção de antijuridicidade.

Em resumo, atos praticados em legítima defesa ou estado de necessidade são lícitos e não resultam em responsabilidade civil. A indenização caberá, quando houver diminuição no patrimônio de terceiro, isento de culpa. Por outro lado, o exercício não regular, abusivo de um direito reconhecido implica em indenização, por encerrar ato ilícito.

Pode ocorrer que os bens corporais ou materiais de alguém, garantidos pela lei, conflitem não com interesses de outrem, inerentes à sua liberdade natural de agir, mas com interesses de outra natureza, interessando, de algum modo, ao conjunto da comunidade, mesmo quando esses interesses estão ligados a uma determinada pessoa, sendo por isso de um valor superior.

Um igual conflito é susceptível de resultar numa limitação da garantia, concedida pelo regime jurídico à pessoa e aos seus bens: quem causa atentado ao domínio garantido de terceiros, prevalecendo-se de iguais interesses não comete ilícito. Os interesses em questão seriam: primeiramente, os interesses da coletividade, os do Estado, que justificam, em certas circunstâncias, violação do domínio garantido aos particulares. Trata-se de um dever, mais que um direito. Há, também, o interesse que todo indivíduo tem (justiça, segurança, ordem) não seja violado em seu prejuízo. Desse modo, o regime jurídico confere a todo indivíduo direito de intervir, violar, dentro de certos limites, o domínio garantido a outrem, quando ele próprio é vítima de uma agressão injusta por parte desse último (legítima defesa).

No estado de necessidade, o agente tem uma escusa, mas esta só consegue suprimir o caráter culpável de seu estado de ânimo. Para DELIYANNIS, ela não suprime o caráter objetivamente ilícito do ato realizado: qual seja, a lesão de um bem garantido permanece sempre ilícito.

Por essa razão, não estuda o estado de necessidade dentro dessa ordem de ideias.

No exercício do direito, só há um caso em que o ataque não constitui ilícito em relação à vítima. É quando o direito subjetivo, exercido pelo agente, lhe confere a prerrogativa expressa de intervir no domínio garantido de outrem. Enquanto o agente age dentro dos limites de tal prerrogativa, ele não comete ilícito, não viola o domínio garantido à vítima. (Cf. DELIYANNIS, J. La notion d’acte illicite. Paris: Ed. LGDJ, 1952, p. 193, 194).

Sintetizando, afirma MAGALHAES NORONHA:

“A antijuridicidade representa um juízo de valor em relação ao fato lesivo do bem jurídico. E sua apreciação é puramente objetiva, não dependendo de condições próprias do autor do fato”.

Exemplifica que tanto é homicídio o ato praticado por homem normal como por um alienado. (NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. Atualizada por José Q.T. de Camargo Aranha. Ed. Rideel, 2009, v. l, p. 109).

Para a doutrina atual, o conceito de antijuridicidade é amplo, não se relacionando apenas com a ação contrária à lei, mas sim a todo o direito, ou seja, às normas nas quais se apoiam as leis e, portanto, de onde nasce o sistema jurídico; para DE CUPIS a antijuridicidade nada mais é do que a contrariedade ao direito: “Antigiuridicità significa contrarietà al diritto, e nulla più”. (Il danno, p. 12).

A evocação, com suporte no direito penal, tem sua razão de ser, visto que tanto o Código Penal quanto o Código Civil empregam a expressão ILICITUDE.  A doutrina distingue: ilícito (não lícito), antijurídico (contrário ao direito). Lembramos que, no direito penal, as causas de exclusão de ilicitude comumente vêm consignadas como: exclusão de ilicitude, descriminantes, causas objetivas de exclusão do crime, causas excludentes de ilicitude objetiva, causas de inexistência de crime, causas excludentes de ilicitude jurídica ou injuridicidade, causas de justificação.

O Código Penal brasileiro, na redação dada pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, em seu artigo 23, expressa “ipsis verbis” :

“Exclusão de ilicitude - Art. 23: Não há crime quando o agente pratica o fato:”, afastando o equívoco linguístico apontado por Francisco de Assis Toledo. Ilícito é ato realizado em contradição com o ordenamento jurídico.  E, se o ilícito é um fato jurídico, não poderia ser, ao mesmo tempo, fato antijurídico.

Na doutrina civil, diz-se que o ilícito consiste no ato praticado em desacordo com a ordem legal; na violação do ordenamento jurídico, seja por comissão ou omissão, seja intencional ou não. “A iliceidade de conduta está no procedimento contrário a um dever preexistente”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 21ª. ed. Rio Janeiro: Forense, 2005, p. 654).

Ato ilícito é a “violação do direito ou o dano causado a outrem por dolo ou culpa. O dolo consiste na intenção de ofender o direito ou prejudicar o patrimônio por ação ou omissão. A culpa é a negligência ou a imprudência do agente, que determina a violação do direito alheio ou causa prejuízo a outrem. Na culpa há, sempre, a violação de um dever preexistente. Se esse dever se funda em contrato, a culpa é contratual; se no princípio geral do direito que manda respeitar a pessoa e os bens alheios, a culpa é extracontratual, ou aquiliana”. “O ato ilícito pressupõe culpa, lato sensu, do agente, isto é, a intenção de violar o direito alheio, de prejudicar a outrem, ou a violação de direito, o prejuízo causado por negligência ou imprudência”. (BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. São Paulo: Livraria Francisco Alves, V. I, 1919, p. 280).

Na sua etiologia, encontramos os seguintes requisitos, enumerados por CAIO MÁRIO, que tanto servem para o ilícito civil quanto penal, vez que ambos têm o mesmo fundamento ético e não existe diferença ontológica entre um e outro.

a) Conduta, que se configura na realização intencional ou meramente previsível de um resultado exterior;

b) Violação do ordenamento jurídico; agir com culpa em sentido amplo, abrangendo toda espécie de comportamento contrário a direito;

c)  Imputabilidade, isto é, o resultado antijurídico é atribuído à consciência do agente;

d) Penetração da conduta na esfera jurídica alheia. (Id. Ibid., p. 654).

Na consequência danosa, produzida pelo ato ilícito, encerra certa dificuldade a verificação do nexo causal, quando há concurso de causas, simultâneas ou sucessivas, que provocam um só dano, e três teorias surgiram para sua compreensão:

_ Equivalência das condições - arquitetada por VON BURI e de simples compreensão, nela basta que o evento ou fato gerador surja como condição SINE QUA NON do dano, mas ao lado de outras condições igualmente indispensáveis na configuração do nexo causal. Bastaria a simples indagação que, se afirmativa, confirma o nexo causal: sem o fato, ou sem a culpa de que se trata, o dano não se teria produzido?

Além de elastecer a noção de causalidade, o grande defeito, apontado pelos autores, consiste em não permitir distinção entre a maior ou menor eficácia, a maior ou menor proximidade das várias condições. (Cf. MONTEIRO, Washington de Barros; Pinto, Ana Cristina de Barros Monteiro F. Curso de direito civil, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 351 et seq.).

- Causa imediata ou próxima - defendida por BINDING e OERTMAN, o que releva notar é a relação de proximidade. Entre o ilícito e o dano é necessário existir relação de causa e efeito direta (sem qualquer intermediação) e imediata (sem intervalo). Portanto, a causa do dano será o fato do qual ele deriva proximamente e dela exclui-se o dano remoto. ENNECCERUS contesta esta teoria, reconhecendo que não é necessário ser o nexo causal imediato, bastando a causalidade mediata. (ENNECCERUS, Ludwig. Derecho de obligaciones. Rev. Heinrich Lehmann.  Buenos Aires: Bosch, 1.948, v. l, p. 72).

Ao adotar esse critério de causalidade imediata, as legislações procuram evitar que, de consequência em consequência, o ressarcimento alcance proporções exageradas e injustificadas.

Causalidade adequada ou regularidade causal - Aqui o ato/fato deve ser condição essencial para efetivação do dano, isto é, idôneo para produzi-lo e a idoneidade é aferida pela inevitabilidade constante do efeito, É reconhecida como causa a condição que se encontra em conexão adequada com o resultado. Estariam excluídas outras circunstâncias que, segundo a percepção geral, as regras e as experiências da vida diária são consideradas indiferentes para produzir o dano, mesmo que essas circunstâncias venham aliadas às outras. Essas circunstâncias chegaram a ser condição do dano por consequência de outra causa e, em si, não eram adequadas a produzi-lo. “Quando il fato umano produce un effetto soltanto per il concurso de circostanze le quali si presentano raramente, esso, giuridicamente, non può considerarsi causa di quell`effetto”. Isso quer significar que o ato deve ser a condição essencial à realização do dano. DE CUPIS ressalta que, para os danos mediatos e indiretos, não é suficiente a relação de simples condicionalidade, exigindo-se, ainda, um nexo de causalidade regular, ou seja, que o fato venha a existir com base no natural e ordinário evolver-se das coisas. (DE CUPIS, Adriano. Il dano. 2º. ed.. Milano: A. Giuffrè, 1.966, v. l, p.196, 201).

O dano antijurídico caracteriza-se pela especial natureza da reação que se desenvolve contra ele. A reação assume a fisionomia determinada de sanção; esta é aquela consequência, por meio da qual o direito visa a garantir a prevalência de um determinado interesse contra os atos lesivos, provenientes de sujeitos, cujo interesse esse entendeu subordinar. Pode ocorrer que o direito considere certo interesse digno de prevalência, preocupando-se, por outro lado, em estabelecer consequências aptas a compensar o sujeito do interesse sacrificado. Então, o dano que atinge o interesse sacrificado pelo direito não é antijurídico, e a reação à qual esse se sujeita não é uma sanção, pela razão de que, por meio dessa, o direito visa não apenas garantir a prevalência de um interesse, mas, certamente,  compensar o sujeito do interesse por ele mesmo sacrificado. Há, portanto, uma compensação ao sacrificado, como nos exemplos: o proprietário de enxame de abelhas tem direito de persegui-lo no fundo de outrem, mas se obriga a ressarcir o dano porventura ocorrido a esse; indenização por acesso coativo realizado para construir ou reparar um muro ou outra obra; indenização por passagem forçada por quem não tem saída para a via pública, etc (Cf. DE CUPIS, Adriano. Il dano. Milano: Ed. Dott. A .Giuffrè, 1946, p. 12 a 14).

“Tais atos lícitos, isto é, praticados de acordo com o direito, criam, não obstante, para o agente a obrigação de indenizar, porque neles interveio a vontade com o fito de assegurar um bem a quem o pratica ou a terceiro. NÃO É A CONSEQUÊNCIA DANOSA QUE OBRIGA À REPARAÇÃO, como tem dito escritores de tomo : é também a concorrência daquele elemento subjetivo, cuja presença faz com que o ato se opere de modo a não poder atribuir-se ao caso fortuito ou à força maior, que se identificam com a ação de causas que estão fora do alcance da vontade humana, isto é, tudo que se não pode prever, ou que, previsto, não se pode evitar. Em suma, o sujeito que se vê em estado de necessidade, pode sujeitar-se ao mal evitável. A mesma coisa é possível no caso de agressão injusta: a vítima pode optar por sofrer a ofensa, em vez de repeli-la, matando ou ferindo”. (CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil brasileiro interpretado. Parte geral, v. III. Rio Janeiro: Ed. Calvino Filho. 1934, p. 332).

02 - JUSTIÇA DE MÃO PRÓPRIA OU AUTOTUTELA

De há muito o Estado, por ser o detentor do monopólio da ordem, para defesa dos indivíduos e de seus bens, proibiu os cidadãos de fazerem justiça ao seu talante. Traçando considerações sobre a referida autotutela, PONTES DE MIRANDA enfoca que nela “há realização do direito objetivo e estabelecimento de estado de fato, que corresponda à incidência de regra jurídica, é a aplicação da lei pelo próprio interessado”. Difere-se da legítima defesa porque nesta há ataque contra ataque e é sempre permitida, ao contrário da justiça de mão própria, que é proibida, em princípio, pela existência do princípio do monopólio estatal. (PONTES. Op. Cit., P. 275).

A legítima defesa é uma autodefesa e, em situações práticas, muitos doutrinadores a confundem com justiça de mão-própria. Cita o autor casos de legítima defesa: o locador que se reserva, em acordo com o locatário, a entrada na dependência da casa e, se esse último o impede, a atividade do locador para entrar é em legítima defesa e não uma estipulação com o locatário de justiça de mão-própria. Também é caso de legítima defesa a ação contra turbação da posse. (PONTES. Op. Cit., p. 321)

“A justiça de mão-própria é a aplicação da regra jurídica pelo próprio interessado, quando aquele, que devia atender à incidência da regra jurídica, a ela não atendeu”. “O interessado põe-se no lugar que, depois que a justiça se tornou monopólio do Estado, a esse, e não a particulares caberia”. Ele substitui o juiz. (Id. Ibid, p. 313).

“Nos nossos dias, rareando os casos, precisou-se que a justiça de mão-própria, quando é permitida, só o é se a decisão que, in caso,  se desse, seria  favorável ao que a exerce. Principalmente, mostrou-se que só excepcionalmente a justiça de mão-própria é satisfativa”. (Id. Ibid, p. 313).

Historicamente, podemos registrar que a justiça privada existia antes da Lei das Xll Tábuas, por força da rudimentar justiça estatal que nascia e não possuía o direito romano o princípio geral de sua vedação por não se ter completado o monopólio estatal da justiça (Id.Ibid., p. 314).

Acrescenta o autor que “O direito romano nunca chegou à síntese entre o desenvolvimento do Estado e a independência do indivíduo, pela criação de direitos públicos subjetivos contra o Estado; donde a conciliação por modus vivendi”. Consequentemente, “Estando compostos os elementos da falta do juízo e da perda ou extrema dificultação do direito, podia ser usada a justiça de mão-própria”. (Id. Ibid., p. 314).

Ao tempo das invasões, também no direito germânico, a autotutela fazia-se rara. Na idade média, regressou-se à autotutela primitiva, ainda onde havia proibições legais. No direito moderno, é proibida no direito civil austríaco (art. 19), sendo responsável aquele que a exerce. É permitida no Código Civil Suiço das Obrigações. Diz o artigo 52:

“En cas de légitime défense, il ne pas dù de réparation pour le dommage causé à la personne ou aux biens de l’agresseur.

(Omissis)

Celui qui recourt à la force pour protéger ses droits ne doit aucune réparation, sí, d’après les circonstance, l’intervention de l’autorité ne pouvait être obtenue en temps utile et s’il  n’existait pas d’autre moyen d’empêcher que ces droits ne fussent perdus ou que l’exercice n’en fût rendu beaucoup plus difficile. C.4.”

É permitida, para assegurar pretensão justa, se a tutela judicial não pode ser obtida a tempo e se só pelo ato de justiça privada evita-se a perda do direito ou grande dificuldade na sua realização.

No direito brasileiro, é permitida, excepcionalmente (art. 1210, parágrafo 1º, do Código Civil e 932 a 933 do C. Processo Civil), no caso de esbulho e se a retomada for imediata; O que, em virtude da justiça privada, for tomado volta e são indenizados os danos, quando não permitida.

No direito penal, o exercício dela é proibido, ressalvada a permissão legal. A norma penal a insere no capítulo dos crimes contra a administração da justiça. “Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”.

Não se trata de caráter satisfatório e somente é admitida a justiça privada cautelar ou assegurativa (Cf. PONTES. Op. Cit., p. 316, 317). No direito francês, atualmente só é aceita em atraso ou regressiva sem dar-se atenção à autotutela subsidiária ou complementar. PONTES DE MIRANDA recolhe da doutrina francesa opiniões de autores clássicos e citações de casos como sendo autotutela, quando na verdade não se caracterizam como tal. (Op. Cit., p. 319).

Conclui-se que a autotutela só existe onde o juízo deveria ter sido criado e não foi ou onde o juiz deveria funcionar e não pode ou não quer; (Id. Ibid., p. 320) embora reduzida ao mínimo, não pode ser eliminada completamente da vida social, podendo ser exercida pelo titular, seu representante legal, por quem tem poderes de representação, pelo gestor de negócios.

02.01 - PARALELISMO ENTRE A AUTOTUTELA E O ESTADO DE NECESSIDADE

A exemplo da legítima defesa, também a autotutela distingue-se do estado de necessidade, à razão de que  ela supõe contrariedade a direito, enquanto esse último exclui a existência de ato contrário a direito. Difere-se, ainda, porque o estado de necessidade é elemento fático que serve a conteúdo de regra jurídica pré-excludente, ao passo que a justiça de mão-própria é ato tornado a efeito a propósito de fatos jurídicos, que tiveram ou têm eficácia. (PONTES. Op. Cit., p.322).

Considera PONTES grande erro dizer-se justiça privada agressiva (compreensiva da justiça de mão-própria ou justiça privada em seu sentido exato) e a defensiva (abrangedora da legítima defesa e do estado de necessidade). O elemento defesa, em seu sentido lato, é comum a esses institutos, “Porém então teríamos de dizer: a defesa compreende a justiça de mão própria, a legítima defesa e o estado de necessidade, o que não teria valor científico” (Op. Cit., p.322).

A autotutela só é permitida, excepcionalmente, se o sistema jurídico não a condena. O nosso direito não possui princípio geral, expresso, que seja limitação ao princípio do monopólio estatal da justiça. A autonomia da vontade não pode estabelecer acordo em que seja exercitada a justiça de mão-própria. 

PONTES DE MIRANDA aborda o instituto da autotutela, com percuciência, destaca os meios de constrição de que lança aquela, examina casos verdadeiros e falsos dessa tutela, se há direito subjetivo à autotutela (anteriormente demonstrou que não há tal direito à legítima defesa e ao estado de necessidade), concluindo positivamente, aborda a reparação do dano, quando for incabível o ato de justiça de mão própria (quando há culpa), os excessos da justiça privada que se configuram como exercício irregular do direito; as consequências do erro ao fazer-se a justiça de mão-própria, a previsão do Código Penal brasileiro (artigo 345), quando a mesma se configura delito.                                 

Pressuposto da justiça de mão-própria é a impossibilidade de a justiça estatal tutelar, a tempo, a pretensão, a ação, a exceção, como em casos de guerra, revolução, inundação, terremoto, peste, incêndio; se o juiz ou polícia não puderem atender o interessado, ou se o juiz é sediado distante e não for caso de ação policial ou, se for caso de ação policial, essa não existe no lugar, ou se juiz ou polícia não querem conhecer a petição, se conhece e indefere ou protela. (Cf. PONTES. Op., Cit., p. 247).

Sobre a matéria, o citado autor fez cuidadoso exame, rebatendo autores internacionais, em estudo comparativo do direito, às páginas 312 a 348 da obra referenciada, fato que nos desautoriza uma compilação do mesmo. Ainda mais pela razão de termos como finalidade o artigo 188 do Código Civil brasileiro. (Cf. Op. Cit., p. 312-348).

PLANIOL e RIPERT, secundando DEMOGUE, assentam que, em princípio, fazer justiça por si mesmo é proibido, pois constituiria uma fonte de violências e desordens, mas será possível, quando a justiça e a força pública não forem eficazes, ocasionando, por outro lado, demoras e gastos, desde que o fato não seja condenado criminalmente:

“Il est en principe interdit de se faire justice à soi-même, ce qui constituerait une source de violences et de désordres. Mais l’intervention de la justice et de la force publique n’étant pas toujours efficaces et en tous cas entrainant des retards et des frais, on ne doit pas considérer comme illicite l’acte par lequel une personne a obtenu ce qui lui était dû, même en enployant la force ou la ruse et la tromperie  pouvu que ce fait ne soit pas réprimé pénalement.”(Traité pratique de droit civil français, t. Vl, Paris: LGDJ, 1952, p. 782)”.


CAPÍTUO II -LEGÍTIMA DEFESA

01 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS

No direito grego, não se admitia, em qualquer modo, o filho ou o escravo reagirem contra os pais ou patrão, respectivamente, nem mesmo defendendo-se. Em tais casos, o direito sacrale e o direito da polis puniam o perverso uso da autoridade. Na Grécia, havia pluralidade de ordenamentos jurídicos, mas não reconheciam ao ofendido o direito de afastar, com meios próprios e imediatos, a injusta violência. (Cf. PAOLI, Enrico. Nuovo Digesto Italiano. Torino: U.T.E.T., 1938, XVl, v. 4, p.826).

No direito romano, a legítima defesa tinha uma aplicação muito ampla do que no direito moderno e tanto era admitida a legítima defesa preventiva (a admitida atualmente) que visa à conservação do status quo, quanto a reativa, visando ao restabelecimento do status quo.

A defesa privada preventiva (somente essa é adotada pelo direito moderno) era admitida de modo muito geral no direito romano primitivo e clássico, sendo conservada no direito justiniano. Essa encontrava sua formulação no adágio até hoje citado pela doutrina vim vi repellere licet (é permitido repelir a força pela força), regra essa de caráter geral que encontrava sua aplicação mais rígida no tocante à defesa da pessoa. Tinha como pressupostos a injustiça da agressão, atualidade dessa necessidade de reação violenta e moderação do contra-ataque.

No período da jurisprudência clássica, doutrina autorizada, seguida por ULPIANO, deduzia que a Lei das XXll Tábuas não fosse mais aplicada e que não fosse também lícito o homicídio pelo fur nocturnus, quando não tivesse sido possível a captura. (Cf. ARU, Luigi. Nuovo Digesto Italiano. Torino:  U.T.E.T., 1938, XVll, v. 4, p. 827).

Nas pegadas do direito romano, seguia o direito canônico, pondo relevo à moderação da repulsa. No direito secular intermédio, foi ampliada à proteção dos bens patrimoniais, cabendo a repulsa não só em defesa da vida e do corpo, mas também em defesa do que é seu (non solum pro defensione vitae, et corporis sui, sed etiam pro defensione rerum suarum). (Cf. HUNGRIA, Nelson; Fragoso, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. R. Janeiro: Forense, 1978, v. l, t. Il, p. 281, 283).

02 – CONCEITO

O Código Civil brasileiro não conceitua o instituto da legítima defesa, fato que nos remete à norma penal e à doutrina. Para KÖHLER, ela “Não é, em rigor, um direito distinto, e, sim, uma faculdade, que emana, diretamente, da personalidade, e é da mesma categoria das faculdades de exercer o direito e dele gozar”. (APUD BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos estados unidos do Brasil. R. Janeiro: Ed. Francisco Alves, 4ª. ed., v. l, 1931, p. 420).

A indagação sobre a sua natureza jurídica, ou seja, se existe direito subjetivo à legítima defesa é formulado por PONTES DE MIRANDA e conclui negativamente, adotando a teoria da extrajuridicidade, pois a regra jurídica é norma pré-excludente, quer dizer, ela diz que “Havendo X, esse X não permite que o ato seja contrário a direito”, não entrando no mundo jurídico como ato ilícito. E mais: se, havendo X e pré-excluindo-se a contrariedade a direito, o ato não entra no mundo jurídico como ato lícito. Aduz que a legítima defesa se passa no mundo fático, não consistindo um direito subjetivo; ela “Opera fora do mundo jurídico, onde se compõem suportes fáticos, e exatamente um deles, o do ato ilícito, por ela ter ocorrido, não se compôs”. Exemplifica: “De um lado, há o ato, contrário a direito, de A, ato que pode não entrar no mundo jurídico (e.g., se é do louco); do outro, o ato presente de B, que seria contrário a direito, se o ato de A não ocorresse, ou se fosse  indispensável para afastar todo ou parte do ato de A”. Aquele que defende legitimamente, algum direito, absoluto ou relativo, da personalidade ou não, age de onde está o agente, no mundo fático. (Op. Cit. P p. p. 279-281).

 Estabelecendo um paralelo entre a legítima defesa e o exercício do direito, pontifica o autor que, quando defendo um direito contra o atacante, exerço um direito (de personalidade) à liberdade, e “O valor do interesse do atacado, frente aos meus, é contemplado por mim, como titular de outro direito que aquele que foi atacado, e em relação com aquele que pode ser ferido pela defesa”. Existe, no caso, coordenação e não subordinação às regras do exercício dos direitos atacados. “A defesa do direito é assim não subordinada, mas coordenada, ao conceito de exercício do direito. Na legítima defesa, não: é ela coordenada ao conceito de exercício do direito, não subordinada a ele. Não há direito de legítima defesa, porque defender-se, na ordem fática, é como correr, comer, etc.” (Op. Cit., p. 289).

Ocorre que a doutrina, à exceção de renomados juristas, confrontados por PONTES, como FISCHER, VON TUHR, OERTMANN, BIERMANN, etc, não se debruça sobre essa indagação, dando como certa a natureza jurídica de direito subjetivo. Podemos percebê-la em DELIYANNIS:

“Un autre moyen exceptionel, par lequel l’ordre juridique réagit contre une conduite déterminée, est la  reconnaissance expresse d’un droit de légitime défense  contre cette conduite”. (DELIYANNIS, J. Op. Cit., p. 86).

A legítima defesa é corolário do direito à segurança de todos e reconhecido pelas legislações. Toda pessoa almeja sua segurança e a de seus bens e, quando os tem atacados por outrem, é-lhe assegurada uma reparação. Porém, aquele interesse à segurança não se justifica somente após o ato consumado, mediante indenização do dano e é, então, que a ordem jurídica intervém, visto que o indivíduo não deseja ver seus bens lesados, aspecto mais importante do que o caráter satisfatório, compensatório ou punitivo, encerrado na indenização.

É assente que a defesa privada no estado civilizado sofre proibição, todavia, por mais aperfeiçoado seja o aparelhamento protetor do direito, ainda assim não é ele onipresente para socorrer todas as ameaças de violação. Razão pela qual a ordem jurídica legitima a atuação do indivíduo, facultando-lhe defender a si ou a terceiro e seus bens jurídicos, em situações de iminente perigo. Dá-se contra ataques injustos e deve ser exercida dentro de certos limites, para a conservação dos direitos. Está aí, portanto o fundamento da legítima defesa. E, se não há ato ilícito, consequência alguma dele resulta, ou seja, a responsabilidade por dano ocasionado, e, só quando atinge terceiro ou se dá fora dos limites da defesa, admite-se o nascimento da obrigação, conforme será visto posteriormente.

Dentre as várias teorias jurídicas que fundamentam a legítima defesa (legitimidade absoluta- ela é um direito e um dever - IHERING; teoria do direito subjetivo público, de BINDING - é direito subjetivo público outorgado a todo indivíduo e que se harmoniza com a função do Estado; teoria da ausência da injuridicidade da ação defensiva - a defesa coincide com o fim do direito que é a incolumidade dos bens ou interesses, que coloca sob sua tutela), segundo HUNGRIA essa última é a mais aceitável e é a consagrada pelo nosso Código Penal. (Cf.HUNGRIA, Nelson; Fragoso, Heleno. Op. Cit., p. 281-283).

Por ser a noção de legítima defesa unitária, vale recorrer das disposições em codificações diversas. Nosso Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848, de 1940, com a redação dada pela Lei n. 7.209, de 1984, modificadora da Parte Geral) traça suas linhas conceituais, in verbis:

“Art. 25- Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

A expressão direito seu ou de outrem demonstra a amplitude do bem protegido, que pode recair tanto na própria pessoa, em outrem e nos seus bens, sendo esses tanto materiais quanto extrapatrimoniais, direitos hoje reconhecidos pela Carta Magna (honra, imagem, intimidade), artigo 5º., X, e Código Civil, arts. 11-21).

O próprio Código Civil, além dessa proteção genérica, prevê outra específica, precisamente o desforço in continenti na tutela da posse, desde que o possuidor o pratique logo:

“Art. 1210, parágrafo 1º - O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se, ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo;  Os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”.

Vale observar que PONTES DE MIRANDA só admite a legítima defesa no caso de turbação; na situação do esbulhado, é espécie de justiça privada (julgamento de mão-própria). (Cf. Op. Cit., p. 333).

No direito francês, a construção jurisprudência do século XX admitia concepção ampla de legítima defesa, incluindo a reputação:

“...Une menace aux biens suffit pour légitimer la défense, à condition bien entendu que cette défense n’excède pas l’attaque; une simple menace à la réputation peut être écartée en causant un dommage à celui qui cherche à tenir cette réputation...” (MAZEAUD, Henri et MAZEAU, Léon. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. Paris: Sirey, 1934, t. l, p. 464).  (Sobre legitima defesa da honra, confira nossa obra  Responsabilidade Civil por Dano à Honra, 2010 in : www.jus.com.br)

Para SAVATIER, a defesa pode ser dirigida contra agressão da integridade corporal de alguém, seja contra seus interesses morais, seja contra seus bens. (Traité de la responsabilité civile. Paris: LGDJ, 1939, t. l, p. 74).

A regra de ULPIANO vim vi repellere licet encerra a aplicação da auctoritas monastica. Os limites e extensão do direito de defesa são variáveis no tempo, entendendo-se, hodiernamente, aplicabilidade a todos os direitos, nem sendo mesmo necessária agressão ao direito, bastando uma ofensa que contrarie o direito.

O direito italiano (Código Civil, art. 2044) não se reporta às expressões consignadas no Código Penal Rocco, mas àquela do sistema ab-rogado, dizendo explicitamente da legítima defesa de si ou de outrem. Também aí surgiu a indagação se se estendia a bens e a outros direitos que não se ligassem à pessoa; conheceu-se a sua aplicação ampla, pela razão, entre outras, de que não parecia admissível que se quisesse dar no Código Civil de 1942 uma noção ultrapassada de legítima defesa. (Cf. D’AMELIO, M.; LA LUMIA, I.; BERNARDINIS, A. ; BRASIELO, T. Codice civile-libro delle oblligazioni. Firenze: Ed. G. Barbèra, 1943, v. lll, p. 240).

A justificação para a previsão jurídica da legítima defesa reside no fato, anteriormente mencionado, de que nem sempre é possível ao Estado evitar a violação de um direito, que poderá ser mesmo irreparável, fazendo-se necessário o indivíduo auto defender-se a evitar atentados contra sua pessoa, seus bens e contra outrem ou seus bens. A força é repelida pela força, desde que não sejam ultrapassados os limites da justa defesa. Nas mesmas condições em que é admitida a defesa própria, é admitida a alheia. Face à importância em prevenir todos os atos ilícitos, o Estado não deve retirar ao particular a faculdade, usando-se da força, e em prejuízo do agressor, repelir o dano que o ameaça em certo momento. Aceitando a legítima defesa de terceiro, a lei transforma cada cidadão em defensor do direito frente a quem, por meio de ato ilícito, coloca-se fora de sua proteção.

O ameaçado pode afastar de si o perigo com ofensa das pessoas ou das coisas das quais provém o perigo.

Para sintetizar a justificação de legítima defesa, lançamos mão da lição de CARVALHO SANTOS:

“O indivíduo exerce um direito ao defender sua pessoa ou seus bens, direito que emana diretamente da personalidade, no consenso geral dos escritores, e que lhe é outorgado ainda, implicitamente, pela sociedade, que, embora organizada satisfatoriamente, não pode, pelos seus órgãos protetores, evitar todas as violações do direito”. (CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil brasileiro interpretado. Rio Janeiro: Ed. Calvino Filho, parte geral, 1934, v. lll, p. 333).

Portanto, a ofensa de reação é lícita, não havendo nela direito lesionado; o que ocorre é a ação exercitada jure por parte de quem lesa, unicamente a fim de evitar dano/injúria iminente.

03 - LEGÍTIMA DEFESA E AUTOTUTELA OU JUSTIÇA DE MÃO-PRÓPRIA

Ambas não se confundem, por possuírem fundamentos diversos. Observa  PONTES DE MIRANDA que a autodefesa é a manutenção do estado presente, contra ataque contrário a direito (legítima defesa) ou por força física (estado de necessidade). A legítima defesa seria espécie do gênero autodefesa. A autotutela é a justiça de mão própria.  Na “Legítima defesa há, do outro lado, o ato presente, a contrariedade a direito, por parte desse ato; do lado do que se defende, a defesa (ato) indispensável ao afastamento do ataque, ou de parte dele - indispensabilidade que se há de apreciar objetivamente...”. Na autotutela ou justiça de mão própria “Há realização do direito objetivo e estabelecimento do estado de fato, que corresponda à incidência de regra jurídica, é a aplicação da lei pelo próprio interessado”. Na legítima defesa “Há ataque contra ataque”; ela “É sempre permitida (princípio da permissão da defesa própria); a justiça de mão própria, não: em princípio, é proibida, por existir o princípio do monopólio estatal”. Adverte sobre a confusão de muitos autores, em referência ao artigo 502 (atual 1210, parágrafo 1º), do Código Civil brasileiro, sobre a defesa da turbação da posse, que se caracteriza como legítima defesa e não justiça de mão-própria. (Cf. Op. Cit., p. 274, 275 e 321).

Igual distinção entre os dois institutos é feita por CLÓVIS BEVILÁQUA:

“A autodefesa destina-se a evitar o mal da violação do direito. A autossatisfação ou justiça particular propõe-se a restaurar o direito, que a agressão injusta fez sucumbir”.  Entende ser o desforço in continenti, no caso de esbulho da posse (anterior art. 502 C.Civil brasileiro), caso de justiça privada ou autossatisfação, pois a ofensa já está consumada. (Op. cit., V. I, 1931, p. 421).                     

04 - LEGÍTIMA DEFESA E ESTADO DE NECESSIDADE – PARALELISMO

Antiga doutrina por muito tempo confundiu os dois institutos. A legítima defesa e o estado de necessidade assentam-se em princípio comum: o direito de prejudicar, diferenciando-se quanto ao momento da consubstanciação do ato. No estado de necessidade, ocorre uma ação, ao passo que na legítima defesa há uma reação. Identificam-se quanto às circunstâncias de inevitabilidade e proporcionalidade do ato às suas finalidades. Enquanto na legítima defesa, a situação de perigo nasce da injusta agressão, no estado de necessidade ele resulta seja de caso fortuito, natural ou acidental, criado pelo próprio prejudicado ou também por terceiro. No estado de necessidade, o indivíduo erige-se como árbitro de uma situação e, diante de tal perigo, e não apenas possível, da ocorrência de um dano grave à sua pessoa, aos seus bens econômicos ou não econômicos ou a terceiro, dano esse não possível de ser evitado, ao qual não tenha dado voluntariamente causa, sacrifica o direito de alguém não culpado.

Na legítima defesa, outrora confundida com o estado de necessidade, há também o perigo em iguais circunstâncias, qual seja, iminente, acidental, inevitável, cabendo ao autor a escolha de sofrer o mal ou causá-lo; o agredido é o provocador e o perigo resulta da atividade humana. Já no estado de necessidade, o conflito entre os interesses próprios e alheios geralmente surge de caso fortuito ou acidente natural ou pela atividade do homem.

 Ao contrário da legítima defesa, onde não existe legítima defesa contra ato de legítima defesa, admite-se o estado de necessidade contra ato em estado de necessidade. A distinção de tratamento reside no fato de que, enquanto na legítima defesa a ação defensiva (reação) é motivada por agressão injusta, no estado de necessidade a ação defensiva pode ser dirigida contra um inocente. Destarte, na situação de dois náufragos e havendo uma só tábua de salvação, nenhum deles pode invocar a legítima defesa contra o outro, mas sim o estado de necessidade. (Cf. TOLEDO, Francisco A. Op. cit., p. 183).

O renomado CHIRONI sintetiza as diferenças já apontadas, embora registre isenção de imputabilidade ao agente do ato necessário:

“El estado de necesidad que la fuerza mayor supone despoja al acto del agente de la libertad de elegir y de querer que aquel debió de tener para realizarlo, quita la imputabilidad y elimina la responsabilidad;  en la legítima defesa... el acto se ejecuta con pleno derecho, al  cumplirlo rechaza la amenaza de una ofensa justamente tenida reobrando contra ella.” (CHIRONI, G.P. La culpa en el derecho civil moderno.Trad. 2ª. ed. por C. Bernaldo de Quirós. Madrid: Editorial Reus. T.ll, 1928, p.434).

Distinções entre os dois institutos deste tópico estão contidas no Nuovo Digesto Italiano (ALTAVILLA, Enrico. Torino: U.T.E.T., 1939, v. XVll, p. 966).

Traçando as dissimilações, consigna SERPA LOPES:

“...Enquanto a legítima defesa  é um ato cuja licitude está na proporção da ilicitude do ataque, o estado de necessidade pressupõe um perigo decorrente de uma causa não culposa, por parte do prejudicado. Na legítima defesa, repele-se um ataque injusto; no estado de necessidade, prejudica-se para evitar mal maior”. (SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. 6ª ed. R. Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1988., v. l, p. 486).

Diferem-se, outrossim, porquanto a legítima defesa, ato lícito, é, como tal, excludente da responsabilidade civil, o estado de necessidade, embora lícito, importa em indenização de prejuízos, expressamente prevista (artigos 929 e 930 do Código Civil brasileiro), se o dono da coisa não for culpado do perigo, quando o prejuízo ocorrer por culpa de terceiro, embora assista o direito de regresso ao agente em estado de necessidade.

Quando o ato atinge terceiro inocente, tanto na legítima defesa quanto no estado de necessidade, haverá a obrigação de indenizar. 

Em ambos, há autodefesa de interesses próprios ou de outrem. Na legítima defesa há, contra esses interesses, ato contrário ao direito; no estado de necessidade não há outro interesse contra os interesses ou outro direito contra direito. No estado de necessidade o dano é causado ao lesado sem a sua participação (provocação ou facilitação); na legítima defesa, o dano causado ao lesado resulta sempre de ato provocado por ele.

Examinados os pressupostos dos institutos sub cogitationis, podemos resumir: na legítima defesa há perigo iminente, inevitável e acidental, resultante de ato humano, donde o autor da lesão se vê na situação de causar um mal ou sofrê-lo. O ato é praticado pelo lesado, ou seja, o agredido provocou a situação repelida; no estado de necessidade, a situação perigosa é causada tanto pela atividade do homem, quanto por caso fortuito.

Enquanto na legítima defesa ocorre ataque a um bem tutelado, no estado de necessidade não existe agressão, pois cada um dos envolvidos defende seu direito. Neste, a ação é dirigida contra outrem sem relação com o fato; na legítima defesa, ocorre reação contra o agressor.

MAGALHÃES NORONHA exemplifica: “Se um ciclista vê que um automóvel está para ir de encontro a ele e lança mão de qualquer meio contra o chofer, para que se detenha na marcha, age em legítima defesa; se, entretanto, precipita sua bicicleta para o passeio ferindo um transeunte, atua em estado de necessidade em relação a este”. (NORONHA, E. Magalhães Direito penal. Saraiva, 1981, v. l, p. 209 e Ed. Rideel, 2009, p. 200).

Na lição do mestre AGUIAR DIAS, a noção dos dois institutos é posta dentro de uma mesma visão, embora reconheça que eles se diferem. “Cumpre notar que, entretanto, o estado de necessidade não se confunde com a legítima defesa. Esta é espécie, aquele é gênero. A legítima defesa é um estado de necessidade qualificado”. (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. R. Janeiro: Forense, 5ª. ed., 1973, v. ll, p. 292).

05 - ESTADO DE COAÇÃO

Ao contrário da legítima defesa, aqui o autor causa mal ao prejudicado (coagido), não com o fim de evitar mal para si ou a terceiro, tampouco age mediante pressão de perigo grave, iminente, inevitável e acidental. Age por interesse ilegítimo, pressionando o coagido, mediante ameaça. Fica o coagido com a opção de procedimento, colaborando para sua própria lesão, ao não resistir, diversamente da legítima defesa, cuja alternativa de reação ou não cabe ao autor da lesão.

06 - LEGÍTIMA DEFESA CONTRA ATO EM ESTADO DE NECESSIDADE

Na vivência jurídica, deparamo-nos com muitas situações que a doutrina poucas vezes esclarece. De rigor observar-se que, sendo ato de necessidade, não existe legítima defesa contra o mesmo, apenas contra o excesso ou contra o ato de necessidade putativo.

Havendo oposição do dono da coisa, há atuação contra direito e, nesse caso, o que vai remover o perigo poderá exercer a força, que não é, então, proibida, ou argui, posteriormente, a resistência do dono da coisa como ilícito, (Cf. PONTES DE MIRANDA. Op. Cit., p. 303).

07 - TUTELA PREVENTIVA E LEGÍTIMA DEFESA

Conforme veementemente enfocado por PONTES DE MIRANDA, fundado na teoria da extrajuridicidade, a regra jurídica sobre legítima defesa é pré-excludente de ilicitude; consequentemente, sua incidência localiza-se no mundo fático, fora do mundo jurídico, antes da juridicização dos fatos. Já a tutela preventiva cautelar encontra-se no direito e se faz presente, através de certos meios, como o arresto, o sequestro, o depósito, a penhora pelo credor de mão-própria (quando não há tempo de invocar-se a prestação jurisdicional). Aqui não se trata de legítima defesa, já que a justificação desta é a falta de rápida intervenção ou inadequada intervenção policial, para evitar o dano e não a ausência de proteção judicial. (Cf. Op. Cit., p. 281).

08 - LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA

Também denominada de descriminante putativa, imaginária ou irreal, caracteriza-se pelo erro de fato sobre a existência de estado de legítima defesa. Equivocadamente, o indivíduo supõe haver os elementos pré-excludentes do suporte fático do ato ilícito. Está fora do campo da verdadeira legítima defesa e não se faz necessária qualquer defesa.

Em verdade, não é legítima defesa, se houve negligência na apreciação errada dos fatos. No caso de legítima defesa putativa, em matéria penal, dependendo das circunstâncias, ocorre a figura do erro escusável, excludente do dolo, ou um erro decorrente de culpa, caracterizador do crime culposo. (Cf. ASSIS TOLEDO. Op. Cit., p. 260). Segundo o conteúdo do Código, não haverá isenção de pena se o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo ( art. 20, § 1º., C. Penal).

“Não existe dolo no pseudo defendente e trata-se, portanto, de dirimente”. O sujeito fica isento de pena, por agir imaginando que sua ação está de acordo com o direito, logo, sem consciência da antijuridicidade ou sem dolo. Nos termos do art. 20, & 1º. C.P., o erro deve ser plenamente justificado pelas circunstâncias: é necessário que seja invencível ou escusável, pois, não se caracterizando como tal, haverá culpa, praticando o agente o delito culposo. A legítima defesa putativa é incompatível com o dolo, porém poderá ocorrer excesso doloso. (Cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. R. Janeiro: Saraiva, 1990, V. I, p. 202 e ed. de 2009).

Na lição de AURELIO CANDIAN (direito italiano), “É aplicabile la giustificante della difesa legitima : e ciò perchè un testo di quel Codice dispone che, se l’agente crede per errore alla esistenza di circostanze excludenti della pena, queste sono sempre valutate a favore di lui (59 c. 3 p.)”.

Sobre essa aplicação em matéria cível, sempre com base nos princípios de aplicacão e interpretação da lei, entende que essa disposição é aplicável; não existindo aqui um princípio diverso que seja mais próximo à espécie. (CANDIAN, Aurelio. Nozioni istituzionali di diritti privato. Milano: Ed. Dtt. A . Giuffré, 1946, p. 138). Não se trata mais de excludente de ilicitude, mas de responsabilidade, salvo se o erro decorre de culpa do agente.

A legítima defesa putativa não se confunde com a legítima defesa excessiva (excesso de defesa); ambos não se incluem na configuração da verdadeira legítima defesa, mas, enquanto no  excesso ocorre inicialmente uma situação de legítima defesa, na legítima defesa  putativa  a agressão é imaginária, havendo suposição errônea, e não há defesa contra um perigo; há um suposto agredido que é o próprio ofensor, e este supõe legítimo seu ataque.

09 – OMISSÃO

Diz-se que a agressão deve consistir em atividade positiva, capaz de pôr em perigo a pessoa ou seus bens e que o ataque por omissão consistiria inadimplemento de obrigação. A PONTES DE MIRANDA o assunto merece maior atenção e cita um exemplo de atividade negativa que permite a legítima defesa. A contratou com B fechar a comporta, no seu terreno, em certa hora, diariamente, para que pudesse desligar a energia elétrica, e em certo dia B não pratica o ato ajustado, colocando em risco a vida dos operários ou bens de A. Sua atitude é negativa, é omissão por inadimplemento de obrigação. Seria injusto recusar a A  a legítima defesa, o qual poderá ingressar no terreno alheio e fechar a comporta. (Cf. Op. Cit., p. 286).

Lembra ORLANDO GOMES, com apoio em VON THUR, que o nexo causal, em se tratando de conduta omissiva, não deve ser tomado nas mesmas condições do fato comissivo. “O nexo causal pode estabelecer-se entre uma abstenção e um dano, no pressuposto de que aquele que não evita um fato danoso deve ser equiparado, para os efeitos jurídicos, a quem o pratica. Mas não se deve levar essa regra às últimas consequências, só se justificando sua aplicação quando aquele que se abstém, além de poder impedir o dano, estiver na obrigação de evitá-lo”. (Obrigações. 7ª. ed., R. Janeiro, Forense, 1984, p. 333).

LUDWIG ENNECCERUS não admite o ataque por omissão, como no caso de descumprimento de uma obrigação. (Cf. ENNECCERUS, Ludwig. Derecho Civil. Parte general. Barcelona: Bosch, 1944, v. II, 1ª. ed., p.535).

10 - PRESSUPOSTOS DA LEGÍTIMA DEFESA

Os Códigos Civis estrangeiros e o nosso, ao tratarem da legítima defesa, colocaram a figura, sem entrar nos detalhes. Do conceito extraído do direito penal, podemos destacar os seguintes requisitos ou pressupostos, sem os quais não haverá a legítima defesa, ou seja, o ato passaria a antijurídico. A doutrina é unânime quanto aos apontados pressupostos.

- A agressão deve ser atual ou iminente; prestes a ser levada a cabo. Deve haver uma situação de perigo de um dano potencial, não bastando apenas existir certa apreensão ou ameaça de ataque futuro. Pode até ser preparada contra ataque futuro, mas a reação deve aguardar a ameaça; dela exclui-se o ato consumado e, excepcionalmente, pode ocorrer por omissão. Não é exigida a necessidade inevitável da defesa, mas a atualidade ou iminência do ato agressivo.

Por agressão entende-se qualquer atividade, violenta ou não, que provoque uma ofensa, mas que não seja uma simples ameaça desacompanhada de perigo concreto e imediato, nem sendo mesmo necessário que a agressão seja dolosa; basta a culpa.

Exigindo o Código Penal (o que também prevalece para o direito civil), apenas a atualidade ou iminência da agressão, não requer que o reagente possa evitá-la, por outros meios, ou a tenha prevenido, para só então poder agir em legítima defesa.

De tal atitude do legislador decorre, em citação de caso concreto, que se o indivíduo fica ciente de que seu inimigo o espreita, em certo local, não necessita abster-se de sair à rua ou mudar seu itinerário, se não puder obter socorro da autoridade pública. (Cf. HUNGRIA, Nelson; Fragoso, Heleno. Op. cit., t. II, p. 288). Idêntica posição pode ser adotada pela doutrina e jurisprudência civis.

- A iniciativa da agressão deve partir do lesado, ou seja, não pode partir do agente a provocação, pois em assim agindo, colocaria este, em si, a causa do dano cometido ao lesado. Divergente, sustenta PONTES que se o agredido teve culpa na agressão, ainda assim pode defender-se legitimamente. O que é necessário é ser o ato do agressor contrário a direito, podendo ser sem culpa. (Cf. Op. Cit., p. 279). Esclarece ENNECCERUS que se o agredido provocou com intenção de determinar o ataque para, então, lesar o atacante, sob a aparência de legítima defesa, não haverá defesa, mas um ataque iniciado por provocação e continuado no ato de aparente legítima defesa. (Op. Cit., p. 535).

- A agressão deve ser injusta, ou seja, contrária ao direito. Com supedâneo no caráter injusto da agressão, que se caracteriza como dado objetivo, para SERPA LOPES é indiferente que o atacante seja ou não capaz, o que quer dizer que o ato ofensivo pode provir tanto do incapaz, louco, homem são, menor. (Op. Cit., p. 482). Para ENNECCERUS, é exigido apenas o lado objetivo da lesão ao direito, e não a antijuridicidade subjetiva( o dolo ou a culpa do atacante). (Cf. op. Cit., v. II, 1944, p. 535).

Segundo alguns, o agressor deve ser capaz de agir voluntariamente contra o direito; quando o perigo promana de um amental, ou animal, a situação enquadra-se sob o estado de necessidade e não de legítima defesa. 

Contrariamente, diz o professor ANTÔNIO CHAVES que a irresponsabilidade é indiferente; justifica-se o direito de prejudicar, independentemente de um ato doloso ou culposo do agente. (Cf. CHAVES, Antônio. Tratado de direito civil. 3ª. ed. S. Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982, v.l, t.II, p. 1565). Se o ato provém do inimputável, esse ato não é culpável, mas é antijurídico. É o quanto basta.

Igual opinião tem PONTES DE MIRANDA: ela pode ser contra ato do absolutamente incapaz, não dando razão a Köhler. (Op. Cit., p. 276).

-Os meios empregados devem ser adequados para a defesa. Se o indivíduo repele o ataque pela força, em situação que possa recorrer à força pública, comete excesso.

A doutrina italiana, com base nas disposições do Código Penal de Rocco, lembra que, para haver estado de defesa, é mister que essa seja proporcional à ofensa. Evidentemente que, quando essa proporcionalidade não existe, por se achar fora dos limites de defesa, o fato deverá ser, então, considerado civilmente ilícito. Tem-se entendido que, para determinação da proporcionalidade, deve ter-se presente não apenas a importância da ofensa, mas igualmente a importância do direito que se quer defender. Cf. D’AMELIO, Mariano et FINZI, Enrico. Codice civile. Firenze: Ed. G. Barbèra, 1943, v. lll, p. 239).

No exercício da defesa, o estado de ânimo do agente é fator considerável, todavia, segundo a doutrina, a sua avaliação somente é feita em caso de excesso, donde se conclui: Quem excede voluntariamente, encontra-se fora dos limites de defesa. Quem excede involuntariamente, por erro determinado do caso, ou por erro de outra maneira inculpável (e é aqui que podem ser tomadas em exame as condições especiais subjetivas), entender-se-á considerado como em estado de defesa.

Pode ocorrer, ao contrário, que os limites são excedidos por imprudência, negligência e outros comportamentos análogos;  nesse caso, deve considerar-se como acontecido um fato culposo, penalmente incriminado, se o fato é previsto pela lei penal como delito culposo, e se considera, portanto, para todos os efeitos, fora dos limites da defesa. (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 239).

Se o ato de legítima defesa for excessivo, quanto ao excesso o ato é contrário ao direito. O ato excessivo não se confunde com a desproporcionalidade do dano causado por ele com o dano que causaria ou causou o ofensor. Ainda tem o agente a seu favor o estado psicológico em que se encontrava (terror, medo, distúrbio ocasional), justificativo da não incidência da lei penal.  Na esfera cível, é suficiente haver, no excesso, negligência ou imprudência. (PONTES. Op. Cit., p.277). Nesse caso, haverá ilicitude, tanto assim é que poderá haver legítima defesa contra o excesso, mas legítima defesa contra legítima defesa não existe.

Pode ocorrer, entretanto, legítima defesa real contra legítima defesa putativa. Se Tito, achando, justificadamente, que será agredido por Paulo e o fere e Paulo, mesmo ferido, agride violentamente Tito, o comportamento deste enquadra-se na legítima defesa putativa, excludente de culpa, e  a reação de Paulo caracteriza-se legítima defesa real, excludente de ilicitude.

A doutrina penal tem destacado a situação de deficiência de prova, a saber, precisamente, quem foi o agressor e o reagente. Diante da dificuldade em distingui-los, ocorre, nos casos concretos, a absolvição dos envolvidos, o que não quer significar o reconhecimento da reciprocidade de legítima defesa.

11 - MEIOS DE DEFESA – EXCESSO

Afirma-se que a legítima defesa deve ser analisada objetivamente, não tendo relevância se os meios utilizados pelo atacado lhe pareceram necessários, se não eram necessários, se não tinha ciência dos meios de que o atacante dispusesse a mais. Levam-se em conta os meios que o agredido dispunha para reagir e o meio de que se utilizou.

Na utilização dos meios de defesa, considerando-se a regra excludente de ilicitude, o atacado não pode ir além dos atos necessários para repelir a agressão. A dedução é lógica, pois se aí não se pudessem ser usados todos e somente os meios necessários, não haveria a situação de antijuridicidade.

“A intensidade e a extensão da agressão, mais as circunstâncias do caso, é que delimitam a intensidade e a extensão (mais as circunstâncias de defesa) dos atos com que o agredido há de procurar excluir, no mundo fático, a agressão”. (PONTES. Op. Cit., p. 282)

Consoante se vê, diante da circunstância, do caso concreto, é uma avaliação difícil ao lesado, em face de seu estado de ânimo, sendo muitos casos apreciados com pontos de vista discordantes, nos graus de jurisdição aos quais são submetidos.

O atacado deve utilizar o meio que cause menos dano ao atacante, quando essa possibilidade de escolha existir. Como se trata de reação inopinada, a escolha escrupulosa dos meios, bem como a dosimetria de cálculos, não constituem um dever de quem se defende. O que se exige é moderação ao revidar-se a provocação. Os autores que se apoiam no direito penal entendem como posto acima.

PONTES cita, a propósito dos meios necessários à defesa, algumas situações: se o ofendido deve fugir (havendo norma legal nesse sentido) e não o faz e prefere defender-se, não há legítima defesa ; se não há dever de fugir, porém a fuga seria meio menos danoso e não ofenderia outro direito do agredido ou de terceiro, a fuga seria meio de escapar, em vez de repelir; elide pela exclusão do alvo. Entende-se por dever de fugir, se a fuga é possível, quando o atacante é louco ou se encontra fora de si. Observa, quanto aos que estão fora de si, incluindo-se os embriagados, que as circunstâncias podem excluir o dever de fuga, se outro direito entra em causa, não podendo tratar no mesmo nível o louco e o embriagado. Observa, outrossim, que a legítima defesa há de ser julgada de acordo com o que ocorre objetivamente, e não de acordo com que o agredido pensou que existisse ou não existisse. Dessa forma, aquele que pode fugir da agressão do louco, mas se defende, mesmo não sabendo que o agredido era louco, não praticou legítima defesa, sendo o ato contrário ao direito. Igualmente, se o defensor pensou que o agressor tinha à mão uma arma e se defende, quando ele portava um lenço, usou meio de defesa excessivo e responderá pelo dano (Cf. Op. Cit., p. 283).

Dentro da linha do pensamento acima, podemos citar a doutrina italiana, reconhecendo que, em qualquer caso no qual pudesse ser evitado o dano, não ocorrerá estado de necessidade. Exemplifica com a situação de um louco armado e o agente, em vez de fugir, mata-o. “Si immagini che alcuno inseguito da un folle armato, e conoscendo le sue condizione mentali, invece di cercare rifugio in casa, preferisse ucciderlo, egli non agirebbe in stato di necessità.”(ALTAVILLA, Enrico. Nuovo Digesto Italiano. Torino: U.T.E.T., 1939, XVll, p. 967).

O autor insere-se na corrente que classifica o ato do amental  como estado de necessidade e não como legítima defesa. Ponderamos, entretanto, que a agressão do louco é ato antijurídico, comportando a reação de legítima defesa, ainda mais quando se desconhece seu estado de insanidade; conhecendo-se esse, sendo possível a fuga, esta seria meio menos danoso.

Seria estado de necessidade se, ao fugir do louco, o atacado arromba casa de outrem, para aí refugiar-se.

Aos meios necessários refere-se o Código Penal (art. 25) “usando moderadamente dos meios necessários” e, por aí se vê que não há conflito com o direito civil.

No direito francês, PLANIOL e RIPERT enfocam o critério da proporcionalidade, divergindo da posição de outros autores:

“La defensa puede hacerse por cuantos medios sean propios, variando según el bien que se halle en peligro y el modo de ataque (3). Lo único que se exige es que sea proporcional al ataque”. (PLANIOL, MARCEL et RIPERT, George. Tratado practico de derecho civil francês. Trad. Dr. Mario Dias Cruz. Habana: Ed. Cultural S/A . 1946, t. Vl, p. 777).

Entre nós, WILSON BUSSADA, com referência ao artigo 502 (atual 1210, parágrafo 1º) do Código Civil e, referindo-se à defesa privada, em caso concreto chegado aos nossos tribunais, cita decisão que concluiu ter havido uso imoderado dos meios necessários para repelir a agressão.

Versava o caso sobre animal, abatido na lavoura do réu, e que provocava estragos em suas plantações. Entendeu o tribunal que os meios não foram adequados; caberia indenização ao dono da plantação e não o sacrifício do animal. (Cf. BUSSADA, Wilson. Código Civil brasileiro interpretado pelos tribunais. Ed. Liber Juris LTDA. V. 1, t. III, p. 57).

Ainda quanto aos meios de defesa uma observação deve ser feita quanto às denominadas ofendículas.  Considera-se como tal a defesa por meio de aparelhos, cães ferozes, certos engenhos, etc. Reina divergência quanto a localizá-las como legítima defesa ou exercício regular do direito. ASSIS TOLEDO prefere situá-las no capítulo da legítima defesa, pois sua potencialidade agressiva “Encontra melhor solução dentro das exigências da legítima defesa, sendo tolerados quando colhem o agressor, sendo censurados quando acertam inocentes” (Op. Cit., p. 194).

A doutrina penal diverge a respeito da colocação e a jurisprudência civil tem-nas situado, em grande maioria, como exercício do direito.

Com acerto, ANÍBAL BRUNO enquadra-as como exercício de direito, ao fundamento de que os aparelhos defensivos da propriedade destinam-se a funcionar no momento do ataque; são colocados antes desse fato, ou seja, a ação do sujeito é anterior, enquanto na legítima defesa o ato deve ocorrer necessariamente durante ou na iminência do ataque. Ainda: a atuação do aparelho é automática e uniforme, não podendo ser graduada em consonância com o ataque, e o critério da proporcionalidade, requisito da legítima defesa, não se verifica. Arremata, dizendo que “Salvo em casos excepcionais, a predisposição de aparelhos que matam indiscriminadamente o atacante não constitui exercício, mas abuso do direito...” (BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 5ª. ed. Rio Janeiro: Forense, 2005, t. II, p. 5).

A defesa dentro dos justos confins de sua natureza é registrada por CHIRONI, aduzindo que os pressupostos têm de ser examinados em relação à pessoa que se defende; porque, segundo suas condições pessoais, examinadas ao tempo e lugar onde a ameaça se realiza, é como deve determinar-se a gravidade da preocupação e a faculdade ou poder do agente, para adequar e medir a defesa, para que não exceda do perigo que com ela cuida-se evitar. (CHIRONI, G. P. La culpa en el derecho civil moderno. Trad. C. Bernaldo de Quirós. Madri: Reus, 1928, T. II,  p. 385, 386).

O excesso de defesa caracteriza-se como agressão injusta. Entende-se no tocante a ele, que a razão da responsabilidade reside mesmo na culpa. Na interpretação da lei civil, para a doutrina italiana, faz-se mister afastar-se um pouco da interpretação da lei penal. Nesta, a incriminação dos fatos culposos é excepcional, restringindo-se às hipóteses previstas expressamente. Pode ocorrer que, na defesa, exceda-se culposamente, porém o fato não seja previsto pela lei penal como delito culposo. Essa imprevisão legal não afasta o reconhecimento da culpa e consequente ressarcimento do dano, em esfera cível. Destarte, se alguém excede na sua defesa e provoca dano à propriedade de outrem, estará isento em instância penal, porque a norma atinente não admite o dano culposo, mas será responsável no juízo cível. (Cf. D’AMELIO, M. et LA LUNIA, I. et BERNARDINID, A .  Op. Cit., p. 240).

 Para medir a adequação ou excessividade da defesa não se deve instituir o confronto entre o mal sofrido ou ameaçado e o mal infligido por reação, podendo ser este último de extensão superior ao primeiro, sem que por isso ocorra menos a justificante. O confronto, ao contrário, faz-se através dos meios reativos que o agredido tinha à própria disposição, e os meios utilizados. Para avaliar se ali ocorre proporção ou excesso deve-se considerar, além disso, as condições pessoais do agredido em relação àquelas do agressor. (Cf. CANDIAN, Aurelio. Nozioni istituzionali di diritto privato. Milano. Ed. Dott. A .Giuffrè, 1946, p. 138).

O Código Penal brasileiro pune o excesso, a título de dolo ou culpa, em todas as situações de exclusão de ilicitude (art. 23, parágrafo único). Na legítima defesa, configura-se o excesso quando, após a reação justa (emprego de meio moderado e dentro do necessário), o agente excede-se, intensificando, sem necessidade, aquela reação no início justificada. Será doloso, se ele age conscientemente além do necessário; será culposo, quando por imprevisão à gravidade do ataque ou modo de repulsa ultrapasse o necessário. Responderá pelo ato excessivo. O excesso doloso não exclui a própria legítima defesa, mas apenas a defesa a partir do ato excessivo, quando, então, haverá responsabilização como ato ilícito. (Cf. Noronha,  E. M. Op. Cit., 1990, v. I, p. 202 e ed. 2009, p. 2006).

Em sede civil, haverá o ilícito naquilo que for além da defesa, pois é quando ocorrerá o abuso de defesa. Se revido um tapa na face com outro e derrubo o agressor, que não se encontrava armado, defendi-me legitimamente. Se, após tê-lo levado ao chão, continuo desferindo-lhe fortes golpes, excedo os limites da própria defesa, seja por dolo ou culpa.

Em relação à proporcionalidade entre o ato de legítima defesa e o perigo  o Código Civil (art. 188 § único) a ele se refere na situação de necessidade e nada dispõe quanto a isso na legítima defesa. PONTES leciona que a analogia quanto a esta última deve ser afastada. A legítima defesa não tem de ser proporcional; ela não deve ser desproporcionadamente excessiva e as circunstâncias em que o atacado podia defender-se têm de ser levadas em conta. Não se recorre à analogia com o estado de necessidade, e o princípio da limitação da defesa deve ser extraído do próprio art. 160 – atual 188, I). O artigo 25 do Código Penal serve melhor para interpretação do que o conteúdo do parágrafo único do art. 160 (atual 188,I). Seria exigir demais que o atacado só se defenda, se o meio utilizado não puder causar mal maior ao atacante do que o mal que  seria causado pelo perigo, mas seria absurdo deixar toda medida à ética. (Op. cit., p.289).

12 – SUJEITOS

Dentre os pressupostos de existência da legítima defesa, a lei penal (art. 25) refere-se à injusta agressão, ou seja, contrária ao direito, sem causa legal. Em face dessa contrariedade, poder-se-ia concluir que a agressão provenha de qualquer indivíduo ou seria o caso de se exigir capacidade de entender o caráter da ação injusta? Poderia ser o ataque fato de coisa?

Sustentou-se, na doutrina francesa, que não era necessário fosse o ataque fato do indivíduo, podendo consistir em atividade de uma coisa e que nem mesmo o agressor fosse capaz de discernir a injustiça de seu ato.

DELIYANNIS indaga qual o interesse superior que justifica o reconhecimento do direito de defesa nesses casos. Entende que ele não existe aqui. Para que a balança da justiça penda do lado da vítima da agressão, é necessário que a ordem pública fosse perturbada por parte de outrem, em seu detrimento, de uma maneira injusta. Portanto, a injustiça da agressão supõe necessariamente o fato de um homem capaz de discernir o caráter injusto de seu fato.

Havendo defesa contra fato de coisa ou de pessoa irresponsável, ela perde seu caráter de justiça, ocorrendo um ato ilícito. Na maior parte dos casos haverá exoneração de toda responsabilidade, entretanto, em virtude de outro princípio, porque, se o ato não é mais um ato de justiça, na maioria das vezes ele não se torna um ato necessário. (Cf. Op. Cit., p. 201). Seu ponto de vista é contrário ao de festejados autores que citamos.

Por seu turno, SAVATIER não diz se essas situações caracterizam-se como estado de necessidade, admitindo que a defesa pode ser contra atividade de um coisa e que parece ser indispensável ter o autor da agressão capacidade de entender a injustiça do ato. Contudo, a tradição admite que a legítima defesa pode ser exercida contra um amental. (Cf. Op. Cit., p. 75). No direito português, encontramos antiga doutrina, segundo a qual a ilegalidade da agressão referida no artigo 46, l, do Código Penal, só era considerada em relação à materialidade do fato, o que independia de dolo ou culpa do agressor, portanto,  admitida a legítima defesa contra o privado do uso de suas faculdades mentais. (Cf. MOREIRA, Guilherme Alves. Instituições do direito civil português. Coimbra: Ed. Imprensa da Universidade. 1907, v. l, p. 641).

Para HUNGRIA, a inimputabilidade do agente não apaga a ilicitude objetiva da ação e “sua inclusão na órbita da legítima defesa importaria uma quebra dos princípios que a esta inspiram e regem”. A situação seria estado de necessidade. (Cf. Op. Cit., p. 296 e edição de 1978, p. 296).

Na doutrina italiana, a posição não é divergente da exposta. Quando o perigo parte de um furioso ou de um animal, poder-se-á dizer estado de necessidade, mas não de legítima defesa, o que tem importância prática, quando se pondera que, na primeira hipótese, pode ser reconhecida a obrigação de indenizar. (Cf. CANDIAN, Aurelio. Nozioni istituzionali di diritto privato. Milano: Ed. Giuffrè, 1946, p. 137).

Sem adentrar no estudo, CHIRONI admite o fato de coisa : “...Provenga de otra persona o de cosas ajenas” (Op. cit., p. 385).

Na doutrina civil brasileira, acertadamente anota PONTES DE MIRANDA que a legítima defesa pode ir contra ato do absolutamente incapaz, ou daquele que se encontra em estado de choque ou fora de si, “Porque aquele ato, embora não seja ilícito, e esse ato, ainda quando não o seja, são contrários a direito; e pode ser por parte do absolutamente incapaz”. Discorda de FISCHER que exigia, ao menos, capacidade relativa. Nem mesmo entende ser necessário que o são mental tenha conhecimento do direito que defende ou das suas circunstâncias. (Op. Cit., p. 282). A agressão pode vir de uma multidão, em tumulto, mesmo que nem todos queiram, cada um, a agressão.

12.1-PESSOA JURÍDICA

Justamente por recair a defesa legítima sobre qualquer direito e bens (patrimoniais ou extrapatrimoniais) e não apenas sobre a vida ou integridade física, igualmente os entes morais também têm o direito de defender-se sem incorrer em ilicitude. O artigo 25 do Código Penal consigna as expressões: “quem, usando moderadamente... direito seu ou de outrem”. Quem tanto significa pessoa física ou jurídica.

SAVATIER cuida especificamente do direito de defesa dos grupos. Todos os grupos de pessoas, que exercem atividade legítima ou aderem a certa opinião, têm direito de defesa contra ameaças (de suas atividades ou opinião) vindas do exterior. Cita as coletividades religiosas que podem expulsar de um templo alguém que perturbe a ordem ou impeça a realização de uma cerimônia religiosa. Mas são por motivos de ordem moral que os grupos religiosos se defendem. Sem incorrer em responsabilidade civil, eles podem prevenir seus membros contra publicações ou zombarias, contrárias ao seu respeito e decoro.

Os mesmos direitos existem também em relação aos demais grupos legitimamente constituídos. Uma associação é livre, em princípio, para recusar o ingresso de novo membro ou excluir os que não se ajustam com seus fins sociais ou aos seus estatutos.

Uma associação sindical, de trabalhadores ou patronal, pode usar de meios legítimos de defesa contra um grupo antagônico, embora a gama desses meios parece ter sido reduzida pela legislação social. Existem procedimentos obrigatórios de conciliação antes de toda greve ou do “lock-out”. Finalizando, diz aquele autor:

“Les droits de légitime défense d’un groupe sont plus largement construits que ceux des individus, en ce que leur exercice n’engendre aucune dette d’indemnité même si ceux contre lesquels ils s’exercent n’encouraient pas personnellement de responsabilité civile.”(SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: L.G.D.J., 1939, t. l ,p. 79-81).

13 - CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

No direito penal, vige o princípio segundo o qual, devido à importância dos bens protegidos por aquela Lei, o consentimento do ofendido não é causa de justificação ou excludente para o ato delituoso. Porém, tal princípio não possui aplicabilidade rigorosa, pois há direitos que são indisponíveis, como no caso do homicídio.

A doutrina exige os seguintes requisitos para o consentimento justificante:

- disponibilidade do bem jurídico. Se for indisponível, há ilícito;

- manifestação de vontade do ofendido, livre, sem coação ou qualquer vício de vontade;

- no momento do consentimento, o ofendido deve estar em condições de compreender o significado e consequências de  seu ato (capacidade);

- o consentimento deve ser anterior ao ato do ofensor;

- o fato do ofensor não pode ferir os bons costumes, a moral e a dignidade da pessoa humana;

- o fato típico penal ocorrido deve identificar-se com aquele que foi previsto e constituir em objeto de consentimento. (Cf. TEIXEIRA, Antônio Leopoldo. Da legítima defesa.  B. Hte.: Del Rey, 1996, p. 40).

Subsidiado em DELIYANNIS, expressa SERPA LOPES ser impossível o consentimento, quando se tem por objetivo um ato tipificado como delito penal ou quando o consentimento do lesado for insuficiente para suprimir a culpabilidade penal, como homicídio voluntário ou por imprudência, incêndio voluntário ou imprudente (Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. R. Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, v. V, p. 236).

O consentimento reveste-se das modalidades: direto e indireto. No primeiro, impõe-se à vítima manifestação direta que torna inequívoca a sua decisão de sacrificar um bem seu na expectativa da obtenção de outro. Dessa forma, se alguém não manifestar expressamente concordar com determinada intervenção cirúrgica, para amputação de um braço, responderá civilmente o cirurgião que a fizer sem o consentimento necessário.

No consentimento indireto ou aceitação dos riscos, o efeito traduz-se pelo adágio VOLENTI NON FIT INJURIA (não há injúria para quem quer), porém não chega ao extremo de acolher a máxima SCIENTI NON FIT INJURIA (não há injúria para quem sabe). Quem aceita participar de uma corrida esportiva está ciente dos riscos normalmente derivados da mesma, mas tal consentimento não se estende aos riscos anormais, como o caso de um jogador de futebol sofrer lesões, derivadas de comportamentos contrários às regras do esporte (Cf. Id. Ibid., p. 236).

PONTES DE MIRANDA situa o consentimento na ofensa como excludente de ilicitude. (Op. cit., p. 271). Tanto o Código Penal quanto o Estatuto Civil não o incluem expressamente entre as causas excludentes, todavia há doutrina penal reputando-o como causa supra legal de justificação “Quando se imponha de fora do tipo para a exclusão da ilicitude (o Einwilligung do direito alemão) de fatos lesivos a bens plenamente disponíveis por parte de seus respectivos titulares”. (TOLEDO, Assis. Op. Cit., p. 202).

Nota ASSIS TOLEDO que o consentimento do titular desempenha mais de uma função. Ora é elemento essencial do tipo, ora é irrelevante (homicídio), ora anula a própria tipicidade por excluir o dissenso da vítima que constitui elemento essencial do tipo (introdução de animais em propriedade alheia, apropriação indébita), ora atua como verdadeira causa de justificação (crime de dano, cárcere privado). Observa que não se inclui, nessa causa de justificação, as intervenções cirúrgicas, realizadas dentro das normas da arte médica. “Nesta hipótese exclui-se não só a ilicitude, mas também a tipicidade do fato, realizado não a dano, mas em benefício de quem suporta”. (Op. Cit., p. 202,203).

ASSIS TOLEDO, divergindo de HUNGRIA, defende a existência do consentimento enquadrado nessa causa supralegal, no direito brasileiro. (Cf. Op. Cit., p. 160).     

14 - BENS TUTELADOS 

O Estatuto Penal brasileiro (artigo 25) expressa: “... injusta agressão.. a  direito seu ou de outrem”. A acepção do bem tutelado deve ser tomada em sentido amplo: tanto se relaciona à própria pessoa, quanto aos seus bens jurídicos. O Estatuto Civil cuida, além da proteção genérica, de uma especial, a da posse, contida no artigo 1210, parágrafo 1º, desde que não haja excesso.

Não importa a natureza e relevância do direito agredido, pois que não se põe a questão subjetivamente e sim de forma objetiva. Não tem relevância se a ameaça consiste em agressão corporal, de leve gravidade, ou mediante arma, se é contra a propriedade, contra a honra, contra a vida; a legítima defesa é consentida em qualquer caso. Tem relevância, porém, o emprego dos meios necessários para repelir a agressão.

São defendidos legitimamente quaisquer direitos do indivíduo, inclusive a prova de direitos, as pretensões, ações, exceções. Pode ser a própria pessoa, os direitos da personalidade, o patrimônio, os direitos públicos ou privados, a posse, os direitos obrigacionais. (Cf. Pontes. Op. Cit., p. 275-276).

Quanto aos direitos da personalidade estes se classificam em: a) integridade física: vida, corpo, partes do corpo; b) integridade intelectual: liberdade de pensamento, direito pessoal de autor científico, artístico, inventor; c) integridade moral: liberdade civil, política e religiosa, honra, recato, intimidade, imagem, identidade pessoal, familiar e social.  Este elenco não é exaustivo.

Com a vigência do atual Código Civil italiano (1942), ao tratar dos fatos ilícitos, esse diploma fala explicitamente na legítima defesa de “Si ou de outrem”.

“Art. 2044- (legítima defesa). Non è responsabile chi cagiona il danno per legittima difesa di sé o di altri ”.

Surgiu, então, o questionamento em saber se estaria contemplada a defesa dos bens ou de outro direito não concernente à pessoa. Concluiu-se, posteriormente que, se também o direito não fosse atinente à pessoa, o ato de defesa não geraria responsabilidade civil. Mesmo porque não faria sentido dar no Código Civil noção ultrapassada de legítima defesa. (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 240).

15 - LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO

O conceito, pressupostos, alcance e limites do instituto da legítima defesa são carreados do diploma penal para o campo do direito civil, visto como o princípio em que se fundamenta a exclusão da ilicitude é o mesmo em ambas as esferas.

O Código Civil estabelece o direito de regresso contra terceiro culpado do perigo, a favor do autor do dano que ressarciu o dono da coisa, em ato de necessidade (art. 930). O parágrafo único deste artigo estende a ação regressiva contra aquele em defesa (legítima defesa) de quem se causou o dano. É de lembrar-se que a defesa de terceiro é também contemplada, sob outra figuração e pressuposto, pelo direito civil, reconhecendo a “gestão de negócios”. Não haveria, portanto, razão para excluir a defesa de terceiro, no cível, quando já assentada no direito penal. O parágrafo do art. 930 remete ao inciso I, do art. 188.

Ao estender a legítima defesa a terceiro, ou seja, o exercício da defesa por quem não seja titular do direito nem seu representante legal, a lei transforma o cidadão em defensor do direito em relação àquele que se encontra momentaneamente fora da proteção da autoridade (do Estado).

Os pressupostos para a defesa de terceiro são os mesmos da defesa própria, não exigindo a lei existência de qualquer relação jurídica entre o  ameaçado e o reagente, embora sustente PONTES que o princípio geral da legítima defesa é o de cada um defender seu direito, não podendo defender o de outrem, exceto na incidência de norma jurídica especial entre o titular do direito e o terceiro, ou gestão de negócios (negotiorum gestio). (Cf. PONTES. Op. Cit., p. 286).    

A relação que se estabelece entre o agredido e o terceiro defensor foi cuidadosamente examinada por PONTES. Para VON THUR, seria gestão de negócios. PONTES também a admite, excluindo as situações em que já existam outras relações: pátrio-poder, se a defesa entra no conceito de guarda;  tutores, curadores; pedido de auxílio a pessoa incerta, caso em que a relação seria mandato;  dever de defesa comum, como quando o terceiro e o agredido são marido e mulher ou sócios de sociedade  empresarial, e o ataque foi de causa estranha à comunhão ou sociedade. Sendo gestão de negócios, a defesa ou é de acordo com o artigo 1331 (atual art. 861 - ato jurídico  stricto sensu - conforme o interesse e vontade presumível do agredido)  ou é ato-fato ilícito (atual art. 862 - contra a vontade do agredido). (Cf. Op. Cit., p. 284).

Não será legítima a defesa se o ofendido consentir nela, e o terceiro nela intervém, como consequência lógica da aplicação da máxima Volenti non fit injuria (não se faz injúria a quem consente), observando-se a relatividade da aplicação desse princípio.

Igualmente não será legítima, se o agredido recusa a defesa. O procedimento de terceiro entra no mundo jurídico, portanto, como ato ilícito. “Há o princípio da legítima defesa própria ou alheia, cuja incidência somente se exclui onde a vontade do agredido pode excluir”.

A defesa da posse é admitida pelo possuidor imediato ou direto (locatário, usufrutuário, credor pignoratício) e se fundamenta em relação existente entre o possuidor direto e o indireto. Mas pode haver defesa da posse pelo possuidor direto contra o possuidor indireto (proprietário) se esse invade os poderes de utilização do possuidor direto. Indaga-se se pode haver defesa da posse por terceiro - que não seja servidor da posse - (art. 487 – atual 1198), ou seja, se o artigo 502 (atual 1210, § 1º) é exceção ao artigo 160,I, primeira parte (atual 188). Estudos antigos (Neubecker) respondiam que não, por se tratar de agressão à coisa e a ofensa à propriedade, ofensa à pessoa. PONTES, àquela época, rechaçou a argumentação, pois “O pôr a posse fora da esfera do direito poder-se-ia admitir, mas fora da esfera da personalidade, onde estaria, no entanto, a propriedade, é difícil de entender-se”. (Cf. Op. Cit., p. 285).

A questão reside em examinar se, no caso de posse, a gestão de negócios é permitida (arts. 861-875). Considerando-se que a legítima defesa opera no mundo fático, é fácil perceber que tanto é contrário a direito “Violar direito” quanto ”causar prejuízo a outrem”. O artigo 502 (atual 1210, § 1º) estendeu a legítima defesa à posse, e não consiste limitação ao artigo 160, I, 1ª parte (atual 188).

Conclui o autor supra que, nos casos de relação entre o agredido e o terceiro ou em caso de gestão de negócios, não há justificativa para exclusão da legítima defesa da posse por terceiro. (Op. Cit., p. 286).

Relativamente ao instituto da posse, no direito brasileiro, anotamos que o Código Civil adotou a teoria objetiva (Ihering), não exigindo a intenção de possuir como dono, como não requer o poder físico sobre a coisa; consiste na relação de fato entre a pessoa e a coisa, com o fim da utilização econômica desta. Caracteriza-se pela exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono - visibilidade do domínio (art. 1196). Mas não é possuidor aquele que conserva a posse em nome de quem se acha em relação de dependência ou em cumprimento de ordem ou instrução daquele em cuja dependência se encontra (art. 1198 - detenção). Também não induzem em posse os atos de mera permissão ou tolerância (art.1208). (Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio Janeiro: Forense, 2005, v. IV, p. 18-23).

Tratando-se da natureza jurídica da posse, modernamente é considerada como sendo um direito real, com todas as suas características: oponibilidade erga omnes, indeterminação do sujeito passivo, incidência em objeto obrigatoriamente determinado, etc. (Neste sentido confira Caio Mário. Op. Cit., p. 27), embora não esteja elencada no art. 1225 dentre os direitos reais.

16 - LEGÍTIMA DEFESA QUE ATINGE TERCEIRO                                                                                                                                                                           

A ordem jurídica reconhece a defesa de quem é agredido contra o agressor, pois esse está ingressando na esfera jurídica de outrem contra o direito, causando dano. Vige no nosso sistema jurídico o princípio de que o dano deve ser reparado, seja diretamente por quem o causou ou pelo seu responsável. A isenção da reparação está registrada expressamente, seja como excludente de ilicitude, seja como de responsabilidade.

Ao assentar a defesa do agredido como legítima, o direito a reconhece em relação à vítima que provocou a defesa/dano. Se o dano atinge terceiro ou coisa de terceiro, ele é indenizável, porque, então, adentra no mundo jurídico como ato contrário ao direito, visto que o terceiro não integra a relação que legitima o ato de defesa, seja por exceder o agente os limites de defesa, seja por imperícia, no ato de defesa ou imprudência, pela avaliação errônea da reação, em resumo por qualquer erro de conduta.  Não ocorrendo erro, o terceiro atingido tem direito à reparação, pois aí já não se trata mais de defesa e é contrário a direito ofender a esfera jurídica alheia. Basta a contrariedade a direito, independente de ser culposo o ato.

Nessa circunstância, se Tito defende-se de Paulo e atinge Cícero, contra este último não se cogita de legítima defesa de Tito. Em outra situação, se Tito defende-se de Paulo e, para tal, necessita usar coisa pertencente a Cícero, ocorrendo dano a esta coisa, não se fala em legítima defesa, mas a hipótese insere-se em estado de necessidade. Tito ressarcirá Cícero do prejuízo, cabendo-lhe ação regressiva contra Paulo.

A previsão de indenizar terceiro inocente está contida no artigo 930, do Código Civil, “in verbis”:

“Art. 930. No caso do inciso II, do artigo 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano com ação regressiva, para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Parágrafo único - A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, n. I).”

Observamos que a reparação ao terceiro inocente atinge qualquer bem jurídico e não apenas a vida e integridade física.

Idêntica discussão reinou no direito italiano. “Sarà da adottare la stessa soluzione anche in materia civile”, indagava CANDIAN. Em instância penal, subsistia a justificante de legítima defesa, mesmo quando por erro no uso dos meios de defesa ou por outra causa a defesa atinge pessoa diversa daquela que determinou o perigo.

Aduz o autor que a identidade de noção e disciplina do instituto, em matéria penal e cível, teoricamente induziria a responder em sentido afirmativo. Porém, examinando os artigos 2045 do Código Civil italiano (estado de necessidade - cabe indenização ainda que o agente tenha praticado o ato mediante coação psíquica), 2047 (indenização pelo autor do dano, ainda que psiquicamente inimputável por defeito de consciência ou vontade), artigos que indicam a mitigação dos princípios da responsabilidade e da inimputabilidade com o da defesa do interesse de outrem, concluía haver condenação à indenização para aquele que, agindo por legítima defesa atinja pessoa diversa do agressor. (Cf. Op. Cit., p. 137). Atualmente não há qualquer discussão sobre esse ponto.

17 - DIREITO POSITIVO ESTRANGEIRO

Não pretendemos, dentro da síntese à qual nos propusemos, neste trabalho, tecer uma abordagem comparativa dos direitos, mas, apenas, deixar registrada uma amostragem simples da previsão do instituto, em comento, feita por alguns códigos estrangeiros, principalmente porque se percebe que não houve preocupação em dar ao mesmo tratamento amplo em sede civil.

- No Código Civil português, aprovado pelo Decreto Lei n. 47.344, de 25 de novembro de 1966, atualizado em 17.4.2006 (Lei 6.2006), encontramos as disposições seguintes :

“Art. 337 (legítima defesa)

Considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou patrimônio do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.

2. O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente”.

“Art. 338 (Erro acerca dos pressupostos da ação direta ou da legítima defesa)

Se o titular do direito agir na suposição errônea de se verificarem os pressupostos que justificam a ação direta ou a legítima defesa, é obrigado a indenizar o prejuízo causado, salvo se o erro for desculpável.”

O Estatuto Civil português dispõe, no subtítulo IV, sobre o Exercício e   Tutela  dos Direitos, contemplando o abuso de direito, a colisão dos direitos, a ação direta ou justiça de mão própria, a legítima defesa, o estado de necessidade, o consentimento do lesado (arts. 334 a 340).

Traça o conceito de legítima defesa, estabelecendo seus pressupostos e limites. Aceita o excesso, desde que resulte de perturbação ou medo não culposo, o que quer significar: havendo excesso culposo é afastada a excludente (ato justificado, na expressão do artigo).

Admite a legítima defesa de terceiro. Quanto aos sujeitos e bens tutelados, diferentemente da Lei Penal brasileira, que se refere à agressão a “direito seu ou de outrem”, a Lei portuguesa emprega a expressão “contra a pessoa ou patrimônio”.

Ora, se a noção de patrimônio encerra o conjunto das relações jurídicas de alguém, apreciáveis economicamente, outros direitos e bens estariam excluídos, o que não condiz com a evolução e finalidade do instituto. Poder-se-ia refutar, no caso, que a expressão patrimônio seria genérica, englobando o denominado, por alguns, por “patrimônio moral”.

Retira a legítima defesa putativa (art. 338) da licitude, impondo obrigação de indenizar, exceto se há erro desculpável. Adere ao critério da proporcionalidade entre o dano evitado com o dano causado, na mesma linha que já expusemos, ou seja, a legítima defesa não tem de ser proporcional, apenas não pode ser desproporcionalmente além do necessário (“ato não seja manifestamente superior ao que pode resultar a agressão”).

O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), de 1900, deu tratamento genérico ao instituto, no  § 227, dentro da seção -  compreendendo os parágrafos 226 a 231 - que cuida do Exercício dos Direitos, Legítima Defesa e Justiça Privada, Estado de Necessidade e Abuso do Direito (ao expressar Proibição de “chicana”-exercício do direito apenas com o fim de causar dano a outrem). 

“§ 227 - Um ato imposto por legítima defesa não é antijurídico.

Legítima defesa é aquela defesa que é necessária para afastar, de si, ou de outrem, um ataque atual contrário ao direito”.

Infere-se, do exposto, que deve haver recurso ao Estatuto Penal, a fim de melhor compreensão e aplicação do instituto. São pressupostos: contrariedade ao direito, ataque momentâneo, ataque dirigido ao reagente ou a outrem.

No Código Civil italiano, de 1942, inclui-se a legítima defesa a par do estado de necessidade, no título IX, que cuida dos fatos ilícitos, em idêntica linha ao Código Civil brasileiro, exceto ao não consigná-la como excludente de ilicitude. Não é expresso o exercício regular de direito reconhecido, mas há previsão do uso dos atos emulativos em relação à propriedade (art. 833), embora não seja norma geral.

“Art. 2044 - (legittima difesa). Non è responsabile chi cagiona il dano per legittima difesa di sé o di autri .”

Remetia ao Estatuto Penal. Por isso os autores defendiam, por sua natureza, uma noção unitária de legítima defesa, sendo legítimo valer-se das várias disposições que a disciplinam os diferentes Códigos. São requisitos: a atualidade do perigo, injusta ofensa. Estranhamente não se refere o Código Civil à excludente de ilicitude, mas de responsabilidade, o que é diverso, pois, na última situação o fato do reagente entra no mundo jurídico como ato ilícito.

Atualmente, com a evolução doutrinária e jurisprudencial, entende-se que é aplicável a todos os direitos, e não somente à própria pessoa ou outrem.

No Código Civil francês (legislação antiga - Decreto de 1803), não há previsão, carreando-se a sua disciplina do Código Penal. É direito reconhecido pela equidade. A jurisprudência civil fez, ela mesma, aplicação expressa dos artigos 328 a 329 da Codificação Penal. Assentou que o art. 328 (legítima defesa) consiste na aplicação de um princípio geral, que vale universalmente, mesmo na ausência de texto legal. Leis posteriores previram-na, como o Código Rural (Lei 4 de abril/1889), Lei de Imprensa ( 29/junho/1881), etc.


CAPÍTULO III - EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO RECONHECIDO

01 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Os caracteres fundamentais do exercício do direito e seu abuso foram aplicados em algumas instituições do direito romano clássico, embora os princípios não se achassem generalizados. Os aforismos invocados de há muito pela doutrina ( Nullus videtur dolo facere qui  suo iure utitur - não é reputado obrar com dolo, quem usa do seu direito;  Nemo damnum facit, nisi qui id facit quod facere ius non habet - ninguém causa dano, senão quando faz algo a que não tem o direito de fazer)  não tiveram aplicação literal e absoluta. Informa BEVILÁQUA: “Cícero afirma, positivamente, que o direito deve ter um limite :  summum jus summa injuria” ( justiça excessiva torna-se injustiça). “O fundamento de seu pensar está na ideia moral da solidariedade humana, digamos, se é lícito exprimir por uma palavra moderna um sentimento antigo homines hominum causa esse generatos, ut ipsi  se, aliis alli prodesse possint” ( Os homens foram gerados por causa dos homens, para que possam ser úteis uns aos outros) . (Op. Cit., V. I, p. 424).

Em Roma, todos os direitos deviam ser exercitados com moderação e de acordo com o fim da instituição a que serviam. Afora o enunciado de Cícero, não se enontra, no direito romano, outro texto geral, amplo, comprensivo, categórico e expresso, que moderasse o rigor das mássimas referidas para todos os casos. (Cf. AGUIAR, Henoch. Op. Cit., p., 101)

Não foram somente os filósofos; os jurisconsultos reconheciam a necessidade de sobrepor o interesse público ao particular. Papiniano asseverou: Nam propter publicam utilitatem, strictam rationem insuper habemos : ... nam summam esse rationem quae pro religione facit (Diante da utilidade pública... devemos relevar a razão particular...pois o direito relativo à religião é maior).                                                                                                                                                                                     O imperador Leão declarou que nossos direitos devem ser exercidos sem propósito de prejudicar os dos outros. (Cf. BEVILÁQUA. Op. Cit., p. 424).

No antigo direito espanhol, uma Lei das Partidas, após determinar quais obras os homens não podiam fazer, que impedissem o curso das águas por onde antes costumavam correr, concluía que mesmo que o homem tenha o poder de fazer no que é seu aquilo que quiser, deve fazê-lo de modo que não acarrete dano, nem prejuízo a outro. Após examinar comparativamente as leis das Partidas, referentes ao uso do direito, com o direito romano, HENOCH AGUIAR arremata:

“Así, el mismo pensamiento aparece en las leyes romanas y en las partidas, o sea, que el acto ejecutado por el propietario, dentro de lo suyo, no estaba permitido en el caso particular de que tratan ambas leyes, si lo ejecutaba com ánimo de perjudicar y no le fuese necesario para mejorar su propia herdad.” (Op. Cit., p. 103, 104).

No direito medieval, a palavra emulação significava intenção de prejudicar ao executar um ato, realizado dentro dos limites traçados pela lei. A doutrina dos atos de emulação teve grande desenvolvimento no direito comum, tanto em matéria de direitos reais quanto obrigacionais, ao ponto que se proibiam os atos executados com animus emulandi, como ainda foram criadas presunções em grande número, destinadas a prová-lo, como a presunção de ausência de interesse legítimo por parte do agente ao realizar o ato que se cuidava impedir.  (Cf. Ibid. p, 105).

Dentro desse exame histórico-evolutivo, PONTES enquadra o exercício do direito dentro de um processo dialético. A antiga máxima, dotada de absolutidade, (TESE) Qui iure suo utitur neminem laedit - quem usa de seu direito a ninguém prejudica - foi aquebrantada pela Sumum ius summs iniuria - (ANTÍTESE). A SÍNTESE deu-se ou com a inclusão do abuso do direito na classe dos atos ilícitos, ou pelo emprego de regra jurídica de inclusão de enunciado proibitivo (como ocorre no BGB, § 226, no qual o exercício é proibido se apenas tiver por fim  causar dano a outrem), ou pelo enunciado de pré-exclusão de contrariedade a direito (não constituindo ilícito o exercício regular; contrario sensu, o exercício irregular ou abuso do direito são atos contrários ao direito). (Cf. Op. Cit., p. 291).

02 - CONCEITO

Partindo do aforismo romano de que o ilícito consiste em agir sem direito, agir contra o direito (agere sine jure, id est contra jure), a contrário sensu, o exercício de um direito não constitui contrariedade ao direito. Com supedâneo nesses princípios, as legislações civis normalmente pré-excluem de ilicitude o exercício de um direito reconhecido, ante a incompatibilidade lógica entre exercer um direito e o recíproco cometimento de ilícito.

“Il diritto soggetivo si esercita ponendo in ato - nei limiti consentiti dal diritto oggetivo - alcune o tutte le facoltà giuridiche, che potenzialmente sono in esso contenuto”. (AZZARATI, Francesco S. et MARTINEZ, Giovanni. Diritto civile italiano. Padova: CEDAM, 1943, t. I, p. 14).

A conceituação peca por levar em conta somente os limites impostos por lei. À ideia de exercer regularmente um direito reconhecido contrapõe-se ipso facto a de não causar dano a outrem, com seu uso irregular, o que encerra a figura de abuso do direito. Nem sempre o legislador fixa na lei limitação ao exercício do direito individual, fazendo com que surjam, na sua concretização, dificuldades originárias da extrapolação de seus limites.

O exercício do direito consiste na prática atuação do conteúdo do próprio direito, seja pondo em ação um, alguns ou todos os poderes que o encerram; é o fato material correspondente ao abstrato conteúdo de um direito. Pode consistir em ato único ou em atos sucessivos.

COVIELLO traçou as seguintes regras gerais relativas ao exercício do direito:

- Cada um é livre para exercitar ou não seus direitos; o exercício do direito é facultativo, não obrigatório, exceto quando se trata de direitos que são ao mesmo tempo dever, como os direitos do pátrio poder, tutela; (Aqui convém destacar que, no direito brasileiro, a propriedade é um direito, sendo, em contrapartida, um dever do proprietário destinar-lhe função social – art. 5º, XIII e também  art. 1228, Código Civil).

- O direito permanece sempre o mesmo, ainda que não seja exercitado; mas a falta de exercício prolongada, por tempo determinado pela lei produz, de regra, a sua extinção, o que ocorre não tanto como pena da inércia, já que o exercício do direito não é um dever, mas no interesse social principalmente;

- Cada um pode usar seu direito, como melhor lhe pareça e agrade, também usá-lo mal, salvo se a lei não impeça o mau uso, como ocorre no caso de prodigalidade, à qual a lei põe impedimento com o instituto da inabilitação; (Usá-lo mal não significa intenção malévola para atingir outrem).

- O titular de um direito pode fazer tudo o que é necessário para exercitá-lo (adminicula iuris). Assim, quem tem a servidão de tirar água, também tem o direito de passagem sobre a propriedade serviente, que é necessário para o exercício daquela servidão;

- Quem exercita um direito, como dele retira vantagens, desse modo deve suportar os ônus que acompanham seu exercício;

- O direito pode ser exercitado diretamente ou por meio de outrem; o exercício por meio de outrem tem a mesma eficácia que o exercício direto. Mas não é necessário para tal fim que se trate sempre de verdadeira e própria representação jurídica; pode bastar às vezes a referida representação econômica ou de interesses. A verdadeira representação, a jurídica, só é necessária para a conclusão de negócios jurídicos, não para os fatos econômicos que constituem o exercício de um direito, como seria o uso material da coisa, a conclusão dos trabalhos agrícolas, etc.: para estes basta que uma pessoa qualquer aja no interesse de quem aí tem efetivamente direito, ou por vontade da lei. Assim, possui-se por meio do inquilino, colono, comodatário, ainda que estas pessoas ajam, na realidade, no próprio interesse. Contudo, nem todos os direitos admitem a possibilidade de exercício por meio de outrem, como são, pela sua natureza, os direitos de família; e ainda entre aqueles que o admitem há alguns para os quais é excluído aquele modo especial de exercício por meio de outrem, que é a cessão do exercício do direito: assim ocorre para o direito real de uso (Cf. COVIELLO, Nicola. Manuale di diritto civile italiano-parte generale. Milano: Società Editrice Libraria, 1929, p. 483, 484).

A antiga máxima Quem, exercitando seu direito, ocasiona dano não é obrigado a ressarcir, nos tempos atuais, não pode ser tomada em caráter absoluto. O aforismo significa que o só fato de ocasionar um dano não inclui o  de repará-lo. Porém, como adverte LAURENT, é mister observar se o autor do fato danoso usou de um direito sem lesar o direito de outrem; então, não haverá ilícito e, consequentemente, obrigação de ressarcir o dano. Se, indagava o autor, cavando um poço em meu poder, corto a nascente que alimentava o poço do meu vizinho, causando-lhe dano, haveria obrigação de reparar. Alguns admitiam que não, porque nada mais fiz do que exercitar o meu direito, sem cometer culpa. A palavra culpa implica a restrição com a qual se necessita entender a máxima. Em verdade, não cometo culpa alguma, porque não leso o direito de meu vizinho; ele não tinha direito à água dessa nascente; ela pertencia ao proprietário do terreno no qual saía e o proprietário do terreno inferior só tem direito por efeito de uma convenção. Se não existe direito convencional e se não é adquirido o direito por prescrição, posso, como proprietário, usar da nascente e também exauri-la. Não incorro em culpa, pois que pratico o que posso fazer sem ferir o direito de meu vizinho. (Cf. LAURENT, F. Princippi di diritto civile. Trad. Alessio di Majo. Roma: Dott. Leonardo Vallardi, editore, 1881, v. XX, p. 311).

A exemplificação denota a complexidade da matéria, cujos confins muitas vezes tormentam o julgador, a saber até onde vai um direito e onde inicia o de outrem. Nas relações de vizinhança, sentindo que a proximidade acarretaria uma série de desentendimentos, os legisladores, em geral, disciplinam a matéria, estabelecendo os limites necessários. O nosso Código Civil de 2002 (art. 1310) bem como o Código anterior (art. 585) proibiram escavações ou obras que tirem à nascente ou ao poço de outrem a água necessária às suas atividades normais.  

 Nosso atual Código disciplinou a matéria de águas nos artigos 1288-1296. Dentre os regramentos ali traçados, chamamos atenção pela preocupação do legislador em preservar a função econômica e social dos recursos naturais pelo confrontante. Ao dono ou possuidor de prédio inferior tem preservada sua condição natural e anterior, que não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior (art. 1288). Também, o proprietário de nascente, uma vez satisfeitas as necessidades de seu consumo, não poderá impedir ou desviar o curso natural das águas para os prédios inferiores (art. 1290).

Como se vê, a situação exemplificada por Laurent, por ser obra antiga, é coberta de limitações no direito brasileiro.

   O Código Civil de 1916, em matéria sobre águas (art. 563 a 568), foi revogado pelo Decreto n. 24.643, de 10/julho/1934 - Código de Águas - que dispôs sobre nascentes e águas subterrâneas, nos seus artigos 89 a 101, regulando o direito de vizinhança.  Com o advento da Carta da República, segundo os arts. 20, III, e 26, todas as águas passaram a ser do domínio público (bens da União, Estados), extinguindo-se as águas particulares, na opinião de autores.  Nesse caso, o artigo 1290 citado acima estaria eivado de inconstitucionalidade. Mas não é ponto pacífico, e outros autores admitem ainda existirem as águas particulares, com argumentos lastreados nas legislações anteriores.

Outras limitações estão contidas na seção V (direitos de vizinhança – arts. 1277-1313), do capítulo I, título II (da propriedade) do Código Civil brasileiro.

03 – PRESSUPOSTO

O pressuposto básico do exercício do direito é a consciência de exercitar, quer dizer, os atos pelos quais se faz valer o conteúdo do direito ou alguns dos poderes nele compreendidos são realizados com a consciência de exercitar em todo ou em parte o direito em questão; onde falta tal consciência, não se pode corretamente pensar em verdadeiro e próprio exercício de direito, ainda que não ocorra que este efetivamente exista e pertença à pessoa que o exercita, quando, então, há o simples fato do exercício ou a aparência ou exteriorização do direito; e, tal aparência, sem assumir a natureza de direito, é, porém, protegida pela lei. (Cf. CHIRONI, G. et ABELLO, L. Trattado di diritto civile italiano. Torino: Fratelli Boca Editori, 1904, v. I, p. 577).

Em puro rigor, o exercício correto do direito não constitui ato ilícito, consequentemente não se pode falar em conflito de direitos, visto que se constituem harmoniosamente dentro de um mesmo sistema jurídico. Bem anota LISANDRO SEGOVIA:

“Los derechos son racionalmente armónicos y su conflicto no es posible, donde el uno acaba sólo puede empezar el otro, como las fincas contiguas que se tocan, pero no se superponen. No cabe exceso en el ejercicio del propio derecho”. (Apud AGUIAR, Henoch D. Hechos y actos jurídicos en la doctrina y en la ley. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1950, v. II, p. 96).

Cada direito tem seu raio de ação e seu exercício; só é legítimo quando se move dentro da área fixada na lei. Fugindo de sua órbita, ainda que originariamente tenha sido exercitado nos seus limites, atingirá o campo do direito alheio, surgindo o conflito.

Pode ser que a colisão se dê em virtude de exercício simultâneo dos titulares do direito, como também pelo ato de um deles, prejudicando o outro que se limita a manter o gozo de seu direito. O exercício do direito implica na obrigação correlata de não ultrapassar a área delimitada, seja com o próprio fato de seu exercício, seja pelas consequências que podem do exercício derivar.

Entretanto, os limites podem não estar fixados na lei e sim na natureza do próprio direito. Nesse último caso, reside o problema.

Enfoca HENOCH AGUIAR: “El  ejercicio del derecho para que no pierda su carater de acto lícito, debe verificarse dentro de los limites impuestos por la ley, ya se refieren ellos a la extensión del derecho o al modo de usarlo: Así, la licitud de aquel acto dependerá no solamente de que no haya extralimitación del derecho en sí; sino también de que lo ejerza normalmente, empleándose al efecto los medios permitidos por la ley. (Op. Cit., p. 97). Sintetiza o autor: “...El ejercicio propiamente dicho o la defensa del derecho,  cuando causan un daño a otro, sólo liberan de responsabilidad al titular, si procedió con la debida diligencia y atención para evitar aquel daño”. ( Op. Cit., p. 99).

Na efetivação do exercício tanto se compreende a sua atividade, ou seja, pô-lo em movimento, com o fim de retirar  as vantagens dele advindas  com seu gozo, quanto sua própria defesa frente a um atentado de alguém, até o momento de sua extinção. Defendê-lo é exercitá-lo.

Ambas as situações, para se revestirem de legitimidade, estão condicionadas pela lei, isto é, a realização submete-se aos meios e modos por ela determinados.

04 - COLISÃO JURÍDICA

O exercício do direito subjetivo consiste em pôr em ação uma, algumas ou todas as faculdades jurídicas que o contem, dentro dos limites traçados pelo direito objetivo e, nesse exercício, pode ocorrer que seu titular contraponha-se ao direito exercitado por outrem. A doutrina costuma denominar o conflito que aí se estabelece como colisão de direitos, colisão jurídica e mesmo colisão de interesses. Segundo alguns juristas, há conflito de interesses, não de direitos, pois não se admite que o direito objetivo estabeleça um direito, ao mesmo passo que permite  um direito contrário sobre o mesmo objeto. O interesse consiste na utilidade ou vantagem que a certo sujeito pode ser fornecida por um bem.

Parte da doutrina não endossa a existência de colisão de direitos. Na realidade, se o direito objetivo tem como função precisamente regular a colisão dos interesses individuais, tornando pacífica sua coexistência, seria inexato dizer, em tais casos, conflito ou colisão de direitos.

A coexistência dos direitos é harmônica, seja qual for a esfera em que forem previstos. Existindo uma norma penal incriminadora de certo fato e em determinados casos outra norma jurídica, mesmo extrapenal, permite-o ou mesmo impõe-no, não há que falar-se em existência de crime. Acentua NELSON HUNGRIA que, “ainda quando a norma de excepcional licitude seja de direito privado”, não há crime. “Nenhum direito subjetivo individual, ainda que de caráter privatístico, pode gravitar fora da órbita do interesse social. Se o direito civil, por exemplo, disciplinando esta ou aquela facultas agendi, autoriza, para assegurar-lhe o pleno exercício, a prática de um fato que, em outras condições, constituiria crime, tem-se de entender que assim dispõe, não apenas por amor ao direito individual em si, mas também no interesse da ordem jurídica em geral. Tal disposição, portanto, não pode deixar de repercutir sobre o direito penal”. (Op. Cit., 1978, p. 308).

Não se pode admitir que, tendo alguém direito sobre determinado objeto, possa existir sobre o mesmo um direito contrário de outra pessoa. Entende-se que, na realidade, ocorre um conflito de interesses e não de direitos.

“Ma è un assurdo giuridico la coesistenza di diritti contrari “, e, portanto, o exercício legítimo de um direito que, por si,  constitua a violação do direito de outrem. (Cf. AZZARITI et MARTINEZ. Op. Cit., p. 14).

Alguns casos de conflitos são regulados, tais como: o estabelecimento de indenização na desapropriação, requisição, passagem coativa no terreno de outrem para obtenção de água (casos esses em que a conciliação dos interesses opostos não seja possível). Ainda: nas relações entre vários interessados, para fazer valer os próprios direitos nos confrontos entre o mesmo devedor ou terceiros, quando a lei estabelece o critério da prioridade, como ocorre no bem hipotecado; ou quando concede a preferência ao possuidor de boa fé dos bens móveis adquiridos de quem não era proprietário os efeitos do título; outras vezes, prefere quem, pelo sacrifício de seu direito,  recobrasse não a simples falta de um lucro, mas uma verdadeira e própria perda, como quando consente na ação de revogação, ao credor até contra quem tenha adquirido a título gratuito e em boa-fé, do devedor; outras vezes admite, em simultâneo concurso, mais pessoas que  ostentam direitos iguais sobre a mesma coisa ou direito a prestações pelo mesmo devedor, como nos casos de comunhão, divisão, concurso para liquidação do passivo da herança beneficiada, de falência. (Id. Ibid., p. 14,15).

A respeito de uma mesma coisa pode ocorrer a existência de dois ou mais direitos, pretensões, ações ou exceções; ou a respeito do mesmo patrimônio, ou de prestação que se exaure em si podem concorrer, divergindo, o exercício de dois ou mais direitos, segundo lição de PONTES DE MIRANDA, que não se deteve sobre a divergência da existência ou não da colisão de direitos, apesar de ter como imprópria a terminologia. Dependerá da natureza e extensão dos direitos a possibilidade do exercício pleno de todos ou a não possibilidade, como também, se não há choque entre eles (porque estão enfileirados hierarquicamente) a possibilidade de exercícios de modo que uns precedam aos outros e nenhum deles fique no mesmo grau do outro. Aponta os seguintes princípios, utilizados pelo legislador, para solucionar o problema resultante do choque:

O princípio da prevenção - pelo qual o primeiro titular exerce o direito, ficando aquele que vem depois com o que dele sobrar. É adotado nos direitos reais (princípio da prioridade em tempo);

O princípio da igual sorte - onde todos sofrem com a colisão - nos direitos de crédito o nosso sistema jurídico por vezes excetua tal princípio ao enunciar outro (par condicio creditorum - o que vem em primeiro plano). (Cf. Id. Ibid., p. 290, 291).

Não se pode acolher na sua rigidez o adágio Qui iure suo utitur nemini iniuriam facit, pois não se justifica a violação do direito de outrem para exercício do próprio direito. O Código Civil brasileiro mantém orientação oposta ao provérbio citado, sendo o exercício, que causa lesão, contrário a direito. Para exclusão da contrariedade, o fundamento básico é sua regularidade, significando, com isto, que nem todo exercício ocasionador de dano seja antijurídico, somente configurando-se como tal aquele irregular, conforme já previa o Código Civil anterior, onde a doutrina ali já admitia estar previsto o abuso do direito.

Se o exercício do próprio direito pressupõe, necessariamente, a falta de direito contrário, o critério buscado, segundo informa GIORGIO GIORGI, consistirá em verificar se do lado do prejudicado existia direito ou simples interesse. O direito significa o gozo de utilidade garantido pela lei; simples interesse quer significar o gozo de utilidade não garantido pela lei. Abre-se aqui à investigação do jurista um dos campos mais vastos no domínio do direito civil: cuidando-se de investigar, quanto se estende cada um dos vários direitos, que a vigente legislação reconhece e garante, seja no Código Civil, nos demais Códigos e Leis Especiais e, por fim, na Constituição. (Cf. GIORGI, Giorgio. Teoria delle obligazioni nel diritto moderno italiano. Firenze: Ed. Fratelli Cammelli, 1909, v. V, p. 283, 284).

Ressalta CUNHA GONÇALVES, precisamente sobre o abuso do direito, que parte da doutrina põe em dúvida a possibilidade de uma ação preventiva, já que o abuso diz respeito a danos consumados. A ação preventiva existe e está prevista no Estatuto Civil português, sempre que seja evidente ou provável uma colisão de direitos e interesses (arts. 14 e 15 C.C. anterior). A questão do abuso do direito, assim como no estado de necessidade, é “um aspecto ou uma fase da questão mais ampla da colisão de direitos que o legislador português regulou com certa elegância”. (Op. Cit., p. 512).

Efetivamente disciplina o  atual Código Civil português, de 1966 :

“Art. 335º. (colisão de direitos)

1.     Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2.     Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.

O Código anterior previa diversamente (“Quem, exercendo direito, procura interesses, deve, em colisão e na falta de providência especial, ceder a quem pretende evitar prejuízos”- art. 14; “Em concurso de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os interessados ceder reciprocamente o necessário, para que esses direitos produzam o seu efeito, sem maior detrimento de uma que de outra parte”- art. 15).

Esses preceitos do Código anterior visavam a evitar prejuízos; em sua letra e espírito, segundo anota CUNHA GONÇALVES, eram superiores a todas as teorias até hoje elaboradas sobre abuso do direito e relações de vizinhanças. Diante desses artigos não havia de se investigar qual o vizinho culpado, qual rompeu o equilíbrio entre os prédios, qual era o estado de fato anterior. “Posto o princípio de que o direito de cada um tem por limite o direito de outrem, só cumpre averiguar qual a pessoa, singular ou coletiva, que, exercendo o seu direito, procura interesses e qual a que pretende evitar prejuízos, ou seja, a destruição dum valor patrimonial já constituído e que não era vã expectativa”. Quem procura interesses é quem inicia a atividade que pode causar prejuízo; interesse não significa aqui ausência de direito subjetivo, uma expectativa, e sim proveitos a serem obtidos com o exercício do direito. A quem pretende evitar prejuízos compete provar que estes prejuízos constituem ofensa de um direito seu, porque a lei não se refere a simples colisão de interesses, mas à colisão de direitos.

Direitos da mesma espécie seriam os dos co-herdeiros de herança indivisa em igual proporção, os direitos dos sócios de sociedade. Direitos iguais seriam, por exemplo, os direitos dos cidadãos de usufruir coisa comum. Sendo esses iguais ou da mesma espécie, a regra é que um e outro devem efetivar-se sem maior prejuízo para qualquer das partes. Se forem desiguais ou de espécies diferentes, o direito menor deve sujeitar-se, como ocorre nas associações em que o direito de deliberação pertence à maioria, ou nas sociedades onde o direito de deliberação é proporcional à cota social. (Cf. CUNHA GONÇALVES. Op., Cit., p. 514). Esta explicação prevalece para o atual Código.

No caso de serem iguais ou da mesma espécie, o conflito resolve-se seja pelo instituto da transação, seja por imposição do juiz, sempre que a lei não indicar solução diversa.

Não só ocorrerá colisão jurídica entre titulares que exercem direitos concorrentes, como os coproprietários, mas também entre pessoas estranhas; também não se exige que as partes exerçam ou queiram exercer o mesmo direito, bastando que apenas uma o exerça, causando prejuízos a outrem que se mantinha tranquilo. A efetivação do prejuízo, “Ultrapassando a fase inicial da colisão e das cautelas, constituirá o abuso do direito”. (CUNHA GONÇALVES. Op. Cit., p. 515).

05 - “ONUS PROBANDI”

O direito brasileiro reza não constituir ato ilícito o exercício regular de um direito reconhecido. Resultando dano desse exercício, a regra é no sentido de categorizar-se o ato como ilícito, salvo se foi exercido de modo regular, requisito exigido pela lei. Decorre de tal princípio que o ônus probatório compete a quem praticou o ato e não ao que sofreu prejuízo, a quem compete provar a existência do dano. Ao agente compete a prova da regularidade do exercício (orientação diversa do BGB), em atendimento aos princípios da prova:  Incumbe ao réu provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor ( art. 333, II, CPC), ou seja, Reus in exceptione actor est.

Não havendo prova do exercício regular, será o agente condenado, não por presunção da irregularidade, mas porque o dano existe, está provado e, consequentemente está  a culpa.

Requisito básico é lesar com culpa, não competindo indagar qual o propósito de lesar. A questão assenta-se em dado objetivo. Segundo PONTES, “O critério de se ter por irregular o exercício, se o interesse único seria o de lesar, não basta, em direito brasileiro.” (Op. Cit., p. 293). O uso abusivo do direito, por óbvio, é um uso irregular, ilícito.

06 - CAMPO DE ATUAÇÃO

A norma jurídica de contrariedade ao direito (art. 186 c/c art. 188, I), isto é, o exercício abusivo atinge todas as esferas jurídicas, seja no direito público, comercial, penal, civil, processual civil, etc. Seu campo de aplicação compreende o direito de propriedade, de obrigações, o direito de estar em juízo, o processo executivo, o pátrio-poder, o direito de crítica e de liberdade de imprensa, etc. Por isso, os atos de emulação, apenas constituem um capítulo e têm tratamento autônomo, sobretudo pela sua secular história e a aceitação ou recusa de sua censura em direito romano. (Cf. D’amelio, Mariano. Nuovo Digesto Italiano, 1937, V. I, p. 49)

No processo civil, a matéria é posta, como requisito do exercício do direito regular, no art. 3º: “Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade” (tanto prevalece para propositura da ação, reconvenção, exceção e recurso), sendo a falta de interesse acarretadora do indeferimento da peça inicial ou extinção do processo. No processo, “A regra jurídica tinha de ser includente, - por faltar princípio geral de contrariedade a direito, no processo, como elemento do ilícito absoluto. O ônus da prova incumbe ao que alega o abuso do direito processual”. (PONTES. Op. Cit., p. 293).

07 - PROTEÇÃO PREVENTIVA

Preventivamente, aquele em condições de sofrer o dano pode pleitear a tutela contra o exercício irregular ou abusivo, como cominatoriamente, em se tratando de ato realizado.

Outrora, já questionava PONTES qual seria o instituto que albergaria a alegação de exercício irregular pelo réu. É defesa ou reconvenção e não exceção de dolo como entendia Enneccerus, pois a  exceptio dolis  generalis  é outra categoria jurídica e mais vasta. (Cf. Id. Ibid., p. 294). O art. 675 tem seu correspondente conteúdo no art. 798 do atual CPC; prevê o poder cautelar genérico do juiz, para adotar providências/medidas, além dos procedimentos cautelares disciplinados no Código.

De notar-se que o exercício irregular não nasce necessariamente com essa mácula, podendo, pelas circunstâncias supervenientes, tornar-se irregular o que se iniciou regular ou tornar-se regular, sanado, aquele originariamente irregular. “El acto ilícito que ultrapasa los límites, asignados por la ley al titular de un derecho, es un acto ilícito que puede ser objeto de medidas preventivas y debe, si no há podido prevenir-se, dar lugar a una reparación en especie”. (AGUIAR, Henoch. Op. Cit., p. 113).

Os autores de direito privado francês veem hipóteses de abuso de direito em casos onde um direito tenha sido exercido temerariamente ou imprudentemente, em síntese, de uma maneira defeituosa; defectibilidade relativa ao modo de exercício do direito, à técnica de sua utilização. É, por exemplo, o que se realiza em matéria notadamente de exercício de vias de direito: o juiz aponta, deste modo, uma demanda feita sem fundamento ou constata, no exercício da ação, procedimentos que constituam uma falta, ou ainda que o recurso a uma medida de penhora tenha sido imprudente. JOSSERRAND, evocado por MARCEL WALINE, chega mesmo a admitir que se estabelece a responsabilidade não somente quando se comete dolo, fraude ou falta grave, mas também na falta de delicadeza, medida, oportunidade, enfim, cometendo-se uma falta na execução, um erro na técnica, um contrassenso qualquer, desde que ele seja nitidamente caracterizado. (Cf. WALINE, Marcel. Responsabilité publique et responsabilité privée. Paris: LGDJ, 1957. T. VIII, p. 387).

08- CARACTERÍSTICAS DO EXERCÍCIO REGULAR NO DIREITO BRASILEIRO

- Exercício sem fim de causar dano a outrem, seja de ordem patrimonial ou moral;

-  Exercício que denota a existência de qualquer interesse legítimo;

-  Exercício com responsabilidade e moderação;

- Exercício dentro da órbita do próprio direito, seja dentro do limite traçado pela lei, seja pelo não desvirtuamento de sua essência, observando os requisitos da finalidade econômica ou social, princípios da boa-fé e dos bons costumes.

09 - LIMITES DO EXERCÍCIO

O conteúdo do direito subjetivo não é idêntico em todos os direitos, quer seja do ponto de vista qualitativo, quer quantitativo, razão porque o seu exercício sofre variação formal e temporal. “Cada direito subjetivo tem limites objetivos, não só de duração, de forma, circunstância material, mas também de boa ordem social”. (CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Tratado de direito civil. Coimbra Ed. LTDA. 1929, V. I, p. 428). Mesmo podendo o titular do direito gozar de ampla liberdade no seu exercício, não poderá ir além de um justo limite. Por esta razão, acresce CARVALHO SANTOS, todo direito acaba onde começa o direito de outrem. Repete a antiga fórmula, acolhida pela jurisprudência francesa, de que todo direito tem por limite a satisfação de um interesse sério e legítimo. Por legítimo entende-se, naturalmente, normal, exercido dentro dos fins sociais traçados para ele ou para aquele que age de boa-fé. A noção de abuso, na lição de Orozimbo Nonato, vale como uma afirmação de justiça contra a lei. “E porque a noção do justo é, sobretudo, moral, é em um elemento moral que a teoria do abuso do direito lança suas raízes mais profundas” (Apud CARVALHO SANTOS, J. M. Op. Cit., p. 340, 341).

Não apenas a lei estabelece os limites do exercício, mas ainda os costumes, a equidade, a ordem social, o espírito de justiça, a solidariedade social, etc. Há um limite não expresso, de caráter geral, que é dado pelo objetivo pelo qual o legislador ao próprio direito tenha concedido. Quando o limite é traçado pela lei, o exercício do direito que for além dos limites objetivos dá lugar a verdadeira e própria  violação do direito. Quando não é expresso, o exercício anormal e contrário à essência mesma do direito constitui uma forma especial de violação, denominada abuso do direito. (Cf. AZZARITI, Francesco S. et MARTINEZ, Giovanni. Op. Cit., p. 17).

Os juristas citados faziam uma distinção. Se a lei estabelece expressamente os limites de certo direito, não se fala de abuso e a atividade do titular dentro do limite não poderá resultar ilegítima, ainda que ele opere de má-fé e em observância rigorosa da lei, mais que o seu proveito, proponha-se a prejudicar outrem. Dir-se-á melhor, nesse caso, abuso e direito apresentam-se como termos inconciliáveis e contraditórios. Assim, o proprietário de um terreno não pode opor-se a que o vizinho faça cisterna, fossa, etc. na distância estabelecida pela lei, embora possa sentir-se molestado, e o vizinho tivesse a possibilidade de fazê-lo mais distante. Quando a lei não põe algum limite expresso, ocorre considerar caso a caso, se o exercício não vai além da finalidade do próprio direito, que dali mostra sua natureza e, excedendo-lhe o conteúdo, não propicie evidentemente aquele abuso, que não pode considerar-se consentido pela lei. (Id. Ibid., p. 18)

Outro exemplo é citado por LAURENT, no caso em que a lei estabelece o próprio limite, o que ocorre, regra geral, em matéria de vizinhança : ao trabalhar a terra de meu jardim, corto as raízes de árvores do jardim vizinho, as quais acabam morrendo; a lei permite-me cortar as raízes quando adentram no meu terreno. Usando esse direito, firo o direito do proprietário ? Não, pois este violou a lei pelo fato de que as raízes de suas árvores  se prolongaram sobre o terreno vizinho. (Op. Cit., p. 311).

Os autores são acordes em que os limites do exercício de um direito são dados tanto pelo seu próprio conteúdo, quanto por expressa disposição de lei, que lhe restrinja o conteúdo normal, quanto pelo fim a que visa .

Lembramos que nosso Estatuto Civil não permite o exercício de má-fé, mesmo se dentro dos limites traçados, uma vez que agregou a esses limites princípios solidários  de convivência humana que afastam o uso abusivo do direito.

10 - ABUSO DO DIREITO

Para expor os limites do exercício do direito, faz-se mister adentrar na teoria do abuso do direito, cuja noção veio sendo galgada paulatinamente na doutrina e na jurisprudência para, ao final, vir expressamente positivada no art. 187, Código Civil/2002).

Poucos Códigos Civis cuidaram expressamente da previsão do abuso do direito e, aqueles que o previram, tomaram posições diversas. Consoante isso, temos o disposto no § 226 do Código Civil alemão (proibição de chicana), que fundamenta a noção de abuso no exercício que tenha por fim exclusivo causar dano a outrem. O Código Suiço, artigo 2º., caracteriza-o pela má-fé no seu exercício: 

“Art. 2º. Chacun es tenu d’exercer ses droits et d’ exécuter ses obligations selon les règles de la bonne foi”(omissis).  L`abus manifeste d’un droit n’est pas protégé par la loi (omissis).

“Art. 3º. La bonne foi est présumée, lorsque la loi en fait dépendre la naissance ou les effets d’un droit.

Null ne peut sa bonne foi, si elle est incompatible avec l`attention que les circonstances permetaient d`exiger de lui”

 No Código brasileiro anterior, ele se configurava como  exercício irregular (art. l60, I) ou, como expressa Saleilles, o exercício anormal. Seu pressuposto básico era o excesso no exercício, o exercício anormal. Coube ao Código de 2002 encerrar a discussão, abraçando expressamente (art. 187) a teoria do abuso do direito, incluindo-a na categoria de atos ilícitos, tanto quanto ao aspecto subjetivo (intenção de causar dano, má-fé), quanto ao aspecto  objetivo (uso contra sua finalidade), encampando as diferentes opiniões dos doutos, fazendo coro ao que dispusera o Código Civil português, art. 334.

O Código Civil português, na linha da doutrina moderna, prevê-o expressamente (artigo 334º.),

Caracteriza-o pelo excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, bons costumes, ou pelo fim social ou econômico desse direito.

No Código Civil italiano, são proibidos ao proprietário os atos de emulação, no artigo 833, mas não existe proibição genérica. O proprietário não pode praticar atos os quais não tenham outro escopo senão o de prejudicar ou acarretar moléstia a outrem (artigo 844).

O direito codificado argentino não ampara o uso abusivo dos direitos, considerando como tal aquele que contrarie os fins que a lei teve como objetivo, ao reconhecer os direitos ou o que exceda os fins impostos  pela lei, pela boa-fé, pela moral e pelos bons costumes (artigo 1071, 2ª. parte). Este texto foi inserido pela lei n. 17.711/1968 que trouxe inovações ao Código Civil, cuja vigência é de 1869.

`A falta de texto expresso, para a jurisprudência francesa, o direito só pode ser exercido, tendo em vista a satisfação de um interesse sério e legítimo. O abuso do direito consiste em seu desvio, caracterizado para obter indiretamente um resultado evidentemente estranho aos interesses legítimos, para a savalguarda dos quais o direito foi instituído. (Cf. WALINE, Marcel. Responsabilité publique et responsabilité privée. Pari: LGDJ, 1957, p. 384).

Historia MARIANO D’AMELIO sobre as mais variadas e opostas tendências sobre o abuso dos direitos. Entre os extremistas, há os que  nele veem um renascimento do idealismo jurídico; outros negam completamente a possibilidade de uma doutrina de tal nome. Os negativistas dizem que a expressão  abuso do direito  é uma contradição  in terminis, pois se aí há abuso, não há direito e, se há direito, não há abuso. D’AMELIO rechaça a tese, argumentando que o direito não é um conceito absoluto. Ele é proporção e, como tal, tem limite. Além desse limite, não é mais operante como força social, protegido pelo Estado. A máxima comumente admitida  Summum jus summa injuria não exprime ideia diversa. Trata-se , também aqui, do limite, tão essencial ao direito.

Se o limite é fixado pela lei, a questão não se coloca tampouco, porque além do mesmo há o não direito ou atividade ilegal e o dano que essa ocasiona é  injuria datum (produzido pela injúria). Se o limite não é expresso, deve-se verificar se não se encontra na própria natureza do direito e, buscando-o, com objetividade e boa vontade, é encontrado sempre. Excedê-lo é violação nos efeitos, igual à violação do limite expresso. (Cf. Nuovo Digesto italiano. Torino: UTET, 1937, V. I, p. 49).

Mas, observa o autor, é necessária a advertência  guardar-se de abusar do “abuso do direito”, como não é raro acontecer na prática, o que se obtém buscando  na essência do instituto e descobrindo exatamente o limite do direito, quando não é fixado pela lei.

Aqueles que têm acreditado na colocação do problema diversamente, imaginando que o abuso seja um caso de conflito de direito, ou conflito entre o direito e a moral, ou um turbamento do equilíbrio dos interesses, têm plenamente justificadas as agudas críticas levantadas contra suas concepções. O problema, portanto, consiste em investigar o limite do direito quando não é fixado pela lei. Primeiro a doutrina, depois a legislação vieram em auxílio da jurisprudência que, por seu lado, esforça-se durante muitos séculos, para indicar caso por caso os limites pesquisados. Para Josserand, quando o limite não é expresso em lei, seu exercício é livre, mas pode ocorrer o abuso, seja por maldade do titular (abuso subjetivo) ou independentemente de má-fé, usando-se do direito contra sua própria finalidade ( abuso objetivo). (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 49).

Para SALEILLES, o abuso está no exercício anormal do direito, contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, reprovado pela consciência pública e extrapolação, consequentemente, do conteúdo do próprio direito.

ROTONDI nega a existência da doutrina do abuso do direito. Afirma que, pela evolução da consciência jurídica, das condições morais, técnicas, econômicas, etc., a finalidade, para a qual o direito foi concedido, e o seu conteúdo  podem mudar substancialmente de uma época para outra, e que, portanto, pode ser considerado abuso  aquilo que tempos atrás era um uso normal e legítimo (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 49).

Historicamente, fixando-nos na doutrina, segundo o resumo de BEVILLÁQUA:

- Para uns o abuso do direito estaria no seu exercício, com intenção de prejudicar alguém;

- Outros entenderam que sua característica estva na ausência de motivos legítimos, conforme opinião de Josserrand, exposta anteriormente;

- Seria a negligência ou imprudência associada à intenção de prejudicar (Capitan);

- O abuso estaria no seu uso anormal (Saleilles); Acolhida pelo Código Civil brasileiro de 1916, segundo BEVILÁQUA, e pela jurisprudência, pelas expressões “uso regular do direito” como excludente de ilicitude;

- Seria ofensa à personalidade : “há ofensa ao direito de personalidade, quando alguém abusa de seu direito de modo que ofende a outrem”( Köhler);

- Para Bardesco as fórmulas  propostas são insuficientes, contudo se complementam , devendo ser aceitas até que, mais firme o estado jurídico por elas representado, possa traduzir-se por um critério único. (Cf. Op. Cit., V. I, p. 425).

Em síntese, há  a doutrina objetiva que reduz os direitos a seus efeitos; a subjetiva funda-se no móvel da realização do ato e não no seu resultado; há outros doutrinadores que adotam o critério intencional de causar prejuízo e outros defendem a ideia preconizada por JOSSERRAND (détournement du droit). (Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria. O silêncio como manifestação de vontade nas obrigações. Rio Janeiro, Walter Roth Ed., 1944, 2ª. ed., p. 147).

Doutrina do início do século XX, fundamentada no Código Civil português anterior, mostra-nos o avanço que  apresentava sobre a matéria:

“As restrições que a lei impõe ao exercício dos direitos baseiam-se não só no interesse geral ou na utilidade pública, mas ainda na equidade. É assim que a pessoa que exerce um direito, tendo por fim interesses, deve,  em colisão e na falta de previdência especial, ceder a quem pretende evitar prejuízos”(art. 14 C.Civil  anterior). ( MOREIRA, Guilherme Alves. Op. Cit., p. 632).

No direito brasileiro, ainda na vigência do Código anterior, sustentou-se que o exercício deveria conter-se no âmbito da razoabilidade. Havendo excesso ou, embora sendo exercido, causasse mal desnecessário ou injusto, a atitude do titular equiparava-se ao ato ilícito, com o consequente dever de ressarcimento (Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio Janeiro: Forense, 1.990, p. 316).

Não era preciso indagar a intenção única do titular em lesar; bastava que lesasse, com culpa. “As circunstâncias podem, objetivamente, compor o caso do exercício irregular”. O critério, segundo se tem por irregular o exercício, quando o interesse único for lesar, não basta no direito brasileiro . (CF. PONTES. Op. Cit., p. 293). A atitude do legislador brasileiro é contrária à máxima  Qui iure suo utitur neminem laedit, pois, se o exercício lesar, é contrário a direito. (Id. Ibid.).   O uso deve  ser  normal, ao contrário será abusivo. (Beviláqua. Op. Cit., V. I, p. 426).

O exercício deve ser normal, regular. Sendo anormal ou irregular, o titular fica obrigado à reparação. “ É a mesma teoria da responsabilidade civil fundada na culpa, abraçada pelo nosso Código”. Exemplificando, alguém em sua propriedade provoca emissão de fumaça ou produz ruído. Se eles excederem ao normal, ao comum, haverá abuso. O mesmo prevalece em caso de demanda intentada por espírito de emulação, capricho ou erro grosseiro ( art. 3º. do CPC anterior; arts. 16 e 17 do atual CPC), como também o abuso verificado no exercício dos meios de defesa. (Cf. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil-parte geral. S. Paulo, Saraiva, 1982, 21ª. ed., p. 282 e ed. de 2012, p. 358). Essa doutrina segue as pegadas de PLANIOL, para quem o abuso do direito não constitui uma categoria distinta dos atos ilícitos, doutrina não acolhida pelo nosso Código Civil vigente.

Em face do nosso Código anterior,  a doutrina já sustentava que o abuso consiste no exercício irregular, anormal; no exercício com excessos, intencionais ou involuntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem; é a doutrina versada em excelente parecer de PLÍNIO BARRETO. (Cf. Revista dos Tribunais. S. Paulo, V. LXXIX, p. 506, agosto/1931).

Condensando: o Código Civil atual eliminou qualquer dúvida  ao preceituar,   caracterizar como ato ilícito o abuso do direito. Além do excesso  do exercício expresso em lei, há excesso nos limites ditados pelos fins econômicos ou social, pela boa-fé, pelos bons-costumes.  Enfim, há abuso seja sob aspecto subjetivo ou objetivo, isto é, independentemente de existência de culpa, bastando haver desvio de sua finalidade; o animus nocendi não é requisito único.

A doutrina comumente destaca três categorias inseridas na teoria do abuso do direito:

-    “Venire contra factum proprium” – o comportamento do indivíduo é antagônico a comportamento seu anterior, que gerou expectativa para terceiro e lhe causa prejuízo; veda a prática de atos incoerentes com aqueles já praticados antes, licitamente, e que, analisados conjuntamente, tornam-se ilícitos. Destacando o princípio da boa-fé objetiva, positivado no atual Código, e que se presta à interpretação dos contratos, invoca CAIO MÁRIO o venire contra factum propium : este “ veda que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior do inciviliter agere, que proibe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a invocação de uma cláusula ou regra que a própria parte já tenha violado”.  (Instituições, op.cit., v. III, 2005, p. 21).

-   “Supressio” –  consiste na perda do direito de ação,  por fazer crer  que o direito não seria mais exercido. Caracteriza-se pela confiança que alguém deposita em outrem, quanto ao não exercício de direito subjetivo, durante certo tempo, em função  da inércia do titular, somada a indícios de que não o exercitaria e, vindo a exercê-lo, com isso, causa prejuízo a outrem;

-   “Surressio” -  ao contrário da supressio é uma ampliação; surgimento de  um direito, em virtude do comportamento reiterado de outrem, ainda que não previsto em lei ou acordo para o indivíduo. É quando o comportamento de outrem produz uma expectativa, que não fora acertada antes, quanto ao exercício de um direito, fazendo-se constituir outro direito.  

Quanto ao campo de atuação, o abuso do direito pode ocorrer em qualquer prática de um ato jurídico, quer no direito de família, no de propriedade, no direito trabalhista, na demanda em juízo, etc., e mesmo nas relações contratuais, porque é assente nelas o princípio do exercício de um direito e o abuso resulta numa fórmula abstrata e geral. Nem tudo que não é proibido é permitido.

Exercitando-se irregularmente o direito de contratar, comete-se ato ilícito, acarretando sua nulidade, que pode ser total ou parcial, dependendo se a parte nula puder ser extraída do contrato, reduzindo-o à parte lícita, conforme regra preceituada no art. 184, do Código Civil (“A nulidade parcial de um ato não o prejudicará  na parte válida, se esta for separável”).

Encontra-se nas relações de consumo ( Lei no. 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Proteção ao Consumidor), art. 51, § 2º:

“A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato,  exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”.

§ 4º. “É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade da cláusula contratual que contrarie o disposto neste Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes”.

Em suma, não se permite qualquer abuso do direito no Código de Proteção ao Consumidor. A seção IV é dedicada às  práticas abusivas, sendo as condutas ilícitas nela descritas. Tais práticas consistem na discriminação do consumidor, aproveitando-se de seu desconhecimento, de sua limitação cultural, em benefício do fornecedor e consequente prejuízo ou desconforto para a outra parte. Ademais, ocorre uma profunda inovação nas regras contratuais, ao se adotar o princípio do favor consummatoris, expresso no artigo 47 :

“As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.

Além da regra do artigo 187, no qual se positiva a fórmula geral de proibição do abuso do direito, a nossa Lei Maior também contempla a mencionada proibição, quando cuida do exercício do direito de greve.

“Art. 9º. - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

§ 1º. ( omissis)

§ 2º. - Os  abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei “.

São várias as situações previstas em leis especiais, bem como a contida no Código de Processo Civil ( arts. 16-18, 811, 881) sobre a litigância de má-fé, e ainda no próprio Código Civil ( arts. 1277, 1280) sobre o mau uso da propriedade, que pode ofender tanto a segurança do vizinho ou de seus bens, seu sossego e sua saúde.

10.1 – REQUISITOS

No âmbito do direito positivo e da doutrina brasileiros anteriores ao Código de 2002, foram apontados como requisitos para caracterização do abuso do direito:

- Quando o direito é exercido com o fim de causar dano a outrem. Em matéria processual costuma ocorrer, tanto que há previsão de suas consequências no próprio Código de Processo Civil. O artigo 16 impõe  obrigação de responder por perdas e danos a quem pleitear de má-fé, seja como autor, réu, interveniente; O artigo 17 enumera em que situações se considera litigante de má-fé e o artigo 18 determina o pagamento de multa, a indenização  e em que ela consiste; o artigo 811 enumera os casos de indenização por prejuízos ao requerente do processo cautelar; o artigo 881, que trata do atentado, dispõe sobre o ressarcimento por perdas e danos à parte lesada em consequência do atentado.

- Quando o titular exerce o direito levianamente, sem procurar evitar prejuízos alheios. (Cf. CHAVES, Antônio. Op. Cit., p. 1570, 1571).

Examinando o texto do Código anterior, consignou PLÍNIO BARRETO dois pressupostos:

“- Quando o único efeito que o ato praticado pelo agente poderia produzir fosse o de prejudicar a outrem;

- Quando o agente realiza o ato sem interesse apreciável e legítimo”. Não é suficiente que o ato lese outrem, mas sim que tenha sido realizado sem que ao agente assistisse direito legítimo de fazê-lo ou interesse apreciável em fazê-lo. O exercício é irregular, anormal; supõe  aquele direito exercido ou com dolo, ou com negligência  ou imprudência (Id. Ibid., p. 511). Nada mais é, na versão do autor, a teoria do ato ilícito.

Após discorrer sobre a opinião de autores estrangeiros, CARVALHO SANTOS comunga com a mesma opinião de PLÍNIO BARRETO. Ao exigir a intenção maléfica para caracterização do abuso, a jurisprudência brasileira restringe a verdadeira inteligência do texto legal. Em nosso direito, a doutrina do abuso do direito só pode ser encarada como parte integrante da teoria geral do ato ilícito.  Quer dizer, o abuso resulta da má-fé, da culpa, qualquer que seja a forma de imprudência, quer sob a negligência, nos termos do artigo 159 (atual 186). (Op. Cit., p. 350).

A formulação da teoria do abuso do direito não se afigura questão simples. Lembrou  AGUIAR DIAS que o excesso de palavras, nessa matéria, tem feito muito mal à compreensão do problema. (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. Rio Janeiro: Forense. 1873, V I, p. 490).

CARVALHO SANTOS não contesta BEVILÁQUA quando diz que nosso Código Civil de 1916  tenha seguido a doutrina de  Saleilles, entretanto admitiu-a na sua primitiva opinião, qual seja :  “há abuso do direito no exercício anormal do direito, exercício contrário ao destino econômico ou social do direito subjetivo, exercício reprovado pela consciência pública e que ultrapassa, conseguintemente, o critério do direito, pois que todo direito, do ponto de vista social, é relativo”. Na revisão do projeto do código civil francês, Saleilles propôs a incorporação do seguinte teor :  “Um ato cujo efeito não pode ser senão o de prejudicar a outrem, sem interesse apreciável e legítimo, para aquele que o realiza, não pode, jamais, constituir o exercício lícito de um direito”.  Se nosso Código tivesse esposado a última doutrina de Saleilles, escreve CARVALHO SANTOS, “Realmente a intenção de prejudicar, sendo exclusiva, nada mais é do que o dolo, não se podendo conceber como um dolo possa ser culposo, originário de negligência ou imprudência”.  Se cai por terra a possibilidade de exigir-se a intenção, diante da incompossibilidade com a culpa,  “Não há razões para se admitir como essencial esse requisito, mesmo no caso do abuso de direito resultar do dolo.”(Cf. Op. Cit., p. 354).

Destaca o autor que nosso Estatuto  de 1916 não seguiu a doutrina de  Saleilles na sua íntegra, pois  repeliu o objetivismo preconizado nela e aceitou apenas a parte em que aquele jurista   faz conter o direito nos seus justos limites, passando a ter caráter de  anormalidade condenável  sempre que houver ofensa ao destino econômico e social que ao direito se atribui. Não basta a simples existência de prejuízo; além deste, é preciso que tenha sido anormal o exercício do direito.

O conceito de abuso do direito é formulado por AGUIAR DIAS como sendo:

“Todo ato que, autorizado  em princípio, legalmente, se não conforme, ou em si mesmo ou pelo modo empregado, a essa limitação. Há, ninguém duvida, um direito de prejudicar. Mas para que se possa exercer, é preciso estar autorizado por interesse jurídico-social prevalente, em relação ao sujeito passivo da ação prejudicial”. (Op. Cit.,  v II, p. 495).

Analisa o eminente autor a teoria de Savatier ( que não aceita a teoria autônoma do abuso do direito)  e reconhece a existência, como instituto autônomo, do abuso do direito. (Id. Ibid., p.123). Cuidando do direito brasileiro (artigo 160,I, Código anterior), sustenta que muitas das aplicações têm-lhe desconhecido totalmente o sentido, ao exigirem o elemento  culpa para caracterização do abuso e endossa o pensamento de  Lino Moraes Leme, quando afirma que,  para apurar o abuso cumpre examinar “Se o ato é suscetível de proporcionar um interesse qualquer, do qual a lei tenha por missão garantir a realização pecuniária ou moral”. Retira desse autor o exemplo : “Matar o gado alheio que pasta em meu campo, por exemplo, é um abuso de direito, porque o direito requer... que eu respeite o direito alheio de propriedade sobre o gado, pois  o direito existe como regra de coexistência social - é o conjunto orgânico de condições de vida e desenvolvimento do indivíduo e da sociedade”. (Id. Ibid.,  1983, v. II, p. 505).

Diante de todo esse transbordamento das teses dos mais expressivos civilistas, evoluímos até à consagração definitiva da figura do abuso do direito como está atualmente.

10.2 - OFENSA AO DESTINO ECONÔMICO E SOCIAL, AOS PRINCÍPIOS DA  BOA-FÉ E DOS BONS COSTUMES 

A essa ofensa, aspecto objetivo, a doutrina moderna já dava relevância. Seria ela o fundamento do abuso do direito atualmente? No direito italiano, encontramos a lição de CHIRONI que assenta estar o abuso propriamente dito não na materialidade da ação, já que o agente tem direito de exercício, mas no fato de que, ao ofender direito alheio, quebra as regras que regem o  uso normal do direito. Regras essas que se reduzem em que o direito como formação social ( e vontade social é a lei que o assegura), realiza-se pelo sujeito, naqueles termos que implique no equilíbrio entre o interesse do indivíduo e o da coletividade, impondo que o direito seja exercitado em conformidade com seu fim , e como o exercitam e o exercitariam, dada sua posição econômico-social, a maior parte das pessoas a quem pudesse corresponder. Este limite deduz-se da função social do direito. ( CHIRONI. La culpa en el derecho civil moderno. Trad. Bernaldo de Quirós. Madri: Ed. Reus S/A, 1928, t. II, p. 380).

A doutrina do abuso do direito acha-se sintetizada pelo ilustre civilista BEVILÁQUA. Aponta a contribuição da Sociologia para a solução do problema. Se o direito tem por função manter em equilíbrio interesses sociais que se colidem, desvirtuará do seu destino, quando se exagerar, no seu exercício.

“Essa tendência depuradora do direito e a sua finalidade social exigem a socialização do exercício. O direito é a resultante das solicitações dos interesses do indivíduo e da sociedade. O seu exercício deve seguir a linha média traçada por essas duas solicitações”. Direito é meio de realizar-se um fim. Citando Bardesco, continua :

“Abusar do direito é tomar o meio pelo fim, é exercê-lo de modo contrário ao interesse geral e à noção de equidade tal como se apresenta, num dado momento da evolução jurídica. Abusar do direito é servir-se dele egoisticamente, e não socialmente. Em um estado jurídico, em que a justiça e a equidade tendem, como atualmente, à socialização do direito, o seu abuso compromete a responsabilidade  de  quem o pratica”. (Op. Cit., p. 425).

A intenção do agente (elemento subjetivo) não é elemento que determine se, no exercício,  houve ou não a vontade de causar prejuízo, anota GUILHERME  A. MOREIRA,  em comentários ao Código Civil português anterior, “Essa intenção resulta do próprio exercício do direito, quando, tendo-se em consideração todas as circunstâncias, ele só pode explicar-se pelo intuito de causar um dano”. “...Atende-se  ao exercício do direito  considerado em si e em relação ao modo por que os homens costumam proceder em harmonia com as regras da boa-fé ou com as normas da moral social”. (Op. Cit., p. 638).

Em nosso atual Código, agregam-se à finalidade econômica ou social os limites impostos pela boa-fé ou bons costumes (art.187).

10.3 - SILÊNCIO COMO ABUSO DO DIREITO 

Qui tacet, consentire videtur ( quem cala consente)? O vetusto adágio, originário do direito canônico, não mais significa, no estado atual da cultura jurídica, necessariamente o consentimento. A lei pode atribuir à ausência de manifestação de vontade tanto a recusa quanto a aceitação, dependendo do direito que estiver em jogo. A evolução jurídica demonstra-nos, como anota CARVALHO SANTOS:

·      A primeira doutrina considera o silêncio como manifestação de vontade, em muitos casos. Aconteceria sempre que quem guardou silêncio estivesse na possibilidade e na obrigação de falar;

·      Outros deram pequena variante à doutrina acima : “Há casos em que se é obrigado a falar, de sorte que, se se cala, incide-se em culpa e fica obrigado a reparar”;

·      Para outros, não existe essa obrigação de falar, pois ela não é nem moral nem jurídica. Mediante coação, a pessoa expressa-se, embora não tivesse desejo de dizer nem sim nem não;

·      Para DEMOGUE, o homem tem deveres na sociedade; em certos casos, deve falar e não o fazendo, age com culpa, pela qual responde (Cf. Op. Cit., p. 368, 369).

O eminente comercialista CARVALHO DE MENDONÇA admite a produção de manifestação de  vontade , através do silêncio, apenas nos casos em que a lei permite, salvo em se tratando da existência de relações precedentes, mais ou menos prolongadas entre comerciantes, sem o costume da aceitação. (Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria. O silêncio como manifestação da vontade nas obrigações. Walter Roth Ed.. Rio Janeiro, 1944, 2ª. ed., p. 108).

Para BATISTA DE MELO, o silêncio  “É uma realidade jurídica nos casos em que atua como manifestação virtual da vontade, salvo disposições legais em contrário”. (APUD SERPA LOPES. O silêncio..., p. 111).

Reconhece SERPA LOPES, em sua memorável obra sobre a matéria, que no nosso Código Civil  de 1916 há muitos casos nos quais o silêncio era portador de relevantes efeitos Os art. por ele mencionados tiveram sua reprodução no atual Código quase em sua totalidade:  artigos 94 (atual 147), 161(191), 522(1224), 548  § único(1256, § único), 683 (enfiteuse-extinção), 1.079 (sem correspondente- estaria no art. 111), 1.084(432), 1.166(539), 1.195(574), 1.292(659), 1.293(sem correspondente), 1.581 §  1º.(1805),  1.584(1807).  (Op. Cit., p.144).

São apontadas por esse autor duas teorias que procuram justificar o fundamento da responsabilidade pelo silêncio: a da responsabilidade extracontratual e a teoria do abuso do direito.  Esta última deve-se a  M. René Propesco Ramniceano, que lançou a ideia ao tecer comentário sobre um julgado de Douai, e para quem tal ideia consiste  na única forma de conciliação das duas concepções divergentes : a que não permite a possibilidade de forçar alguém  a dar resposta e a que estabelece obrigação de falar, em certos casos. Para ele, o silêncio  absoluto nada  exprime e o silêncio circunstanciado não passa de uma forma de manifestação tácita, decorrendo das circunstâncias, dos usos e dos preliminares de acordo.

SERPA LOPES aponta as falhas à teoria de  Propesco (silêncio como abuso do direito), acreditando que não há espaço para a noção do abuso do direito, já que, em se tratando de silêncio, não se cogita do abuso do direito de não responder,  “Mas da obrigação de falar, em dadas circunstâncias, de um dever a cumprir, através de uma ação física positiva.

Surgem duas entidades autônomas : o direito de não responder, de um lado;  a obrigação de falar, de outro, emergindo uma ou outra, consoante o império e a natureza das circunstâncias em causa. Uma e outra não se confundem”. (Op. Cit., p. 147).

Defende que o problema  consiste em interpretar o silêncio como manifestação de certa vontade, ou não, conforme exista, ou não, certa obrigação de falar. Indaga : “Como cogitar de abuso de direito, se uma parte, v. g.., sob o fundamento do silêncio-consentimento, exigir da outra uma prestação e esta reconhecer aquela forma indireta de aceitação e cumprir a obrigação?

Observa que transferir para a questão do silêncio a do  abuso do direito é sair de uma areia movediça para entrar em outra. Embora  reconheça o princípio do abuso do direito, aponta dissenso dos juristas quanto ao critério regulador desse princípio.

Destaca, outrossim, que há a hipótese de que, fora do campo contratual, a noção de culpa venha a lhe servir de fundamento, mas, em tal caso, não se defronta com um abuso do direito de abstenção.

“O que ocorre é a violação de um dever de agir ou de falar, dever esse imposto por essa mesma solidariedade social”. Podendo ser assentado sobre o princípio da solidariedade social, a questão do silêncio é pura forma de manifestação do querer.

Finaliza, dizendo que todos os juristas e a jurisprudência afirmam, unanimemente, que para existir abstenção culposa é necessário preexistir obrigação de agir. “Há deveres gerais de fazer. Assim, a atitude de um guarda, deixando o seu inimigo atravessar um ponto perigoso sem adverti-lo, ou quando se ausenta de seu posto, falta com os seus deveres de vigilância e de que resultou um acidente”. ( O silêncio..., p. 147, 148).

 O atual Civil brasileiro, no livro III, título I, capítulo I, que trata do negócio jurídico, consigna o silêncio como expressão de vontade, mas dentro de reservas. Não se trata de regra geral aplicada a todas as situações.

“Art. 111 - O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”.

A obra de  René Propesco “Le silence créateur d’obligation et l’abus du droit”  traz as conclusões infra, compendiadas por CARVALHO SANTOS:

De acordo com o autor francês, o problema do silêncio, encarado como descrito anteriormente, não resolve todos os casos nos quais o silêncio pode produzir efeitos. “Porque se faz depender a circunstância do silêncio valer como declaração de vontade do fato de haver relações de negócios anteriores entre as partes, necessariamente essa fórmula não abrangeria muitas outras hipóteses, em que do silêncio resultou prejuízo a outrem , sem a ocorrência daquela sequência de transações”.

Deste modo, se X não previne Y, sendo que este considera concluído o negócio e informa sobre a remessa do objeto supostamente contratado e, com esse fato, realiza despesas, mesmo inexistindo relações anteriores entre eles, Y teve prejuízos e X é obrigado a repará-los. Porém, essa obrigação de reparar não é resultante de obrigação  moral ou jurídica de falar, nem se poderá admitir que seja  corolário do princípio de valer o silêncio como manifestação de vontade. (Cf. Op. Cit., p. 369).

“A doutrina do abuso de direito é que resolve a hipótese. René Propesco isso demonstra de modo satisfatório, acrescentando:

“Conciliam-se, assim, as duas concepções contrárias: aquela que não admite que se possa forçar alguém a dar uma resposta e aquela que obriga a falar em certos casos. Se, com efeito, eu tenho o direito de não responder a uma oferta que me fazem, não tenho, porém o direito de abusar de meu silêncio, quando me calando vou prejudicar cientemente a outrem. Eu fico, pois, responsável, porque, em me conservando calado, eu agravei a situação de um terceiro, quando com uma simples palavra de minha parte poderia ter esclarecido minhas intenções e lhe evitar danos inúteis. Há, portanto,  abuso do direito”. (Cf. CARVALHO SANTOS. Op. Cit., p.370).

Conclui CARVALHO SANTOS que o silêncio pode constituir abuso do direito, se o agente/titular guarda silêncio, sabendo que esse ato prejudica a outrem; se o silêncio resulta de negligência do agente, de uma maneira incorreta de usar seu direito, há abuso, com a consequente obrigação de reparação dos danos advindos.  “A responsabilidade existe em não fazer aquilo que se podia acreditar fosse feito, como diz Emmanuel Levy; nós somos responsáveis na medida em que terceiros confiam em nós para agir”. (Op. Cit., p. 370).

10.4 - ATOS EMULATIVOS

A teoria do abuso de direito é vasta, conforme já dissemos, e os atos de emulação constituem um capítulo da mesma e têm um tratamento autônomo, principalmente tendo-se em relevo sua longa história que lança luzes no direito romano.

Foram os atos de emulação que deram impulso à formação da doutrina geral do abuso do direito, através do direito medieval e das primeiras codificações. Encontramos, na doutrina italiana, que, quem exercita o direito por nenhuma utilidade, mas com intenção de ocasionar dano a outrem comete ato emulativo, quer dizer, abuso do direito. (Cf. CHIRONI, G. Elementi di diritto civile. Torino: Fratelli Bocca Ed., 1914, p. 103).

O atual Código Civil italiano fala em ato emulativo referente à propriedade ( art. 833). Relativamente ao abuso do direito, este é tido como contraditório à utilização de um direito para fins diversos daquele que a lei objetivou tutelar, sendo prescindível sua colocação em texto expresso.

10.4.1 - CONCEITO –

Atos emulativos são os atos de exercício de um direito, que enquanto produzem dano material a outrem,  não beneficiam a quem os realiza, e que, além disso, foram determinados exclusivamente pela intenção de prejudicar terceiro. São atos ilícitos, não por acarretar prejuízo, porquanto o exercício regular do direito pode, igualmente, ocasioná-lo, não porque não trazem benefícios ao titular do direito, mas sim pelo intuito maldoso. (Cf. COVIELO. Op. Cit., p. 485).

Anteriormente à vigência do Código Civil  italiano de 1942 (este contém proibição ao proprietário da prática de atos emulativos - art. 833), o problema de sofrerem proibição aqueles atos ou serem permitidos não se achava resolvido entre os tratadistas. Os partidários de sua proibição davam o fundamento de que a lei não devia proteger o ato doloso de quem se vale do próprio direito para danar outrem, invocando os princípios da moral e do direito, e  que não devemos ter indulgência com atos originados de más intenções (Malittis non est indulgendum). Ainda : A proibição funda-se sobre o princípio geral de que só o interesse pode justificar a proteção da lei.

Os que negavam a proibição, arrazoavam aduzindo a integridade e plenitude do direito. A lei não podia apadrinhar o dolo, mas não se pode duvidar que o titular tenha realmente direito de exercitá-lo, conforme lhe convier, sempre que a lei ou outra limitação expressa não o impeça. Mesmo porque o juízo sobre a intenção, além de fundar-se em elementos sinistros, dada a matéria sobre a qual se atua, seria ainda uma contínua ameaça, uma fonte de controvérsias que impediriam o titular de atuar, quando seus interesses se fizessem necessários. ( Cf. CHIRONI, Gonario. La culpa en el derecho civil moderno. Trad. Bernaldo de Quirós. Madrid: Ed. Reus, 1928, t. II, p. 381, 382).

Após examinar outras teorias, conclui o mestre de Turim que a  proibição dos atos emulativos deduz-se do conceito exposto do abuso do direito; estarão proibidos, enquanto por eles  o agente abusa de seu direito, e há no abuso uma parte lícita em seu exercício, e outra ilícita que não pode reputar-se como ato legítimo; o ato será lícito, enquanto induza uma modificação sobre o objeto do próprio direito, e será ilícito o mesmo ato, enquanto sua realização obedeça ao propósito de prejudicar a terceiro... A razão da responsabilidade assenta-se nesse propósito, não só pelo dano produzido, senão em haver desviado intencionalmente de seus próprios fins o direito contra as normas gerais características de sua  prístina função social,  e que por isso impõe-se a todos. Para o autor, não é necessária disposição expressa de proibição dos referidos atos. (Op. cit., p. 383)

Para que as noções do  abuso e ato emulativo  se fixem mais claramente, lançamos mão da doutrina de AZZARITI e MARTINEZ:

Contudo, se os atos emulativos, sob o aspecto de sua antítese com o escopo do direito, vão exatamente enquadrados na geral proibição do abuso do direito, bem mais amplo e comprensivo se nos apresenta o conceito de abuso do direito, pelo qual deve prescindir totalmente da particular e difícil indagação sobre a boa-fé do sujeito (a má-fé é, diversamente, inseparável do conceito de emulação), e estabelecer-se,  com critérios meramente objetivos, se o ato do indivíduo contrasta com o escopo pelo qual o direito mesmo é concedido. (Cf. Op. Cit., p. 18, 19).

Doutrina antecedente ao atual Estatuto Civil português, ao argumento de que o direito só tinha por limites seu próprio conteúdo e os que são expressos na lei, entendia que a lei portuguesa não proibia os atos emulativos (Cf. MOREIRA, Guilherme A. Op. Cit., p. 633). Portanto, desde que o titular respeitasse os referidos limites, poderia exercitar seu direito com o fim único de causar dano a outrem.

A proibição de atos emulativos encontra-se no atual Código Civil português, enquadrada no amplo conceito do abuso de direito, quando diz ser abusivo o excesso dos limites impostos pela  boa-fé , pelos bons costumes  ou pelo fim social ou econômico do direito (artigo 334).

No nosso direito, no Código Civil de 1916 (art. 160) ao consignar o legislador o exercício regular,  quis significar que o direito deve ser contido, razoável, o que nos conduz para uma ação justa. Sendo exercido o direito dolosamente, caracteriza-se o  animus emulandi. Observa BEVILÁQUA “Desde muito cedo, as melhores consciência sentiam que o direito deve ser exercido dentro de certos limites éticos.” (Op. Cit., p. 424).

No Código atual, considerando que a equidade e a solidariedade são princípios que permeiam todo seu contexto, estão os atos emulativos inseridos na disciplina do abuso do direito, conforme já vimos.

ATOS EMULATIVOS caracterizam-se pela competição, rivalidade, concorrência. Recentemente, tem-se argumentado sobre a existência de outra figura que é o ASSÉDIO PROCESSUAL. Assédio  encerra perseguição, neste caso,  ligada a uma demanda judicial. A parte usa e abusa de seu direito, sem qualquer benefício próprio, apenas para protelar o feito, causando transtorno à outra parte. Parece-nos que essa atitude não se afasta do conceito geral do abuso do direito, no seu aspecto subjetivo (animus nocendi).

De há muito o STJ reconhecera o abuso do direito ao recurso (Cf. Agravo Regimental no REsp. mº 155.150-RS, j. em 1998).

11 - CONCORRÊNCIA DE CULPAS

Nesse caso, o ato deixa de ser lícito. Adotando-se a teoria da extrajuridicidade, acolhida por PONTES, pode-se falar aqui, ao contrário do ato em estado de necessidade, em concorrência culposa, visto que o fato não é simplesmente um ato-fato, mas ato que entra no mundo jurídico, ao por em ação as faculdades de um direito.

12 - NATUREZA DA RESPONSABILIDADE NO EXERCÍCIO DO DIREITO

No exercício do direito, especificamente cuidando-se de construção de obra, não é raro ocorrer o conflito de direitos. Há tempos a matéria esteve aos cuidados da jurisprudência, conforme podemos notar no RE n. 84.328, julgado pelo STF, em l3/abril/1977, sendo relator o Min. Xavier de Albuquerque. Os artigos correspondentes no atual Código Civil estarão entre parênteses.

Cuidava-se de ação interposta pela locatária de prédio arruinado pela construção vizinha. Pleiteou a autora perdas e danos contra a proprietária da obra em construção, por ter de desocupar o imóvel e locar outro, o que lhe trouxe maiores despesas.

Em primeiro grau, a sentença acolheu o pedido, em parte, condenando a ré ao pagamento das diferenças de alugueis mais o valor atualizado das instalações perdidas.

Em apelação, a ré alegou ilegitimidade passiva  ad causam, prescrição, ausência de prova do dano e do nexo causal entre o evento danoso e a construção. O Tribunal entendeu ser a proprietária parte legítima, como proprietária da obra, cuja responsabilidade era solidária com os construtores.

A ré interpôs recurso extraordinário suscitando : prescrição da ação,  responsabilidade do construtor que era tecnicamente habilitado, inadmissibilidade da correção monetária. Fixar-nos-emos somente no ponto que diz respeito à matéria versada neste trabalho : responsabilidade civil no exercício do direito.

Sobre essa responsabilidade destacou o eminente relator, Min. Xavier de Albuquerque, em seu voto, o reconhecimento do dissídio jurisprudencial. A jurisprudência do STF modificou-se, gradual e hesitantemente, nas  últimas quatro décadas, sobre o tema. Decisões mais antigas, embora não uniformes, assentaram por cerca de vinte anos ser a responsabilidade do construtor e não do dono da obra, exceto por prova de culpa  in eligendo do dono ou, até mesmo, culpa  in vigilando.

Na segunda metade da década de cinquenta, as decisões variaram, começando a surgir decisões proferidas em sentido diverso, consagrando a solidariedade entre o construtor e o dono da obra,  ainda que sem culpa deste último. Por fim, surgiu interpretação intermediária, admitindo a responsabilidade do dono não solidária com a do construtor, mas  subsidiária desta, se inidôneo ou insolvente o empreiteiro.

Firmou o relator ser mais correta a corrente que aponta a responsabilidade  solidária, por traduzir o entendimento posterior do STF.

Manifestou-se o Min. Cunha Peixoto em posição divergente, não sem antes tecer precioso estudo sobre a matéria da responsabilidade civil. Argumentou que nosso Código Civil  de 1916 adotou como regra geral o princípio da culpa para fundamentação da responsabilidade,  sendo a teoria objetiva exceção e, consequentemente, impõe a existência de disposição expressa nesse sentido, e que inexistem dispositivos que autorizam, nas relações entre vizinhos, a aplicação da teoria do risco . Assim, se a responsabilidade por prejuízos causados a vizinho baseia-se na culpa, evidentemente só poderá ser responsável quem causou o prejuízo, salvo nas hipóteses mencionadas, no Código, de responsabilidade por fato de outrem (guarda, direção, autoridade). 

Concluiu que a responsabilidade, em se tratando de construção, é  direta e única do empreiteiro , pois este age livremente, sendo indiferente ao dono da obra a forma pela qual se conduz, só lhe interessando a conclusão. Além disso, não existe qualquer relação de subordinação entre o dono da obra e o empreiteiro; este último não é preposto daquele e seu mau desempenho recai integralmente sobre ele.

A responsabilidade do proprietário só ocorrerá quando agir com culpa na escolha do empreiteiro ( culpa  in eligendo), não se podendo falar em culpa  in vigilando, porque sendo o proprietário um leigo, não pode ditar ordens ou instruções ao construtor. Sobrevindo insolvência, durante a construção, nenhuma responsabilidade tem o dono  da obra, em virtude da imprevisibilidade.

Em síntese : construindo em seu terreno, o proprietário está no exercício regular de um direito reconhecido.

Além do mais, não se diga, como os partidários da doutrina da responsabilidade fundada no direito de vizinhança, haver o Código Civil (anterior) ressalvado o direito dos vizinhos, ao assegurar ao proprietário a faculdade de levantar construções que lhe aprouver (art. 572) (atual art. 1299):

“O proprietário pode levantar em seus terrenos as construções que lhe aprouver, salvo direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.”

Mas esse citado artigo   está em harmonia com o artigo 554 ( art.1277):

“O proprietário, ou inquilino de um prédio, tem direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a    segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam..”.

Enfatizou Cunha Peixoto que “Esses dispositivos não justificam o entendimento dos partidários desta corrente. Com efeito, como se verifica, o art. 572( 1299) ressalva as situações previstas nos artigos subsequentes, nos quais não se encontra suporte para responsabilizar o dono do terreno, quanto ao dano e prejuízos causados a terceiros, entre eles os vizinhos, durante a construção”.

“As regras contidas nos arts. 554 a 558 ( arts. 1277-1284), que se encontram no capítulo - Dos Direitos de Vizinhança -  e que disciplinam o uso nocivo da propriedade constituem  regras que excepcionam o direito à propriedade imobiliária, de sorte que têm de ser interpretadas restritivamente... Assim, a inteligência que se lhes dê não pode aumentar as restrições enumeradas nos artigos subsequentes ao 572 (1299) do Código Civil”.

Finalizou o revisor que, se o proprietário constrói, observando todas as regras legais e regulamentares, usa de seu direito. Se a construção é entregue a profissional legalmente habilitado e de abonada situação financeira e que não é preposto seu,  não se responsabiliza por ato daquele. A culpa do proprietário do terreno só poderia ser  in eligendo”.

Concluindo, admitiu ser a responsabilidade direta do construtor e subsidiária do dono da obra.

Acompanhou o voto do relator ( responsabilidade solidária) o Min. Cordeiro Guerra; destacou que, se o construtor é inidôneo.., seria razoável responder  pelo dano o dono da obra e não o vizinho arcar com o prejuízo, que não teria nenhum proveito. Concluía : “Também  acho que na linha de frente está a responsabilidade do construtor. Mas não isento de modo nenhum o proprietário da obra solidária ou subsidiariamente. Se o Tribunal local reconheceu a responsabilidade solidária.... acho que o fez bem, porque ele defendeu a parte que merece tranquilidade, que é o vizinho”.

O Min. Leitão de Abreu acompanhou o voto do relator e transcreveu o posicionamento do Min. Rodrigues Alckmin:

A propósito do tema existem duas teorias. Uma sustenta que a ação deve voltar-se contra o construtor, por possuir a guarda da coisa, durante a construção; Outra entende ser responsável o proprietário, considerando que as obrigações resultantes da vizinhança, pertencem a ele e o contrato firmado com o construtor é res inter alios acta; e aquele que tem as vantagens da propriedade deve suportar-lhe os riscos. Cabe a ele o direito regressivo contra o construtor.

Anotou o ministro citado serem as teorias compatíveis. Sendo o empreiteiro responsável exclusivo da construção, não será preposto do dono. Logo, não se fala no artigo 1.521, III (932,III) Código Civil (responsabilidade por empregados e prepostos..); e, se não houve culpa do proprietário, também não é lícito  invocar o artigo 159. Logo, o proprietário será responsável em face do artigo 572 (1299) C. Civil. (a expressão “salvo direito dos vizinhos” é suficiente para resguardá-los). Em relação ao empreiteiro, é necessário apelar para o artigo 159 (186) (culpa). Conciliam-se, assim, as duas teorias, podendo o vizinho acionar o proprietário ou o empreiteiro ( este último, em caso de culpa); o proprietário por infração de uma obrigação legal, qual seja, a de respeitar os direitos do vizinho, e não por ato ilícito. (Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência dominante consagra a solidariedade entre o construtor e o dono da obra, mesmo sem culpa deste, pelos prejuízos causados ao vizinho. RE .n. 84.328. Drogasil LTDA versus Massa Falida de Casa Alberto Presentes LTDA. Relator: Xavier de Albuquerque. Acórdão de 13 de abril de 1977. Revista Forense ( R.Janeiro). V. 260, p. 197-202, out/nov/dez., 1977).

Posteriormente, ainda lastrado no Código  anterior, Julgado  do egrégio Superior Tribunal de Justiça demonstrava  não pairar dúvidas quanto a essa responsabilidade solidária.

BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. O proprietário da obra responde, solidariamente, com o empreiteiro, pelos danos que a demolição de prédio causa no imóvel vizinho. (REsp. n. 43.906-RJ.  Casa Granado, Laboratórios Farmácias e Drogarias S/A versus Estado do Rio de Janeiro. Relator : Min. Ari Pargendler. Acórdão de 20/maio/1996. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 734, p. 254-257).

Cuida-se de ação de indenização ajuizada por Casa Granado, Laboratórios, Farmácias e Drogarias S/A contra o Estado do Rio de Janeiro, em que aquela pretendia ver-se indenizada pelos danos ocasionados ao seu  prédio, por causa de demolição no imóvel vizinho de propriedade do réu. Requereu  o pagamento de lucros cessantes pelo não recebimento de aluguéis e encargos, por necessidade de desocupação do imóvel danificado, durante o período de duração das reformas.

Respondeu o Estado, requerendo, preliminarmente, carência de ação, pois a parte legítima seria o Departamento de Trânsito (autarquia), já que o réu cedera o imóvel a ele. Requereu a denunciação da lide da empreiteira Demolidora J. Francisco dos Santos LTDA. No mérito, em face da demora para o ajuizamento da ação,  alegava não ser possível, àquela altura, discernir com clareza se houve ou não o nexo de causalidade entre a demolição e os danos no prédio vizinho.

O Juízo de primeiro grau aceitou a denunciação e condenou o réu e a denunciada, decisão mantida  em segundo grau, com a seguinte conclusão:

“A preliminar de ilegitimidade passiva, suscitada pelo réu deve ser rejeitada. O apelante é proprietário do prédio vizinho ao da autora. Para  a demolição contratou os serviços da denunciada à lide. Os danos causados ao imóvel da firma apelada resultaram da demolição. A legitimidade do apelante é evidente; rejeita-se, portanto, a preliminar. No mérito, está devidamente caracterizada a necessidade da desocupação do imóvel pela apelada para a realização de obras de recuperação. Impõe-se, portanto, o recebimento dos lucros cessantes (alugueres e encargos) durante o período de desocupação. Nega-se provimento ao recurso.”

Decidiu pela responsabilidade do proprietário da obra, assegurando o direito regressivo contra o empreiteiro.

Interposto o recurso especial, com base no art. 105, III, letra  c, da Constituição Federal, e por divergência de julgados do STF e do TJSP, foi admitido. Debatia-se o Estado pela responsabilidade exclusiva da empreiteira.

O voto condutor citou lição de Hely Lopes Meirelles que aponta a responsabilidade solidária do construtor e do proprietário pela reparação civil de todas as lesões patrimoniais causadas a vizinho, pelo só fato da construção. Excepcionalmente, admite-se a redução dessa responsabilidade, provando-se a concorrência de eventos de ambos os vizinhos para a lesão, quando a obra lesada já se encontrasse abalada, trincada ou desgastada pelo tempo e tais defeitos agravaram-se com a construção vizinha.

A egrégia 2ª. Turma não conheceu do recurso, por unanimidade, apoiando a tese da responsabilidade solidária.

A natureza solidária é defendida por HELY LOPES MEIRELLES. Comumente, pela sua própria natureza, a construção causa dano ao vizinho, mesmo sem culpa dos executores. Devem ser reparados por quem os causou e por aquele que aufere vantagens da construção. Consequentemente surge a  solidariedade do construtor e do proprietário. É uma responsabilidade independente de culpa de ambos, consagrada pela lei civil “Como exceção defensiva de segurança, da saúde e do sossego dos vizinhos (art. 554).”            (1277).

É um encargo de vizinhança previsto no artigo 572 (1299) do Código Civil e não tem relevância para o vizinho a natureza do contrato de construção ( seja empreitada ou administração); é ato  inter alios , indiferente a terceiros.

A jurisprudência brasileira firmou-se na responsabilidade entre eles e na dispensa de prova de culpa pelo evento danoso ( a responsabilidade é objetiva), mas admite redução da indenização, quando a obra prejudicada, de certa forma, concorreu para o dano, seja pela insegurança ou defeito em sua construção. “O que solidariza e vincula os responsáveis pela reparação do dano é, objetivamente, a lesão aos bens do vizinho, proveniente do fato da construção, fato este proveitoso tanto para o dono da obra como para quem a executa com o fim lucrativo”. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. S. Paulo: Ed. Rev Tribunais, 3ª. ed., 1979, p. 257 - 259).

Vê-se que, ao contrário da opinião exposta anteriormente pelo ministro LEITÃO DE ABREU, tirada de RODRIGUES ALKIMIN, não é exigida culpa do construtor.

Atualmente, confirmam a natureza da responsabilidade solidária os seguintes julgados: Resp. 28368/SP e Resp. 180355/SP, publicado em 18.12.2006.

13 - DIREITO DE CRÍTICA

Segundo  conceitua CHIRONI, esse direito é entendido, em seu sentido amplo e geral, como a faculdade ou poder jurídico da pessoa para examinar toda produção, todo ato de alguém, enquanto esta produção e estes atos tenham sido voluntariamente apresentados ao público pela pessoa que o faz.

Quem, pela posição que ocupa, seja política, científica, literária, comercial ou industrial, apresenta-se  ao público e daí se submete a seu juízo no que se refere às próprias obras, próprias da posição assumida,  não recebe ofensa do juízo que de tais obras se dê publicamente; quem se expõe a ele deve recebê-lo, ainda mais se o buscou expressamente deve, portanto, recebê-lo como consequência de sua  condição social voluntariamente aceita. Porém,  o ato é legítimo se se referir objetivamente ao ato ou à obra; ao contrário,  se o juízo for emitido para ofender a pessoa, é  abuso do direito.

E, se aparentemente, o fato fosse justo, mas em sua finalidade dirigido a ofender, e ultrapassando, além disso, os termos dentro dos quais aparece limitada a exposição que uma pessoa faz de si ou de suas obras ao público, haverá uma extralimitação por parte de quem emite o juízo, porque se excede no seu  direito. (Cf. CHIRONI. La culpa..., p. 405, 406).

A Lei de Imprensa brasileira, n. 5.250/1967,  há  pouco declarada inconstitucional, excepcionou que não constituem abuso da liberdade de informação os atos veiculados, se forem fiéis e feitos de modo que não demonstrem má-fé, nos casos apontados  no art. 27:

“I - a opinião desfavorável da crítica literária, artística, científica ou desportiva, salvo inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;

II - ( omissis);

III - noticiar ou comentar, resumida ou amplamente, projetos e atos do Poder Legislativo, bem como debates e críticas a seu respeito;

IV - ( omissis);

V - (omissis);

VI - a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa;

VII - a crítica às leis e a demonstração de sua inconveniência ou inoportunidade;

VIII - a crítica inspirada pelo interesse público;

IX - a exposição de doutrina ou ideias.”

O Código Penal brasileiro, especificamente referindo-se à injúria e difamação,  contempla como excludentes de criminalidade ( melhor teria sido dito exclusão de punibilidade), no artigo 142 :

“II - A opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar”.

O artigo 17 do Código Civil de 2002 veda o emprego de nome da pessoa, em publicações ou representações, que a exponham ao desprezo público, independentemente da intenção malévola. Igualmente o art. 20 estabelece limites a veiculações de conteúdo ofensivo à honra da pessoa.

14 - ATOS DE PARLAMENTARES

Os membros do Parlamento (mandatários do povo) não respondem por suas manifestações de pensamento, enquanto se referem ao exercício de suas funções, em seus discursos, com relação às pessoas e às coisas. É uma garantia que não deve sofrer limitação em sua absoluta integridade, em função de um interesse geral. Sem esta garantia, o temor ou respeito, gravemente perniciosos à utilidade pública, poderiam alterar o exercício normal de uma função, cuja essência é a defesa do interesse coletivo.

Por conseguinte, tais atos entram na categoria de  exercício normal e legítimo do direito. (Cf. CHIRONI. La culpa.., p. 415)

A atual Carta Magna brasileira dispõe, no art. 53, caput, serem os Deputados e Senadores invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos. Inviolabilidade que se estende aos Deputados Estaduais (art. 27, § 1º) e aos vereadores (art. 29, VIII), sendo que, no tocante a estes últimos, o âmbito de atuação restringe-se à circunscrição do Município e no exercício do mandato.

15 - ATOS JUDICIAIS

Extrapola os objetivos deste trabalho o estudo da questionada responsabilidade, porquanto a matéria buscada é a exclusão de ilicitude e não de irresponsabilidade, porém a ligeira referência serve para indicar que o exercício irregular ou abusivo  da atividade judicial não está imune de reparação, sob o pretexto de que essa função consiste em manifestação da soberania, para acobertamento de abusos. (A respeito da responsabilidade do juiz, confira SILVA, Juary C. A responsabilidade do Estado por atos judiciários e legislativos. São Paulo: Saraiva, 1985).

Sobre a responsabilidade do  Magistrado é importante observar que a matéria é controvertida, não obtendo  consenso tanto em doutrina quanto em jurisprudência. Não se pode olvidar a responsabilidade civil do magistrado, que é pessoal, prevista no art. 133 do Código de Processo Civil, e que não se vincula à responsabilidade civil objetiva do Estado, prevista na Carta Magna, por atos ilícitos de seus servidores, e a ação regressiva caberá somente  se o servidor for culpado.

Mesmo quanto a essa responsabilidade pessoal, doutrina mais recente apregoa que a mesma se insere na responsabilidade objetiva do Estado, declarada no art. 37, § 6º. da Carta da República, , uma vez que nele se encontra a expressão “agente”, não havendo razão para excluí-la dos casos de danos por atos judiciais, já que o serviço judiciário é, sem dúvida,  um serviço público, sendo os atos praticados pelo magistrado diretamente imputáveis ao Estado.  A responsabilidade por atos judiciais, neles se incluindo os jurisdicionais, é uma espécie do gênero da responsabilidade objetiva por atos decorrentes do serviço público, e o magistrado é um agente público que atua em nome do Estado.

Há quem afirme que as disposições do art. 133 do CPC, ao expressar responsabilidade direta, destoa do  nosso sistema constitucional que, desde a Constituição de 1946,  acolhe a teoria da responsabilidade primária do Estado, como também o direito regressivo, em caso de culpa do agente. “Não se elide com isto a responsabilização pessoal do magistrado, que há de ser obrigatoriamente levada a cabo pelo Estado (em um segundo momento) mediante ação regressiva, nos casos de dolo ou culpa, que, aliás, não se restringem àqueles previstos na lei adjetiva civil (art. 133, I e II) como requer o princípio da igualdade entre os agentes públicos, bem como o do devido processo legal em seu sentido material (substantive due process)”. ( DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. In Revista dos Tribunais. São Paulo, V. 710, p. 225-230, dez/94).

A doutrina  recente, divergindo da jurisprudência mais conservadora, tem admitido a tese da responsabilidade do Estado por atos judiciais, os quais podem originar-se de culpa pessoal do magistrado, culpa anônima do serviço ou independente de culpa, cabendo ação regressiva no caso de dolo, fraude, culpa grave

“ Art. 133 : Responderá por perdas e danos o juiz, quando:

I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.

Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no n. II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não lhe atender o pedido dentro de dez (10) dias”.

Esse texto é reproduzido pelo art. 49 da  Lei Orgânica da Magistratura, com pequena alteração que não afeta sua substância.

Vários artigos sobre o tema são encontrados na web, para os quais remetemos o leitor.

16 -  DIREITO DE ESTAR EM JUÍZO E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ

O reconhecimento do direito de estar em juízo é pacífico e deriva do princípio fundamental da igualdade entre os homens. O direito de agir na Justiça, diz também a doutrina francesa, é um direito cujo exercício não acarreta, em princípio, nenhuma responsabilidade, mesmo se a pretensão for repelida, ainda que o processo tenha necessariamente causado um constrangimento à outra parte. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 83).

Ocorre verificar agora caso específico de exercício do direito de modo não regular. Houve por bem o legislador, ao condenar o ingresso em juízo com fins outros, senão o de obter a prestação jurisdicional em situações onde há litígio. Não fosse essa proibição, estaria o Poder Judiciário servindo de instrumento para vinganças ou para acobertar interesses mesquinhos. É certo que propor uma ação judicial ou nela prosseguir não constitui, em si, abuso do direito e mesmo a mera improcedência do pedido não acarreta a obrigação de indenizar para  a parte que sucumbiu. A sucumbência encerra uma responsabilidade de natureza especial, mas que não se confunde com responsabilidade pela litigância de má fé.

Tanto para o autor, quanto para o réu ou requerido, estar em juízo é um direito sagrado. Não se pode aplicar aos litígios o que foi visto sobre lesão de um direito. Quem leva uma demanda a juízo e perde não fere o direito do chamado em juízo, embora este vença a lide, porque o direito é duvidoso. Ocorre o mesmo com o réu que sucumbe. Mas não é bastante que algum direito seja defendido para que o autor do fato danoso fique isento da ação de perdas e danos, mas ainda é preciso que tenha usado de boa-fé o seu direito e sem má intenção. Aquele que se defende, portanto, poderá ser condenado a perdas e danos se abusou de seu direito.

Antiga jurisprudência francesa, à falta de disposição expressa  em lei, limitava a responsabilidade do litigante temerário em caso de agir de má-fé. (Cf. LAURENT. Op. Cit., p. 312, 313).

Em grande número de decisões, aquela jurisprudência definia o abuso do direito de estar em Juízo como o constituído, no ato de um litigante, pela malícia, má-fé ou erro grosseiro equivalente ao dolo. Outras decisões caracterizavam-no  como ação maliciosa ou de má-fé. Outras vezes os tribunais pareciam confundir o abuso com o caráter vexatório da ação ou do procedimento, por vezes associados a seu caráter temerário. Para outros, seria a demanda não séria. Por fim, seria a ação intentada  maldosamente ou temerariamente. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 84)

 Qualquer que seja o  processo, há abuso na intenção de prejudicar, com maldade e má-fé. Mas, além disso, quando a ação é desonrosa para o réu ou de natureza a acarretar-lhe consequências desastrosas  não é suficiente  para isentar de responsabilidade, estar isento de má-fé ou falta grave; é , de fato, um dever elementar  não intentar uma tal ação, sem ter tomado as precauções necessárias para não cometer injustiça. Em verdade, existe então um prejuízo diverso do simples exercício da ação. A temeridade, a simples leviandade degeneram em abuso. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 85, 86).

Na Justiça, o abuso pode ocorrer em todas as fontes de procedimentos utilizados : pode resultar de uma defesapode ser criado ou agravado mediante o uso de uma via de recurso ordinário ou extraordinário; pode originar-se da avaliação exagerada de uma demanda, principalmente se ela tem por objetivo retirar artificialmente o conhecimento do processo da jurisdição normalmente competente; deriva ainda de procedimentos meramente dilatórios do feito; liga-se aos procedimentos destinados a aumentar gastos pela outra parte, sem utilidade apreciável para o desenvolvimento do processo.

Em matéria de penhora, arresto, o abuso deve ser reconhecido mais facilmente, porque se trata de medida grave, à qual só se deve recorrer em último caso. A penhora de um objeto importante para um crédito mínimo pode legitimar condenação de perdas e danos. O mesmo ocorre na oposição que paralisa a negociação da quase totalidade das ações de uma sociedade, a persecução da penhora em virtude de título que se sabia duvidoso e incerto, a penhora feita em prejuízo de devedor de notória solvabilidade e que não havia se recusado a pagar. Também há responsabilidade quando a parte, mediante artifícios, utiliza-se de uma forma de penhora no lugar de outra, ou uma penhora no lugar de uma ação de nulidade, de modo a transferir o ônus da prova. A ação de declaração de falência pode ser tratada da mesma forma que a penhora e declarada abusiva se o comerciante, cujos pagamentos tivessem sido momentaneamente paralisados, possuía um ativo superior ao passivo. (Esses casos foram extraídos da jurisprudência francesa, da primeira metade do século, dos quais nos dá ciência SAVATIER. Op. Cit., p. 87, 88).  

 O nosso Código de Processo Civil dispõe no artigo 600 o que considera atentatório à dignidade da Justiça (é um abuso do direito de qualificação  acentuada, que não envolve apenas o credor, mas sim um dos Poderes do Estado) as situações do devedor que: fraudar a execução; opor-se maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; resistir injustificadamente às ordens judiciais; não indicar ao juiz onde se encontram os bens sujeitos à execução. 

No direito argentino, HENOCH AGUIAR traz-nos posição da jurisprudência:

“ Si  la  acción deducida importa un uso anormal y abusivo de un derecho, debe responsabilizarse al actor, al procurador que lo representa y al letrado que lo patrocina”. (Op. Cit., p. 98).

Acolhendo a responsabilidade de todos os atuantes, evita-se até mesmo que o titular do direito se deixe levar por profissional despreparado e, sentindo  este que igualmente lhe pesa a responsabilidade, pensará melhor nos meios de lidar com a Justiça.

Embora seja regra de direito material, o nosso Código de Processo Civil  traz textualmente a situação versada, ao dispor sobre a responsabilidade das partes por dano processual, inserida no capítulo que cuida dos deveres das partes e dos seus procuradores.

“Art. 16 - Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente”.

“Art. 17 - Reputa-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidentes manifestamente infundados”.

A aplicação da responsabilidade poderá ser de ofício, indenização que reverterá em proveito do lesado.

“Art. 18 - O juiz, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a indenizar à parte contrária os prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e as despesas que efetuou.

§ 1º. - Quando forem dois  ou mais litigantes de má-fé,  o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.

§ 2º. - O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20 % sobre o valor da causa ou liquidado por arbitramento”. (art. 18 e seu parágrafo 2º. de acordo com a lei n. 8.952/1994).

Conforme frisamos diversas vezes,  a expressão  “prejuízos”, contida no caput do artigo, tanto se refere a danos morais ou patrimoniais.

A responsabilidade por litigância de má-fé aplica-se ao processo de execução.

“Art. 574 - O credor ressarcirá ao devedor os danos que este sofreu, quando a sentença, passada em julgado, declarar inexistente, no todo ou em parte, a obrigação que deu lugar à execução”.

Aplica-se ainda a responsabilidade  sub examine ao processo cautelar.

“Art. 811 - Sem prejuízo do disposto no artigo 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a execução da medida :

I - Se a sentença no processo principal lhe for desfavorável;

II-   Se, obtida liminarmente a medida no caso do artigo 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro de cinco dias;

III- Se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808 deste Código;

IV- Se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor (art. 810);

Parágrafo único - A  indenização será liquidada nos autos do procedimento cautelar”.

O artigo 804, referido no inciso II, cuida da concessão de medida liminar sem audiência do réu.

O artigo 808 trata da cessação da eficácia da medida cautelar (quando a parte não intentar a ação no prazo de trinta dias; se a medida não for executada em trinta dias; se o juiz extinguir o processo principal, com ou sem julgamento de mérito).

O artigo 810 fala do acolhimento da prescrição ou decadência do direito do autor, caso em que o indeferimento da medida obsta a que a parte intente nova ação.

Outra disposição específica, acerca da litigância de má-fé, está contida no artigo 5º. , LXXIII, da Carta da República, que prevê a legitimidade de qualquer cidadão para propor ação popular, isentando-o de custas judiciais e ônus da sucumbência, salvo comprovada má-fé.

Ainda em legislação especial, encontramos na Lei nº 9279, de 14.5.1996, alterada pela Lei nº 10196/2001, reguladora de direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, na qual se encontram os crimes de concorrência desleal, a penalidade por abuso do direito:

“Art. 204 – Realizada a diligência de busca e apreensão, responderá por perdas e danos a parte que tiver requerido de má-fé, por espírito de emulação, mero capricho ou erro grosseiro”.

Já  foi dito que a previsão sancionadora do artigo 1.531 (atual 940)  do Código Civil não se confunde com a responsabilidade aqui versada. O artigo 1531 prevê penalidade ao que demanda dívida paga,  “No todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo , o equivalente ao que dele exigir, salvo se  houver prescrição”.

Há uma previsão específica, em matéria de difamação e injúria, de excludente de ilicitude penal, contida no atrigo 142, I, do Código Penal,  a saber:

“I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador”.

Em referência a esse dispositivo, observamos que a exclusão de ilicitude ( melhor seria tivesse dito o legislador exclusão de punibilidade) não implica, necessariamente,  em exclusão de ilicitude civil, pois que não se pode dizer, em rigor, que a situação prevista contém um exercício regular do direito ou legítima defesa  . A excludente em questão deverá ser estudada conjuntamente com o artigo 15 do Código do Processo Civil, que proíbe as  partes e seus procuradores de empregar  expressões injuriosas, quer sejam escritas ou orais. Sendo escritas, o juiz, no seu poder de polícia processual, mandará riscá-las; sendo verbais, advertirá o ofensor, podendo, inclusive, cassar-lhe a palavra.

Retornando à posição do Código Penal  e CPC, o  Estatuto da OAB ( Lei n. 8.906, de 4/julho/1994), em seu artigo 7º., § 2º., pareceu contrariar o vigor do artigo 15, ao preceituar que não constituem injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação do advogado no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB pelos  excessos cometidos. Observamos que tanto as partes, seus procuradores e magistrado devem nortear suas atitudes dentro de um conteúdo ético, sem ferir o direito de outrem.

É conveniente notar que o exercício do direito não goza de absolutismo e que o parágrafo  em comento teve declarada sua inconstitucionalidade no tocante à eficácia da expressão “ou desacato”  (ADIn 1.127-8/DF).

Quanto ao  artigo 811 (processo cautelar), a responsabilidade nele prevista independe da litigância de má-fé e funda-se no fato da execução da medida ( é uma responsabilidade objetiva criada pelo risco), embora possa coexistir com esta a responsabilidade por litigância de má-fé.

17 – EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE SENTENÇA

Por se tratar de execução de sentença pendente de recurso, embora sem efeito suspensivo, há uma situação de risco; por essa razão, toda cautela é necessária. Nessa cautela, poderá o exequente não atentar, fato que tornará seu ato  abusivo. Na 16ª. edição de sua obra mestra, anotou MOACYR AMARAL SANTOS que “Se processe com a observância de certas cautelas, de modo a tornar possível, sem maiores danos ao executado, a reposição de tudo em seu lugar, na hipótese da sentença exequenda ser reformada. À execução e observância dessas cautelas dá-se o nome de execução provisória”. (Primeiras linhas de direito processual civil. 16a. ed.,  S. Paulo: Saraiva, V. III, p. 212-213).

Na 25ª. edição, ano 2011, não se encontra o texto citado, embora advirta o autor sobre a responsabilidade do exequente, e os princípios enunciados a seguir estão disciplinados  no art. 475-O, do CPC.

- A ineficácia da execução provisória, em sobrevindo provimento de recurso interposto contra a sentença exequenda. A consequência desse princípio é a restituição das coisas ao estado anterior. Nessa restituição compreende-se a reparação de danos porventura ocorridos ao executado;

- A execução provisória é promovida porque o exequente não se dispõe a  aguardar o trânsito em julgado da sentença. Assume, portanto, a responsabilidade que dela resulte; correrá por sua conta e risco. Para garantia de tal risco, prestará caução real ou fidejussória (pelo próprio credor ou por terceiro), mediante arbitramento do juiz;

- A execução provisória não abrange atos que importem alienação do domínio, como também, não permite o levantamento do depósito em dinheiro, sem caução idônea. (Cf. Id. Ibid., p. 228, 229).

No capítulo X, que trata do cumprimento da sentença, expressa o art. 475-I, § 1º : “É definitiva a execução de sentença transitada em julgado e provisória quanto se tratar de sentença impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo”.

Para os títulos extrajudiciais dispõe o art. 587:  “É definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do executado, quando não recebidos com efeito suspensivo (art. 739).

O Código de Processo Civil, em seu artigo 574, dentro do livro II - processo de execução - expressa a responsabilidade do credor, consistente no ressarcimento ao devedor dos danos por ele sofridos, quando, passada em julgado a sentença, for declarada inexistente no todo  ou em parte a obrigação, que fundamentou a execução.

O art. 475-0 disciplina os princípios retro referidos, observando que a execução provisória  procede do mesmo modo que a definitiva :

“Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva, observadas as seguintes normas: (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

I – corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

II – fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento; (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

§ 1º No caso do inciso II do caput deste artigo, se a sentença provisória for modificada ou anulada apenas em parte, somente nesta ficará sem efeito a execução. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

§ 2º A caução a que se refere o inciso III do caput deste artigo poderá ser dispensada: (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

I – quando, nos casos de crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, até o limite de sessenta vezes o valor do salário-mínimo, o exequente demonstrar situação de necessidade; (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)

II - nos casos de execução provisória em que penda agravo perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça (art. 544), salvo quando da dispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação.  (Redação dada pela Lei nº 12.322, de 2010)”

Possibilitando a lei o exercício da execução provisória, forçoso é concluir que não se trata de ato abusivo. Onde, então, este residiria? Certamente, quando não seguidos os princípios necessários, porquanto o direito somente se consolida com a decisão transitada em julgado, da qual não caiba mais recurso.

Argumenta CHIRONI que, em matéria de responsabilidade, o juiz deverá ter em consideração a culpa e examinar se quem se valeu da execução provisória tinha justos motivos para temer o atraso; mas cabe indagar se esta objeção não implica em antepor a boa-fé da existência real do direito, e  ainda a razão de tal investigação, quando a lei não  a ordena como condição necessária para que o juiz possa conceder a execução provisória da sentença; e, porventura, as indagações privadas poderão substituir à apreciação feita pelo magistrado? (Cf. La culpa..., p. 379).

A jurisprudência francesa exigia a má-fé para responsabilizar o litigante, no caso de abuso do direito. Posterior decisão contentou-se com a simples  imprudência - decisão de 27/abril/1874. Segundo LAURENT, este é o verdadeiro princípio no exercício do direito (Op. Cit., p. 314).

Não pretendemos adentrar no estudo da execução provisória de sentença, porém registrar que ela constitui exercício regular do direito e que o abuso caracteriza-se quando não são obedecidos os princípios retro mencionados.

Vale, outrossim, ligeira referência à TUTELA ANTECIPADA, prevista no artigo 273 do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei n. 8.952/1994, quando o pedido for julgado a final improcedente. Ao contrário da indenização prevista para a execução provisória, naquela não houve qualquer referência expressa e, não havendo, não há o recurso à analogia, pois que ambas têm fundamentos diversos.

Além disso, se houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado ,ela não será concedida ( § 2º, art. 273).

Como nota ERNANE FIDELIS DOS SANTOS, “A antecipação é juízo de certeza do próprio juiz, sem que a parte possa ser responsabilizada, a não ser que, comprovadamente, usou de má-fé (Novos perfis do processo civil brasileiro. B. Hte.: Del Rey, 1996, p. 36). Evidentemente, agindo com dolo ou culpa, responderá a parte pelo ilícito. Ademais, o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu constituem uma das situações para a concessão da tutela antecipada ( art. 273, II).

18 - ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL

Nosso Código Civil não elenca, como fez o Código Penal (art. 23,III), o  estrito cumprimento do dever legal como excludente de ilicitude civil.

É de se registrar que alguns penalistas reconhecem ser o dispositivo supérfluo, pois seria um  contrassenso a lei impor um dever e posteriormente punir o agente pelo seu cumprimento.

A expressão dever legal, bem o diz, refere-se a qualquer lei, seja penal, civil, constitucional, administrativa, etc., dele excluindo-se os demais deveres  como éticos, sociais, etc., sendo o agente qualquer pessoa.

Esclarece MAGALHÃES NORONHA que o dispositivo excludente tem o mérito de explicitar que se deve ter presente qualquer lei, ou seja, uma norma de direito positivo e, então, não se cuida somente da lei, mas também de decretos, regulamentos, enfim, de norma geral, ditada pela autoridade pública na esfera de suas atribuições. (Cf. Direito penal. Saraiva, V. I, 1981, p. 210 e ed. 2009, p. 201). Não cuida o autor dessa excludente na jurisdição civil.

Por seu turno, HÉLIO TORNAGHI comenta a irrelevância da excludente na instância cível, citando arts. do Código Civil anterior, cujos correspondentes atuais são : 186, 188:

“É absolutamente irrelevante no juízo cível que no criminal se haja decidido ter sido o ato danoso praticado no estrito cumprimento do dever legal. Tal circunstância exclui a ilicitude penal, mas não a civil. Nem do art. 159 nem do 160 do Código Civil se infere a licitude civil do ato praticado no estrito cumprimento do dever legal. Ao contrário, o que é justo e razoável é que o dano seja ressarcido ou reparado. Na maioria dos casos ( aqueles a que os alemães chamam  Polizeinotstand ), o problema cai naquele outro das indenizações em direito Público. (V. Verb. “Ressarcimento, reparação e indenização”). ( Comentários ao Código de Processo Penal. R. Janeiro: Ed. Revista Forense, 1956, V. I, t. II, p. 138).

No Código Penal, além da previsão genérica, há uma específica de exclusão de criminalidade, cuidando da injúria e difamação, no artigo 142 :

“III - O conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever de ofício;

Parágrafo único - Nos casos dos números I e III, responde pela injúria ou difamação quem lhe dá publicidade”.

Aqui o legislador só fez  especificação de caso já absorvido pela previsão geral, evitando o trabalho do intérprete; a situação contida no inciso III acima revela cumprimento do dever legal.

No direito argentino, o artigo 1071 do Código Civil contempla duas situações diversas, ainda que girem em torno do mesmo princípio : A do exercício do direito por parte do sujeito ativo e a do cumprimento de obrigação legal por parte do obrigado. Mesmo que deles redundem consequências prejudiciais a terceiros, são atos lícitos, isto sem prejuízo do artigo 1109 que o completa , segundo HENOCH AGUIAR (Op. Cit., p. 97).  Diz o artigo 1109 : “A obrigação de reparar o daño causado por ato culposo rege-se pelas disposições relativas ao delito civil”.  Diferentemente do nosso Código, aquele emprega a expressão cumprimento de obrigação legal . Parece-nos que, em essência não ocorre diferenças.  Destaca a doutrina argentina que a obediência prevista  está incluída no cumprimento do dever e este, por seu turno, incluído no legítimo exercício da autoridade ou cargo, e que a obediência e o cumprimento do dever são especificações genéricas deste último, de forma que os três casos enunciados podem reduzir-se a um só : o cumprimento de uma obrigação legal de que trata o art. 1.071, substancialmente idêntico, por outra parte aos incisos IV e V do art. 34 do Código Penal Argentino. (Cf. AGUIAR, Henoch. Op. Cit., p. 99).

No âmbito de incidência da excludente de que se trata agora,  encontram-se os funcionários públicos, tutores, curadores, ou aquelas pessoas que estão sujeitas à obediência devida. Alcançaria obrigações derivadas de norma jurídica, não se estendendo ao campo de obrigações derivadas de contratos ou acordos.

A norma do Código Penal brasileiro aplica-se a qualquer particular, se age por imposição de dever posto em lei, embora grande parte das hipóteses tenha por endereço os agentes do Poder Público, no exercício de suas funções. Alguns deveres legais residem no exercício do poder familiar e tutela . Para educação  dos menores, por vezes, se torna necessário o emprego de certos constrangimentos que, fora dessa situação, consistiria ilícito. Os costumes tiveram certa tolerância na aplicação de castigos  aos menores por pais e tutores, porém tais atos não podem ser excessivos nem causar lesões físicas ou psíquicas, pois, nesse caso, há excesso, com desvio do direito de correção, configurando-se ilícito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei nº 8.069, de 13.7.1990) assegura que esses não serão objeto de “..Violência, crueldade e opressão...” (art. 5º) e que “...O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral...” (art. 17).

Quanto a esse poder/dever de correção de menores, há divergência da doutrina a saber se se trata de exercício do direito ou estrito cumprimento do dever legal. ANÍBAL BRUNO  enquadra-o na primeira hipótese, lembrando que ato violento torna-se exceção, eis que não compatível com os princípios pedagógicos atuais (Cf. Direito penal, t. II, 2005, p. 4), enquanto ASSIS TOLEDO prefere classificá-lo como estrito cumprimento do dever, considerando a “Anterioridade lógica do dever de educar sobre os direitos daí decorrentes. Os resultados, contudo são os mesmos.”( Op. Cit., p. 200). DAMÁSIO E. DE JESUS compartilha dessa última  posição : “Com efeito, o artigo 160, I do CC, diz que não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa, estado de necessidade ou no exercício regular de direito ( que inclui o estrito cumprimento do dever legal)”. ( Código do Processo Penal  anotado. S. Paulo: Ed. Saraiva, 1990, 8ª. ed., p. 73) (atual art. 188,I).

A excludente penal deixa incólume a pretensão civil do lesado, em face da não previsão no Código Civil da excludente  sub specie . Crítico contundente do artigo 65 do Código de Processo Penal, sustenta  AGUIAR DIAS  que nem sempre o estrito cumprimento de um dever legal isenta o atuante de reparação. “Que dever legal é, de fato, o que pode causar dano impune? Compreende-se que isente de responsabilidade criminal, mas dá-lo sempre como causa de exoneração da responsabilidade civil é desconhecer o que está hoje assentado na consciência jurídica universal : todo dano injusto deve ser reparado”. (Da responsabilidade civil. Rio Janeiro: Forense.,  1983, V. II, p. 922).

Nessa mesma linha, manifesta-se a jurisprudência, ao julgar a responsabilidade civil, em face da penal, em matéria de legítima defesa, discorrendo sobre as excludentes de ilicitude:

“Outra hipótese será a da excludente do estrito cumprimento do dever legal. Embora reconhecida pela Justiça Criminal, com força de coisa julgada, isto não representará empecilho para que a Justiça Cível se convença de que não tenha havido repulsa à agressão do ofendido e avalie o grau de culpa com que o ato tenha sido praticado”. (APUD BUSSADA, Wilson. Código Civil brasileiro interpretado pelos tribunais. Ed. Liber Juris LTDA. 1980, V. I, t. III, p. 53).

O cumprimento do dever legal, segundo entendemos, estaria abrangido pelo exercício regular do direito, dentro da própria instância civil e não como decorrência do preceito penalista.

19 – DIREITO POSITIVO ESTRANGEIRO

No Código Civil português, vamos encontrar o melhor tratamento sobre o instituto do exercício do direito e seu abuso. Cuidando do abuso, insere, em seu texto, a doutrina atual, desprezando leis e jurisprudência antigas que, na maioria das demais legislações, adotavam como critério para caracterização do abuso no exercício do direito a existência de má-fé ou erro grosseiro equipolente ao dolo.

“Art. 334º. (Abuso do direito)

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”.

“Art. 335º. (Colisão de direitos)

1.     Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2.     Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.

Percebe-se que a orientação do legislador português fugiu ao individualismo predominante no Código Napoleônico e nos Códigos a ele posteriores, consagrando a importância da coesão e harmonia dos direitos individuais, dentro de uma visão socializante do direito.

No BGB (Código alemão de 1.900), por ser legislação antiga,  consignou-se  a proibição de  chicana, quer dizer, meios astuciosos empregados para retardamento da efetivação do direito  de outrem,  tendo sido posto como requisito fundamental no abuso do direito a existência do dolo, sendo insuficiente a culpa:

“§ 226 ( proibição de chicana)

O exercício de um direito é inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar um dano a um outro”.

Ainda não é ampla  a redação do § 826, quando diz :

“ (Ofensa aos bons costumes)

Quem, de um modo atentatório contra os bons costumes, causar, dolosamente, um dano a outro, estará obrigado, para com  o outro, à indenização do dano.”

Tem-se entendido que o substrato da teoria do abuso do direito encontra-se nos dois artigos citados. Todavia, conforme aponta  HENOCH AGUIAR, ambos se fundamentam em fatores diversos de caracterização : o § 226  põe a ilicitude do exercício em fator subjetivo, qual seja, a finalidade de prejudicar, enquanto no § 826 o exercício seria abusivo, sempre que com ele causar-se intencionalmente um dano, por procedimento reprovado pelos bons costumes ( predomínio da materialidade do fato sobre o ponto de vista subjetivo). O atentado aos bons costumes prevaleceria sobre a consciência do prejuízo, de tal sorte que aquele que usar de seu direito de modo repugnante ao espírito público, ainda quando não fosse objeto exclusivo do ato por ele perseguido, cometerá um abuso do direito. (Cf. Op. Cit., p. 112, 113).

O Código Civil italiano (1942) insere, no título dos  fatos ilícitos, a exclusão de responsabilidade da legítima defesa e do estado de necessidade, deixando de contemplar o exercício do direito.

Apenas no título que trata da propriedade insere proibição dos  atos emulativos.

“Art. 833 (Atos emulativos) - o proprietário não pode praticar atos os quais não tenham outro escopo do que o de prejudicar ou acarretar moléstia a outrem (844)”.

O artigo 844 cuida do uso normal da propriedade fundiária.

Durante a elaboração do atual Código Civil, discutiu-se longamente se se devia estabelecer um princípio, incluído nas disposições preliminares, de proibição expressa do abuso do direito, o que daria lugar à extensão excessiva  e atribuição ao juiz de demasiado arbítrio e amplo poder. Após muita controvérsia, na redação do texto definitivo, entendeu-se devolver a formulação específica da proibição do abuso a propósito dos particulares institutos, sem traduzir em uma disposição de lei geral um preceito que parecesse incompleto, já que, enquanto firmava a ideia de que o escopo pelo qual o direito é reconhecido constitui um limite ao seu exercício, não fazia chegar para os outros  o conceito essencial da reforma  que, neste fim,  identifica-se com o interesse superior da Nação.

Mas a supressão do artigo não prejudicou o princípio que existia nesse mesmo conteúdo, visto que, aquela norma, enquanto se referia à regulamentação dos conflitos entre particulares, era substancialmente de considerar-se supérflua, não podendo supor-se que a lei possa conceder ao cidadão um direito, para que dele se utilize para fins diversos daquele que a lei pretende tutelar; e isso sobretudo no ordenamento jurídico fascista que reconhece e tutela os interesses dos particulares, em função da sua correspondência com os interesses da Nação. (Cf. AZZARITI et MARTINEZ. Op. Cit., p. 20, 210.).

No direito positivo francês não há disposição expressa acerca do exercício do direito e do abuso. Para alguns, a proibição estaria no artigo 1382:

(Todo e qualquer fato do homem, que cause a outrem um dano, obriga aquele pela falta da qual aconteceu, a repará-lo).

Mas foi a construção jurisprudencial, vinda desde o século XIX, que chegou `a teoria do abuso do direito a qual tem atualmente grande campo de aplicação, e reconhece que o exercício de qualquer direito deve ter por limite a satisfação de um interesse sério e legítimo; os princípios da moral e da equidade opõem-se a que a justiça sancione uma ação inspirada pela maldade, realizada sob o império de uma maldosa paixão, não se justificando por alguma utilidade pessoal e acarretando grave prejuízo a outrem. (Cf. BONNECASE. Op. Cit., p. 263).

“L’abus d’un droit est son détournement caractérisé pour obtenir indirectement un résultat évidemment étranger aux intérêts légitimes pour la sauvegarde desquels ce droit a été institué.” (WALINE, Marcel. Op. Cit., p. 384).

O Código Civil argentino, com a renovação trazida pela Lei n. 17.711/1968, além de contemplar o exercício regular de um direito próprio, insere o “cumprimento de uma obrigação legal”, como excludente de ilicitude e proíbe, no mesmo artigo (1071), o exercício abusivo dos direitos.


CAPÍTULO IV - ESTADO DE NECESSIDADE

01 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS

O instituto do estado de necessidade remonta à antiguidade. CUNHA GONÇALVES faz um resumo histórico e relata que tanto no Código de Manu , no direito hindu, hebraico, grego, romano, germânico, canônico existiram referências a atos lesivos de direito alheio desculpáveis,  por causa de certa conjuntura. Geralmente eram previstos : o furto famélico, o falso testemunho para salvar o delinquente, o aborto para ocultar a desonra, a destruição de feto para salvar a mãe de parto perigoso. Após a  Lex Aquilia ( por volta do século V  a . c.),  os romanos passaram a discutir se o ato praticado  magna vi cogente ( com grande força coativa) determinava ou não um  damnum injuria datum (dano produzido pela injuria).  Apesar das divergências, a tendência era para se afirmar a irresponsabilidade do agente, principalmente se o bem a ser salvo fosse maior do que o bem alheio sacrificado e, posteriormente, até mesmo quando os direitos em conflito fossem equivalentes. São citados como exemplo :  demolição parcial da casa vizinha para preservar a própria de um incêndio; atirar mercadorias alheias para  salvar as próprias; atravessar propriedade alheia cultivada, por se encontrar a via pública intransitável. ( Cf. Op.cit., p. 515, 516).

No entanto, não havia ,no direito romano nem canônico, uma elaboração verdadeira do instituto. Coube aos jusnaturalistas fixar uma noção geral para o  estado de necessidade, e discutiu-se haver exclusão de culpabilidade ou de injuridicidade.

Atualmente a antiga discussão cessou e  considera-se o ato necessário objetivamente lícito, posição aceita pelos Códigos atuais.

Já consignava o direito romano, assim como fazem os atuais Códigos Civis, a responsabilidade do comodatário pela perda da coisa, quando podia ele salvá-la e preferiu salvar suas próprias coisas. (Cf. Id. Ibid., e artigo 1.253 do C.Civil  brasileiro).

Nos  glosadores e pós -glosadores reinava ainda dissenso. Para  Baldo era lícito destruir o alheio para salvar o próprio; Bartolo distinguia a licitude conforme as circunstâncias;  para Acúrsio era necessária  a demonstração de que era justo o temor de quem praticou o ato necessário; Cujácio sustentava a obrigação de indenizar, invocando a  Lex Rhodia de jactu ( as avarias comuns se repartiam por todos os interessados) e pretendia generalizar essa responsabilidade proporcional a todos os casos análogos, o que  não era admissível, pois a  Lex Rhodia atendia às singulares condições em que se encontravam pessoas e coisas a bordo de um navio, sujeitas todas elas ao mesmo risco, o que não se dá no caso de incêndio de prédios contíguos, que estão em maior risco do que os afastados, faltando comunhão de interesse e de perigo, fundamentos indispensáveis da responsabilidade proporcional. (Cf. CUNHA GONÇALVES. Op. Cit., p. 516, 517 . Cf. D’AMELIO   et allis. Op. Cit., p. 241).

Observa-se, com o exposto, não poder ser tratado o ato de necessidade dentro de conceito absoluto, devendo haver relatividade no seu ordenamento legal quanto à ofensa a terceiros, pois que a ideia dominante na elaboração do instituto é a de que todo dano deve ser indenizado, independentemente do ato caracterizar-se como culposo ou não.

“Intervindo com culpa ou dolo, tem-se o ato ilícito, e o agente culpado  ou doloso responde pelo prejuízo causado. Não havendo culpa ou dolo, o agente é, ainda assim, obrigado a indenizar, salvo quando a outrem se deve atribuir a culpa do ato danoso. Se  o culpado é o próprio dono da coisa deteriorada ou destruída, afasta-se, então, a ideia de indenização; ele sofre as consequências de sua culpa ( art. 1.519- atual 929). Se o culpado é terceiro, o agente indeniza a quem for prejudicado, mas vai haver de quem, por negligência ou má-fé, criou a situação, a quantia, que foi constrangido a pagar (art. 1.520 – atual 930).”( BEVILÁQUA. Op. Cit., p. 423, 424).  Nosso Código de 1917 tinha por objeto lesão à coisa, não se referindo à lesão da pessoa.

02 – CONCEITO

Ocorre, por vezes, um conflito entre o direito/interesse de um indivíduo com o de outro. Dada a impossibilidade de coexistência, um deles deve sucumbir, com o desaparecimento ou cessação transitória que, por princípio de equidade será o menos valioso, não necessariamente do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista  ético e humano . Autoriza-se a violação de direito alheio, com o fim único de evitar um mal maior.

No direito francês, segundo a definição adotada por SAVATIER, é a situação daquele a quem parece claramente que o único meio de evitar um mal maior ou igual é de causar um mal menor ou igual. (Cf. Op. Cit., p. 125).

PLANIOL e RIPERT o conceituam como prejuízo resultante de um ato indispensável para evitar um dano que é impossível evitar de outro modo, e sem que, por outra parte, concorram as condições da legítima defesa. (Cf. Op. Cit., p. 779).

No direito italiano, o Código Civil declara que há estado de necessidade quando quem realizou o fato danoso executou-o constrangido pela necessidade de salvar a si ou a outrem do perigo atual de um dano grave à pessoa, e o perigo não foi por ele voluntariamente causado nem de outro modo evitável, sendo devida ao prejudicado uma indenização, apreciada pelo juiz (art. 2045).

Não se refere à  proporcionalidade (como fez o Código Penal - sempre que o fato seja proporcional ao perigo), mas essa, segundo a doutrina, está implícita, pois, onde cessa a proporcionalidade, há excesso, ou seja, culpa. Há, porém, diferença fundamental entre a  disciplina penal e a da lei civil, quanto à responsabilidade. Na primeira, há irresponsabilidade; em sede civil, é prescrito que o prejudicado deve obter indenização à justa apreciação do juiz - trata-se de justificante em sede penal e de atenuante em sede civil. (Cf. CANDIAN.  Op. Cit., p. 139).

DE CUPIS considera sua natureza  excludente de antijuridicidade ( não atenuante, em sede civil) :

O estado de necessidade, e o dano que dele deriva, permanece não antijurídico. Malgrado a sua não antijuridicidade, o dano de que se trata produz igualmente uma reação, caracterizando-se, pela atribuição, ao juiz, de um especial poder de justa apreciação. (Cf. Op. Cit., p. 16).

CUNHA GONÇALVES prefere o conceito formulado por CHIRONI, por salientar a causa determinante do conflito, o que é essencial:

“É o  conflito entre duas situações jurídicas, determinado por uma força estranha, que não permite a pacífica coexistência delas.”( Op. Cit., p. 518).

Retornando ao direito francês, DELIYANNIS não o vê como excludente de ilicitude. No estado de necessidade, o agente tem uma  excusa, mas esta não chega a suprimir o caráter  culpável de seu estado de ânimo; ela não chega  a suprimir o caráter objetivamente ilícito do ato realizado, isto é, a lesão de um bem garantido  permanece sempre ilícita. (Cf. Op. Cit., p. 194)

A divergência apontada não foi ausente no direito brasileiro.

Para aqueles que assentaram o dever de reparação na culpa, há incoerência do legislador brasileiro, ao declarar a não ilicitude do ato (art. 160, II), e, paralelamente, estabelecer indenização ao dono da coisa não culpado do perigo (art. 1.519). A este argumento contrapõe-se o princípio preponderante no  direito moderno de que todo dano deve ser indenizado, tanto assim é que leis mais recentes estabelecem a obrigação de indenizar ao incapaz, conforme veremos em outro local. Porém, não se cuida aqui de reparação por ato culposo; ela tem como fundamento o ato-fato do agente. (Atuais arts. 188,II e 729).

A discussão prolifera. CHIRONI o vê como ato ilícito, após estudo de várias opiniões doutrinárias; ÚNGER  distingue-o como ato fora do direito, acolhendo o adágio  Necessitas non habet legem ( A necessidade não tem lei). Contra argumenta AGUIAR DIAS: O critério de CHIRONI não corresponde à realidade, pois ao agente do ato necessário falta a vontade, elemento integrador da culpa; sem razão ÜNGER, porque o direito nunca deixa de existir, mas impera sempre. Anota que a doutrina prestigiada pela maioria é a que considera o ato de necessidade  ato lícito. (Cf. Op. Cit., 1983, v. II, p. 749).

A doutrina argentina tem-no considerado ato perfeitamente lícito, sempre que as condições indispensáveis para sua caracterização estejam reunidas. Se essas condições faltam, haverá o ato  contra jus. A razão está em que, ao atuar por necessidade, o agente está longe de querer as consequências prejudiciais de sua atitude e não se encontra em condições de evitá-las ou suprimi-las, pondo maior diligência ou cuidado. (Cf. COLOMBO, Leonardo A. Culpa aquiliana-cuasidelitos.  2ª. ed.,  Buenos Aires: Tipografia Ed. argentina, 1947, p. 2110).

Em Nosso direito civil, o Estado de necessidade é o praticado, a fim de remover perigo iminente a bens e pessoas, destruindo-se ou deteriorando coisa alheia, desde que as circunstâncias o tornem absolutamente necessário e não exceda o agente os limites do indispensável para a remoção do perigo. Não tendo o perigo originado por culpa do dono da coisa, a ele cabe indenização. Se for terceiro culpado da situação de perigo, contra ele o agente, autor do dano, terá direito de ação regressiva da importância que tiver ressarcido ao dono da coisa.

O Código Penal traça as características do estado de necessidade (art. 24):

“Quem  pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

§ 1º. Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

§ 2º. Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.”

03 - NATUREZA JURÍDICA

Seria o ato em estado de necessidade exercício de direito subjetivo? Divergindo de VON THUR, PONTES afirma, assim como ocorre na legítima defesa, não encerrar o ato o exercício de direito subjetivo, porque ele não entra no mundo jurídico como ato ilícito e, se existe o dever de reparação, este é consequência do ato-fato jurídico.(Op. Cit., p. 303) .

Ocorre, no caso, colisão de interesses para a qual o legislador deu a solução ao considerar o ato como ato-fato. A indenização, repetimos, é dever do agente ( o que pratica o ato necessário) e, havendo culpa de terceiro contra esse o agente tem ação regressiva, como também a terá contra o terceiro beneficiado com o ato de necessidade (art. 930, § único). A ação contra o beneficiado a lei não determina, aplicando-se o artigo 7º. da Lei de Introdução ao Código Civil ( recurso à analogia).

O eminente penalista NELSON HUNGRIA, examinando a natureza jurídica do instituto, assenta ser o mesmo faculdade e não direito subjetivo. Ao configurar-se o conflito de interesses ou bens, merecedores de proteção jurídica, concede a lei a  faculdade da ação violenta para salvamento deles. Faculdade e não direito, porquanto a este deve corresponder uma obrigação ( Jus et obligatio sunt correlata) e, no caso de estado de necessidade, nenhum dos titulares dos bens ou interesses colidentes é obrigado a suportar o sacrifício do seu. A lei assume atitude de neutralidade (Cf. Op. Cit., 1978, v I, t II, p. 272). Faculdade é a possibilidade de poder fazer ou exigir; exprime o próprio exercício do direito subjetivo da pessoa, exteriorizado pela  facultas agendi.

04 - BENS TUTELADOS

O perigo pode ameaçar tanto um bem econômico, como não econômico : vida, liberdade, honra, bens corpóreos, etc.,  enfim, tudo o que orbita na esfera jurídica da pessoa. Poderão ser lesados uma pessoa ou coisa diversa daquela de onde emana o perigo (art. 188, II).

Pode ocorrer não só em relações extra-contratuais, como também nas contratuais. O exemplo mais citado, na última hipótese, é o do comodatário que deixa de socorrer a coisa em comodato, preferindo salvar a  sua própria (art. 583, C.Civil brasileiro). A propósito da situação do comodatário, diz CUNHA GONÇALVES que o artigo referente (1516 C. Civil português anterior), por analogia, pode ser aplicado aos contratos de empreitada, mandato, depósito, prestação de serviços. (Cf. Op. Cit., p. 527).

Demonstrando que a tutela aplica-se às relações contratuais, o Código Civil italiano reza em seu art. 1.147:

“Contrato concluído em estado de perigo.

O contrato pelo qual uma parte assumiu obrigações, com exigências iníquas, pela necessidade conhecida pela outra parte, de salvar a si ou a outrem do perigo atual de um dano grave à pessoa, pode ser rescindido, em juízo, a pedido da parte que se obrigou.

O juiz, ao pronunciar a rescisão, pode, segundo as circunstâncias, atribuir uma eqüitativa compensação à outra parte pelo trabalho prestado”.

Adota o Estatuto italiano a teoria da rescindibilidade do negócio jurídico, entre as teorias citadas pela doutrina : a da nulidade, a da anulabilidade, a da validade da declaração (esta última seguida pela maioria da doutrina francesa, arrimada no disposto no art. 111, do Código Civil, e por WASHINGTON DE BARROS e CARVALHO DE MENDONÇA). ( Cf. CHAVES, Antônio. Op. Cit., p. 1.571).

O Código Civil brasileiro assentou o estado de perigo (necessidade) como defeito passível de anulação do negócio jurídico (art. 171,II), juntamente com os demais vícios de consentimento, em que pese não consistir a vontade declarada rigorosamente viciada, restringindo-o ao salvamento de pessoas

“Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”.

Ainda sobre os bens  alcançados, CUNHA GONÇALVES deduz, com suporte no art. 705 do Código Civil português anterior (atual 339), que o estado de necessidade podia abranger a inexecução do contrato, porquanto  só se libera o contraente remisso, quando este não contribuiu de nenhum modo para o caso fortuito ou força maior. No estado de necessidade, não é o  casus (evento) que impede executar o contrato, mas sim  a escolha do contraente remisso, que se funda no desejo de evitar prejuízo maior para si do que o sofrido pela outra parte por não ter sido cumprido o contrato nessa ocasião. De qualquer sorte, o contraente remisso, por se encontrar em estado de necessidade, não se libera da obrigação de indenizar a outra parte; ao contrário, haveria subversão dos contratos com a estimulação da má-fé. (Cf. Op. Cit., p. 527).

05 - DISTINÇÃO ENTRE ESTADO DE NECESSIDADE E  DEMAIS ATOS

05.1 -  ESTADO DE NECESSIDADE - CASO FORTUITO - FORÇA MAIOR

Definindo o estado de necessidade como sendo a situação em que o agente não pode, normalmente, proceder em relação à pessoa ou coisa, de forma diferente da procedida, os jurisconsultos fundiam em único conceito o estado de necessidade, o caso fortuito e a força maior, a diferença de que o caso fortuito e força maior atuam num só fato, excludente da vontade; no estado de necessidade, há fato próprio do agente, e declaravam que a normalidade de proceder  harmonicamente com as circunstâncias retirava o caráter ilícito ao fato danoso. (Cf. ALVES, Guilherme Moreira. Instituições do direito civil português. Coimbra: Imprensa da Universidade., 1907, v.  l, p. 617, 618).

Para GUILHERME ALVES MOREIRA, a fusão daquelas figuras em conceito único não é aceitável, e a distinção  entre caso fortuito e força maior, estabelecida no modo de atuação do mesmo fenômeno, é importante. Na força maior, o dano é causado materialmente pelo agente, mas esse é apenas um instrumento, podendo também ser paciente. A consequência é que, não se lhe pode imputar responsabilidade, mesmo ao fundamento da teoria objetiva. No estado de necessidade, a colisão em que o indivíduo fica, embora não suprima a liberdade de agir, só será lícito o fato, se a lei reconhecer o direito de causar um mal para evitar outro; mesmo assim deve haver reparação do dano causado, nos limites estabelecidos em lei.

Exemplifica não poder ter-se como lícito o fato de uma pessoa matar outra, para salvar-se, quando perseguida por uma fera. Igualmente, se o prédio está prestes a inundar-se, o indivíduo desvia a água para outro, causando a esse dano igual ou maior. (Cf. Op. Cit. P. 617).

Com razão CUNHA GONÇALVES, na mesma linha precedente, e com apoio no Código Civil português anterior, ao não concordar com a equiparação entre o estado de necessidade ao caso fortuito e à força maior feita por alguns, ao argumento de não existir objetivamente diferença alguma entre eles, dizendo que são expressões idênticas de um mesmo conceito. Há distinção, pois o caso fortuito  ou de força maior é apenas a causa determinante do estado de necessidade e este, por sua vez, produz o denominado (erroneamente, segundo o autor)  aspecto subjetivo da força maior, ou seja, “A reação do agente contra o perigo iminente, a relação entre a força fatal e a sua vontade, o que implica, ou não, a sua responsabilidade”. Exemplifica: abalroamento acidental, causado por tempestade, configura situação de caso fortuito ou força maior.

Mas, durante a tempestade, esse abalroamento pode ter sido voluntário, quando se busca evitar à embarcação abalroada uma perda maior. Embora exista nas duas situações uma força invencível, atuando em alguém, nota-se a distinção : no caso de abalroamento acidental, a força opera diretamente no lesado, contra sua vontade e esforços; no caso de abalroamento voluntário (estado de necessidade), o dano é cometido, posto que sob pressão de uma força, pelo agente, conscientemente, que se viu com a opção ou de deixar-se ser vítima da força maior ou caso fortuito ou causar o mal para salvar-se. A força maior (vis maior) atua como fator único e absoluto, enquanto o estado de necessidade tem como suporte o fato do agente, voluntário e consciente.                                                      

Enfim, para não ocorrer responsabilidade de certo ato, é necessário que a vontade se paralise ou se suspenda; mas, sendo o ato resultado de livre escolha entre o dano alheio e o próprio, não se pode dizer que tal fato foi involuntário, mesmo em circunstâncias tão críticas : coacta voluntas, voluntas est “. ( A vontade coagida não deixa de ser vontade). (Cf. CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil português. S. Paulo: Ed. Max Limonad, 1955, 1a. ed. bras., v.l. t. l, p. 521,522).

Embora doutrine o autor, invocando o direito marítimo, que a necessidade não torna lícito o ato ilícito, sua exposição permite-nos perceber a distinção entre as figuras ora abordadas.

Autores há que, embora reconheçam seja possível estabelecer diferenças entre  estado de perigo ou de necessidade e força maior, do ponto de vista jurídico, acham que a situação é a mesma e os efeitos não diferem em ambos os casos. (Cf. CHAVES, Antônio. Op. Cit., p. 1567). Opinião, acertadamente, não acatada por CUNHA GONÇALVES para quem  o caso fortuito e a força maior são somente a causa determinante do estado de necessidade e não encerram expressões idênticas de um mesmo conceito. (Cf. Op. Cit., p. 521).

05.2 - ESTADO DE NECESSIDADE E JUSTIÇA DE MÃO-PRÓPRIA

A justiça de mão-própria supõe  contrariedade a direito, ato que entra no mundo jurídico, como ofensivo do direito objetivo, podendo o titular do direito, da pretensão, da ação, da exceção usar a autotutela. No estado de necessidade,  não há contrariedade a direito; é também elemento fático que serve a conteúdo de norma preexcludente. A justiça de mão-própria é ato praticado contrapondo-se a fato jurídico que já teve ou tem eficácia (realizado). PONTES leciona ser grande erro falar-se em justiça privada  agressiva (  que seria a justiça de mão-própria ou a justiça privada no sentido exato) e justiça privada  defensiva ( abrangedora da legítima defesa e do estado de necessidade). Há, em cada deles, elemento um do outro, mas  “...O senso largo, com a dicotomia, conservaria referência à tutela jurídica, à justiça, que se encontra num e não se pode encontrar nos outros. O elemento  defesa,  com sentido lato, é comum; porém então teríamos de dizer : a defesa compreende a justiça de mão-própria, a legítima defesa e o estado de necessidade, o que não teria qualquer valor científico”. ( Op. Cit., p. 322).

06 - ESTADO  DE NECESSIDADE PUTATIVO –

Não ocorrendo os pressupostos para  configuração do estado de necessidade, os quais veremos  adiante, mesmo que o agente tenha suposto tê-los configurados - estado de necessidade putativo - cabe indenização por negligência (culpa) ou com base no artigo 929 (inocorrência de culpa do dono da coisa).

Exemplificando, ocorrerá estado de necessidade putativo em caso de salvamento de terceiro, se este foi o culpado pelo perigo e o agente desconhecia essa circunstância. Não se trata de exclusão de ilicitude. De acordo com os pressupostos, só haverá  excludente de ilicitude se o dono da coisa perigosa não foi o culpado; Se, tendo-o sido, mas o agente ignorava tal circunstância, haverá putatividade, com a consequente obrigação de reparação.

No campo penal, trata-se de causa elidente de culpa, lato sensu; se o erro provém de culpa, stricto sensu, responderá o agente por delito culposo. (art. 20, 7 1º.).

07 - COISA PERIGOSA

Em nossa Lei Civil, não se consignou diferença entre o estado de necessidade por ser a própria coisa perigosa  ou se ela não encerra perigo, por si mesma e, segundo PONTES, não há censura para a indistinção, já que “Não há algo especial no suporte fático da pré-exclusão”. A particularidade reside no fato de que, sendo perigosa a coisa, o lesado é o dono dela, e tem de ser diferente a responsabilidade sem contrariedade a direito ( art. 1519, atual 929).

Ressalte-se que o ato em estado de necessidade é permitido e a ação contra esse ato seria antijurídica, porque a atividade está ligada ao direito do agente, razão pela qual o dono da coisa não pode oferecer resistência nem supor legítima defesa. Se se opõe, submete-se ao art. 159 C.C. (ilícito- atual 186). No art. 160, II  (atual 188,II) entra  “ A deterioração ou destruição da coisa que pertence ao agente, se sobre ela recaem direitos reais de terceiros, posse mediata ou imediata, ou constrição (arresto, penhora, etc). ( Cf.. Op. Cit., p. 299)

A defesa contra coisa perigosa, como animais, pedras que rolam, vegetal (plantação venenosa), seria exercício de direito subjetivo, indaga-se.. Essa defesa seria contrária a direito se produzisse dano. Para que tal defesa encerrasse exercício de direito subjetivo, seria necessário que a agressão do animal, “Ou alcance pela coisa perigosa, entrasse no mundo jurídico como fato jurídico de que decorresse a eficácia jurídica, consistente na irradiação do direito subjetivo a favor do ameaçado. Ora, imaginá-lo seria construir sem alicerces”.  Se o animal foi incitado por Tito, Se Tito fez rolar a pedra ou semeou a planta e, posteriormente, teve de defender-se, não há legítima defesa (não existe legítima defesa contra si mesmo); há estado de necessidade e Tito tem o dever de reparar o dano que sua atividade produza. Seu ato seria em estado de necessidade ou ato ilícito? . Para PONTES, o dever de reparação funda-se no art. 1519 (estado de necessidade – atual 929). (Op. Cit.  p. 301)

É excepcionado o estado de necessidade quando o animal é usado como ARMA, caso que recai na hipótese da legítima defesa. Desse modo, ao agente cabe o dever de indenizar, pouco importando se salva coisa sua ou a si ou a terceiro ou coisa de terceiro, pois foi ele quem praticou o fato.

Contrapõe-se à doutrina alemã, defendida por Mezger, que falava em legítima defesa ao ataque de um animal, ENRICO ALTAVILLA ao acentuar:

“....Ma basterà ricordare che il MEZGER parla di legittima difesa anche per un attacco di un animale (12); per convincersi che tale opinione deriva dalla inesatta concezione dello stato di necessità”. ( Op. Cit., p. 823).

08 - PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE NECESSIDADE

Da noção exposta podemos extrair os seguintes requisitos:

1. Existência de um perigo grave, atual ou iminente e inevitável, ameaçando um bem jurídico ou lesão a pessoa;

2. Necessidade de salvar a si ou a outrem : pessoa, seus bens jurídicos ou de outrem:

3. Inocência do lesado ou improvocação;

4. Ato de vontade, praticado dentro dos limites do indispensável para remoção do perigo.

A - Existência de perigo grave, atual ou iminente e inevitável, ameaçando um bem jurídico ou a pessoa, sem contribuição culposa do agente

O perigo, conforme anota CUNHA GONÇALVES,   “É uma condição de fato em que há alguma coisa de sinistro a temer; Pode ser determinado, ou pela atividade do homem, ou pelo caso fortuito, ou pela natureza”. (Op. Cit., p.518). Sua gravidade deve ser entendida não como impossibilidade de reparação, mas no sentido da importância do mal receado.

Deve consistir em algo iminente,  quer dizer, presente (prestes a realizar-se ou que já se realiza), independentemente de ser previsto ou imprevisto. A  avaliação desses conceitos deve ser relativa, conforme a ideia que o agente deles formou, no momento do evento. Em qualquer caso, salienta o autor referenciado, “É forçoso que tenha ficado em risco a vida ou a integridade de uma pessoa, ou qualquer outro bem de alta importância, que ao agente era imprescindível”. (Op. Cit., p. 519)

Se o estado de necessidade é posterior à destruição ou deterioração, não se submete ao art. 160, II (188, II). A atualidade quer significar que deve o perigo estar presente ou na iminência de realizar-se. A inevitabilidade significa impossibilidade de impedir aquele perigo do qual não se podia escapar, por outro modo ou segundo a opinião razoável do ameaçado. Em síntese : aquele do qual não se pode fugir a não ser com a violação do direito alheio;  mesmo havendo outro meio possível, na grave conjuntura, a violação apresentou-se ao agente como única solução, pois, em face do risco imediato , reclamando decisão urgente,  não é de se exigir do agente a escolha rigorosa do meio menos lesivo. (Id., ibid, p. 519).

Se o perigo recai sobre a pessoa ou interesse a ela pertinente, a possibilidade de fuga exclui o estado de necessidade (assim pensa  HUNGRIA, Op. Cit., 1978, p. 276), diferentemente da legítima defesa, em que o ato de fugir pode qualificar-se, embora nem sempre, como conduta infamante.

A inevitabilidade deve ser entendida  em sentido relativo e reconhecida do ponto de vista objetivo.

A ignorância ou não do estado de necessidade pelo dono da coisa destruída ou danificada não tem relevância  para aquele que se encontra em estado de necessidade o invoque. Diferente será a situação, se o dono da coisa teve culpa por não evitar o estado de necessidade (podendo-o evitar); a ele descabe o direito de indenização e, por outro lado, responderá por perdas e danos caso ocorridas ao  agente ou a terceiros (art. 186) ou nos termos dos arts. 936 e 937.

“Art. 936 - O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”.

 “Art. 937 - O dono do edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifestada.”

B - Necessidade de salvar a si ou a outrem ou bens

Não tem relevância a natureza  do bem jurídico ameaçado, seja a própria vida do agente ou de outrem ou outro bem de qualquer natureza. Cuidando-se de bem econômico, “Ainda, nesse caso, o direito permite que se viole o direito de propriedade de outrem, para salvar um bem econômico, se for absolutamente necessário, e se o mal, que se pretende evitar, for maior do que o praticado para removê-lo. Exemplo:  destrói-se um prédio para evitar que o incêndio se propague à rua inteira” (BEVILÁQUA. Op. Cit., p. 422).

Outrem significa tanto a pessoa física quanto a jurídica. Em tese, não há sentido algum em distinguir os entes físicos e morais.

Há uma alternativa entre sofrer ou causar o mal e, para caracterizar o ato de necessidade, não é necessário que essa alternativa corresponda a uma realidade objetiva, sendo suficiente que se verifique no ânimo do agente. Portanto, quem tem o dever de suportar o perigo, dever decorrente de imposição legal, ou quem assume obrigação de se sujeitar ao risco, não pode alegar a excludente. Esses não podem causar dano a terceiro, para se defenderem do perigo, cujo dever/obrigação assumiram. Exemplo: enfermeira que tem sob custódia um demente, se, para livrar-se da violência deste, comete um dano a terceiro, obriga-se à indenização com suporte na responsabilidade por ato ilícito. Há quem entende que esse dever só pode ser imposto por lei, não alcançando as relações contratuais, como no exemplo dado, porque a expressão é  dever legal, imposto por lei, e não  dever jurídico, (conforme reza o Código Penal italiano). (Cf. HUNGRIA. Op. Cit.,1978, p. 279-280). A posição de HUNGRIA é sedimentada no § 1º. do art. 24, do Código Penal, que emprega a expressão dever legal.

Analisando a situação de terceiro salvar alguém com o sacrifício de outrem, CUNHA GONÇALVES anota a discussão que reinou, em doutrina, já que o Código Civil português anterior não fazia qualquer menção ao questionado. Para o direito penal alemão, a intervenção do terceiro só seria defensável a favor de pessoas de sua família, dentro dos graus de sucessão legítima. Contra argumenta o autor que é de rejeitar-se a limitação baseada no parentesco, porquanto o amor, dever, amizade são sentimentos não menos imperiosos. Quanto a  salvar alguém com o sacrifício de outrem, acresce que ninguém se decide a lesar outrem para salvar quem lhe é inteiramente indiferente, porém, em certos casos, podem haver contingências em que se impõe a escolha entre eles, como salvar uma criança, sacrificando um velho. (Cf. Op. Cit., p. 520).

C - Inocência do lesado ou improvocação

Segundo a doutrina clássica, aqui reside efetivamente a excludente. Somente nesse caso ela ocorre, significando  que o lesado não tenha provocado ou facilitado seu dano, seja suscitando o perigo, não promovendo o ato lesivo, não colaborando direta ou indiretamente na sua ocorrência. Não pode haver sua interferência.

Alguns autores brasileiros costumam dizer que, em nosso direito penal, o dolo do agente exclui o estado de necessidade, mas só ele e não a culpa; nesta subsiste o ato necessário, seja por imprudência, imperícia ou negligência, e não existirá crime. MAGALHÃES NORONHA é contrário à assertiva de que a culpa do perigo não exclui o ato necessário. A redação do art. 24 do C. Penal “não provocou por sua vontade” não é indicativa do dolo, pois na culpa (sentido estrito) também existe vontade - “vontade na ação causal e, por exceção, até no próprio resultado. A nós nos parece que também o perigo culposo impede ou obsta o estado necessário”. ( Op. Cit., 1990, V. I, p. 183, 184  e ed. 2009, p. 188).

No campo civil, qualquer que seja a culpa excluirá o estado de necessidade, mas a jurisprudência vem atenuando o rigor da total inocência da vítima. ( Conferir concorrência de causas no estado de necessidade).

Havendo perigo recíproco, causado por dois animais cujos proprietários os deixam envolver-se em briga, não  se configura a excludente. Nessa situação, se um dos donos for ferido, responderá o outro por ilicitude e, por ser a vítima também culpada, a responsabilidade atenua-se.

D - Ato de vontade  praticado dentro dos limites do indispensável para a remoção do perigo

Por ato de vontade compreende-se que o agente deve escolher a opção de lesar terceiro. Quanto aos limites, havendo excesso na prática do ato, isto é, se o agente empregou meios além do necessário, o ato deixa de ser jurídico, passando o agente a responder pelos prejuízos causados, mas aí na incidência do art. 186 (culpa) e não responsabilidade sem culpa (pelo ato-fato).

Quanto à desproporcionalidade entre o dano evitado (ou provável) e o dano causado, o Código Civil a ela não se refere e os autores clássicos tem-na adotado. O dano que se pretende evitar há de ser maior em relação ao dano imposto à esfera jurídica do lesado.  Assim, a vida é bem jurídico desproporcional comparativamente a qualquer outro bem; a integridade física, de regra, é superior a bem econômico. Lembra PONTES que “A apreciação dos valores entre lesões corporais e danos materiais tem de partir do princípio de que são elas desproporcionais,  exceto se seria sem grande importância, necessariamente, a lesão corporal e alto o valor da coisa. O princípio da desproporcionalidade atenua-se quando o perigo está na coisa mesma, porque então há a responsabilidade do dono dela (animal, art. 1527; edifício em construção, art. 1528; coisas que caem ou são lançadas, art. 1529) “. (Cf. Op. Cit. p. 297) – Atuais arts. correspondents: 936, 937, 938.

Dentro desse critério, não posso desviar as águas, que vão inundar minha casa, para a casa do vizinho, onde elas causarão dano maior ou igual ao que causaria à minha. Expressivo exemplo de conflito entre direitos idênticos, proporcionais, portanto, é-nos trazido por AGUIAR DIAS, extraído dos tribunais franceses ; “... No conflito entre o direito à vida do agente e o direito idêntico de seu semelhante, aquele não pode sacrificar impunemente o segundo. Assim, os reféns tomados pelos tribunais inimigos e colocados na penosa contingência de indicar um ou mais companheiros para o fuzilamento não podem isentar-se da obrigação de reparação perante a família das vítimas, invocando o estado de necessidade”. (Op. Cit., 1983, v. II, p. 752).

A nossa Lei Civil não menciona o princípio da desproporcionalidade  nesses casos e o Código Penal atual aboliu a rigorosa condição de preponderância do interesse salvado em cotejo com o interesse sacrificado. Sua exposição de motivos  diz : “...É igualmente abolido o critério anti-humano com que o direito atual lhe traça os limites. Não se exige que o direito sacrificado seja inferior ao direito posto   a salvo, nem tampouco se reclama a  falta absoluta de outro meio menos prejudicial. O critério adotado é outro: identifica-se o estado de necessidade sempre que, nas circunstâncias em que a ação foi praticada, não era razoavelmente exigível o sacrifício do direito ameaçado. O estado de necessidade não é um conceito absoluto : deve ser reconhecido desde que ao indivíduo era extraordinariamente difícil um procedimento diverso do que teve”.

Preferimos endossar a opinião de BEVILLÁQUA; apesar de a Lei Civil não fazer qualquer alusão ao princípio, é intuitivo e justo que não se pratique mal maior para evitar um menor ou igual, ressaltando que a avaliação de ambos deve seguir um critério rígido.

A respeito da desproporcionalidade, leciona SAVATIER que a comparação entre os dois danos deve ser mais rigorosa, quando o agente causa um mal para evitar outro a si ou a terceiros do que quando se prejudica para evitar um mal a outrem.( Cf. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: LGDJ, 1939, t. I, p. 125, 126).

09 - ESTADO DE PERIGO SIMPLES, QUALIFICADO E ESTADO DE PERIGO PUTATIVO

Em tese defendida em 1977 ( Estado de Perigo ou de Necessidade), JOSÉ FERREIRA DE ANDRADE assentou as seguintes distinções sobre as figuras acima;

Ocorre estado de perigo simples quando a condição de salvar a si ou a outrem impõe a obrigação, na defesa dos direitos da personalidade;

Há o estado de perigo  qualificado quando a condição de salvar a si ou a outrem não compreende a faculdade de abuso, que encontra a sua expressão prioritária no aproveitamento da necessidade da outra parte. Nesse caso,  é susceptível de aplicar-se a sanção prevista no art. 169, II, do Projeto (art. 171,II – anulação do ato jurídico)). Tem-se como exemplo o doente que, na fase aguda da moléstia, concorda com os altos honorários exigidos pelo cirurgião.

“O estado de perigo  putativo ocorre pela obrigação exageradamente assumida pelo impulso gerado pela necessidade aparente. É o caso do cirurgião que, procurado pelo pai desesperado pelas dores do filho, supostamente condenado à morte, por ser portador de um tumor na cabeça, obriga-se a pagar alta soma, quando a doença comprovadamente deveria ter sido tratada numa clínica de olhos”. (Apud CHAVES, Antônio. Op. Cit., V I, t. II, p. 1567).

10 - SUJEITOS DA RELAÇÃO JURÍDICA

A relação jurídica estabelece-se entre o agente que praticou o ato necessário e o lesado. Se o  o perigo vem de animal, há responsabilidade do dono, como quando provém de outra coisa qualquer. Responsável é o dono.

 Várias situações oferecem dificuldades, precisamente a saber se houve configuração do ilícito e é nos casos concretos, da lide jurídica, que se foi construindo a teoria das excludentes de ilicitude civil.

O ato de necessidade pode ser realizado em proveito do próprio agente ou de terceiro e, neste último caso, a opinião geral é no sentido de não se lhe exigir  consentimento, nem mesmo sendo preciso sua ratificação do ato (que produz  todos os efeitos do mandato), tal como sucede na gestão de negócios (art. 1343 – atual 873), porque o estado necessário consiste em uma faculdade  de salvar pessoa ou seus bens jurídicos. Nesse caso, o dano deveria ser indenizado pela pessoa que dele se beneficiou e, se for mais de uma, haverá responsabilidade solidária. Ocorre, por determinação do Código Civil, a relação estabelecer-se diretamente entre o agente e o lesado, ficando aquele com ação regressiva contra esse último do que vier a indenizar. Não podendo o prejudicado haver os prejuízos do agente, a responsabilidade solidária do beneficiado há de prevalecer. Nada impede seja acionado diretamente o beneficiado ou culpado.

O ABSOLUTAMENTE INCAPAZ não se exclui da relação que se estabelece; pode praticar ato-fato. A incapacidade não o isenta ou elide o dever de reparação por prejuízos causados (art. 928); responde pelo ato praticado em estado de necessidade. Também responderá como terceiro salvo do perigo, atendendo ao fundamento específico dessa responsabilidade, que não é, de forma alguma, o ato ilícito.

AGUIAR DIAS, expondo as várias opiniões e evolução doutrinária na consideração da responsabilidade civil do incapaz, descreve que, no princípio, não havia esta responsabilidade e a doutrina assentava-se no pressuposto da ausência de discernimento daquele. Num segundo momento, reconheceu-se aquela responsabilidade, principalmente pela ajuda da jurisprudência, quando a ausência de discernimento provinha de hábitos viciosos ou de culpa inicial a cargo do agente. Posteriormente, passou-se a responsabilizar a pessoa encarregada da guarda do incapaz e, por fim, tomou corpo na doutrina e jurisprudência a ideia de reconhecer-se a responsabilidade do próprio incapaz. O notável jurista discordava da posição adotada pelo nosso Código Civil  anterior:

“De forma que, se for possível a prova de que não houve negligência relativamente a esse dever, ficará a vítima, ainda que lesada por amental de fortuna, privada da reparação civil, solução que nos parece injusta e de todo contrária aos princípios que temos como norteadores da responsabilidade civil”. (Op. Cit.,1983, v II, p. 398).

A evolução por que têm passado doutrina, jurisprudência e leis mostra-nos a justa realidade  em considerar que, entre os dois patrimônios ( agente do dano e do lesado) não deverá sofrer as consequências danosas o daquele que não acarretou o ilícito, apenando-se o incapaz, distanciando-se em muito da arcaica orientação romana, para a qual o ato deste equiparava-se ao caso fortuito, completamente isento de reparação.

Apesar desta tendência, algumas legislações  penalizam a pessoa, em cuja guarda se encontra o incapaz, conforme podemos constatar. Códigos atuais estendem a responsabilização ao próprio incapaz:

-  O Código Civil do Peru ( Dec. Leg. N. 295, de 24 de julho de 1984) admite a responsabilidade subsidiária do incapaz:

“Art. 1976 - No hay responsabilidad por el daño causado por persona incapaz que haya actuado sin discernimiento, en cuyo caso responde su representante legal”.

“Art. 1977 - Si la víctima no ha podido obtener reparación en el supuesto anterior, puede el juez, en vista de la situación económica de las partes, considerar una indenización equitativa a cargo del actor directo”.

- O Código  Suíço  das Obrigações( Livro Cinco), capítulo II, art. 54, permite ao juiz condenar à reparação do ilícito o incapaz:

“1. Si l ‘equité l’exige, le juge peut condanner une personne même incapable de discernement à la réparation totale ou partielle du  domage qu’elle a causé”.

- O do Código Civil italiano trouxe   inovação substancial na segunda parte do artigo 2047:

“Art. 2047 - Em caso de dano ocasionado por pessoa incapaz de entender ou de querer, o ressarcimento é devido por quem tenha a vigilância do incapaz, salvo se provar não ter podido impedir o fato.

No caso em que o prejudicado não tenha podido obter o ressarcimento de quem for responsável, o juiz, em consideração às circunstâncias econômicas das partes, pode condenar o autor do dano a uma equitativa indenização”.

 O Código Civil italiano  estende a responsabilidade ao próprio incapaz, quando o prejudicado não tenha conseguido obter a reparação através do responsável legal desse, o que fica a cargo do juiz. Neste caso, a responsabilidade não é culposa, embora o dano se qualifique como antijurídico, porque não se fala de culpa, quando o agente é incapaz de entender.

No direito brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei n. 8.069/1990) estabelece a própria responsabilidade do menor, em se tratando de ato infracional ( crime ou contravenção penal), com reflexos patrimoniais, caso em que a autoridade poderá determinar que se promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima e esta medida poderá ser substituída por outra adequada (art.116).

Nosso atual Código Civil acompanha o italiano, determinando ao incapaz responsabilidade subsidiária, cuja indenização deve ser equitativa, não podendo privá-lo e as pessoas dele dependentes do necessário, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes  (art. 928).  Em se tratando de ato ilícito, a responsabilidade do pai, tutor, curador, independe de culpa  deles e, nesse ponto, difere do Código anterior  que a exigia (art. 933).

Em síntese, no verdadeiro estado de necessidade, ele é responsável pelo ato-fato e se lhe aplica a ação prevista no art. 929, se o dono da coisa  ou a pessoa lesada não forem culpados  pelo perigo); contra ele igualmente caberá ação regressiva, quando o agente, ao salvar interesse dele (INCAPAZ), causa prejuízo a outrem. Sendo o atuante o dono da coisa danificada, responde o absolutamente incapaz, a favor dele. Se o atuante age putativamente, salvando bens do absolutamente incapaz, este não tem responsabilidade pelo ato (ilícito) daquele, não havendo contra si ação regressiva.

11 - FONTE DO PERIGO

Pode provir o perigo de ato humano ( ação antijurídica ou não, imputável ou inimputável, culpada ou inocente - é indiferente para o ato em necessidade), de fato causado por animal irracional, de força da natureza, enfim de qualquer acontecimento desfavorável, como : incêndio, inundação, desabamento, desastre ferroviário, rodoviário, naufrágio, fome, epidemia grave, investida de animal bravio (cães, touro, etc). (Nesse sentido Cf. HUNGRIA. Op. Cit., p. 274).

12 - FUNDAMENTO DO ESTADO DE NECESSIDADE

Tal como ocorre na legítima defesa, o estado de necessidade faculta a intervenção de pessoa para salvar a si e a seus bens jurídicos ou a outra pessoa e seus bens, diante de situação especial, onde o Estado não consegue socorrer de imediato, pois, podendo o Estado agir, descaracteriza-se o estado de necessidade. A respeito pontifica ENRICO ALTAVILLA : “In fondo si può concordare col Massari (4) “chi agisce in stato di necessità, per salvare altri, indubbiamente com la sua azione collabora a una funzione dello Stato, ossia ad una funzione di assistenza publica”. ( Nuovo Digesto Italiano. Torino: ed. UTET, 1939, V. XVII, p. 966).

13 – EXCESSO

Excedendo o agente, dolosamente, no exercício dos meios de defesa, evidentemente que seu ato será ilícito, como também será ilícito se empregou meios imoderados e não apropriados, caso em que sua atitude será ilícita, por ação culposa. O excesso é punível em instância penal e tido como  abuso do direito, na esfera civil.

Enfoca ANÍBAL BRUNO que, em outras legislações, leva-se em consideração o ânimo do agente, punindo-se geralmente o excesso com pena atenuada ou deixa-se a atenuação ao arbítrio do juiz. “O nosso Código não seguiu esses modelos. No direito vigorante entre nós, se justificado pela própria turbação do agente, sob a ameaça de perigo grave e premente, o excesso não altera a situação de estado de necessidade como descriminante. Doloso ou culposo, porém, não exclui nem atenua a pena. O agente responderá pela lesão que constitui o excesso a título de dolo ou culpa”.  (Direito penal. Atualizada por Rafael Cirigliano Filho. Rio Janeiro: Forense, t. I, 2003, p. 251), ( art. 23, § único, CP).

Configura-se o excesso quando o agente, após o uso do meio proporcional, intensifica sem necessidade sua conduta, indo além do necessário para o salvamento. Tanto pode ser doloso ou culposo; não exclui a antijuridicidade, mas, a partir da ação excessiva, responderá o agente.

14 - INTERESSE COLETIVO

Um perigo comum, com iguais condições de tempo e lugar, que ameace muitas pessoas e coisas, cada uma delas tem igual faculdade para realização do ato, salvando a si e suas coisas. Se apenas uma realiza o ato necessário para salvação do perigo comum, dependendo da circunstância, a ela   pode ser aplicada SENÃO a figura do estado de necessidade, a do mandatário tácito ou a de gestor de negócios. Como o ato foi aproveitado por várias pessoas, a responsabilidade pelo ressarcimento reparte-se, conforme o benefício que do ato obtiveram. (Cf. CHIRONI. La culpa..., p. 25).

Referindo-se ao interesse da coletividade, entende SAVATIER que, na falta de beneficiário real, ser o interveniente, mesmo isento de falta, responsável pelo prejuízo causado a outrem para servir um terceiro ou à coletividade. E esta regra, verdadeira quando ele é desinteressado, impõe-se ainda mais quando tem interesse. (Cf. Op. Cit., p. 133, 134).

15 – CULPA

O estado de necessidade caracteriza-se pela não contrariedade a direito, pela ausência de culpa, elemento importante na indenização. Todavia, nem sempre o dano praticado nesse estado é resultante de simples fatalidade. Poderá a culpa surgir em vários momentos do ato, suscitando obrigação ao agente de reparar o dano injusto. Conforme nota CUNHA GONÇALVES, a  culpa, por vezes, antecede o fato (negligência em calcular as consequências de um ato lícito ou realização de um ato, que causou ou facilitou o perigo). Exemplifica, citando o caso do navio que, por falta de seu capitão ou piloto, envolve-se em redes de pesca e as rompe para se soltar. Aí ocorre culpa casum determinans, não podendo ser invocado o estado de necessidade.

Poderá ser posterior  a culpa e esta resulta do modo como o agente reage à situação, seja não procurando outro meio de defesa ou um meio defensivo menos lesivo ou excedendo-se na defesa, o que retira o fato do estado de necessidade e o torna ilícito.(Cf. Op. Cit., p. 522)

16 - CONCORRÊNCIA DE CAUSAS NO ESTADO DE NECESSIDADE - PARCELA DE CULPA

Dentre os requisitos elencados na configuração do estado de necessidade, destacamos a inocência do lesado, isto é,  segundo a doutrina mais antiga, o lesado ou vítima não pode provocar ou facilitar seu dano.

A construção jurisprudencial vem modificando a regra rigorosa e estende os efeitos da concorrência  de causas ao  estado de  necessidade. Em Embargos Infringentes, julgados pelo 2º. Grupo C. Cível do TJSP, em 25/outubro/1973, tendo como relator o desembargador COSTA MANSO, temos o seguinte caso.

Um motorista atropelou e matou meninos, que brincavam no leito transitável da via pública, forçado pela necessidade de fugir do perigo ,causado por outro veículo que vinha na contramão direcional. A apelação acolheu em parte o pedido de indenização, na ação movida pelo pai das crianças, condenando o motorista ao pagamento de metade da indenização, com suporte na  concorrência de causas.

Comprovou-se que realmente o acidente deu-se por culpa de terceiro, cuja imprudência obrigou o motorista da Embargante a desviar-se pra junto do meio-fio, ante o perigo iminente à sua própria vida, bem como de passageiros de seu automóvel, num ato de necessidade.

Ficou assentado no julgamento dos embargos infringentes a concorrência de causas, louvada no voto do relator, trazido a lume por WILSON BUSSADA:

“A novidade do caso presente seria talvez a divisão da importância do prejuízo, entre o autor do dano e a vítima, pela concorrência de causas - a culpa de terceiro e a necessidade que conduziu o agente à prática voluntária do ato lesivo, de um lado; e  a parcela de culpa da própria vítima, de outro lado (não exercera vigilância para evitar que os filhos menores brincassem imprudentemente no leito carroçável da via pública).

No antigo rigor da ortodoxia jurídica, exigia-se que a vítima fosse inocente, de maneira completa, isto é, que não houvesse provocado nem de qualquer maneira facilitado o seu próprio dano: “Finalmente -advertia  Cunha Gonçalves - o ato praticado no estado de necessidade tem por característica essencial que o lesado não haja provocado, nem de qualquer modo facilitado o seu próprio dano. O lesado é, aqui  uma vítima imbele. Não suscitou o perigo, não promoveu o ato lesivo, não colaborou nele”. (Op. cit.,p. 520). “Mas o temperamento dado pela maioria subscritora do acórdão embargado constitui um avanço muito louvável da  jurisprudência que, assim, estende o conceito e, sobretudo, os efeitos da concorrência de causas do evento, para a hipótese de indenização, resultante de estado de necessidade: não seria justo que o autor do dano pagasse tudo, se a vítima de seu lado contribuiu também, com sua imprudência,, para a concorrência do fato; e não seria justo que a vítima sofresse a totalidade do prejuízo, só pela circunstância de ter uma parcela de culpa, se o fato resultou igualmente de ato voluntário do autor do dano, impelido pelo estado de necessidade, para escapar de perigo iminente, em consequência de culpa de terceiro.

Esse raciocínio é tanto mais aceitável quanto se considere que, se fosse conhecido o terceiro culpado e a vítima contra ele preferisse agir, diretamente, a concorrência de culpas, acima referida, imporia, segundo a jurisprudência dominante, a divisão do prejuízo.” (Código Civil brasileiro ...V I, t. III, 1980, p. 73, 74).

17 - CULPA DE TERCEIRO

Nem sempre a situação de perigo resulta de força maior. Na origem  dela pode existir uma falta, cujo autor deve responder pelo dano causado. Reconhece-a o direito brasileiro ao declarar o direito de regresso do agente ao  terceiro culpado do perigo ( art. 930). Igualmente será responsável pelas consequências do ato necessitado quem tem a guarda jurídica de pessoas ou coisas causadoras do estado, caso em que será a responsabilidade fundada na culpa  in vigilando. O agente responde pelo ato-fato jurídico; o terceiro responde pelo ato ilícito. Se, quem atua em necessidade, foi o responsável pelo perigo, responderá pelos danos, com suporte na ilicitude; neste caso, não se trata de estado de necessidade.

A responsabilidade de quem  teve seu bem salvo com o sacrifício do bem de outrem é reconhecida pela jurisprudência francesa, seja ao argumento de enriquecimento sem causa, seja em virtude de uma ideia de gestão de negócios. Em todo caso, trata-se de uma regra de equidade que pode ser admitida mesmo na ausência de texto legal. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 127).

 18 - ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ART. 188, II, combinado com o artigo 929

Nem sempre o estado de necessidade torna o ato danoso lícito no âmbito civil, mas só nas hipóteses do art. 188, II. A responsabilidade ali prevista não abrange todos  os danos ocasionados em situação de perigo, mas somente os praticados por  ato de vontade (deliberação); diante do perigo que se apresenta é feita uma escolha. A doutrina cita como exemplo : Se A, ao sentir a queda iminente do avião, lança-se de paraquedas e cai no telhado de um prédio, não caiu nesse telhado para salvar-se -  não é aplicação do art. 188, II. Porém, se foi obrigado a aterrizar e, ao fazê-lo, causou dano onde aterrou, há incidência do art. 188, II. Não incidirá nesse artigo se, ao aterrar, o avião andou mais do que o aviador previu, por culpa, e destruiu coisa de outrem (art. 186). A explicação vale para qualquer outra espécie de veículo. ( Cf. PONTES. Op. Cit., p. 304).

A doutrina discutiu, anteriormente, sobre os dispositivos acima, afirmando alguns autores estar o art. 1519 (atual 929) em contradição com o art. 160, II (atual 188,II), pois não seria lógico determinar o dever de reparação de dano (se o dono da coisa não for culpado do perigo), se a remoção do perigo já foi posta como excludente de ilicitude. Outros opinaram não haver incongruência e sim equidade dos dispositivos legais. “O encadeamento das ideias é lógico e tem um fundamento ético bem claro”, diz BEVILÁQUA (Op. Cit., p. 424), notando que a interpretação errônea deu-se por interpretação alheia ao Código Civil, quando é dever do intérprete penetrar o sistema que os dispositivos do Estatuto Civil traduzem, a fim  de analisá-los à luz dos princípios gerais e dos demais preceitos que envolvem a matéria. (Cf. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, 1919, v. V, t. II, p. 282).

De acordo com essa última posição, aduz WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO,  “No estado de necessidade, e também no de legítima defesa, à vista do  antigo art. 1540, quando o prejudicado não é o ofensor, mas um terceiro estranho, subsiste o dever de ressarcir. Este só desaparece se o prejudicado é o próprio ofensor ou o próprio autor do perigo”. (Op. Cit.,  1952,  p. 280).

Ao art. 1540 do Código anterior já fizemos alusão. Referindo-se à indenização, resultante de ato  ilícito, expressava que as disposições a ela relativas aplicavam-se ao caso de morte ou lesão, quando resultante de ato considerável crime justificável, se tal ato não foi perpetrado pelo ofensor em repulsa de agressão do ofendido. Quer dizer, quando atingir terceiro inocente. O  novo Código suprimiu essa disposição,  porquanto a regra geral é : quem produziu o dano é obrigado a repará-lo.

19 - MAL CAUSADO A SI MESMO PARA EVITAR UM MAL A OUTREM - ATO DE SACRIFÍCIO

Estamos aqui diante de uma situação de sacrifício ( dévouement, para os franceses). Não se tem em vista, nesse caso, apenas um simples serviço de favor ou gratuito, mas de situação na qual o agente causa verdadeiro mal a si, a fim de evitar um mal a terceiro. A jurisprudência francesa reconheceu-o como ato de sacrifício aquele pelo qual alguém arrisca sua integridade corporal para  afastar um perigo de outrem. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 130, 131).

Esse ato não é uma falta, mesmo se ele parece temerário, mas com a condição de que se reúnam os dois elementos essenciais ao estado de necessidade : primeiro, é necessário que o salvador tenha podido considerar legitimamente seu sacrifício, ao momento em que ocorre, como único meio de afastar o mal de modo urgente; é necessário que o mal seja grave para justificar o sacrifício do salvador/agente. Entretanto, não podendo o direito positivo fazer abstração do valor moral dos atos, as condições gerais do estado de necessidade serão, na sua aplicação, mais facilmente apreciadas para o ato de  sacrifício, cujo valor moral é grande, que para o ato no qual o agente sacrifica interesses ou a vida de outrem para seus próprios interesses ou  sua própria vida, atitude cujo valor moral é insignificante. (Cf. Id. Ibid., p. 130, 131).

O autor do ato de sacrifício, não incorrendo em falta, pode atribuir a responsabilidade do prejuízo sofrido a  todas as pessoas que criaram o estado de necessidade, seja por sua falta, seja por falta de coisa ou de pessoa pelas quais deviam responder. O mesmo ocorre quando o ato de sacrifício não tiver alcançado seu objetivo ou ainda quando esse ato realizado, por exemplo, por um agente de polícia, pudesse ser, por sua parte, o exercício de um dever. (Cf. Id. Ibid., p. 130, 131).

Inversamente, o autor do ato não teria recurso, se ele tivesse apenas procurado evitar para outrem, mesmo que, a despeito de um grave sacrifício, um dano que ele mesmo iria causar, seja por sua falta, seja pelo fato de pessoas ou coisas pelas quais devia responder. ( Cf. Id. Ibid., p. 130, 131).

Se o estado de necessidade deriva de puro caso de força-maior, o direito comum da responsabilidade designa o responsável. Nesse caso, como naqueles onde o criador responsável pelo ato necessário é insolvente, entende SAVATIER que o salvador pode fazer-se indenizar pela pessoa salva. A jurisprudência parece chegar a esse resultado por uma ação de gestão de negócios. (Id. Ibid., p. 131).

20 - MAL CAUSADO A ALGUÉM PARA EVITAR UM OUTRO A ESSA PESSOA

A falta ou ato culposo (ilícito), nessa situação, desaparece, mas, em geral, sob uma condição: a de haver consentimento do interessado, ao qual ele só pertence, normalmente, para apreciar a necessidade do ato. Esta é a regra aplicada, em particular, nos casos de intervenções médicas. Contudo, pode ocorrer que o interessado não esteja em condições de apreciar a necessidade do ato, ou o tempo pode faltar para adverti-lo e consultá-lo, em razão do perigo urgente. Nessa circunstância, o ato é perfeitamente justificável e, como ele beneficia a própria vítima, o agente não incorre em responsabilidade. Essa responsabilidade competiria, em tal caso, ao indivíduo cuja falta criou o estado de necessidade.

Na pessoa de administrador legal dos bens de outrem, o estado de  necessidade representa um papel particularmente importante. Ele justifica, especialmente, a teoria dos atos conservatórios. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 132).

21 - AÇÃO REGRESSIVA

Consigna o Código Civil brasileiro o direito de regresso ao agente (autor do dano) contra o terceiro culpado do perigo (art. 930). Não se refere à mesma ação contra o beneficiado no estado de necessidade, apesar de admiti-la em caso de legítima defesa. Apesar da ausência de dispositivo legal expresso, tem-se entendido, por razão lógica e fundamento ético, ter o mesmo direito o agente contra aquele em cuja defesa foi o ato praticado; invoca-se, portanto, o art. 4º. da Lei de Introdução ao Código Civil, em aplicação analógica. Seja para o estado de necessidade, seja para legítima defesa, há o direito de regresso.

Nada mais justo assegurar ao agente/atuante esse direito, já que ao prejudicado o direito de indenização foi estabelecido pela norma legal, fundada na relação entre ele e o agente. Em tal situação, optou o legislador em garantir o lesado contra quem esteve envolvido diretamente, não lhe impondo o ônus da busca, talvez  exaustiva e infrutífera, do causador do estado de perigo;  ou como acabamos de admitir, do beneficiado pelo ato do agente.

22 - RESPONSABILIDADE CIVIL -  FUNDAMENTO E ESPÉCIE

No direito moderno, tem-se assentado o princípio segundo o qual a voluntariedade e a culpa não são elementos essenciais da responsabilidade civil. No evolver da sociedade, sente o direito a necessidade de incorporar novos conceitos aos antigos institutos e se afasta do direito romano, onde a indenização tinha o caráter de pena.

Entre o patrimônio do lesante, não culpado, e o do lesado, prefere optar por este último. No estado moderno, a culpa não é critério socialmente admissível.

 Dentre alguns autores que examinaram a obrigação de reparar o dano, causado em estado de necessidade, AGUIAR DIAS aponta as divergências, quanto ao seu fundamento:

Uma corrente, e nela encontramos Chironi, filia-se ao princípio do enriquecimento sem causa.O ato de necessidade não fundamenta, por si só, a reparação civil, porém reconhece a procedência da ação  in rem verso, em face da alteração do direito do agente, trazida na vantagem para ele e prejuízo a outrem.

Para  AGUIAR, a teoria é  insuficiente, porque não há necessariamente enriquecimento, podendo o ato necessário não ter alcançado êxito; Efetivamente, buscando a obra de CHIRONI, ali encontramos : “... Quien perjudicando a otro en su persona o en sus cosas se salva a sí proprio o a sus cosas, ? no estará obligado a reparar el daño que no tenía derecho a inferir? ? No es esto un enriquecimiento ilícito, y, por tanto, prohibido? No es posible negarlo”. ( La culpa ... t. II, p. 388).

Para outra corrente, defendida por  Demogue, a reparação funda-se em  expropriação privada. Essa teoria satisfaz em parte, quando se trata de dano praticado em proveito do agente, mas não alcança a hipótese do ato em  favor de terceiro que, porventura, o obrigue, porquanto não se admite delegação deste para a expropriação.

Outra corrente (Giorgi) sustenta a reparação na eqüidade, na solidariedade  ou na assistência social”. É a teoria acolhida por Aguiar Dias, por enquadrar-se na sua concepção de responsabilidade civil, baseada na “Simples violação injusta do  statu quo”. ( Op. Cit., 1983,  v. II, p. 751).

Na evolução em que nos encontramos, não é possível endossar ou acolher o adágio romano  necessitas non habet legem, violador, incontestável da ideia de justiça.

Sendo o critério da culpa insuficiente para dar suporte à indenização, CUNHA GONÇALVES expõe outras teorias, concluindo que a teoria do risco é a que melhor se acomoda à situação e tem inspirado as legislações contemporâneas. Quem deve sofrer as consequências será o causador do dano, embora bem intencionado, ou aquele que lucrou com o mesmo dano. Invoca o autor o princípio : “Deve reparar  o dano quem se arriscou, com ou sem intenção de tirar proveito, a exercer, por si ou por via de outrem, uma atividade qualquer, positiva ou negativa, de que resultou o dano”.

Consequentemente ele afasta as teorias seguintes por julgá-las errôneas : a teoria de  extrajuridicidade ( o ato necessário está fora do direito, não sendo conforme nem contrário a ele, porque nenhum ato lesivo pode ser considerado como estranho ao direito); teoria da licitude ou irresponsabilidade ( porque não pode ser tido como irresponsável o agente que se encontrava em seu perfeito juízo); teoria do valor superior do bem salvo ( pois isto é sacrificar demasiado o interesse do lesado ao do lesante, mesmo que esse interesse coincida com o interesse geral).

Rechaça, pelas mesmas razões, as outras teorias mais defeituosas, buscadas por outros, objetivando fugir da teoria do risco, tais como : gestão de negócios; locupletamento (actio in rem verso); ou expropriação por utilidade privada, mencionada anteriormente; e ainda com base no critério estreito da culpa. (Op. Cit., p. 524)

Conforme assentado por PONTES, a reparação funda-se em ato-fato, ato que não entrou no mundo jurídico (anomia  ou ausência de leis).  Alicerçado  nesse argumento, afirma  que há algo de parecido na desapropriação por utilidade pública. Mas não desdobra sobre as teorias que lhe dão fundamento.

Devemos sintetizar em breves linhas a matéria da responsabilidade por fato de outrem, em âmbito de aplicação dos preceitos que tratam do estado de necessidade. Para o direito positivo brasileiro, a responsabilidade é direta, principal do agente do ato necessário, porquanto foi ele o causador do dano, embora lhe assista o direito de ação regressiva, se não foi culpado pelo fato. Há obrigação solidária de indenizar ao agente (ação regressiva), quando ocorrer pluralidade de culpados pelo ato necessário. Aí, tanto pode ser exigido o reembolso a qualquer deles ou a todos, sendo cada um obrigado à prestação por inteiro. Exigida a restituição do gasto de um, este terá, por seu turno, o direito de exigir de cada dos codevedores  a  sua  cota  (art. 283 C.Civil  bras.),  mas  não mais  como  devedores   solidários.  Na  relação interna, entre codevedores, o princípio reinante é oposto à solidariedade e a responsabilidade reparte-se  pro rata.

Registre-se, porém, que a solidariedade, por encerrar exceção ao princípio  concurso partes fiunt,  não se presume e resultará de imposição legal, como por exemplo, a dos coautores do ilícito (art. 265 e 942 do C.C. bras.) ou de convenção entre as partes.  Deste modo, sendo vários os culpados do perigo determinante do ato necessário, contra eles existe a responsabilidade solidária.

Acionando um ou alguns dos devedores, o agente continua com a qualidade de credor solidário quanto aos outros responsáveis e a ação proposta naquela forma não induz em renúncia à solidariedade.

Será igualmente solidária, quando o  prejudicado  exigir a indenização do agente e do terceiro culpado ou beneficiado pelo ato. Na relação interna entre estes, a responsabilidade não se reparte  pro rata, pois ao primeiro subsiste o direito de regresso para haver o  quantum na sua totalidade, porquanto a dívida solidária é do interesse exclusivo do terceiro culpado ou beneficiado ( art. 284 do C. Civil). É como ocorre com o avalista de título de crédito, em relação ao avalizado.

Se forem vários os agentes do ato necessário,  entre eles ocorrerá, embora não seja ato ilícito, também a responsabilidade solidária.

Quanto ao terceiro beneficiado (não se trata de ilícito), a sua responsabilidade funda-se na gestão de negócios ou em virtude de existência de outra relação entre agente/beneficiado (como poder familiar) somada ao ato-fato do agente, segundo informa PONTES ( Op. Cit., p. 307).

No direito francês, sustenta SAVATIER ser a responsabilidade do agente  subsidiária, só existindo se o dano causado não tiver sido reparado, seja por aquele cuja falta está na origem do estado de necessidade, seja por aquele que teve proveito do sacrifício imposto a outrem (Cf. Op. Cit., p. 127). 

24 – DIREITO POSITIVO ESTRANGEIRO

Legislação mais detalhada, o Código Civil português,  no subtítulo IV, que cuida do Exercício e tutela dos direitos, insere no art. 339 o estado de necessidade:

“Art. 339 - Estado de necessidade

1.É lícita a ação daquele que destruir ou danificar coisa alheia, com o fim de remover perigo atual de um dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro.

2.O autor da destruição ou do dano é, todavia obrigado a indenizar o lesado pelo prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma indenização equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles que tiveram proveito do acto ou contribuíram para o estado de necessidade”.

O agente é obrigado à reparação, se o perigo for provocado por culpa sua, o que é evidente, porque aí a matéria entra no  campo da ilicitude. Ao invés de prever ação regressiva, prefere determinar responsabilidade direta tanto do agente, como do terceiro culpado ou do beneficiado pelo ato necessário. Insere o critério da  superioridade entre o dano evitado e o praticado como requisito do ato.

No BGB, o ato  necessário não é contrário a direito, quando o dano ou destruição são necessários para evitar o perigo e não for desproporcional. O agente só é obrigado à indenização, quando o perigo provier de culpa sua.

Na seção VI, que trata do exercício dos direitos, legítima defesa e justiça privada, assenta o  § 228 ( Estado de necessidade)

“Quem deteriorar ou destruir uma coisa estranha, a fim de afastar, de si ou de outrem, por meio dela, um perigo iminente, não procederá antijuridicamente, se a deterioração ou a destruição era necessária para o afastamento do perigo e o dano não estava fora de proporção com o perigo.

Se o que assim agiu, for culpado do perigo, estará obrigado a indenizar o dano”.

Peca o Estatuto alemão por consignar os casos de responsabilidade, apenas registrando uma obviedade, qual seja, dever de reparação pelo agente culpado do perigo; portanto, estaria isento o agente, em não havendo culpa sua, mas havendo culpa de terceiro é da sistemática jurídica que contra este caberá pedido de indenização.

A doutrina tem apontado contradição entre o dito parágrafo 228 (agente só é obrigado à reparação se for culpado do perigo) e o § 904 ( que permite a qualquer pessoa exercer na propriedade alheia ato necessário, para afastar perigo iminente, mesmo danificando-a, se o dano receado ou evitado for superior ao causado ao proprietário), no qual reconhece-se ao proprietário, sempre, o direito à indenização. (Cf. CUNHA GONÇALVES. Op. Cit., p. 525).

O Código Civil  italiano, no título IX, correspondente aos fatos ilícitos, traz a exceção prevista no art. 2045:

“Art. 2045 (Estado de necessidade). Quando, quem praticou o fato danoso, estava constrangido pela necessidade de salvar a si ou a outrem do perigo atual de um dano grave à pessoa, e o perigo não foi por ele voluntariamente causado, nem era de outra forma evitável, ao prejudicado é  devida uma indenização,  cuja medida é remetida à equitativa apreciação do juiz.”

Verificamos, na disposição, os requisitos: perigo não voluntariamente causado pelo agente, atual e inevitável; peca por contemplar somente o dano grave à pessoa ou outrem, não se referindo a outros direitos. A doutrina entende que essa expressão  à pessoa é empregada em sentido amplo, o que vale dizer, incluem-se seus bens, interesses físicos e morais.

Não introduz o critério da proporcionalidade entre o dano evitado e o mal causado, o que é feito pelo Código Penal. Determina indenização ao prejudicado, sendo o agente não culpado, a ser apreciada pelo juiz. No art. 2047, há previsão do dano causado por incapaz,  conferindo-se ao juiz, considerando as condições econômicas das partes, o poder de condenar o agente a uma equânime indenização, quando o lesado não puder obter o ressarcimento pelo seu responsável..

Outro dispositivo legal aborda o estado de necessidade em matéria contratual, no capítulo que dispõe sobre a rescisão do contrato, celebrado em estado de necessidade.

Reza o art. 1447 :  “O contrato com quem uma parte assumiu obrigações em condições iníquas, pela necessidade, conhecida pelo outro contraente, para salvar a si ou outrem de perigo atual de um grave dano à pessoa  pode ser rescindido por ação  pela parte que se obrigou.

O juiz, ao pronunciar a rescisão, pode, segundo as circunstâncias, determinar uma justa compensação à outra parte pela obra realizada”.

O direito positivo  italiano pouca contribuição dá ao estudo das pré-excludentes de ilicitude. A construção doutrinária e jurisprudencial vem sendo feita, através dos dispositivos da legislação penal.


CAPÍTULO V - REFLEXO DA COISA JULGADA PENAL NA JURISDIÇÃO CIVIL E SUSPENSÃO DO PROCESSO CIVIL

Art. 935 do Código Civil brasileiro: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar  mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas  no juízo criminal”.

Por sua vez, o CPP, dispõe, ao cuidar da ação civil:

“Art. 63.  Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Parágrafo único.  Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Art. 64.  Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.  (Vide Lei nº 5.970, de 1973)

Parágrafo único.  Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.

Art. 65.  Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

 Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”.  

A responsabilidade civil e criminal diferem-se em seus fundamentos e objetivos e, de um mesmo fato, surtirão consequências diversas nas duas jurisdições; ambas estabelecem o princípio da pré-exclusão de contrariedade a direito do ato praticado em legítima defesa, no exercício regular de um direito reconhecido e no estado de necessidade e aqui há igual fundamento.

A controvérsia que sempre houve dá-se quanto aos efeitos do reconhecimento da excludente penal no juízo cível, diante do art. 65 do Código de Processo Penal, que  estabelece como coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido praticado o ato com exclusão de ilicitude. Segundo AGUIAR DIAS, o sistema do CPP aberra da tradição do direito brasileiro, além de fugir ao critério moderno da reparação do dano. Entende que ele isentou, em qualquer caso de reparação, o prejuízo causado, e o terceiro inocente atingido pelo ato, não pode, à luz daquele diploma, voltar-se contra o agente do estado de necessidade, mas apenas recorrer à responsabilidade de quem criou o perigo. É uma doutrina que não merece aplauso .(Cf. Op. Cit., 1983, v. II, p. 421, 472).

A divergência foi apontada, igualmente, no direito francês, conforme assentaram  PLANIOL et RIPERT: “Para defender la tesis de que la responsabilidad civil no queda necesariamente excluida por la irresponsabilidad penal, pudiera hallarse con apoyo en la jurisprudencia que admite la condena civil después de la absolución en lo criminal. Pero el alcance de ésta es algo incierto.”( Op. Cit., p. 780).

Se, no que toca aos efeitos da sentença penal condenatória, não existem dificuldades  na instância  privada, diversa é a situação quando a justiça penal decide pela absolvição do culpado e como será sua eficácia no cível. Tal como vige em outros sistemas, prevalece no nosso que, se a discussão da matéria em instância civil não ofereça risco de contradizer a instância penal, seja porque a questão a ser examinada na esfera privada não foi objeto de exame na instância penal,  ou, tendo-o sido, apenas no que foi peculiar ao campo penal, poderá ser revista na jurisdição civil.

A opinião da doutrina oscila entre a adoção da autonomia, interdependência e acumulação das duas ações. As legislações, igualmente, não seguem um mesmo sistema : umas adotam o da acumulação das ações, outras o da separação, como fez nossa legislação penal desde a Lei n. 261, de 03/12/1841 e tal como dispõem o atual Código Civil brasileiro, BGB, Holandês e o direito anglo-americano. No nosso direito, a sentença penal absolutória não produz efeito reparatório, mesmo que dela se possa extrair, de forma inconteste, um dano material ou extrapatrimonial a ser ressarcido. Só produzirá coisa julgada no cível, quando exclua a existência material do fato - art. 66 do atual Código de Processo Penal - ou reconhecer que o ato foi praticado  em estado de necessidade, legítima defesa, no estrito cumprimento do dever legal, ou no exercício regular do direito (art. 65). Isto porque o art. 23 do Código Penal determina essas mesmas hipóteses como excluídas de ilicitude e o próprio Código Civil as contempla em seu art. 188.  No exercício regular do direito estaria  abrangido o estrito cumprimento de dever legal, mas não em decorrência do preceito penal.

(Alguns autores preferem a expressão preclusão, por não reputarem tecnicamente correto  atribuir efeito de  coisa julgada, no cível, da sentença penal. Neste sentido é a lição de AGUIAR DIAS - Cf. Op. Cit., 1983, v II,  p. 916). 

A conjugação daqueles indigitados dispositivos com o princípio da independência das jurisdições, reconhecido textualmente, porém, não se apresenta de forma translúcida e a questão é tormentosa. O próprio art. 65 da codificação processual penal tem sido arduamente criticado por conter disposições retrógradas às novas concepções da  responsabilidade civil de que todo dano injusto deve ser reparado e por demonstrar contradição com o art. 66, trazendo maior confusão ao problema.  Ademais, dá maior elastério ao efeito preclusivo da decisão penal do que o próprio art. 935 do Código Civil, que reconhece a eficácia daquela sentença somente quanto à  existência do fato ou quem seja seu autor.

AGUIAR DIAS aponta as falhas da previsão do art. 65, destacando que o nosso direito privado não isenta de reparação o ocasionador do dano no caso de excludentes e o obriga a indenizar, mesmo sem culpa, quando pratica o ato em estado de necessidade  (art. 1520 – atual 930).

Em resumo, a doutrina declara que as sentenças criminais absolutórias só repercutem na instância civil,  no que for comum às duas jurisdições.

O mestre citado indaga em quais casos ocorrerá o efeito preclusivo da sentença criminal sobre a jurisdição civil. Preliminarmente, destaca ser o fato gerador de ambas as responsabilidades único e a verdade sobre ele uma só, variando apenas o critério com que cada jurisdição encara o fato, sendo que o direito penal exige para sancionar o ilícito, integração de condições mais rigorosas e compreendidas em padrões taxativos (nulla poena sine lege),  enquanto o direito civil “ Considera precipuamente o dano, e aquele estado de espírito apriorístico se volta em favor da vítima do prejuízo”.

Só admite, como consequência do julgado criminal no cível, o disposto no art. 1525  (atual 935): reconhecimento do fato e da autoria, porque o Estatuo Civil não autoriza entendimento diverso. Aponta como razões  :  a responsabilidade em nossa lei não é inteiramente calcada na culpa (arts. 160, II, 1519, 1520 – atuais: 188,II, 929, 930), como no caso de estado de necessidade, mesmo quando a culpa do perigo seja imputada a terceiro.  Conclui, como  Didonet Neto, que  “ A regra, em face do art. 1525 (935) do Cód. Civil, é a ineficácia da sentença absolutória criminal no juízo cível”. E “Quando o Código Civil assenta a eficácia da sentença criminal no juízo cível só estabelece em dois casos : a existência do fato e a sua autoria”. Sustenta que a exclusão de responsabilidade, seja decorrente da   “Legítima defesa ou da perturbação de sentidos provocada pela vítima, não se prende, na realidade, à questão da eficácia do julgado criminal na parte em que declarou a dirimente ou a justificativa, mas quando proclamou o que geralmente se esquece : a culpa da vítima”. Não é suficiente ter o autor agido sem culpa para isentar-se de responsabilidade; nosso Código manda indenizar, ainda quando infligido em estado de necessidade (Op. Cit., 1983, v. II, p. 918 et seq.). Por outro lado, a culpa da vítima (como na legítima defesa) pulveriza a obrigação de indenizar, ou seja, suprime a causalidade imprescindível para haver responsabilidade. ( Id. Ibid., p. 918, et seq.).

Dentre as normas resultantes do art. 1525 (935) citado, inclui o autor :

“d - a sentença penal, fundada em dirimente ou justificativa, não influi no juízo civil senão quando estabeleça a  culpa do ofendido, que, nesse caso, sofre as consequências do seu procedimento. Não é, portanto, o ato do autor do dano em si, que, coberto por dirimente ou justificativa, desautoriza a obrigação de reparar : é a culpa do ofendido que,  conjugada àquele, determina a irresponsabilidade”. (Op. Cit. P. 920).

O Código de Processo Penal é criticado por trazer controvérsia à matéria. Qual seria o alcance da expressão  coisa julgada que o legislador quis dar no art. 65, indaga AGUIAR DIAS. Admitindo-se que a expressão opera preclusão da decisão penal no cível, a fórmula estaria convertida em linguagem mais simples : aquelas excludentes reconhecidas no crime, não podem ser contraditadas em instância civil. Se tomamos à letra a fórmula empregada o que temos resolvido? Nada que já não estivesse previsto no art. 1525 (935) do Código Civil.

Se o que quis o legislador foi apenas dar como irrefragavelmente provadas, para efeitos civis, as excludentes em debate, tal fato não impede a reparação  do dano realizado em tais condições. Quando se afirma que a decisão criminal não pode ser contrariada no juízo cível,  “Não se pode deduzir, só por aí, que fiquem impossibilitados os efeitos peculiares à última jurisdição”. (Op. Cit. 1983, v.II, p. 921).

 Reconhece o autor que a interpretação  exata é a concluída por Câmara Leal, quando diz dever a sentença penal absolutória prevalecer no cível como presunção absoluta, devendo o juiz não afastar-se daquela conclusão e isentar o réu com fundamento no art. 160 (188) do Código Civil. Refuta a orientação seguida pelo Código Processual Penal, ao derrogar princípios salutares, em que o Código Civil estabelecia excepcionalmente a reparação de danos, em situações que excluem o elemento culpa e considera retrógrada a concepção do CPP, no campo da responsabilidade civil. Entende, para remediar o defeito, que se promova sua revisão, mesmo porque contradiz o art. 66, ou deverá a jurisprudência interpretar superficialmente o texto do art. 65. Por essa interpretação não se vai negar que o fato dado como justificado (excludente) na sentença penal, não seja do mesmo modo praticado nessas condições no juízo cível. Porém, restringindo  “O seu efeito à preclusão sobre as circunstâncias e não sobre a irresponsabilidade, não lhe repugnará conceder indenização à vítima do delito”. Seria uma solução mais digna de acatamento do que a resultante do texto do art. 65.

Por fim, firma que o art. 65 não tem qualquer utilidade. “As isenções que a justo título consigna já estão estabelecidas na lei civil, e as que constituem novidade derrogam princípios dignos dos mais fervorosos aplausos”. (Op. Cit., p. 922).

Na linha sustentada pelo autor,  acabada de ver, ao comentar o art. 65 do Código de Processo Penal, SERPA LOPES exorta que esse deve ser entendido em seus devidos termos. Sobre o reconhecimento, em decisão penal, da legítima defesa, do estado de necessidade e do exercício regular de um direito reconhecido, nada pode mudar na ação civil, pois são atingidos pela eficácia da  res judicata penal,  porém as consequências jurídicas que dele  decorrem não são alcançadas pela coisa julgada, e continuam regidas pelo Código Civil.

“Assim sendo, se a legítima defesa, e se o exercício regular de um direito reconhecido não dão lugar, a não ser  excepcionalmente, a qualquer indenização, o mesmo já não sucede em relação ao estado de necessidade, o qual, de um modo geral, sempre pode dar lugar à indenização, à composição do dano”- art. 1520 (930). (Curso de direito  civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, v. V., p. 411, 412).       

O art. 65 enfocado não derroga os arts. 1519 e 1520 (929 e 930) do Código Civil. Portanto, embora reconhecida a excludente do estado de necessidade em instância penal, prevalece o dever indenizatório, no cível, fundado na responsabilidade sem culpa. Na mesma linha de raciocínio, prossegue BASILEU GARCIA:

“O  legislador processual penal não dispôs - nem era sua missão fazê-lo - acerca de não caber ou caber, sempre ou às vezes, a indenização, em havendo alguma daquelas justificativas. A tal respeito, o Código de Processo pressupôs o Direito Civil e todas as duas distinções, como aliás, é normal entender sempre que o antagonismo não seja indubitável”. (GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. S. Paulo: Max Limonad, 1952, V I , t. II, p. 584).

A  sustentação prevalece para a legítima defesa, o estado de necessidade  e o exercício regular do direito.

PONTES argumenta ser o art. 65 CPP um Plus em relação ao art.1525  (935) do Código Civil, com supedâneo em jurisprudência (Op. Cit. V. 53, p. 187). Acredita ser a crítica aos arts. 63 a 67 do Código citado sem razão. O art. 65 tem redação diversa da do 1525  (930) do Código Civil, que reconhece a preclusão somente quanto à existência do fato e à sua autoria. O Estatuto Processual Penal considerou que tudo se passa no mundo fático e que as disposições do art. 160, I e II (188) são regras jurídicas pré-excludentes, isto é, não houve o ilícito, porque o fato não entrou para o mundo jurídico. “O art. 65 do Código de Processo Penal não exclui a reparação segundo os artigos 1 519 e 1 520 (929 e 930), porque tal reparação não é  ex delicto : é reparação por ato não contrário a direito. Mudou-se, portanto, o art. 1525, 2a. parte,( 935) quanto à legítima defesa, ao estado de necessidade e ao exercício regular de direito, porque se permitiu mais do que o enunciado existencial sobre o fato ou relação causal : permitiu-se o enunciado existencial  mais o enunciado sobre a não contrariedade a direito. Nesses pontos é que se há de firmar a decisão no cível, porém de modo nenhum se pré-elimina a discussão sobre a responsabilidade segundo os arts. 1519 e 1520  (929, 930), que tem outro fundamento que a não-contrariedade a direito”. (Tratado...V. 53, § 506, p. 187, 191).

DA SUSPENSÃO DO PROCESSO CIVIL. Ponto não pacífico é o saber se, diante da existência de ação penal em curso, é necessária a suspensão do processo civil, dúvida procedente, porquanto ter adotado o direito pátrio o princípio da independência de jurisdições, como fez a legislação penal desde a Lei n. 261, de 3/dezembro/1841 e tal como dispuseram o Código Civil de 1916 (art.1525 ) e o de 2002 (art. 935).

 Não há impedimento a que se proponha, no juízo cível, ação indenizatória, antes de encerrado o processo criminal ou, havendo este chegado ao término, não tenha a decisão condenado o réu à reparação.

Expressam os dispositivos infra do Código de Processo Penal :

“Art. 63.  Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Parágrafo único.  Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Art. 64.  Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.  (Vide Lei nº 5.970, de 1973)

Parágrafo único.  Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela”.

Fundamentando-se nesse art. 64 e seu parágrafo, bem  como no art. 1525 ( 935) do Código civil ( que reconhece não caber mais discussão sobre a existência do fato, ou de quem seja seu autor se estes forem decididos em instância criminal), alguns julgados admitem o curso normal do processo civil, antes do encerramento da ação penal.

Ementou, na forma abaixo,  antigo julgado de 11/maio/1994 (Agravo de Instrumento n. 584.923-8) o Tribunal de Alçada Cível de São Paulo:

“A existência de processo crime não justifica a decisão de suspender o curso da ação  civil  de reparação contra o responsável pelo dano”.

O agravo tinha como objetivo reformar a decisão que suspendeu o curso da ação indenizatória, até desfecho do processo criminal sobre o mesmo fato. O recorrente argumentou que dita suspensão não se incluía entre as hipóteses previstas no Código de Processo Civil (arts. 265-266  ) e que apenas se cogita de suspensão, quando existe possibilidade de repercussão no cível e que haveria prejuízo em virtude da não oitiva de testemunhas.

Ao relator, prof. Carlos Bittar, assistia  razão ao recorrente, aos seguintes fundamentos:

Há  independência das jurisdições e a exceção é feita a questionamentos posteriores, declarados no Código Civil, quais sejam, existência do fato ou quem seja seu autor; é  a doutrina universal, ressalta. Os casos de suspensão do processo estão elencados no Código de Processo Civil. Reafirma que a jurisprudência imperante é no sentido de que a existência de processo criminal não dá justificativa para a suspensão da ação civil em curso, conforme acórdãos publicados na RT 506, p. 106, RT 620, p. 83 e RF 298, p. 206.

O Tribunal deu provimento ao Agravo, para o prosseguimento da  ação civil em curso. (Cf. REVISTA DOS TRIBUNAIS. S. Paulo, 712, p. 179-81, fev./1995).

Esse posicionamento mantém-se atualmente, conforme ementado pelo TJMG:

1 - Processo: Agravo de Instrumento Cv

1.0687.11.008417-9/001

0871159-16.2012.8.13.0000 (1)

Relator(a): Des.(a) Cláudia Maia

Data de Julgamento: 08/11/2012

Data da publicação da súmula: 14/11/2012

Ementa:“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. SUSPENSÃO DO FEITO. DESCABIMENTO. PROVA PERICIAL. DESNECESSIDADE.- A norma contida no parágrafo único do art. 64 do Código de Processo Penal coloca à disposição do julgador a mera faculdade de suspender a marcha da ação de reparação civil, não estando compelido a determinar seja ela suspensa, mormente nas situações em que, devido à presença da prova da materialidade e autoria, a possibilidade de decisões contraditórias torna-se remota.- Deve-se manter a decisão por meio da qual foi indeferida a realização de prova pericial, vez que inócua para definir a questão controvertida nos autos.”

Posição idêntica adotou o Tribunal de Alçada de Minas Gerais, também em decisão mais antiga, conforme sumulado:

“ Não se dá a suspensão do processo cível para aguardar que se decida em ação penal se houve ou não culpa do agente, mas somente quando se questiona a respeito da existência do fato ou sua autoria, pois, além de ser a responsabilidade civil independente da criminal, também em extensão diverso é o grau de culpa exigido”. (Ag. de Instr. N. 4.645. Jorge Luiz de Lima versus Cia. Açucareira Riobranquense. Relator: Juiz Corrêa de Marins. Acórdão de 7/março/1986. Revista Forense. Rio Janeiro, v. 298, p. 206).

O caso vertente cuidava de ação de indenização por morte em acidente de trânsito, processo sobre o qual o Juiz de primeiro grau ordenou  suspensão até decisão criminal sobre o mesmo fato, a saber se houve ou não culpa do preposto da ré pelo eventus damni.

Para o Tribunal,  não se questionava a existência do fato em si ou sua autoria, não havendo motivo para suspensão do feito. Invocou o acórdão julgado anterior em que fora relator o Juiz Xavier Ferreira: “Somente quando existe a possibilidade de repercussão da decisão proferida na área penal, pelos limites subjetivos da coisa julgada, é que se deve decretar a suspensão da ação civil, numa harmônica interpretação do disposto  nos arts. 64, § único e 65 do C. Processo  Penal, e 1525 (935), do C. Civil, pelo prazo de um ano e não até que seja definitivamente julgada a ação penal. (RJTAMG, vol. 19, p. 364)”.

A despeito da referência ao art. 64, § único do Código de  Processo Penal, o ponto de vista manifestado não se coadunava com esse artigo, que estipula uma faculdade ao juiz de suspensão do feito civil até ocorrer a decisão criminal : “até o julgamento definitivo daquela” e não  por  prazo fixo, o que poderá tornar inócua a suspensão. Ademais,  igual faculdade de suspensão está prevista no artigo 110 do Código de Processo Civil até o pronunciamento da justiça penal,  quando se tratar de questão prejudicial.

“Art. 110 - Se o conhecimento da lide depender necessariamente da verificação da existência de fato delituoso, pode o juiz mandar sobrestar no andamento do processo até que se pronuncie a justiça criminal.

Parágrafo único - Se a ação penal não for exercida dentro de trinta (30) dias, contados da intimação do despacho de sobrestamento, cessará o efeito deste, decidindo o juiz cível a questão prejudicial”.

O artigo 64 do Código de Processo Penal expressa que o juiz da ação civil  poderá suspender seu curso. Desse  dispositivo infere PONTES ser esta uma regra jurídica de processo civil inserida no Código de Processo Penal e não está o juiz  obrigado a suspender o feito : “Há arbítrio, posto que não seja arbítrio puro”. Não se trata, outrossim, de existência de litispendência entre os juízos das duas esferas de jurisdição. O autor pode intentar a ação antes ou depois da ação penal, salvo se já existe coisa julgada material sobre o ponto da reparação. “A influência somente se dá com o trânsito em julgado; não há exceção de litispendência, nem eficácia de preclusão”. (Op. Cit., V. 53, § 5.506, p. 192). Alinha-se nesses princípios o art. 66 do Estatuto Processual Penal (Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato);  categoricamente quer dizer decisivamente, ou seja, quando a sentença penal negar que o fato material tenha ocorrido.

Por fim, o art. 67 declara expressamente, incisos  I, II, III, os casos em que não fica impedida a propositura da ação civil (como arquivamento do inquérito ou das peças de informação; a extinção da punibilidade; a decisão absolutória considerando que o fato não constitui crime).

A  PONTES esses enunciados e os dos art. 65 e 66 “Deixam incólume o art. 1.525 (935) do Código Civil, regra de direito civil, ao passo que são regras de direito processual civil as dos arts. 65 a 67 do  Código de Processo Penal (heterotopia)”, quer dizer, encontram-se em lugar em que não se costumam situar.

Propôs o  mestre as seguintes diretrizes :

- Atribuir-se apenas ao juízo criminal a competência para a ação de indenização decorrente do delito;

- Separar a ação (criminal) de condenação e a actio iudicati, civil (ação de coisa julgada), caso em que  a satisfação do julgado somente ocorreria após a condenação no juízo criminal, passada em julgado;

- Reconhecer a competência cumulativa do juízo civil, somente para a  actio iudicati (arts. 63 a 68 Código Processo Penal); (posição esta preferida pelo autor);

- Excluir a competência criminal para a condenação na indenização, tal como existia na Lei n. 261/1841, art. 68, para a qual a indenização só era possível em via cível, para todos os casos. (Cf.  Ibidem, p. 192-194).

A Lei n. 11.719, de 20.6.2008, acresceu parágrafo único ao art. 63 do Código de Processo Penal, " in verbis":

"Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput de art. 387 deste Código, sem prejuízo da liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido."

E diz esse último artigo :

"O juiz ao proferir a sentença condenatória:

IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido". (Redação da Lei 11.719/2008).

Houve, por certo uma inovação, um acréscimo quanto à concretização dos efeitos  da sentença penal condenatória, na própria instância penal. Mas teve o legislador o cuidado de não deixar ao julgador, de modo definitivo, a fixação do montante integral da indenização; esse fixará um "mínimo" indenizatório, conforme aquilo que for possível extrair dos autos, sem grandes delongas, objetivando-se a prestação jurisdicional satisfatória, ou seja, maior brevidade e eficiência na solução da lide. Pode ser que o valor fixado seja realmente correspondente ao dano sofrido ou que a parte lesada se satisfaça com esse valor mínimo, notadamente em caso de dano moral, e dispense o recurso à jurisdição civil, porquanto esta não foi eliminada. Não se adotou o instituto da Constituição Especial de Parte Civil, conforme preconiza o art. 64, do Estatuto:

" Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível contra o autor do crime e, se for o caso, contra o responsável civil".

Da forma posta no art. 387, IV, há uma determinação para o julgador cumprir, se houver pedido para tal, porquanto a quantia destina-se ao lesado. Independentemente da liquidação da sentença penal no cível, será fixado um valor mínimo indenizatório. Todavia, deve-se observar a inadmissibilidade do adiamento probatório no tocante ao prejuízo/dano em questão; também, em muitos casos, conforme o tipo penal, ficará impossível ao juiz fixá-lo, restando-lhe justificar a razão dessa não fixação. Por outro lado, o réu deverá ser ouvido no julgamento dessa indenização (princípios do contraditório e ampla defesa). Reconhecemos que a inovação trazida tem ainda aspectos suscetíveis de controvérsias. O Projeto-Lei n.1655/83, do CPP, teve minuciosa abordagem da matéria.


CAPÍTULO VII – JURISPRUDÊNCIA                                                             

Na primeira edição desta obra, elaboramos um capítulo destacado de  pronunciamentos judiciais, específicos sobre cada uma das espécies de excludentes de ilicitude civil, extraídos de Revistas Jurídicas. Em cada julgado, narramos os fatos e fizemos constar os fundamentos jurídicos das decisões, para melhor compreensão da aplicação concreta das teorias abordadas. Como, atualmente, há fácil acessibilidade aos  “sites” oficiais e a outros “sites” jurídicos, descipiendo  se torna   constar uma nova pesquisa .            


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Aparecida I.. Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3814, 10 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25864. Acesso em: 18 abr. 2024.