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O direito empresarial superando o arcaico sistema dos atos de comércio

O direito empresarial superando o arcaico sistema dos atos de comércio

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            Resumo. O direito comercial brasileiro está em crise. Diante de um sistema positivado absolutamente arcaico traçamos um histórico das três teorias que explicam a incidência do direito comercial nas diferentes épocas, dando-nos a noção de quem eram os sujeitos que faziam jus aos benefícios que só o direito comercial confere, quais sejam, a falência e a concordata. A teoria subjetiva considerava sujeito do direito comercial o comerciante matriculado em uma das corporações de ofício. A teoria dos atos de comércio, inspirada nos ideais da Revolução Francesa, deslocou o âmbito do direito comercial para a atividade dos atos de comércio, as quais nunca foram muito bem definidas em virtude da evolução contínua e frenética das atividades comerciais. A principal lacuna dessa teoria – que se verifica hoje - é não contemplar as atividades de prestação de serviços como sujeitas ao direito comercial e, conseqüentemente, merecedoras das prerrogativas acima mencionadas. Com o surgimento da teoria da empresa, o sujeito do direito comercial é o empresário – pessoa física ou jurídica – que exerce atividade econômica organizada, não importando a natureza dessa atividade. Incompatível com o princípio da isonomia não contemplar as empresas prestadoras de serviço como sujeitos merecedores dos benefícios da concordata e da falência.


1.Introdução.

            O objetivo deste trabalho é traçar um histórico do campo de aplicação do direito comercial através das três teorias que explicam o âmbito de atuação desse ramo do Direito: teoria subjetiva, teoria dos atos de comércio e teoria da empresa. A importância desta delimitação está em que, atualmente a resistência à adoção da teoria da empresa redunda em negação de benefícios que só o direito comercial concede a quem está sob sua égide. Assim, as empresas prestadoras de serviço não têm acesso ao benefício da concordata por não estarem contempladas pela teoria dos atos de comércio, a qual demonstraremos ultrapassada e absolutamente incoerente com o sistema de organização econômica atual.

            O estudo das três teorias a que este trabalho se propõe tem por finalidade resgatar historicamente o âmbito de incidência do direito comercial em diferenciação ao direito civil. Sendo dois ramos muito próximos no que respeita aos princípios norteadores e dentro daquilo que se costuma chamar de ramos do direito privado,(1) urge distinguir que tipo de relação jurídica será regulamentada pelo direito civil e pelo direito comercial.

            A importância de se delimitar exatamente quem é o sujeito que se submete às regras do direito comercial está em que, somente esse ramo do Direito oferece duas prerrogativas ímpares a quem está sob sua regulamentação: a falência e a concordata. A falência, muitas vezes encarada como um castigo ao empresário impontual no pagamento de suas obrigações, não deixa de ser também um privilégio na medida em que possibilita ao falido a liberação total após o pagamento de mais de quarenta por cento de suas obrigações. Se seu patrimônio arrecadado por ocasião da falência só puder alcançar pouco mais de 40% de seus débitos ele será declarado reabilitado.(2) O que não acontece com o devedor civil cuja quitação só será possível com o pagamento de 100% de suas obrigações ou após serem essas alcançadas pela prescrição.

            A concordata é um benefício pelo qual o empresário poderá postergar o pagamento de suas dívidas, ou obter redução para pagá-las de imediato.(3) Tanto uma quanto outra dependem de pronunciamento judicial.

            Assim, a proposta deste escrito é tratar do campo de aplicação do direito comercial, superando o conceito arcaico de que somente aqueles que praticam atos de comércio podem acessar a concordata e a falência, bem como questionar a incompatibilidade da negação da concordata e da falência às empresas que não praticam atos de comércio.


2.A Teoria Subjetiva.

            O Direito comercial surgiu por obra de seus próprios interessados, ou seja, foram os comerciantes que começaram a editar as normas reguladoras de sua atividade. Isto se explica pela gênese do comércio. Na Idade Média a intensificação das feiras nas cidades medievais fez surgir a profissão de comerciante e conseqüentemente a classe burguesa em contraposição à classe feudal. O direito comum não regulamentava a atividade comercial, posto que a profissão de mercador era discriminada e considerada indigna pela Igreja.

            Os comerciantes então passaram a se organizar em corporações de mercadores cujas principais funções eram dirimir conflitos envolvendo os comerciantes que nelas estivessem matriculados. Para tanto aplicavam as normas provindas dos costumes mercantis. "É nessa fase histórica que começa a se cristalizar o direito comercial, deduzido das regras corporativas e, sobretudo, dos assentos jurisprudenciais das decisões dos cônsules, juízes designados pela corporação, para, em seu âmbito, dirimirem as disputas entre os comerciantes"(4). Infere-se que os comerciantes faziam as leis que lhes seriam aplicadas pelos cônsules (também comerciantes), com função jurisdicional dentro da corporação de ofício. "Tem-se aí a origem do Direito Comercial: um direito de cunho subjetivo (dos comerciantes) e de feição eminentemente classista, porque criado e aplicado pelos comerciantes para resolver suas relações de negócio"(5).

            Esta fase é classificada de teoria subjetiva porque só aqueles que estavam matriculados nas corporações é que eram considerados comerciantes, e somente estes tinham acesso aos tribunais especiais, bem como aos privilégios da falência e da concordata.


3.Conceito Objetivo ou Teoria dos Atos de Comércio ou Sistema Francês

            A proposta da teoria dos atos de comércio é alterar o modo de classificar o comerciante de subjetivista (aquele que estava matriculado), para um critério objetivista (atividade comercial). É a atividade que fará com que o comerciante seja sujeito do direito comercial, independentemente de estar ligado a uma corporação de ofício, tendo então acesso às prerrogativas já mencionadas: falência e concordata.

            Fábio Ulhoa Coelho explicando a passagem da teoria subjetiva para a teoria objetiva diz que "a sua [do direito comercial] transformação em disciplina jurídica aplicável a determinados atos e não a determinadas pessoas, relaciona-se não apenas com o princípio da igualdade dos cidadãos, mas também com o fortalecimento do estado nacional ante os organismos corporativos."(6)

            Contextualizando o aparecimento desta segunda fase do direito comercial devemos nos reportar às mudanças do Estado medieval, dividido em feudos com poder fracionado, para o Estado centralizado onde o poder estava todo ele nas mãos de um monarca. Transformar o direito comercial em um direito regulador de certas atividades significava o fortalecimento do estado nacional perante as corporações de ofício. Deslocar o âmbito do direito comercial fazia parte da estratégia de abolição do corporativismo.(7)

            O marco histórico desta teoria é a entrada em vigor do Código Mercantil Napoleônico em 1807. A proposta deste Código foi objetivar o tratamento jurídico da atividade mercantil com a adoção da teoria dos atos de comércio.(8) Inspirados nos ideais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – a proposta dessa teoria é abarcar com o direito comercial todos aqueles que se dedicassem à atividade mercantil, independentemente de estarem ou não afiliados a alguma corporação de classe. Pela teoria dos atos de comércio, comerciante era aquele que praticava atos de comércio.

            É preciso lembrar que as corporações legislavam livremente para disciplinar as atividades dos comerciantes, além disso, dispunham de uma atividade jurisdicional especializada, pois os conflitos comerciais eram levados aos Tribunais do Comércio ligados às corporações e compostos por comerciantes.

            Estamos então diante de um sistema que classifica o sujeito do direito comercial de acordo com sua atividade, não importando se ele está ou não ligado a uma corporação. Quais são as atividades que credenciam alguém a ser sujeito do direito comercial? Pela teoria dos atos de comércio, são os atos de comércio. E o que são atos de comércio? Não há quem ouse dizer, simplesmente por ser impossível traçar uma definição capaz de abranger todas as atividades comerciais. Fábio Ulhoa Coelho fala sobre essa indefinição: "a teoria dos atos de comércio resume-se rigorosamente falando, a uma relação de atividades econômicas, sem que entre elas se possa encontrar qualquer elemento interno de ligação, o que acarreta indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas delas.(9)" Da mesma forma Rubens Requião afirma que "o sistema objetivista, que desloca a base do direito comercial da figura tradicional do comerciante para a dos atos de comércio, tem sido acoimado de infeliz, de vez que até hoje não conseguiram os comercialistas definir satisfatoriamente o que sejam eles"(10).

            O código napoleônico enumerou as atividades consideradas mercantis. O nosso Código Comercial não elencou os atos de comércio, porém, eles foram normatizados pelo Regulamento 737, de 1850, no intuito de definir quais atividades estariam afetas aos Tribunais do Comércio.

            Na tentativa de contemporizar a indefinição do que seriam os atos de comércio, parte da doutrina utiliza uma fórmula pela qual o "ato de comércio é aquele praticado habitualmente com o fito de lucro para a mediação dos bens e serviços.(11)"

            No Brasil a edição do Código Comercial de 1850 – em vigor até hoje – foi totalmente inspirado no Code de Commerce francês, adotando então a teoria dos atos de comércio, meio misturada à teria subjetiva, pois o art. 4.º deste diploma dispõe que comerciante é aquele que esteja matriculado em algum Tribunal do Comércio do Império e que faça da mercancia sua profissão habitual. Como se vê, ao exigir a matrícula no Tribunal do Comércio(12), nosso Código está retornando ao sistema subjetivo, bem como, ao dizer que é comerciante aquele que faz da mercancia sua profissão, está contemplando a teoria dos atos de comércio. Por isso Waldírio Bulgarelli chama nosso sistema de misto.

            Não podemos acusar o nosso Código de ser anacrônico ao adotar a teoria dos atos de comércio, pois tendo ele nascido em meados do Século XIX, sob forte influência do Código de Napoleão, não poderia ser de outra forma.

            Atualmente as dificuldades proporcionadas pela adoção – agora sim anacrônica – dos atos de comércio em nosso sistema, consistem justamente na indefinição das atividades ou dos sujeitos que estariam sob a égide do direito comercial e, por conseqüência, sendo beneficiados pela possibilidade de pedir concordata e desfrutar das prerrogativas que só a falência confere aos insolventes. Alfredo de Assis Gonçalves Neto arremata da seguinte forma: "O principal argumento contrário ao sistema objetivo é justamente a precariedade científica da base em que se assenta – uma enumeração casuística de atos de comércio, feita pelo legislador ao acaso (de acordo com aquilo que a prática mercantil considerava, à época, pertencer ao Direito Comercial). Com isso, sequer se consegue encontrar o conceito de seu elemento fundamental, o ato de comércio.(13)"

            A atividade de prestação de serviços também não poderia ser contemplada por esta teoria, posto que no século XIX não existia a prestação de serviços em massa e explorada de forma empresarial como temos hoje. Assim, por tradicionalismo e apego àquilo que diz a lei, até hoje tem gente que considera a atividade de prestação de serviços (prestada em massa) como de natureza civil. Combatendo essa idéia obsoleta, Alfredo Assis Gonçalves Neto pondera: "Ora, o que o Código Civil regulou foi o contrato de prestação de serviços isoladamente considerado; não a atividade que se identifica pela intermediação de um profissional que se dedica a recrutar trabalho alheio para coloca-lo à disposição de terceiros"(14).

            Não é mais sustentável negar o caráter empresarial das atividades econômicas de prestação de serviços efetuadas repetidamente e em cadeia. São atividades lícitas e de grande importância na economia sendo questionável (adiante discutiremos isso mais a fundo) arrebatar desses setores os benefícios concedidos aos comerciantes, quais sejam, falência e concordata.(15)


4.Teoria da Empresa ou Sistema Italiano ou Conceito Subjetivo Moderno.

            A teoria da empresa é fruto da unificação dos direitos civil e comercial ocorrido na Itália, em 1942 com o surgimento do Códice Civile. Conforme dito acima a principal lacuna da teoria dos atos de comercio consiste em não abranger atividades econômicas tão ou mais importantes que o comércio de bens, tais como a prestação de serviços, a agricultura, a pecuária e a negociação imobiliária, prestados de forma empresarial.

            O cerne da teoria da empresa está nesse ente economicamente organizado que se chama empresa,(16) a qual pode se dedicar tanto a atividades eminentemente comerciais como a atividades de intermediação de serviços ou de compra e venda de bens imóveis, tradicionalmente excluída do direito comercial por motivos históricos(17). Para esta teoria, todo empreendimento organizado economicamente para a produção ou circulação de bens ou serviços, está submetido à regulamentação do direito comercial.

            Waldírio Bulgarelli fala da dificuldade da doutrina em trabalhar com o conceito de empresa: "Essa concepção – que é alvo de intensas discussões pela doutrina, tendo em vista as dificuldades para conceituar juridicamente as empresas e de abranger juridicamente os seus vários tipos, que adotam por objeto atividades tradicionalmente fora do âmbito do direito comercial (como agricultura), (...) – tomou extraordinária importância, constituindo hoje o fulcro do direito comercial.(18)"

            Esta teoria é denominada também de conceito subjetivo moderno porque descolou a incidência do direito comercial de uma atividade para uma pessoa: o empresário (empreendedor) seja ele pessoa física ou jurídica.

            À imagem e semelhança do que dispõe o Código Civil Italiano de 1942, o nosso projeto de Código Civil, em seu artigo 969, define o empresário como aquele que "exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços."

            Assim, enquanto aquele projeto não se convolar em lei buscamos na doutrina os instrumentos de utilização da teoria da empresa: "A doutrina trabalha com a designação ‘empresário’ a partir daquilo que a ciência econômica oferece, segundo a qual o empresário é o profissional do mercado de bens e de serviços, vale dizer, o que se dedica ao ofício da produção e circulação de bens e de serviços..."(19).

            Qualquer atividade econômica pode ser organizada sob a forma de empresa.


5. A desordem atual.

            Não tendo sido ainda adotada legalmente a teoria da empresa, estamos diante de muitas perplexidades no que diz respeito ao âmbito de incidência do direito comercial. Para tentar adequar as lacunas de um sistema legal inservível algumas leis esparsas têm, simplesmente, declarado certas atividades como sendo comerciais para incluí-las sob a ingerência do direito comercial. Tendo em vista que os imóveis passaram a ser objeto de compra e venda em massa, tendo inclusive empresas especializadas em sua construção, locação e venda, como é o caso das empresas de construção civil e imobiliárias, a Lei 4.068, de 1962 declarou como comerciais as empresas que se dedicam ao ramo da construção civil, bem como, a Lei 4.591 de 1964 tratou o incorporador profissional como comerciante sujeito à falência.

            Para não deixar dúvidas a respeito do caráter comercial das sociedades por ações o art. 2.º § 1.º da Lei 6.404/76 declara qualquer atividade exercida por empresa constituída sob a forma de Sociedade por Ações é considerada mercantil.

            As empresas de trabalho temporário também foram declaradas por lei (Lei 6.019, de 1974) como sujeitas à falência.

            Deste modo percebe-se a barafunda em que se encontra o direito comercial hoje. Se nós dissermos que é urgente uma atitude do legislador para sanear essas disfunções, estaríamos a provocar risos nos estudiosos do direito. Primeiro porque é sabido que o direito não depende da lei e, segundo porque é de conhecimento geral que, para aguardar uma posição do nosso legislador é necessário esperar sentado.

            Deste modo o que se propõe é buscar os argumentos que sustentam a adoção imediata da teoria da empresa pelos nossos julgadores, de modo a estender a todos aqueles que exercem atividade economicamente organizada, as benesses do direito comercial.

            A doutrina já se inclina para este sentido. Waldírio Bulgarelli afirma que "nos dias que correm, transmudou-se [o direito comercial] de mero regulador dos comerciantes e dos atos de comércio, passando a atender à atividade, sob a forma de empresa, que é o atual fulcro do direito comercial"(20).


6.A fundamentação dos privilégios.

            O que ser quer neste tópico é levantar os motivos pelos quais o Estado, através da lei, confere aquelas prerrogativas. Façamos primeiramente uma distinção salutar para o desenvolvimento deste tópico. Quando se fala em mercado não se está falando em sistema capitalista. O mercado é locus de troca promovendo a circulação do capital, e propiciando também a sua pulverização e distribuição. O capital que circula e se espalha não se acumula, evitando má distribuição de renda. Deste modo as atividades empresariais são importantes na medida em que promovem a circulação do capital.

            Neste sentido o comércio é considerado o motor da economia proporcionando trabalho, arrecadação por parte do Estado e acesso aos bens e serviços a serem consumidos.(21) Por isso pode-se dizer que, se o Estado proporciona um tratamento diferenciado aos empresários, conferindo-lhes a possibilidade de obterem a concordata e a falência, é justamente por reconhecer a importância da atividade de produção e circulação de bens e serviços.

            Fábio Konder Comparato faz uma importante consideração sobre o papel do Estado mediante a atuação das empresas privadas, diz ele: "A instituição do Estado social impôs, no entanto, duas conseqüências jurídicas da maior importância para a organização das empresas. De um lado, o exercício da atividade empresarial já não se funda na propriedade dos meios de produção, mas na qualidade dos objetivos visados pelo agente; sendo que a ordem jurídica assina aos particulares e, especialmente, aos empresários, a realização obrigatória de objetivos sociais, definidos na Constituição".(22) Sendo assim, o Estado exige, através das normas jurídicas, atuação voltada aos objetivos sociais o que dá cor e forma à função social da empresa.

            O empresário tem consciência da função social de sua atividade. Porém, muitas vezes, manifesta-a quando precisa do Estado para algum tipo de incentivo fiscal ou até mesmo para o livramento dos pagamentos de ordem tributária.

            Reforçando o caráter social da atividade empresarial a Lei n. 6.404, de 1976, em seu art. 154, dispôs expressamente sobre a função social da empresa:

            Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

            A Constituição Federal de 1988 tem na ordem econômica as diretrizes de valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com finalidade de assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. No parágrafo único do artigo 170 a CF fala em atividade econômica, quando declara que todos são livres para o exercício de qualquer atividade econômica, sem distinguir sua natureza civil ou mercantil. Neste sentido se pronuncia Alfredo Assis Gonçalves Neto, dizendo que "a regra constitucional mostra que a tutela especial é determinada para quem quer que, na iniciativa privada, exerça atividade econômica, o que significa que qualquer distinção que não deflua desses princípios referenciais assentados em nossa Constituição fere o princípio da isonomia, que impõe tratamento igual a quem se encontre em situação de igualdade (art. 5.º e incisos).(23)"

            A empresa congrega em si qualidades e atribuições que a fazem um centro gravitacional de interesses. Se prestarmos atenção ao sistema normativo vigorante perceberemos a posição de destaque da empresa. Assim, não só o direito comercial, que regulamenta as relações de produção e circulação dos bens e serviços, mas também outros ramos do direito, estão gravitacionando ao redor das empresas. Neste sentido podemos citar: o direito do trabalho cuja relação empregatícia está em grande parte alocada para atividades empresariais; o direito civil quando regulamenta as relações de garantias creditícias; o direito tributário pelo qual o Estado arrecada seus recursos, sendo a maioria deles provindos de pagamentos de tributos por parte de empresas; o direito Constitucional, quando trata dos princípios da Ordem Econômica cujo objetivo é proporcionar melhor distribuição de renda e acesso aos bens e serviços, e assim sucessivamente.

            Conclui-se que as prerrogativas conferidas pelo direito comercial têm fundamento na importância da atividade econômica para o desenvolvimento social.


7. O papel do profissional do Direito neste impasse.

            Há dificuldade em se estender àqueles que não praticam atos de comércio, mas que explorem atividade econômica organizada em forma de empresa, os benefícios da concordata e da falência. Isso se deve ao fato de ter o nosso Código Comercial adotado a Teoria dos Atos de Comércio. Ora, como já visto acima, pela sua idade o Código Comercial não poderia ter feito diversamente. Mas agora nós temos uma realidade não contemplada por aquele diploma, por isso ele não satisfaz aos anseios dos empresários. Então por que esse apego ao Código Comercial como se ele ainda fosse um instrumento capaz de oferecer as normas aplicáveis aos problemas da empresa moderna? Bobbio explica o que ele chama de fetichismo da lei, dizendo que "a cada grande codificação desenvolveu-se entre os juristas e juízes a tendência de ater-se escrupulosamente aos códigos (...)"(24).

            Bem, estamos diante de uma situação para a qual não há regulamentação jurídica satisfatória. O que se quer é incluir no âmbito de um benefício uma categoria que está excluída por motivos históricos, qual seja, os empresários (pessoas físicas ou jurídicas) que não pratiquem atos de comércio. Os motivos históricos a que aludo são a idade do nosso Código Comercial, e a insipiência da atividade de prestação de serviços de forma empresarial (em massa) na ocasião da edição do Código.

            Já sabemos que os empresários recebem tratamento diferenciado da lei porque o Estado reconhece a importância da atividade econômica para a sociedade humana. Já sabemos que as empresas prestadoras de serviços são tão (ou mais) importantes para a economia quanto aquelas que praticam atos de comércio. Sabemos que estas duas categorias de empresas estão materialmente em situação igualitária, e que a lei está deficitária, porém, não podemos ficar esperando por ela.

            Como pode o profissional do direito equalizar essa questão com o fito de estender aos empresários a possibilidade de receber o mesmo tratamento dos comerciantes stricto sensu? Podemos aplicar a interpretação teleológica, a analogia, o princípio da isonomia ou a interpretação extensiva para fundamentarmos a extensão do beneficio da falência e da concordata a todas as categorias de empresários. Vejamos.

            A interpretação teleológica consiste em identificarmos a finalidade da lei. A ratio legis da concordata e da falência é justamente a importância da empresa (como atividade econômica organizada) hábil geradora de trabalho, arrecadadora de tributos, geradora de bens e serviços, promotora da circulação do capital, etc. Diz o princípio geral de direito: "Onde houver o mesmo motivo, há também a mesma disposição de direito"(25).

            Já sabemos que os benefícios têm a finalidade de estimular a atividade empresarial que é considerada salutar para a sociedade. Bem, se a finalidade da lei é fomentar a economia, os empresários prestadores de serviços merecem tratamento igualitário, pois cumprem esse mesmo objetivo que a lei visa implementar.

            Podemos aplicar a analogia ou a interpretação extensiva para dilatar os benefícios aos empresários prestadores de serviço. A analogia e a interpretação extensiva estão muito próximas, sendo que a primeira consiste em um "procedimento mediante o qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos expressamente regulamentados"(26).

            Ora, não seriam as empresas prestadoras de serviço agentes econômicos tais como o são as empresas praticantes de atos comerciais stricto sensu ? A qualidade comum a ambas é de importantes agentes econômicos, o que determina a extensão dos benefícios de uma para outra.

            Se preferirmos utilizar o princípio da isonomia podemos invocar a preceito geral pelo qual um benefício legal só é legítimo à medida em que alcance todos os indivíduos daquela categoria que se encontrem na mesma situação material: todos os empresários são agentes econômicos, logo, todos aqueles que exploram atividade econômica organizada de forma empresarial estão aptos a participar dos mesmos benefícios.


8. Conclusão

            Finalizando nossas argumentações podemos concluir que não há mais nenhum sustento na afirmação de que somente aqueles que praticam atos de comércio podem ter acesso à falência e à concordata, pois isso fere os princípios mais caros ao Direito de que duas pessoas em situação igualitária merecem o mesmo tratamento jurisdicional.(27) A teoria dos atos de comércio, ao restringir o direito comercial, não atende mais aos novos modelos de empreendimento, cujas atividades fogem do ato de comércio, mas que participam da produção e circulação de bens e serviços com tanta força que chegam a representar um setor significativo na geração de empregos, arrecadação tributária, melhoria da qualidade de serviços e bens consumidos, etc. Assim, podemos aplicar a interpretação teleológica buscando a ratio legis da existência daqueles benefícios, que existem para estimular a atividade empreendedora; podemos ainda utilizar a analogia ou a interpretação extensiva, bem como o princípio da isonomia para incluirmos os empresários prestadores de serviços como aptos a obterem a concordata e a falência.


9.Notas

            1.Bobbio diz que a originária diferenciação entre o direito público e o privado é acompanhada pela afirmação da supremacia do público sobre o privado. Costuma-se dizer que o direito privado regulamenta as relações entre iguais, e o direito público, as relações entre desiguais. In BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. Para uma teoria geral da política. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. pgs. 15 e 16. Sendo uma relação (supostamente) entre iguais vigoram os princípios da autonomia e da igualdade, pelos quais dá-se às pessoas o poder de negociação.

            2.O artigo 135, II do Decreto-lei n. 7.661 de 1945 assim dispõe: "Extingue as obrigações do falido: (...) II – o rateio de mais de 40% (quarenta por cento), depois de realizado todo o ativo, sendo facultado o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem, se para tanto não bastou a integral liquidação da massa".

            3.Vide artigo 156 e incisos do Decreto-lei n. 7661, de 1945.

            4.REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 23. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1998. pgs. 10 e 11.

            5.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 42.

            6.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 14.

            7.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p.14

            8.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 12.

            9.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 15.

            10.REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 23. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1998. pg. 13.

            11.BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000. p. 66.

            12.Como foi dito acima os comerciantes do Século XII fundaram suas corporações de ofício com a função de regulamentar sua atividade bem como processar e julgar os comerciantes em litígio, formando assim uma espécie de justiça especial, pois os Tribunais do Comércio tinham exclusividade na jurisdição de contendas envolvendo os comerciantes e seus juízes (chamados cônsules) eram também comerciantes. No Brasil, o Tribunal do Comércio existiu até 1875 quando, por Decreto, sua função judicante foi transferida para a Justiça Comum.

            13.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 47.

            14.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 76.

            15.Outro problema apontado recentemente por essa distinção é a exclusão das empresas prestadoras de serviços do SIMPLES – sistema integrado de pagamento de impostos, que reduz a carga tributária para as microempresas e empresas de pequeno porte. A Lei 9.317/96 em seu art. 9.º, XIII deixou de fora dos prestadores de serviços cuja atividade estivesse relacionada a profissões regulamentadas ou que exigissem um pouco mais de qualificação de seus sócios ou empregados.

            16.A palavra empresa tem o significado de empreendimento, aquilo que se empreende; Porém, para a economia essa palavra assume uma conceituação mais complexa, designando a organização econômica destinada a produção ou venda de mercadorias ou serviços, tendo em geral como objetivo o lucro.

            17.O direito comercial, em sua gênese, excluiu de seu âmbito a compra e venda de bens imóveis porque na Idade Média somente os senhores feudais eram detentores da propriedade da terra. Os comerciantes, mesmo com dinheiro não podiam negociar esses bens, por serem negócios típicos dos senhores feudais. Daí o desinteresse dos comerciantes em regulamentar uma atividade da qual eles não participavam.

            18.BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000. p. 67.

            19.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 74.

            20.BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000. p. 19.

            21.Devemos lembrar que o consumo não é uma opção mas sim uma necessidade.

            22.COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3.ed. [revista, atualizada e corrigida] Rio de Janeiro : Forense, 1983. p. 296.

            23.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 79

            24.BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 121.

            25.In BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 154.

            26.BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 151.

            27.Pode-se dizer o mesmo tratamento legal, porém como escrevo na perspectiva de não aguardar o legislador remeto ao poder jurisdicional a atribuição de aplicação dos princípios basilares do Direito.


10. Referências bibliográficas.

            BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. Para uma teoria geral da política. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

            ________. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

            BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000.

            COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998.

            COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3.ed. [revista, atualizada e corrigida] Rio de Janeiro : Forense, 1983. p. 296.

            GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000.

            REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 23. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1998.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NERILO, Lucíola Fabrete Lopes. O direito empresarial superando o arcaico sistema dos atos de comércio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2698. Acesso em: 25 abr. 2024.