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O direito civil em face das novas técnicas de reprodução assistida

O direito civil em face das novas técnicas de reprodução assistida

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DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Antes de verificar quais foram os efeitos causados, em nosso ordenamento pátrio, com o surgimento das novas técnicas reprodutivas, deve-se ter em mente a noção clara de personalidade, capacidade civil e início da vida, e dos direitos e obrigações do ser humano, pois só assim delimitaremos os efeitos a se fazerem sentir, em nosso direito, pelas novas técnicas de reprodução humana.

Conforme é notório, não há dúvidas e nem discussões, na biologia, de que a vida do homem começa no exato momento em que o espermatozóide masculino penetra no óvulo feminino, formando o que denominamos de zigoto ou célula-ovo.

Biologicamente, o início da vida marca a individualização do ser concebido de seus pais, tendo em vista que a partir desse instante ele adquire, mesmo biologicamente dependente, carga genética própria e individual que não se confunde nem com a do pai nem com a da mãe, sendo o corpo da mãe apenas o meio hábil para desenvolver-se normalmente até o nascimento.

Portanto, a grande questão jurídica é a de saber se esse ser concebido tem ou não o status de pessoa.

Desde a Roma antiga, são incessantes as discussões sobre o início da vida, o início da personalidade do ser humano e o início de sua caracterização como sujeito de direitos.

A palavra pessoa é originada do latim persona, que indicava a máscara utilizada pelos atores teatrais para que melhor ressoassem suas vozes nos vastos anfiteatros em que se representavam os dramas na antiga Roma.

Só posteriormente, o termo persona passou a designar o homem dotado de personalidade jurídica, ou seja, por ficção analógica, lhe era concedida uma máscara ou roupagem que o revestia como sujeito de direitos e obrigações.

Para Clóvis Beviláqua, " o conjunto dos direitos atuais ou meramente possíveis das faculdades jurídicas atribuídas a uma ser, constitui a personalidade". Pessoa "é o ser a que se atribuem direitos e obrigações" e personalidade é a "aptidão reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrair obrigações".

É importante que tenhamos em mente a noção clara de personalidade civil e o momento de seu começo, pois é a partir de sua obtenção que a pessoa adquire direitos e contrai obrigações. Tal fato é muito importante, quando tratamos do direito do nascituro frente às novas técnicas reprodutivas.


DAS TEORIAS DA PERSONALIDADE

O nosso Código Civil atual assim estipula em seus artigos 2º e 4º :

"Art. 2º - Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil."

"Art. 4º - A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."

Em face da flagrante contradição estampada no artigo 4º do Código Civil, algumas teorias foram criadas para definir-se o início da personalidade civil do ser humano, sendo que as mais significativas são :

1) A doutrina natalista

Adotada pela maioria de nossos doutrinadores e aparentemente agasalhada pelo artigo 4º do Código Civil, estabelece que a personalidade civil do homem começa com o seu nascimento com vida.

Segundo esta doutrina, o nascituro não é considerado pessoa e somente tem expectativa de direito, desde a sua concepção, para aquilo que lhe é juridicamente proveitoso.

O nascituro não tem personalidade jurídica e também falta-lhe capacidade de direito, sendo que a lei apenas protegerá os direitos que possivelmente ele terá, em caso de nascer com vida, os quais são enumerados taxativamente no ordenamento jurídico (posse, direito a herança, direito a adoção).

Para a doutrina natalista o nascituro é encarado como parte das vísceras da mãe e somente o seu nascimento com vida lhe dá o status de pessoa.

- Adotam a teoria natalista os códigos civis da Espanha, Portugal, França, Alemanha, Suíça, Japão, Itália, entre outros.

- Entre os doutrinadores, são adeptos desta teoria : Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Eduardo Espínola, João Luiz Alves, Sérgio Abdalla Semião, Caio Mário da Silva Pereira.

2) A doutrina da personalidade condicionada

Esta doutrina sustenta que o início da personalidade de alguém começa a partir da concepção, mediante a condição suspensiva do nascimento com vida, ou seja, se o nascituro nascer com vida a sua personalidade retroage à data de sua concepção.

Seus doutrinadores ensinam que, durante a gestação, o nascituro tem a proteção da lei, que lhe garante certos direitos personalíssimos e patrimoniais sujeitos a uma condição suspensiva.

O curador ou o seu representante legal o representará, a fim de garantir-lhe os direitos assegurados eventualmente.

- São adeptos desta teoria: Washington de Barros Monteiro, Miguel Maria de Serpa Lopes, Gastão Grossé Saraiva, Walter Moraes, entre outros.

3) A doutrina verdadeiramente concepcionista

Esta doutrina é enfática em afirmar que a personalidade do homem começa a partir da concepção, sendo que, desde tal momento, o nascituro é considerado pessoa.

As doutrinas concepcionistas baseiam suas convicções no fato de que, possuindo direitos legalmente assegurados, o nascituro é considerado pessoa, uma vez que somente as pessoas são sujeitos de direito e, portanto, detêm personalidade jurídica.

Dizem que os direitos do nascituro são os inerentes à pessoa humana e elencam alguns destes para fundamentar suas convicções, assegurados pela 2ª parte do artigo 4º do Código Civil. São eles: direito à posse [2], direito a receber bens por doação [3] e por testamento [4], direito ao reconhecimento da filiação [5], direito de ser representado por curador [6], de ser adotado [7], e a punição legal ao crime de aborto [8].

Nesta linha de raciocínio afirmam que não há como explicar que o nascituro possa ter direitos assegurados por lei, sem que seja considerado pessoa, sendo que o sinal mais acentuado de que o nascituro tem personalidade civil é o fato de o legislador ter disciplinado o crime de aborto no título referente aos "Crimes contra a pessoa".

Dizem, ainda, que vários desses direitos não estão condicionados ao nascimento com vida e que, portanto, o nascituro, ao tê-los, os recebe como se fosse pessoa e não como expectativa de pessoa. Ex : direito aos alimentos pré-natais; direito ao reconhecimento da filiação, direito à vida; direito à integridade física, etc.

- Adotam a linha concepcionista os códigos da Argentina, Áustria, México, Paraguai e Peru.

- Os doutrinadores adeptos desta teoria são : Teixeira de Freitas, Rubens Limongi França, Francisco Amaral Santos, Silmara Chinelato, André Franco Montoro, Maria Helena Diniz, entre outros.


DOS DIREITOS DO NASCITURO

Independentemente da teoria adotada, é consenso entre os doutrinadores de que o nascituro é um ser vivo e que tem direitos desde a sua concepção, seja na forma de expectativa tutelável, pela teoria natalista, seja na forma suspensiva, pela teoria da personalidade condicionada, ou seja na forma plena, pela teoria verdadeiramente concepcionista.

O que veremos, portanto, nesta oportunidade, são os direitos inerentes aos seres concebidos pelas novas técnicas reprodutivas humanas.

À época da feitura do Código Civil de 1916, nem sequer passava pela cabeça de nossos juristas a possibilidade de, no futuro, haver a concepção humana fora do útero feminino.

A noção que possuíam de nascituro era a do ser concebido e em desenvolvimento no útero feminino.

A esse ser asseguravam-se direitos desde o momento de sua concepção, independentemente da teoria adotada para a definição do início da personalidade.

Deixando um pouco a questão da reprodução assistida e, principalmente, a da doação de células germinativas e a questão da criopreservação de gametas, discorreremos acerca de alguns dos direitos assegurados ao nascituro, seja qual for a doutrina adotada.

1)Direito ao reconhecimento da filiação

As relações de parentesco se estabelecem no momento da concepção e não do nascimento.

O artigo 26 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que revogou o artigo 357 do Código Civil, estipula:

Art. 26 - Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação.

Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes.

Fica claro, portanto, que o nascituro poderá ter a sua filiação reconhecida, mesmo que ainda esteja em desenvolvimento no útero, bastando para isto uma declaração por escritura pública ou testamento, que, uma vez feita, torna-se irrevogável.

Justifica-se tal procedimento no temor do pai de morrer antes do seu filho nascer ou de contrair doença grave que o impossibilite de externar livremente sua vontade (loucura, interdição, etc.) ou até mesmo na incerteza da mãe de escapar com vida do próprio parto, etc.

A mãe ou o pai, mesmo ainda não nascida a criança, poderão pleitear em nome do nascituro o reconhecimento da paternidade ou da maternidade e, por conseqüência, os direitos inerentes ao reconhecimento (posse, alimentos, etc.).

As provas em juízo, acerca da paternidade ou maternidade, se farão feitas por todos os meios permitidos, inclusive por exame de DNA que se dará mediante a da coleta de material do feto em uma amostra da placenta (vilo corial), a partir da 9ª semana de gestação.

Quanto à presunção da filiação legítima, o artigo 338 do CC estipula que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal e os nascidos dentro dos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação, sendo que, em tais casos a prova em juízo será a da convivência conjugal.

2)Direito à Adoção

É muito controvertida a questão da adoção do nascituro.

O Código Civil, em seu artigo 372, estipula :

Art. 372 - Não se pode adotar sem o consentimento do adotado ou de seu representante legal se for incapaz ou nascituro.

Por sua vez, o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe :

Art. 2º - Considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

Os adeptos da doutrina natalista informam que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um estágio de convivência com o possível adotado, o que não é possível em se tratando de nascituro.

Dizem, portanto, que a adoção do nascituro será regulada pela Lei Civil, e não pelo ECA, e que os seus efeitos estarão sempre condicionados ao nascimento com vida. Neste caso a adoção se faria mediante uma escritura pública (art. 375 do CC).

Os concepcionistas, por sua vez, consideram que o ECA agasalha a hipótese de adoção do nascituro, pois considera criança a "pessoa até doze anos de idade incompletos", uma vez que, para eles, o nascituro já está incluído no conceito de criança do ECA.

Neste caso comungam no entendimento de que a sua adoção pode ser realizada tanto pelo Código Civil quanto pelo ECA, sendo que em ambos os casos a eficácia da adoção deve ser plena e resguardada a igualdade de filiação.

Ocorre que ambas as doutrinas louvam e admitem a adoção do nascituro, que, uma vez feita, lhe assegurará alimentos e integridade física até o seu nascimento com vida, com vistas a possibilitar-lhe um desenvolvimento gestacional seguro e sadio.

3)Direito de curatela e representação

Estatui o "caput" do artigo 462 do CC :

Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer, estando a mulher grávida, e não tendo o pátrio poder.

Se o pai falecer e deixar a mulher grávida de seu filho, e se esta vier a perder o pátrio poder, será nomeado ao nascituro um curador ao ventre que terá a função de zelar pelos seus interesses até o seu nascimento com vida quando, então, lhe será nomeado um tutor (art. 406 a 445 do CC).

Por exemplo no caso de a mãe ser toxicômana ou alcoólatra e estar grávida.

Não havendo perda do pátrio poder, os direitos do nascituro serão assegurados e resguardados por quem detenha a sua representação legal, ou seja, seus pais.

4)Direito de receber doações

O nascituro terá direito de receber bens por doação, desde que já esteja concebido no momento da liberalidade.

O artigo1.169 do CC diz :

A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelos pais.

A partir da liberalidade, seus representantes legais poderão usufruir do bem doado e entrar em sua posse, percebendo-lhe os frutos, desde então.

5)Direito à sucessão

Desde a Antiguidade Clássica grega e romana já se asseguravam aos nascituros os direitos sucessórios, e os primeiros estudos acerca da embriologia foram feitos por Hipócrates e Aristóteles.

Em relação ao direito sucessório temos a dizer que o nascituro terá plenos direitos à herança, se já estiver concebido no momento da abertura da sucessão.

É necessário, portanto, que ao tempo da morte do autor da herança, também chamado de cujus, o nascituro já esteja concebido e que venha a nascer com vida.

O nascimento sem vida é uma condição resolutiva do direito à herança do nascituro, pois o natimorto será considerado como se nunca tivesse existido, ou seja, como se nunca tivesse sido herdeiro.

Seus representantes legais poderão, desde a abertura da sucessão, requerer a imissão na posse dos bens herdados pelo nascituro, que estará condicionada ao seu nascimento com vida (art. 877 e 878 do CPC).

No direito sucessório, até mesmo pessoas não concebidas ao tempo da morte do autor da herança podem herdar.

O artigo Art. 1.718, ao tratar da capacidade sucessória, diz :

São absolutamente incapazes de adquirir por testamento os indivíduos não concebidos até à morte do testador, salvo se a disposição deste se referir à prole eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão.

Portanto, basta que o testador contemple, em seu testamento, o filho ou filhos eventuais que possam ser gerados por pessoas por ele designadas na cédula testamentária e que estejam vivas quando de sua morte.

A estas pessoas não concebidas denominamos prole eventual.

6)Direito aos alimentos

Este controvertido direito ao nascituro somente é defendido pelos seguidores da doutrina concepcionista, que consideram o nascituro como pessoa e titular de direitos dissociáveis dos de sua genitora.

O nascituro por meio de sua representante legal, a mãe, ou do curador ao ventre, poderá pleitear alimentos provisionais ao pai, provando em juízo a gravidez e a convivência com o indigitado pai, a fim de provar os requisitos do fumus boni juris.

O fundamento do pedido deve ser o de amparar e de dar a necessária assistência pré-natal do nascituro, englobando-se aí os medicamentos e as despesas médicas.

A suposta paternidade poderá ser comprovada por qualquer meio hábil, inclusive através do exame de DNA que poderá ser recolhido da placenta da gestante.

7)Direito à vida

O direito à vida é denominado um direito condicionante porque dele derivam e dependem os demais.

Com base nesta assertiva é que o nascituro tem o direito de se desenvolver naturalmente no útero materno, para que possa nascer e viver dignamente.

Os demais direitos assegurados a ele dependem de seu nascimento com vida, sendo que seu desenvolvimento em qualquer dos estágios, seja zigoto, mórula, blástula, pré-embrião, embrião ou feto, representa apenas um continuum do mesmo ser que se desenvolverá ainda em criança, adolescente e adulto.

Do direito à vida emerge a proteção do nascituro em relação ao aborto e a possíveis danos à sua integridade física e moral; tal proteção vê-se até mesmo assegurada aos animais.

Não importa a doutrina seguida, é assegurado ao nascituro o seu direito à vida.


O NASCITURO FRENTE ÀS NOVAS TÉCNICAS REPRODUTIVAS

Elencados os direitos que poderão ser deferidos aos nascituros, e explicadas as correntes teóricas acerca do início de sua personalidade, temos que nos posicionar acerca de nosso entendimento sobre o início da personalidade civil do ser humano, a fim de explicar nossas conclusões sobre os efeitos da reprodução humana assistida no ordenamento civil.

Primeiramente definimos nascituro como o ser concebido e em desenvolvimento gestacional no útero materno, excluindo, portanto, desta conceituação o pré-embrião criopreservado fora do útero materno que merecerá, talvez, uma tutela jurídica diferenciada da do nascituro e que atualmente vem carecedor de tutela específica.

Em segundo lugar, achamos que o nascituro tem personalidade jurídica desde a nidação e que apenas os efeitos de alguns direitos, especialmente os patrimoniais, dependem do nascimento com vida, como, por exemplo, o direito de receber doação e o de receber herança.

Os direitos da personalidade do nascituro, como o direito à vida, à honra, à integridade física, à saúde, aos alimentos, ao reconhecimento da filiação, à curatela, à adoção, não se condicionam e independem do nascimento com vida.

Vimos que, pelas novas técnicas reprodutivas, o embrião já concebido pode ser congelado indefinidamente para depois ser implantado no útero; pode ter sido gerado com os gametas do casal ou de terceiros estranhos à relação e pode ser gestado em outro útero que não o da mãe biológica (barriga de aluguel ou de substituição).

Diante destas várias hipóteses tentaremos demonstrar o atual estágio da nossa doutrina e da nossa jurisprudência, os ordenamentos estrangeiros, bem como as inovações do Projeto do Código Civil, que dizem respeito às técnicas artificiais reprodutivas humanas.

Primeiramente, é de se afirmar que não há em nosso ordenamento jurídico nenhum impedimento ou restrição, para que se realize a fertilização humana, bastando apenas que haja consentimento expresso da mulher e, se casada, de seu marido ou companheiro.

Temos, atualmente, regulando a reprodução assistida, apenas a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina e alguns projetos de lei no Congresso Nacional que simplesmente copiam ou modificam em pouca coisa o já estabelecido pela resolução do CFM, mas ainda em tramitação e sem eficácia legal.

Não existe, em projeto de lei nem no atual Projeto do Código Civil, nenhuma norma regulamentadora ampla a respeito da reprodução humana assistida e os seus efeitos nos vários ramos do direito.

Conforme já falado, a Resolução 1358/92 do CFM tem por diretrizes o seguinte:

- As técnicas reprodutivas serão utilizadas apenas para auxiliar nos problemas de infertilidade humana.

- O consentimento informado é obrigatório tanto para mulher quanto para o seu cônjuge ou companheiro, se houver.

- A doação de gametas ou embriões será gratuita e assegurado o anonimato do doador.

- É vedado o descarte ou destruição dos pré-embriões.

- O doador deve ter a maior semelhança fenotípica e imunológica com a receptora.

- É vedada a pesquisa genética nos pré-embriões, salvo quando para tratar de uma doença ou impedir sua transmissão.


DAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS

No estágio atual da reprodução humana assistida temos várias hipóteses concretas que podem gerar várias celeumas jurídicas, como, por exemplo, a doação e venda de gametas, a criopreservação de embriões já concebidos que permitem inseminações múltiplas e até post mortem, a implantação do embrião em mãe substituta, entre várias outras hipóteses.

Em relação a tais celeumas faremos algumas considerações :

a)DA FILIAÇÃO

Em relação à filiação devemos ter em mente que as novas técnicas artificiais de reprodução provocaram um desmoronamento completo nas bases, antes arraigadas, da filiação.

Nas inseminações artificiais é possível a fertilização homóloga, que é feita com gametas do casal; a fertilização heteróloga em que é utilizado óvulo e/ou espermatozóide pertencente a terceiros e a barriga de aluguel ou mãe de substituição que é a mulher utilizada como meio para gestar um embrião fertilizado com gametas de outras pessoas.

Mas, para definirmos o direito à filiação ou o dever da filiação deveremos lembrar que atualmente a doutrina e a jurisprudência consagram, além da filiação biológica, a filiação afetiva, também chamada de socioafetiva.

O pai ou a mãe, pela atual orientação doutrinária, não é definido apenas pelos laços biológicos que tenha com o menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, ou seja, de assumir, independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres da filiação mediante a demonstração de afeto e de querer bem ao menor.

A falta de tais requisitos acarretará aos pais biológicos a perda do pátrio poder e possibilitará que a criança seja adotada por quem realmente lhe dê afeto, carinho e condições dignas de sobrevivência.

Partindo desta premissa poderemos definir a filiação do nascituro concebido por técnicas reprodutivas artificiais, tanto pelo aspecto biológico quanto pelo aspecto afetivo, levando-se em consideração sempre o melhor interesse da criança.

Estando casado ou em união estável o casal que se submeteu às técnicas artificiais de reprodução e que em conjunto externou seu consentimento informado acerca da inseminação, não resta dúvida de que, seja homóloga ou heteróloga, a filiação pertencerá ao casal que a consentiu; e se presumirá legítima, visto ser concebida na constância do casamento, daí descabendo qualquer contestação futura a seu respeito.

Se a mulher casada se submeter a uma fertilização com sêmen de doador (heteróloga) sem o consentimento do marido, a paternidade não poderá lhe ser imputada, legitimando até mesmo a dissolução do vínculo matrimonial e de ação negatória de paternidade cumulada com anulação do registro de nascimento, se houver sido feito mediante equívoco.

No direito comparado, em face da nossa lacuna legislativa, podemos ver algumas legislações neste sentido :

AUSTRÁLIA : O filho nascido pelas técnicas de RA será do casal que consentiu no procedimento.

EUA : Há um consenso, entre 28 estados Norte Americanos, de que o casal que consentir nas técnicas de RA serão os pais do concebido.

ESPANHA : Se houver consentimento do casal em relação às técnicas de RA, será impossível impugnar a filiação.

FRANÇA : As técnicas de RA somente são permitidas em casais casados e o consentimento veda qualquer impugnação acerca da filiação.

CANADÁ : Se houver fertilização heteróloga é necessário, antes, o consentimento do marido, que não poderá impugnar a filiação.

b) DA MATERNIDADE

Em relação apenas à maternidade temos que o princípio segundo o qual a mãe é sempre certa (mater semper certa est) ficou literalmente abalado pelas novas técnicas de RA.

Antigamente a mãe era sempre certa, por não haver como fecundar o óvulo fora do útero materno ou transplantá-lo em outra pessoa, tendo-se como certo que a mãe era aquela que estivesse gestando o nascituro.

Atualmente a certeza em relação à maternidade mostra-se abalada, tendo em vista que a mãe pode ser a que esteja gestando o filho, pode ser a que forneceu o óvulo para fecundação ou ainda a que recebeu o óvulo de uma terceira pessoa e que contratou a barriga de substituição para gestá-lo (mãe socioafetiva).

O ordenamento pátrio consagra a idéia de que a mãe é a que gestou e deu à luz.

Se a mãe doadora do óvulo for inseminada com sêmen de seu marido ou de terceiro, e ela própria gestar o concebido, não restam dúvidas de que será declarada a mãe da criança, tendo em vista a coincidência dos atributos genético, socioafetivo e gestacional.

A questão de maior complexidade ocorre quando a "mãe gestante" for diferente da "mãe biológica" ou da "mãe socioafetiva".

Poderá, nestes casos, ocorrer o conflito negativo ou positivo da maternidade.

O conflito positivo ocorre quando várias mães reivindicam para si a maternidade da criança, e o conflito negativo ocorrerá quando nenhuma das mães assumir a maternidade da criança.

Diante dos conflitos apresentados, a solução que melhor se mostra e que melhor se coaduna com a tendência doutrinária e legislativa mundial é a de se atribuir maternidade à mãe que gestou a criança.

Esta solução poderá ser modificada quando ficar evidente que a mãe gestante, por não ser mãe biológica, não tiver condições de cuidar da criança (psicológicas e sociais), entregando-se a criança à mãe que melhor atender aos seus interesses (biológica ou socioafetiva).

Atualmente cresce na doutrina pátria um entendimento de que a mãe biológica é a que merece a maternidade da criança, pois entendem que a mãe de substituição é apenas a hospedeira daquele ser gerado sem a contribuição de suas células germinativas.

Outro ponto importante é levantado pelos adeptos da filiação afetiva, que pregam que, independentemente da origem biológica ou da gestação, a mãe será aquela que assumiu e levou adiante o sonho da maternidade ao recorrer até mesmo a estranhos para que sua vontade fosse satisfeita.

Em relação à substituição de útero, também chamada de barriga de aluguel, é certo que não há legislação que a regule ou que a proíba, sendo ela apenas tratada pela resolução 1358/92 do CFM.

Pelo ordenamento jurídico, veda-se qualquer contrato que envolva bem indisponível, como é o caso da vida humana, sendo que os contratos de "locação" ou substituição de útero não têm eficácia jurídica.

A solução dos impasses relativos à disputa ou imposição da maternidade deve variar em cada caso concreto diante das peculiaridades levantadas, mas a tendência é a de que o julgador deve sempre ter em mente quem primeiro externou a vontade relativa à inseminação e, também, o melhor interesse da criança.

Como o tema é complexo e necessita de uma legislação específica, recorreremos, mais uma vez, ao direito comparado :

FRANÇA, AUSTRÁLIA, ALEMANHA: Presume-se mãe quem deu à luz.

INGLATERRA : Permite a barriga de aluguel, devendo a criança ser entregue a quem pretendeu o nascimento.

CANADÁ, ALEMANHA, ESPANHA, AUSTRÁLIA : Veda-se a locação de útero.

EUA: Presume-se mãe quem deu à luz; mas se houve locação de útero, o casal contratante deverá adotar a criança logo após o nascimento.

c) DA PATERNIDADE

Na paternidade o brocardo latino segundo o qual o filho de mulher casada presume-se de seu marido, "pater is est, quem nuptiae demonstrat", também foi jogado por terra pelas novas técnicas reprodutivas.

Em face da omissão legislativa acerca da paternidade por técnicas de reprodução assistida, devemos dividi-la em paternidade homóloga e heteróloga.

Na inseminação homóloga descabem maiores análises jurídicas, tendo em vista que se concilia a filiação biológica com a filiação afetiva, ou seja, o pai será aquele que doou o espermatozóide para ser fecundado em sua esposa ou companheira.

Em relação à inseminação heteróloga devemos enfocar o tema sob três situações distintas :

1º) Se a técnica foi consentida dentro de um casamento ou união estável.

2º) Se a técnica não foi consentida dentro de um casamento ou união estável.

3º) Se a técnica foi realizada fora de casamento ou de união estável em mulheres solteiras, viúvas, separadas judicialmente ou divorciadas.

A primeira situação é a que oferece menos preocupação, pois já é consenso entre os doutrinadores e legislações estrangeiras que o homem, ao consentir na inseminação heteróloga de sua esposa ou companheira, assume a paternidade da criança e em nenhum momento poderá contestá-la.

Na segunda situação a mulher, ao se inseminar com sêmen de terceiros e com o desconhecimento de seu marido ou companheiro, comete um ato atentatório ao casamento (injúria grave, violação dos deveres do casamento, insuportabilidade da vida em comum, violação ao dever de lealdade, etc.). Já dissemos que, em tais hipóteses, o marido poderá contestar a paternidade do filho, se já o houver registrado, tendo em vista que foi levado a erro ao registrá-lo.

A terceira doação é aquela em que a mulher recorre a um banco de sêmen e se fertiliza com o intuito de formar uma família monoparental. Nestes casos não é possível atribuir-se ao doador qualquer vínculo de filiação. Ainda que não exista lei específica, por analogia usamos o instituto da adoção em relação à doação do sêmen. A criança somente será registrada em nome da mãe, mas poderá no futuro requerer o reconhecimento de seu vínculo de filiação biológica, sem que isto acarrete ao doador quaisquer obrigações ou direitos relativos à criança, uma vez que, ao doar seu sêmen, ele abdica voluntariamente de sua paternidade, da mesma forma que o faz quem entrega uma criança para adoção.

No direito estrangeiro temos as seguintes soluções :

INGLATERRA : O doador de esperma não tem qualquer direito ou dever em relação à criança, sendo-lhe preservado o anonimato.

EUA, AUSTRÁLIA : O marido que consentir na inseminação será considerado o pai da criança.

CANADÁ : Se a inseminação for heteróloga, o marido ou o companheiro somente será o pai se houver consentido.

ALEMANHA : Na fertilização heteróloga é necessário o consentimento escrito e por instrumento público, e o pai que o fizer não poderá impugnar a filiação.

ESPANHA : O consentimento vincula a filiação.

d) DO DIREITO SUCESSÓRIO

Não há dúvidas de que o filho de uma pessoa, nascido por meio de qualquer das técnicas de reprodução assistida, terá os mesmos direitos e deveres dos demais filhos de tal pessoa. Para que possa herdar, basta que tenha sido concebido ao tempo da abertura da sucessão, que venha a nascer com vida e que seja filho do de cujus.

Ocorre que uma questão vem à tona, no direito sucessório, quando tratamos do embrião concebido e criopreservado.

Dissemos que, para nós, o embrião conservado fora do útero não é considerado nascituro e sua condição jurídica é ainda indefinida e temerosa, ainda que merecedora de proteção.

Para receber bens por sucessão legítima, tal embrião deverá estar implantado no útero feminino, pois só assim terá capacidade sucessória para herdar os bens do falecido.

Portanto, se com a morte do de cujus o embrião, em cuja fertilização consentiu, já estiver implantado no útero feminino, não há dúvidas de que a filiação lhe será assegurada, bem como o direito à herança.

Quanto ao embrião fecundado, mas não implantado, poderemos definir-lhe duas conseqüências jurídicas :

A primeira é a de que nunca poderá herdar por sucessão legítima, por não se achar inserido no conceito de nascituro e pelo fato de o direito não poder ficar à mercê da vontade da mãe em implantá-lo quando bem entender.

A segunda conseqüência será a da possibilidade de vir a herdar, desde que o de cujus assim disponha em seu testamento, por analogia ao conceito de prole eventual, e desde que indique quem será a mãe do beneficiário. Deve-se buscar, aí, a vontade expressa do testador em deferir-lhe a herança.

Quanto à inseminação post mortem, temos que atualmente ela se faz quando o sêmen ou o óvulo do de cujus é fertilizado após a sua morte. Em tal caso por ter sido a concepção efetivada após a morte do de cujus, não há que se falar em direitos sucessórios a ele.

Existem tendências doutrinárias admitindo que tanto o não concebido quanto o não nidado possam ter direitos sucessórios e o reconhecimento de sua filiação, desde que a pessoa assim lhe assegure por meio de testamento.

O direito sucessório, portanto, decorre da filiação e, a partir da determinação do vínculo de paternidade, será resolvido. Destaca-se que o consentimento dado em vida é essencial para determinar os direitos do nascituro e para formação do vínculo de filiação.

Em relação à possibilidade da inseminação post mortem, a legislação estrangeira assim se manifesta :

ALEMANHA, SUÉCIA : Veda-se a inseminação post mortem.

FRANÇA : Veda-se inseminação post mortem e dispõe que o consentimento externado em vida perde o efeito.

ESPANHA : Veda-se a inseminação post mortem, mas garante direitos ao nascituro quando houver declaração escrita por escritura pública ou testamento.

INGLATERRA : Permite-se a inseminação post mortem, mas não garante direitos sucessórios, a não ser que haja documento expresso neste sentido.


DO PROJETO DE LEI DO CÓDIGO CIVIL

O atual Projeto do Código Civil em nada mudou e em nada aclarou as controvérsias acerca dos efeitos da reprodução assistida e muito menos se posicionou de forma clara quanto à doutrina que adota, ou seja, se natalista ou concepcionista.

A única mudança feita no artigo 4º, que agora passa a ser artigo 2º, foi a de trocar a expressão homem por ser humano, ficando assim redigida :

Art. 2º - A personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."

Ocorre que uma importante mudança se fez com a introdução dos direitos da personalidade nos artigos 11 a 21 do Projeto do Código Civil e, também, com a inserção da presunção de filiação aos filhos havidos por inseminação artificial, nos termos do artigo 1.597, incisos III, IV e V do novo Código Civil.

Quanto à reprodução assistida, o parecer do ilustre relator, citando a nobre deputada Sandra Starling, foi o seguinte :

"O Professor Miguel Reale, quando compareceu à primeira das muitas audiências públicas realizadas pela nossa Comissão Especial, respondeu a algumas dessas questões, afirmando que "novidades, como o filho de proveta, só podem ser objeto de leis especiais. Mesmo porque transcendem o campo do Direito Civil.

Efetivamente, é plenamente justificável a diretriz adotada pela douta comissão que elaborou o anteprojeto no sentido de " não dar guarida no Código senão aos institutos e soluções normativas já dotados de certa sedimentação e estabilidade, deixando à legislação aditiva a disciplina de questões ainda objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude de mutações sociais em curso, ou na dependência de mais claras colocações doutrinárias, ou ainda quando fossem previsíveis alterações sucessivas para adaptações da lei à experiência social e econômica ".


CONCLUSÃO

Vê-se que toda a celeuma causada com as técnicas reprodutivas leva em conta o fato de o ser concebido ser ou não pessoa.

Tendo em vista as novas técnicas reprodutivas, a possibilidade de se congelar a vida do pré-embrião, a definição biológica do início da vida viável e a necessária proteção aos seres submetidos a estas novas técnicas, a solução viável seria dar personalidade civil ao ser humano a partir da nidação, ou seja, da implantação do óvulo fecundado no útero materno, condicionando os efeitos de alguns direitos ao nascimento com vida e assegurar, desde a concepção, os direitos do pré-embrião, a fim de evitar manipulação genética indevida e o seu descarte.

Por fim, acreditamos que nova teoria acerca da personalidade deverá levar em conta que o início da personalidade do ser humano começará a partir do momento de sua nidação. Somente desta forma estaremos atendendo ao espírito do legislador e também defendendo os interesses sociais, na medida em que o embrião criopreservado pode ficar nesta situação indefinidamente, ensejando grande instabilidade no ordenamento jurídico.


Notas

1.Palestra proferida no Seminário de Direito Civil promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade Contagem, em 25/09/01.

2.art. 877 e 878 do CPC.

3.Art. 1169 do CC.

4.Art. 1718 do CC.

5.Art. 338, 353 e 458 do CC.

6.Art. 462 do CC.

7.Art. 372 do CC.

8.Art. 124 a 126 do CP.


Autor

  • José Roberto Moreira Filho

    José Roberto Moreira Filho

    advogado, especialista em Bioética, Direito e Aplicações pelo Instituto de Educação Continuada da PUC/MG

    é professor de graduação da PUC de Contagem (MG); professor do Núcleo de Prática Jurídica da PUC/MG; membro do Capítulo de Bioética da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

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Informações sobre o texto

Palestra proferida no Seminário de Direito Civil promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade Contagem, em 25/09/01.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA FILHO, José Roberto. O direito civil em face das novas técnicas de reprodução assistida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2747. Acesso em: 20 abr. 2024.