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O homem dos direitos humanos

O homem dos direitos humanos

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O texto mostra o desenvolvimento do homem, relacionando desde aspectos biológicos, sociais, religiosos e econômicos, na era do mercado global. Para isto, são elencados alguns conceitos dos direitos humanos e também aspectos da nossa realidade social e do direito.

RESUMO: Este artigo tem por finalidade mostrar o desenvolvimento do homem, relacionando desde aspectos biológicos, sociais, religiosos e também aspectos econômicos, na era do mercado global. Para isto, são elencados alguns conceitos dos direitos humanos e também aspectos da nossa realidade social, que, muitas vezes, dificultam a aplicação destes direitos. Foi efetuada uma pesquisa qualitativa, utilizando também o método histórico junto da técnica de pesquisa de revisão bibliográfica.           

PALAVRAS-CHAVE: HOMEM, PESSOA HUMANA, DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS, GLOBALIZAÇÃO


INTRODUÇÃO:

Os direitos humanos fundamentais, surgiram como produto da fusão de várias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos pensamentos filosófico-jurídicos, das idéias surgidas com o cristianismo e com o direito natural.

Nesse sentido, os direitos humanos fundamentais colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana.

Já o homem, para poder viver em companhia de outros homens, deve ceder parte de sua liberdade primitiva que possibilitará a vida em sociedade. Essas parcelas de liberdades individuais cedidas por seus membros, ao ingressar em uma sociedade, unificam-se, transformando-se em poder, o qual é exercido por representantes do grupo. Dessa forma, o poder e a liberdade são fenômenos sociais contraditórios, que tendem a anular-se reciprocamente, merecendo por parte do direito uma regulamentação, de forma a impedir tanto a anarquia quanto a arbitrariedade. Nesse contexto, portanto, surge a Constituição Federal, que, além de organizar a forma de Estado e os poderes que exercerão as funções estatais, igualmente consagra os direitos fundamentais a serem exercidos pelos indivíduos, principalmente contra eventuais ilegalidades e arbitrariedades do próprio Estado.


EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

A origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos alguns mecanismos para proteção individual em relação ao Estado. O Código de Hamurabi (1690 a.C) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes. A influência filosófico-religiosa nos direitos do homem pode ser sentida com a propagação das idéias de Buda, basicamente sobre a igualdade de todos os homens (500 a.C). posteriormente, já de forma mais coordenada, porém com uma concepção ainda muito diversa da atual, surgem na Grécia vários estudos sobre a necessidade da igualdade e liberdade do homem, destacando-se as previsões de participação política dos cidadãos (democracia direta de Péricles); a crença na existência de um direito natural anterior e superior às leis escritas, defendida no pensamento dos sofistas e estóicos (por exemplo, na obra Antígona - 441 a.C – Sófocles defende a existência de normas não escritas e imutáveis, superiores aos direitos escritos pelo homem). Contudo, foi o Direito Romano quem estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais. A Lei das XII Tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão. Posteriormente, a forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos fundamentais, enquanto necessários à dignidade da pessoa humana. O forte desenvolvimento das declarações de direitos humanos fundamentais deu-se, porém, a partir do terceiro quarto do século XVIII até meados do século XX.

Os mais importantes antecedentes históricos das declarações de direitos humanos fundamentais encontram-se, primeiramente, na Inglaterra, onde podemos citar a Magna Carta de Libertação, outorgada por João Sem-Terra, em 1215; a Petition of Right de 1628; o Habeas Corpus Act de 1679; o Bill of Rights de 1689; e o Act of Seattlemente de 1701. Posteriormente, e com idêntica importância, na evolução dos direitos humanos, encontramos a participação da Revolução dos Estados Unidos da América, onde podemos citar os históricos documentos: Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776; Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776; Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787.

A maior efetivação dos direitos humanos fundamentais continuou durante o constitucionalismo liberal do século XIX, tendo como exemplos a Constituição espanhola de 1812 (Constituição de Cádis), a Constituição portuguesa de 1822, a Constituição belga 1831 e a Declaração francesa de 1848.

O início do século XX trouxe diplomas constitucionais fortemente marcados pelas preocupações sociais, como se percebe por seus principais textos: Constituição mexicana de 1917, Constituição de Weimar de 1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918, seguida pela primeira Constituição Soviética (Lei Fundamental) de 1918 e Carta do Trabalho, editada pelo Estado Fascista italiano em 1927.


DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS: JUSNATURALISMO, POSITIVISMO E TEORIA MORALISTA:

Inúmeras são as teorias desenvolvidas no sentido de justificar e esclarecer o fundamento dos direitos humanos, destacando-se, porém, a teoria jusnaturalista, a teoria positivista e a teoria moralista ou de Perelman.

A teoria jusnaturalista fundamenta os direitos humanos em uma ordem superior universal, imutável e inderrogável. Por essa teoria, os direitos humanos fundamentais não são criação dos legisladores, tribunais ou juristas, e, conseqüentemente, não podem desaparecer da consciência dos homens.

No item I.1 da Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada consensualmente pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho de 1993, proclama-se que “os direitos humanos e liberdades fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos”.

A teoria positivista, diferentemente, fundamenta a existência dos direitos humanos na ordem normativa, enquanto legítima manifestação da soberania popular. Desta forma, somente seriam direitos humanos fundamentais aqueles expressamente previstos no ordenamento jurídico positivado.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, proclama a necessidade essencial dos direitos da pessoa humana serem “protegidos pelo império da lei, para que a pessoa não seja compelida, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.

Por sua vez, a teoria moralista ou de Perelman encontra a fundamentação dos direitos humanos fundamentais na própria experiência e consciência moral de um determinado povo, que acaba por configurar o denominado espiritus razonables.

A incomparável importância dos direitos humanos fundamentais não consegue ser explicada por qualquer das teorias existentes, que se mostram insuficientes. Na realidade, as teorias se completam, devendo coexistirem, pois somente a partir da formação de uma consciência social (teoria de Perelman), baseada principalmente em valores fixados na crença de uma ordem superior, universal e imutável (teoria jusnaturalista) é que o legislador ou os tribunais (esses principalmente nos países anglo-saxões) encontram substrato político e social para reconhecerem a existência de determinados direitos humanos fundamentais como integrantes do ordenamento jurídico (teoria positivista). O caminho inverso também é verdadeiro, pois o legislador ou os tribunais necessitam fundamentar o reconhecimento ou a própria criação de novos direitos humanos a partir de uma evolução de consciência social, baseada em fatores sociais, econômicos, políticos e religiosos.

A necessidade de interligação dessas teorias para plena eficácia dos direitos humanos fundamentais foi exposta no preâmbulo da Constituição francesa de 1791, quando se afirmou: “O povo francês, convencido de que o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das desgraças do mundo, resolveu expor, numa declaração solene, esses direitos sagrados e inalienáveis”.  


CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS:

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais. (COMPARATO, 2003)

A Unesco, também definindo genericamente os direitos humanos fundamentais, considera-os por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana, contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, e por outro, regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

Os direitos fundamentais do homem constituem princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, sendo reservados para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. (SILVA, 1997)

O importante é realçar que os direitos humanos fundamentais relacionam-se diretamente com a garantia de não ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções internacionais.

A previsão desses direitos coloca-se em elevada posição hermenêutica em relação aos demais previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universabilidade, efetividade, interdependência e complementariedade:

  • imprescritibilidade: os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso do prazo;
  • inalienabilidade: não há possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais, seja a título gratuito, seja a título oneroso;
  • irrenunciabilidade: os direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia. Dessa característica surgem discussões importantes na doutrina e posteriormente analisadas, como a renúncia ao direito à vida e a eutanásia, o suicídio e o aborto;
  • inviolabilidade: impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal;
  • universalidade: a abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica;
  • efetividade: a atuação do Poder Público deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos, com mecanismos coercitivos para tanto, uma vez que a Constituição Federal não se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato;
  • interdependência: as várias previsões constitucionais, apesar de autônomas, possuem diversas intersecções para atingirem suas finalidades. Assim, por exemplo, a liberdade de locomoção está intimamente ligada à garantia do habeas corpus, bem como previsão de prisão somente por flagrante delito ou por ordem da autoridade judicial competente;
  • complementariedade: os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcance dos objetivos previstos pelo legislador constituinte.

SITUAÇÃO DO HOMEM NO MUNDO:

Todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais.

Nas próximas linhas demonstrar-se-á como se foram criando e estendendo progressivamente, a todos os povos da Terra, as instituições jurídicas de defesa da dignidade humana contra a violência, aviltamento, a exploração e a miséria.

Tudo gira, assim, em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas em que consiste, afinal, a dignidade humana?

A resposta a essa indagação fundamental foi dada sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência.

A justificativa religiosa da preeminência do ser humano no mundo surgiu com a afirmação da fé monoteísta. A grande contribuição do povo da Bíblia à humanidade, uma das maiores, aliás, de toda a História, foi a idéia da criação do mundo por um Deus único e transcendente. Os deuses antigos, de certa forma, faziam parte do mundo, como super-homens, com as mesmas paixões e defeitos do ser humano. Iahweh (Javé), muito ao contrário, como criador de tudo o que existe, é anterior e superior ao mundo.

Diante dessa transcendência divina, os dias do homem, disse o salmista: “são como a relva: ele floresce como a flor do campo, roça-lhe um vento e já desaparece, e ninguém mais reconhece seu lugar” (Salmo 103). No entanto, a criatura humana ocupa uma posição eminente na ordem da criação. Deus lhe deu poder sobre “os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra” (Gênesis 1.26). A cada um deles o homem deu um nome (Gênesis 2.19), o que significa, segundo velhíssima crença, submeter o nomeado ao poder do nomeante.

Mais tarde, com a afirmação da natureza essencialmente racional do ser humano, põe-se nova justificativa para a sua eminente posição no mundo. A sabedoria grega expressou-se com vigor, pela voz dos filósofos.

Na verdade, a indagação central de toda a filosofia é bem esta: - Que é o homem?

A sua simples formulação já postula a singularidade eminente deste ser, capaz de tomar a si mesmo como objeto de reflexão. A característica da racionalidade, que a tradição ocidental sempre considerou como atributo exclusivamente humano, revela-se sobretudo nesse sentido reflexivo, a partir do qual, como se sabe, Descartes deu início à filosofia moderna.

Já a justificativa científica da dignidade humana sobreveio com a descoberta do processo de evolução dos seres vivos, embora a primeira explicação do fenômeno, na obra de Charles Darwin, rejeitasse todo finalismo, como se a natureza houvesse feito várias tentativa frustradas, antes de encontrar, por mero acaso, a boa via de solução para a origem da espécie humana.

Ora, apesar da aceitação geral das explicações darwinianas, vai aos poucos abrindo caminho no mundo científico a convicção de que não é por acaso que o ser humano representa o ápice de toda a cadeia evolutiva das espécies vivas. A própria dinâmica da evolução vital se organiza em função do homem.

Os partidários do chamado “princípio antrópico” reconhecem que os dados científicos não permitem afirmar (nem negar, aliás) que o mundo e o homem existem e evoluem em razão da vontade de um sujeito transcendente, que tudo criou e tudo pode destruir. O que esses cientistas sustentam, com bons argumentos, é que o encadeamento sucessivo das etapas evolutivas obedece, objetivamente, a uma orientação finalística, inscrita na própria lógica do processo, e sem a qual a evolução seria racionalmente incompreensível. A transformação biológica dos hominídeos, aliás, como hoje se reconhece, é um processo único e insuscetível de reprodução. Nestas condições, é razoável aceitar-se, como postulado científico, que toda a evolução das espécies vivas se encaminhou aleatoriamente em direção ao ser humano, como poderia, também de forma puramente aleatória, ter conduzido à degeneração e à morte universal?

Muito mais absurda que a explicação mitológica e religiosa tradicional parece, assim, a idéia de que o advento do ser humano na face da Terra seria o resultado de um estupendo acaso. Pois, se a evolução avança sem rumo, como nave “desbussolada”, através da História, esta nada mais seria.

Para a sabedoria antiga, aliás, a geração do mundo não tem apenas um sentido ontológico, com o nascimento dos diversos entes que o povoam. Ela exprime, antes, um sentido axiológico, com a organização de uma escala universal de valores, que vai aos poucos se explicitando.

É importante observar que, no relato bíblico da Criação, o mundo não surge instantaneamente, completo e acabado, das mãos do Criador. As criaturas vão-se acrescentando, umas às outras, como etapas de um vasto programa, simbolicamente ordenado na duração de um ciclo lunar. O primeiro casal humano só entra em cena na derradeira etapa do processo genesíaco, quando todos os demais seres terrestres já haviam sido engendrados. Na tradição eloísta, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1.26-27). Já na tradição javista, diferentemente, “Deus modelou o homem com a argila do solo” – adamah, em hebraico, nome coletivo que passa a designar o primeiro ser humano, Adão (Gênesis 2.7). A Bíblia apresenta, pois, o homem como situado entre o Céu e a Terra, como um ser a um só tempo espiritual e terreno.

Ora, a verdade – hoje indiscutível, de resto, no meio científico – é que o curso do processo de evolução vital foi substancialmente influenciado pela aparição da espécie humana. A partir de então, surge em cena um ser capaz de agir sobre o mundo físico, sobre o conjunto das espécies vivas e sobre si próprio, enquanto elemento integrante da biosfera. O homem passa a alterar o meio ambiente e, ao final, com a descoberta das leis da genética, adquire os instrumentos hábeis a interferir no processo generativo e de sobrevivência de todas as espécies vivas, inclusive a sua própria. Na atual etapa da evolução, como todos reconhecem, o componente cultural é mais acentuado que o componente “natural”. Até o aparecimento da linguagem, a evolução cultural foi quase imperceptível. A partir de então, no entanto, a evolução cultural cresceu mais rapidamente do que nos vários anos que a precederam. O homem perfaz indefinidamente a sua própria natureza – por assim dizer, inacabada – ao mesmo tempo em que “hominiza” a Terra, tornando-a sempre mais dependente de si próprio.

Foi exatamente essa concepção do homem, que um jovem humanista italiano, Giovanni Pico apresentou em 1486 em famoso discurso acadêmico.

Imaginou ele que o Criador, ao completar sua obra, havendo povoado a região supraceleste com puros espíritos e o mundo terrestre com uma turba de animais de toda espécie, vis e torpes, percebeu que ainda faltava alguém, nesse vasto cenário, capaz de apreciar racionalmente a obra divina, de amar sua beleza e admirar-lhe a vastidão.

A dificuldade, no entanto, é que já não havia um modelo próprio e específico para a composição desta última criatura. Todas as formas possíveis – de grau ínfimo, médio ou superior – haviam sido utilizadas e especificadas na criação dos demais seres. Decidiu então o Criador, em sua infinita sabedoria, que àquele a quem nada mais podia atribuir de próprio fosse conferido, em comum, tudo o que concedera singularmente às outras criaturas. Mais do que isso, determinou Deus que o homem fosse um ser naturalmente incompleto.


A PESSOA HUMANA E SEUS DIREITOS:

Foi durante o período axial da História que despontou a idéia de uma igualdade essencial entre todos os homens. Mas foram necessários vinte e cinco século para que a primeira organização internacional a englobar a quase-totalidade dos povos da Terra proclamasse, na abertura de uma Declaração Universal de Direitos Humanos, que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

Ora, essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a serem igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada.

A lei escrita alcançou entre os judeus uma posição sagrada, como manifestação da própria divindade. Mas foi na Grécia, mais particularmente em Atenas, que a preeminência da lei escrita tornou-se, pela primeira vez, o fundamento da sociedade política. Na democracia ateniense, a autoridade ou força moral das leis escritas suplantou, desde logo, a soberania de um indivíduo ou de um grupo ou classe social, soberania esta tida doravante como ofensiva ao sentimento do cidadão. Para os atenienses, a lei escrita é o grande antídoto contra o arbítrio governamental, pois, como escreveu Eurípedes na peça As Suplicantes (versos 434-437), “uma vez escritas as leis, o fraco e o rico gozam de um direito igual: o fraco pode responder ao insulto do forte, e o pequeno, caso esteja com a razão vencer o grande”.

Mas, ao lado da lei escrita, havia também entre os gregos uma outra noção de igual importância: a de lei não escrita. Tratava-se, a bem dizer, de noção ambígua podendo ora designar o costume juridicamente relevante, ora as leis universais, originalmente de cunho religioso, as quais, sendo regras muitas gerais e absolutas, não se prestavam a serem promulgadas no território exclusivo de uma só nação.

Nas gerações seguintes, o caráter essencialmente religioso dessas leis não escritas foi sendo dissipado. Em Aristóteles elas são chamadas leis comuns, reconhecidas pelo consenso universal, por oposição às leis particulares, próprias de cada povo.

Vale ressaltar que em alguns autores gregos, a igualdade essencial do homem foi expressa mediante a oposição entre a individualidade própria de cada homem e as funções ou atividades por ele exercidas na vida social.

Na tradição bíblica, Deus é o modelo de pessoa para todos os homens. Sem dúvida o cristianismo, proclamando o dogma da Santíssima Trindade, quebrou a unidade absoluta e transcendental da pessoa divina. Mas, em compensação, Jesus de Nazaré concretizou na História o modelo ético de pessoa, e tornou aos homens mais acessível a sua imitação.

Não foi somente este, porém, o ponto de ruptura do cristianismo com o judaísmo. A partir da pregação de Paulo de Tarso, o verdadeiro fundador da religião cristã enquanto corpo doutrinário, passou a ser superada a idéia de que Deus único e transcendente havia privilegiado um povo entre todo, escolhendo-o como seu único e definitivo herdeiro. Algumas passagens dos Evangelhos demonstram o inconformismo de Jesus com essa concepção nacionalista da religião. Paulo levou o universalismo evangélico às últimas consequências, ao afirmar que, diante da comum filiação divina, “já não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”.

Mas essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano sobrenatural, pois o cristianismo continuou admitindo, durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a inferioridade natural da mulher em relação ao homem, bem como a dos povos americanos, africanos e asiáticos colonizados, em relação aos colonizadores europeus. Ao se iniciar a colonização moderna com a descoberta da América, grande número de teólogos sustentou que os indígenas não podiam ser considerados iguais em dignidade ao homem branco.

De qualquer forma, a mensagem evangélica postulava, no plano divino, uma igualdade de todos os seres humanos, apesar de suas múltiplas diferenças individuais e grupais. Competia, portanto, aos teólogos aprofundar a idéia de uma natureza comum a todos os homens, o que acabou sendo feito a partir dos conceitos desenvolvidos pela filosofia grega.

A primeira grande discussão conceitual entre os doutores da Igreja, no entanto, não ocorreu a respeito do ser humano, e sim da identidade de Jesus Cristo. No primeiro concílio ecumênico, reunido em Nicéia em 325, cuidou-se de decidir sobre a ortodoxia ou heterodoxia de duas interpretações antagônicas da identidade de Jesus: a que o apresentava como possuidor de uma natureza exclusivamente divina (daí o nome de monofisitas atribuído aos partidários dessa crença), e a doutrina ariana, segundo a qual Jesus fora efetivamente gerado pelo Pai, não tendo, portanto, uma natureza consubstancial a este. Os padres conciliares recorreram, para a solução da controvérsia, aos conceitos estóicos de hypóstasis e prósopon, decidindo, como dogma de fé, que a hypóstasis de Jesus Cristo apresentava uma dupla natureza, humana e divina, numa única pessoa, vale dizer, numa só aparência.

Sobre a concepção medieval de pessoa que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano, não obstante a ocorrência de todas as diferenças individuais ou grupais, de ordem biológica ou cultural. E é essa igualdade de essência da pessoa que forma o núcleo do conceito universal de direitos humanos. A expressão não é pleonástica, pois que se trata de direitos comuns a toda a espécie humana, a todo homem enquanto homem, os quais, portanto, resultam da sua própria natureza não sendo meras criações políticas.

É importante destacar que a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita.

Daí decorre que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma.

A escravidão acabou sendo universalmente abolida, como instituto jurídico, somente no século XX. Mas a concepção Kantiana da dignidade da pessoa como um fim em si leva à condenação de muitas outras práticas de aviltamento da pessoa à condição de coisa, além da clássica escravidão, tais como o engano de outrem mediante falsas promessas, ou os atentados cometidos contra os bens alheios. Ademais, se o fim natural de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como meus.

Já a transformação das pessoas em coisas realizou-se de modo menos espetacular, mas não menos trágico, com o desenvolvimento do sistema capitalista de produção. Como denunciou Marx, ele implica a reificação das pessoas: ou melhor, a inversão completa da relação pessoa-coisa. Enquanto o capital é, por assim dizer, personificado e elevado à dignidade de sujeito de direito, o trabalhador é aviltado à condição de mercadoria, de mero insumo no processo de produção, para ser ultimamente, na fase de fastígio do capitalismo financeiro, dispensado e relegado ao lixo social como objeto descartável. O mesmo processo de reificação acabou transformando hodiernamente o consumidor e o eleitor, por força da técnica de propagando de massa, em mero objeto de direito. E a engenharia genética, por sua vez, tornou possível a manipulação da própria identidade pessoal, ou seja, a fabricação do homem pelo homem.

Insta ressaltar que a reflexão filosófica contemporânea salientou que o ser do homem não é algo de permanente e imutável: ele é, propriamente, um vir-a-ser.

Faz-se mister destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada unanimemente pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, condensou toda a riqueza dessa longa elaboração teórica, ao proclamar, em seu artigo VI que todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa.

Nem por isso, no entanto, os problemas ético-jurídicos foram eliminados. Ao contrário, o avanço tecnológico não cessa de criar problemas novo e imprevisíveis, à espera de uma solução satisfatória, no campo ético. Se todo ser humano deve ser havido, em qualquer lugar e circunstância, como pessoa, e em razão disso protegido pela ordem jurídica, a partir de que momento, precisamente, deve-se reconhecer a existência de um homem? Desde a fecundação do óvulo pelo esperma? A partir de duas semanas após a concepção, como dispõe uma lei britânica? Ou apenas pelo nascimento com vida? No juízo da ética e do direito, o aborto intencional equivale a um homicídio?


GLOBALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS:

Mais de 50 anos se passaram desde a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse período, a globalização e a interdependência entre as nações ampliaram a possibilidade e o escopo das sanções contra crimes que ameaçam a humanidade. Além disso passaram a entender que os direitos humanos transcendem as suas fronteiras e que todos devem adotar regras internacionais pertinentes.

Essa noção de direitos humanos na era da globalização é conseqüência do reconhecimento da necessidade de oferecer proteção ao indivíduo onde quer que ele esteja. A intervenção em Kosovo e no Timor Leste são exemplos marcantes da fragilidade das fronteiras geográficas quando se trata de direitos humanos. Assim, a percepção da necessidade de aceitar essa inegável responsabilidade já se encontra distribuída e se tornará cada vez mais visível. O mesmo reconhecimento e a mesma aceitação existem para assuntos ligados ao meio ambiente, em vista da sua magnitude universal.

Desta forma, cada país tem o direito de definir e controlar a situação dos seus cidadãos e dos estrangeiros, mas o direito individual permeia as fronteiras das nações. O reconhecimento dos direitos humanos e da autodeterminação atingiu um nível universal. Por esse motivo, as organizações mundiais são de primordial importância para oferecer garantias aos direitos do indivíduo.


CONCLUSÕES

Com o desenvolvimento do homem, fez-se necessário o surgimento do direito, e posteriormente um ramo mais específico, que foram os direitos do homem ou humanos.

Hoje para se falar dos direitos humanos é também necessário correlacionar com a globalização. Por isto, vale ressaltar que a globalização atual, não sendo a primeira da história, caracteriza-se sobretudo pelas tecnologias que eliminam as distâncias e zombam das fronteiras. Sem dúvida, ela favorece paradoxalmente as reivindicações locais e a proliferação dos Estados, mas antes de tudo favorece as dependências e, portanto, um enfraquecimento dos Estados e de seus sistemas de direito, submetidos a um processo de internacionalização sob a dupla influência da globalização econômica, que abre as fronteiras das práticas (comerciais, mas também criminais) de natureza transnacional, e dos direitos humanos baseados na Declaração de 1948, que postula a existência de valores universais.

Contudo, a simetria entre o mercado e os direitos humanos é apenas aparente, e a relação entre sistemas de direito, globalização e universalismo dos direitos humanos permanece ambígua. O aparecimento de um “direito da globalização” de vocação econômica é muito mais rápido e eficaz do que a “globalização do direito” que permitiria a aproximação dos direitos nacionais sob a influência dos direitos humanos.

Daí o risco de contradição: de um lado, a globalização econômica é a marca de uma mutação caracterizada por uma certa impotência dos Estados que permanecem limitados por seus territórios enquanto os atores econômicos desdobram suas redes à escala de estratégias globais; de outro, o universalismo ético, anunciado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, é doravante enquadrado por diversos instrumentos internacionais, de alcance regional ou mundial, mas supõe sempre a mediação dos Estados.

Portanto, é importante destacar que para analisar o homem dos direitos humanos tem que buscar uma ligação entre o mercado global, o homem biológico, o homem social, o homem religioso e os direitos humanos. Isto ocorre porque todos estes fatores cooperaram e cooperam ainda hoje para o desenvolvimento do homem incluso na era dos direitos humanos.


REFERÊNCIAS

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed, São Paulo: Saraiva, 2003.

MELO, Joana Angélica D´Ávila. Globalização para quem? Uma discussão sobre os rumos da globalização. São Paulo: Editora Futura, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 3. ed, São Paulo: Atlas, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

WHITLOCK JR., Luder. Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1995.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, André Ricardo Fonseca da. O homem dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3980, 25 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27962. Acesso em: 25 abr. 2024.