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A administração pública e a mensagem bíblica

A administração pública e a mensagem bíblica

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O cristianismo não é um sistema, um modo de pensar, no sentido rigoroso do termo. Mas foi grande a influência que exerceu sobre a compreensão da realidade.

I

O cristianismo não é um sistema, um modo de pensar, no sentido rigoroso do termo. Mas foi grande a influência que exerceu sobre a compreensão da realidade.

Natural. Propostas como infalivelmente verdadeiras, as novas soluções sobre a existência de Deus, as suas relações com o mundo, a origem e os destinos do homem, a obrigação e sanção da lei moral não poderiam deixar de ter uma repercussão em toda a filosofia, que versa sobre estas mesmas questões, ainda que encaradas sob aspecto diverso.

Por essa razão vem muito a propósito a frase: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus” (Jo 3, 3).

Algumas concepções bíblicas fundamentais são possuidoras de particular relevância filosófica.

A bíblia apresenta-se como a palavra de Deus, e toda a sua comunicação é objeto de fé. Quem acha que a pode ler como puro cientista, como se lê um texto de Platão ou de Aristóteles, está indo contra o seu espírito.

Ela muda completamente de significado, à medida que é lida, acreditando-se ou não que se trata da palavra de Deus. Alguns de seus conceitos são tão importantes que a  difusão deles mudou de modo irreversível a fisionomia espiritual do Ocidente.

A palavra de Jesus Cristo no Novo Testamento, que aperfeiçoou a revelação dos profetas no Antigo Testamento, produziu uma revolução de tal alcance que mudou todos os termos dos problemas que o homem havia proposto no passado e que se proporia no futuro.

Essa mensagem condiciona aqueles que a aceitam de modo positivo, mas também põe condições àqueles que a rejeitam.

Para entender isso, basta ver o título do programa do célebre ensaio de 1942 do idealista e não-crente Benedetto Croce (1866-1952) Perché non possiamo non dirci cristiani (Porque não podemos deixar de nos dizer cristãos), que significa precisamente que, uma vez surgido, o cristianismo tornou-se um horizonte intransponível.

Por essa razão, depois da propagação da mensagem bíblica, só seriam possíveis as seguintes propostas: a) filosofar na fé, crendo; b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da razão e da fé, embora crendo; c) filosofar fora da fé e contra a fé, não crendo.

Assim, o horizonte bíblico permanece sendo uma perspectiva estruturalmente intransponível, no sentido de uma extensão indefinida para além da qual já não poderíamos nos posicionar, tanto quem crê como quem não crê.

A filosofia grega concebera a unidade do divino como unidade de uma esfera que admitia uma pluralidade de entidades, forças e manifestações em diferentes graus e níveis hierárquicos. Não chegara a imaginar a unicidade de Deus; nunca sentira como um dilema a questão de ser Deus uno ou múltiplo.

Somente com a divulgação da mensagem bíblica no Ocidente é que se impôs a ideia do Deus uno e único. A dificuldade de o homem chegar a essa noção demonstra-se pelo próprio mandamento divino “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20, 3) – monoteísmo não espontâneo – e pelas contínuas recaídas na idolatria – noção politeísta – por parte do próprio povo hebreu, através do qual foi transmitida essa mensagem.

Com essa concepção do Deus único, infinito  em potência e radicalmente diverso de todo o resto, nasce um novo e radical modo de ver a transcendência, derrubando qualquer possibilidade de apreciar qualquer coisa como “divino”.

Se um homem fosse um tal homem pela natureza humana e não pelas notas individuais que o distinguem dos outros, ele seria a própria humanidade e não poderia haver outro homem senão ele. Assim acontece com Deus: Ele é a sua própria natureza divina, e eis por que não há, nem pode haver, senão um só Deus. Nos dizeres de Tomás de Aquino (1221-1274): Si ergo essent plures dii, oporteret eos differre. Aliquid ergo conveniret uni, quod non alteri – Se houvesse muitos deuses, entre eles deveria haver uma diferença. Algo corresponderia a um que não teria o outro -  (S. th. I 11, 3).

Platão e Aristóteles haviam considerado como “divino” (ou deuses) o cosmo, chamando-o de “deus visível”, os astros como “deuses criados”.

A bíblia corta pela base toda a forma de politeísmo e idolatria, mas também qualquer compromisso desse tipo. No Deuteronômio, podemos ler: “Levantando teus olhos ao céu e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los!” (Dt 4,19).

A unicidade do Deus bíblico comporta transcendência absoluta, que O coloca como totalmente outro em relação a todas as coisas.


II

A origem dos seres foi estudada por muitos pensadores antigos. Suas soluções foram várias, como a negação de qualquer forma de devir, a combinação de elementos eternos, o demiurgo e a atividade demiúrgica, a atração de um motor imóvel, o monismo panteísta e a processão metafísica.

A mensagem bíblica, ao contrário, fala de criação. “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1, 1). E os criou através de sua palavra. Deus disse e as coisas existiram. E, como todas as coisas do mundo, Ele criou diretamente também o homem, ao dizer: “Façamos o homem...” (Gn 1, 26).

Não usou nada de preexistente, como o demiurgo platônico, nem se valeu de intermédios na criação. Ele produziu tudo do nada (ex nihilo). Essa criação deve ser pensada, do ponto de vista da razão natural, como intemporal, não só do lado de Deus, mas também do lado do universo.

Todas as coisas têm origem do nada, sem distinção. Foram criadas livremente, ou seja, com um ato de vontade absoluto e intemporal, por causa do bem. Ele produz as coisas como dom gratuito. O ser criado é portanto um ser positivo. Falando da criação, a bíblia, de um modo muito insistente, ressalta: “E Deus viu que isso era bom” (Gn 1, 10.12.18.21.25.31). A concepção platônica do diálogo Timeu, que também sustenta que o demiurgo plasmou o mundo por causa do bem, é apresentada aqui sob um novo enfoque e num contexto bem mais coerente.

O criacionismo impor-se-ia como a solução por excelência do antigo problema de como e porque os múltiplos derivam do uno e o finito deriva do infinito. A própria conotação que Deus dá de si mesmo a Moisés – “Eu sou aquele que é” (Ex 3, 14) – seria interpretada, em certo sentido, como a chave para entender ontologicamente a doutrina da criação. Deus é o Ser por sua própria essência e a criação é participação no ser, isto é, Ele é o ser e as coisas criadas não são ser, mas o ser que receberam por participação.

Entre os filósofos gregos, a concepção antropocêntrica teve uma dimensão apenas um tanto limitada. Alguns traços dela são encontrados nos Memorabilia de Xenofonte, eco de ideias socráticas. Acham-se também desdobramentos nesse terreno no pórtico (estoá) de Zenão e Crisipo.

O antropocentrismo não foi uma marca do pensamento grego, que, ao contrário, se mostra fortemente cosmocêntrico. Homem e cosmo apresentam-se estreitamente conjugados e nunca radicalmente contrapostos. Na visão helênica, o homem não é a realidade mais elevada do cosmo.

Na bíblia, mais do que como momento do cosmo, ou seja, como uma coisa entre as coisas do cosmo, o homem é visto como criatura privilegiada de Deus, feita à imagem do próprio Deus e, portanto, dono e senhor de todas as outras coisas criadas por Ele.

No Gênesis está escrito: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra” (Gn 1, 26).

E ainda mais: “Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2, 7).

E o salmo 8 diz ainda, de modo paradigmático:

Quando vejo o céu, obra dos teus dedos,

a lua e as estrelas que fixaste,

que é o homem, para dele te lembrares

e um filho de Adão, para vires visitá-lo?

E o fizeste pouco menos do que um deus,

coroando-o de glória e beleza.

Para que domine as obras de tuas mãos

sob seus pés tudo colocaste:

ovelhas e bois, todos,

e as feras do campo também;

a ave do céu e os peixes do mar

quando percorre ele as sendas dos mares. 

Sendo feito à imagem e semelhança de Deus, o homem deve esforçar-se por todos os modos para assemelhar-se a ele. O Levítico já afirmava: “Não vos torneis impuros... não fareis ídolos... Eu sou Iahweh seu Deus... que fiz sair da terra do Egito, à vista das nações, a fim de ser o seu Deus... sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (Lv 18, 24; 26, 1.44.45; 19, 2).

Os gregos já falavam da assimilação a Deus, mas acreditavam poder alcançá-lo com o intelecto, com o conhecimento. A bíblia, porém, atribui à vontade o instrumento da assimilação: assemelhar-se a Deus e santificar-se significa fazer a vontade de Deus, ou seja, querer o querer de Deus. E é exatamente essa capacidade de fazer livremente a vontade de Deus que coloca o homem acima de todas as coisas.


III

Os gregos entenderam a lei moral como a regra da própria natureza, a qual se impõe a Deus e ao homem ao mesmo tempo, pois não foi feita por Deus, e que a ela o próprio Deus está vinculado. O conceito de um Deus que faz a lei moral é estranho a todos os filósofos gregos.

O Deus bíblico, pelo contrário, dá a lei ao homem como um “mandamento”. Primeiramente, Ele a enuncia diretamente a Adão: “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer” (Gn 2, 16).

A virtude (o bem moral supremo) torna-se obediência aos mandamentos de Deus, coincidindo com a santidade, virtude que, na visão naturalista dos gregos, era colocada em segundo plano. O pecado (o mal moral supremo), ao contrário, torna-se uma desobediência a Deus, dirigindo-se portanto contra Deus, porque vai contra os seus mandamentos.

Diz o salmo 119:

Indica-me, Iahweh, o caminho dos teus estatutos,

eu quero guardá-lo como recompensa.

Faze-me entender e guardar tua lei,

para observá-la de todo o coração.

Guia-me no caminho dos teus mandamentos,

pois nele está meu prazer.

E no salmo 51 podemos ler: “Pequei contra ti, contra ti somente, / pratiquei o que é mau aos teus olhos.”

A vida, a paixão e a morte de Cristo desenvolveram-se inteiramente sob o signo do fazer a vontade do Pai que O enviou. O Novo Testamento também fez com que o objeto supremo da vida, o amor de Deus, coincida com o fazer a vontade de Deus, com o seguir a Cristo, que concretizou com perfeição aquela vontade.

Desse modo, o antigo intelectualismo grego é inteiramente subvertido pelo voluntarismo: o querer de Deus é a lei moral e o querer o querer de Deus é a virtude do homem. A boa vontade torna-se a nova marca do homem moral.

Sócrates, num nível intuitivo, e Platão, com referência ao demiurgo, já haviam falado do Deus que constrói e governa o mundo. Aristóteles ignorou esse conceito, como a maior parte dos pensadores gregos, exceto os estoicos. O certo é que a providência dos gregos nunca diz respeito ao homem individual.

Já a providência bíblica é própria de um Deus que é pessoal em alto grau. Além de dirigir-se ao criado em geral, dirige-se ainda e particularmente aos homens individuais, especialmente aos mais humildes, necessitados e aos próprios pecadores. Basta recordar as parábolas do filho pródigo (Lc 15, 11-32) e da ovelha perdida (Lc 15, 3-7; Mt 18, 12-14).

Uma das passagens mais famosas e significativas a esse respeito é registrada no evangelho de Mateus (6, 25-34):

Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas? Quem dentre vós, com as suas preocupações, pode acrescentar um só côvado à duração da sua vida? E com a roupa, por que andais preocupados? Observai os lírios do campo, como crescem, e não trabalham e nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que existe hoje e amanhã será lançada ao forno, não fará Ele muito mais por vós, homens fracos na fé? Por isso, não andeis preocupados, dizendo: Que iremos comer? Ou, que iremos beber? Ou, que iremos vestir? De fato, são os gentios que estão à procura de tudo isso: vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade de todas essas coisas. Buscai, em primeiro lugar, seu Reino e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal.

E, com a mesma eficácia, Lucas escreve em seu evangelho (11, 5-10):

Quem dentre vós, se tiver um amigo e for procurá-lo no meio da noite, dizendo: “Meu amigo, empresta-me três pães, porque chegou de viagem um dos meus amigos e nada tenho para lhe oferecer”, e ele responder de dentro: “Não me importunes, a porta já está fechada, e meus filhos e eu estamos na cama; não posso me levantar para dá-los a ti”; digo-vos, mesmo que não se levante para dá-los por ser amigo, levantar-se-á ao menos por causa da sua insistência, e lhe dará tudo aquilo de que precisa. 

Também eu vos digo: Pedi e vos será dado; buscai e achareis, batei e vos será aberto. Pois todo o que pede recebe; o que busca acha; e ao que bate, se abrirá.

Esse sentido de total confiança na Providência divina também está presente no Antigo Testamento, na mesma dimensão e com o mesmo alcance, como se pode depreender, por exemplo, do belíssimo salmo 91:

Quem habita na proteção do Altíssimo

pernoita à sombra de Shaddai,

dizendo a Iahweh:

Meu abrigo, minha fortaleza.

[...]

A desgraça jamais te atingirá

e praga nenhuma chegará à tua tenda:

pois em seu favor Ele ordenou aos seus anjos

que te guardem em teus caminhos todos.

Eles te levarão em suas mãos,

para que teus pés não tropecem numa pedra;

poderás caminhar sobre o leão e a víbora,

pisarás o leãozinho e o dragão.

Porque a mim se apegou, eu o livrarei,

protegê-lo-ei, pois conhece o meu nome.

Ele me invocará e eu responderei:

“Na angústia estarei com ele,

livrá-lo-ei e o glorificarei

saciá-lo-ei com longos dias

e lhe mostrarei a minha salvação.”

Esta é uma mensagem de segurança total, que estava destinada a subverter as frágeis seguranças humanas que os sistemas da época helenística haviam construído, pois nenhuma segurança pode ser absoluta, se não tiver uma vinculação precisa com um Absoluto. E, precisamente, o homem sente necessidade desse tipo de segurança total.


IV

Os filósofos gregos falaram de uma culpa original, ao extraírem esse conceito dos mistérios órficos. De certa forma, vincularam a essa falta o mal que o homem sofre em si.

Mas ficaram muito longe da explicação da sua natureza, como se depreende da leitura do mito platônico no diálogo Fedro (Phaedro), que é um resumo da alma pensante de Sócrates (469-399 a.C.). Eles estavam convencidos de que: a) de modo natural, o ciclo dos nascimentos – a metempsicose ou transmigração – teria cancelado o delito nos homens comuns; e b) os filósofos poderiam libertar-se dos resultados dela, em virtude do conhecimento – portanto, pela força humana, ou seja, de modo autônomo.

A nova mensagem bíblica veio mostrar que ela é uma rebelião contra Deus e que nenhuma força da natureza ou do intelecto humano poderia resgatar. Para tanto, era necessária a obra do próprio Deus feito homem e a participação do homem na sua paixão em uma dimensão desconhecida para os gregos: a dimensão da fé.

Dessa maneira, o pecado original foi uma desobediência ao mandamento originário de não comer do fruto da árvore do bem e do mal.

A raiz dessa desobediência foi a soberba do homem, que não queria tolerar limitação nenhuma, não queria ter os vínculos do bem e do mal (dos mandamentos) e, portanto, queria ser como Deus.

“E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: ‘Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer’.” (Gn 2, 16-17). Mas a tentação do maligno insinua: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele [do fruto] comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.” (Gn 3, 5).

À culpa de Adão e Eva, que cedeu à tentação, transgredindo o mandamento divino, segue, como punição divina, a expulsão do paraíso terrestre, com todos os seus resultados. E assim fazem seu ingresso no mundo o mal, a dor, a morte e o afastamento de Deus.

Em Adão, toda a humanidade pecou; com Adão o pecado entrou na história dos homens e, com o pecado, todos os seus efeitos. Como ensina Paulo: “Eis por que, como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram.” (Rm 5, 12).

Por si, o homem não teria podido salvar-se do pecado e de todas os seus efeitos. E, assim, como a criação foi um dom, a antiga aliança, sancionada e muitas vezes traída pelo homem, foi também um dom; da mesma forma, o resgate foi o maior dos dons: Deus se fez homem e, com sua paixão e morte, resgatou a humanidade do pecado. Com sua ressurreição, derrotou a própria morte, consequência do pecado.

Paulo é enfático a esse respeito:

Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados? Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivemos vida nova.

Porque se nos tornamos uma coisa só com ele por morte semelhante à sua, seremos uma coisa só com ele também por ressurreição semelhante à sua, sabendo que nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado. Com efeito, quem morreu ficou livre do pecado.

Mas se morremos com Cristo, temos fé que também viveremos com ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele. Porque, morrendo, ele morreu para o pecado uma vez por todas; vivendo, ele vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus. Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas paixões; nem entregueis vossos membros, como armas de injustiça, ao pecado; pelo contrário, oferecei-vos a Deus como vivos provindos dos mortos e oferecei vossos membros como armas de justiça a serviço de Deus. E o pecado não vos dominará, porque não estais debaixo da Lei, mas sob a graça (Rm 6, 3-14).

A vida de Cristo, a sua paixão expiatória do antigo pecado, que fez seu ingresso no mundo com Adão, e a sua ressurreição resumem o sentido da mensagem cristã. E essa mensagem subverteu inteiramente os quadros do pensamento grego.


V

 A filosofia grega subestimara a fé ou crença (pistis) do ponto de vista cognoscitivo, pois dizia respeito às coisas sensíveis, mutáveis, sendo portanto uma forma de opinião (doxa).

Platão a valorizou como componente do mito, mas, em seu conjunto, o ideal da filosofia grega era o episteme, o conhecimento. Todos os pensadores gregos viam no conhecimento a virtude por excelência do homem e a realização da essência do próprio homem.

A nova mensagem veio exigir do homem precisamente uma superação dessa dimensão, invertendo os termos do problema e pondo a fé acima da ciência.

Isso não significa que a fé não tenha um valor cognoscitivo próprio. Entretanto, trata-se de valor cognoscitivo de natureza inteiramente diferente, em comparação com o conhecimento da razão e do intelecto. De todo o modo, trata-se de valor cognoscitivo que só se impõe a quem possui aquela fé. Como tal, ela constitui verdadeira provocação em relação ao intelecto e à razão.

O sentido geral dessa provocação é revelado por Paulo em sua primeira epístola aos coríntios (1Cor 1, 18-31; 2, 1-16):

[...] a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois está escrito:

‘Destruirei a sabedoria dos sábios,

e rejeitarei a inteligência dos inteligentes.

Onde está o sábio? Onde está o homem culto?’ (Is 33, 18; 19, 12).

Onde está o argumentador deste século? Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que creem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus. Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, ‘aquele que se glorie, glorie-se no Senhor’ (Jr 9, 22-23).

Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus. Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor; minha palavra e minha pregação nada tinham de persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram como uma demonstração de Espírito e poder, a fim de que a vossa fé não se baseie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.

No entanto, é realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos, sabedoria que não é deste mundo nem dos príncipes deste mundo, votados à destruição. Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória. Mas, como está escrito,

‘o que os olhos não viram,

os ouvidos não ouviram

e o coração do homem não percebeu,

tudo o que Deus preparou para os que o amam’ (Is 64,3; Jr 3, 16; Sl 19,4; Eclo 1, 10).

A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus. Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus. Desses dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais. O homem psíquico não aceita as coisas que vêm do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado.

‘Pois quem conheceu o pensamento do Senhor

para poder instruí-lo?’ (Is 40, 13; Rm 11, 34).

Nós, porém, temos o pensamento de Cristo.

Esta mensagem subversiva de todos os esquemas tradicionais dá origem inclusive a uma nova antropologia; o homem não é mais simplesmente corpo e alma (entendendo-se por alma razão e intelecto), isto é, em duas dimensões, mas sim em três dimensões: corpo, alma e espírito, em que espírito é exatamente essa participação no divino através da fé, a abertura do homem para a Palavra divina (Jo 1,1) e para a Sabedoria divina (Lc 11, 49), que o preenche com nova força e, em certo sentido, lhe dá nova estatura ontológica.

A nova dimensão da fé, portanto, é a dimensão do Espírito em sentido bíblico. Os gregos haviam conhecido a dimensão do nous, mas não a do pneuma, que passaria a ser a dimensão dos cristãos.


 VI

Em Platão, o tema da beleza vincula-se ao do eros e do amor, força que dá asas e eleva, através dos vários graus de beleza, à beleza metaempírica existente em si.

A análise do amor situa-se entre os mais esplêndidos estudos que Platão nos deixou, como se pode ler no diálogo O banquete (Série “Os Pensadores”. São Paulo: Ed. Abril, 1978).

O eros não é Deus nem homem, mas um daqueles seres intermediários entre o homem e Deus. Assim, o amor é filó-sofo, no sentido mais denso do termo. A sophia, ou seja, a sabedoria, é algo que só Deus possui; a ignorância é propriedade do que está totalmente distante da sabedoria; a filo-sofia, ao contrário, é apanágio do que não é ignorante nem sábio, do que não possui o saber mas a ele aspira, do que sempre busca alcançá-lo e, tendo-o atingido, percebe que ele lhe foge novamente para que, como amante, continue a procurá-lo.

O termo grego eros significa a paixão de desejo sexual. A palavra philia designa primordialmente o amor de amizade. O substantivo ágape foi escolhido para designar a ideia cristã única e original do amor. E caridade é usada para mostrar o caráter único deste amor. Assim o eros grego é força de conquista e ascensão, que se acende sobretudo à luz da beleza.

Já o novo conceito bíblico de amor (ágape) é de natureza bem diferente. O amor não é primordialmente subida do homem, mas descida de Deus em direção aos homens. Não é conquista mas dom, algo espontâneo e gratuito.

Para os gregos, é o homem que ama, não Deus. Para os cristãos, é sobretudo Deus que ama: o homem só pode amar na dimensão do novo amor que realiza uma revolução interior radical e assemelha o seu comportamento ao de Deus.

O amor cristão é verdadeiramente sem limite, é infinito. Deus ama o homem ao ponto do sacrifício da cruz; ama os homens inclusive em suas fraquezas. É nisso que o amor cristão revela a sua desconcertante grandeza: uma desproporção entre o dom e o beneficiário desse dom, ou seja, na absoluta gratuidade de tal dom.

É no mandamento do amor que Cristo resume a essência dos mandamentos e da lei em seu conjunto. Em Marcos, podemos ler esta preciosa resposta que Cristo deu à pergunta de um escriba, que queria saber qual era o primeiro dos mandamentos:

O primeiro é... o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e com toda a tua força. O segundo é ...: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não existe outro mandamento maior do que este (Mc 12, 29-31).

A ilimitabilidade do amor cristão expressa-se mais profundamente nestas palavras de Mateus:

Ouvistes que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5, 43-48).

Esta passagem da primeira epístola de João resume muito bem o arco da temática do amor cristão:

[...] amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, devemos, nós também, amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor em nós é realizado. Nisto reconhecemos que permaneceremos nele e ele em nós: ele nos deu seu Espírito (1Jo 4, 7-13).

E a primeira epístola aos coríntios contém o mais excelente hino ao ágape, ao novo amor cristão:

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e a dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como bronze que soa ou como címbalo que tine. Ainda que tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, nada seria. Ainda que distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria. A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quanto à ciência, também desaparecerá. Pois o nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá. Quando era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio da criança. Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, essas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade (1Cor 13, 1-13).

Paulo não sabia nada do eros e Platão não sabia nada do ágape. Talvez tivessem podido aprender um com o outro. Mas exatamente nessa tarefa é que se cimentou grande parte do pensamento cristão posterior. O ágape cristão pode viver sem o eros grego, mas o eros grego não pode viver sem o ágape cristão.


 VII

A mensagem cristã assinalou sem dúvida a mais radical revolução de valores da história humana – usando outras palavras, uma subversão total das valias antigas –, transformação essa cuja formulação pragmática está no Sermão da Montanha, que nos foi transmitido no evangelho de Mateus:

Felizes os pobres no espírito,

porque deles é o Reino dos Céus.

Felizes os mansos,

porque herdarão a terra.

Felizes os aflitos,

porque serão consolados.

Felizes os que têm fome

e sede de justiça,

porque serão saciados.

Felizes os misericordiosos,

porque alcançarão misericórdia.

Felizes os puros no coração,

porque verão a Deus.

Felizes os que promovem a paz,

porque serão chamados filhos de Deus.

Felizes os que são perseguidos

por causa da justiça,

porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5, 1-10).

E no evangelho de Lucas lemos:

Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus.

Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados.

Felizes vós, que agora chorais, porque haveis de rir.

Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem.

Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa: pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas.

Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação!

Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome!

Ai de vós, que agora rides, porque conhecereis o luto e as lágrimas!

Ai de vós, quando todos vos bendisserem, pois do mesmo modo seus pais tratavam os falsos profetas.

Eu, porém, vos digo, a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te ferir numa face, oferece a outra; a quem te arrebatar o manto, não recuses a túnica (Lc 6, 20-29).

Segundo o novo quadro de importâncias, é preciso retornar à simplicidade e à pureza da criança, porque aquele que é o primeiro segundo o juízo do mundo será o último conforme o juízo de Deus e vice-versa.

Escreve Mateus:

Nessa ocasião, os discípulos aproximaram-se de Jesus e lhe perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos Céus?”. Ele chamou perto de si uma criança, colocou-a no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. E aquele que receber uma criança como esta por causa do meu nome recebe a mim (Mt 18,1-5).

E Marcos escreve: “Então ele sentou, chamou os doze e disse: Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos.” (Mc 9, 35).

Desse modo, a humildade tornou-se uma virtude fundamental do cristão: o caminho estreito que dá acesso ao reino dos céus. E essa também era uma virtude desconhecida dos filósofos gregos.

E Cristo chegou a dizer o seguinte: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida a perderá; mas, o que perder sua vida por causa de mim e do evangelho, a salvará.” (Mc 8, 34).

E isso, para o filósofo grego, seria simplesmente incompreensível. Em consequência, cai por terra também o ideal supremo do sábio helenístico que compreendera a verdade do mundo e de todos os bens exteriores e do corpo, mas, no entanto, punha em si a certeza suprema, proclamando-se autárquico e absolutamente autossuficiente, capaz de alcançar sozinho o fim último.

Esse ideal do homem grego, que acreditava em si mesmo mais do que em todas as coisas exteriores com extrema firmeza, fora, indubitavelmente, um nobre ideal.

Mas a mensagem evangélica agora o declara ilusório – e o faz de maneira categórica. A salvação não apenas não pode vir das coisas, nem sequer de si mesmo. Cristo diz: “Sem mim, nada podeis fazer.” (Jo, 15, 5).

Em uma esplêndida passagem da segunda epístola aos coríntios, Paulo sela essa reviravolta no pensamento antigo. Depois de ter suplicado a Deus três vezes, para que dele afastasse uma grave aflição que o atribulava, teve a seguinte resposta: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder.” (2Cor 12, 9). Por isso, Paulo conclui: “Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo.” (2Cor, 12, 9).


 VIII

O conceito de alma é criação grega, cuja evolução seguimos a partir de Sócrates (470/469-399 a.C.), que faz dela a essência do homem.

Platão (428/427-347 a.C.) fundamenta a sua imortalidade com provas racionais, e Plotino (205-270) dela faz uma das três hipóstases.

A psyché é uma das figuras teóricas que melhor marcam o quadro do pensamento grego e o seu idealismo metafísico.

Os próprios estoicos, embora fazendo aberta profissão de materialismo, admitiam uma sobrevivência da alma (ainda que até o fim da posterior conflagração cósmica).

Desde Sócrates, os gregos passaram a ver na alma a verdadeira essência do homem, não sabendo pensar o homem senão nos termos do corpo e alma. Toda a tradição platônico-pitagórica e o próprio Aristóteles (384/383-322 a.C.) – e, portanto, a maior parte da filosofia grega – consideraram a alma imortal por natureza.

A mensagem cristã propôs o problema do homem em termos completamente diferentes. Nos textos sacros, a palavra alma não aparece nas acepções gregas.

O cristianismo não nega que, com a morte do homem, sobreviva algo dele; pelo contrário, fala expressamente dos mortos como sendo recebidos no seio de Abraão (Lc 16, 22).

Entretanto, o cristianismo não aponta de forma alguma para a imortalidade da alma, mas sim para a ressurreição dos mortos. Essa é uma das marcas da nova fé. E a ressurreição implica o retorno também do corpo à vida.

E precisamente isso deveria constituir gravíssimo obstáculo para os filósofos gregos: era absurdo que devesse renascer aquele corpo que era visto por eles como obstáculo e como fonte de toda a negatividade e do mal.

A reação de alguns estoicos e epicureus ao discurso pronunciado por Paulo no areópago, em Atenas, é muito eloquente. Eles ouviram Paulo enquanto falava de Deus. Mas quando falou em ressurreição dos mortos, não lhe permitiram que continuasse a falar. Está registrado nos Atos dos Apóstolos: “Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto muitos diziam: ‘A respeito disto te ouviremos outra vez’. Foi assim que Paulo se retirou do meio deles.” (At 17, 32-33).

Plotino, na perspectiva renovada da metafísica platônica, escrevia, em aberta polêmica com essa crença dos cristãos:

O que existe de alma no corpo nada mais é que alma adormecida. E o verdadeiro despertar consiste na ressurreição – a verdadeira ressurreição, que é do corpo, não com o corpo. Pois ressurgir com um corpo equivale a cair de um sono em outro, a passar, por assim dizer, de um leito a outro. Mas o verdadeiro levantar-se tem algo de definitivo, não de um só corpo, mas de todos os corpos, que são radicalmente contrários à alma, onde levam a contrariedade até à raiz do ser. Dá-nos prova disso, senão o seu devir, pelo menos o seu transcorrer e o seu extermínio, que certamente não pertencem ao âmbito do ser (Enneades, IV).

Por seu turno, muitos pensadores cristãos, ao contrário, não consideraram a doutrina do Fédon e dos platônicos como negação de sua fé, procurando inclusive acolhê-la como clarificadora.

O assunto da mediação entre a temática da alma e a da ressurreição dos mortos, com a inserção do Espírito, iria constituir um dos temas mais debatidos pela reflexão filosófica dos cristãos, com diferentes resultados.


IX

O pensamento grego sempre foi real e substancialmente aistórico. Os seus pensadores não tiveram um sentido preciso da história.

A ideia de progresso não lhes foi familiar ou só o foi em escala reduzida.

Aristóteles (384/383-322 a.C.), no seu livro Poética, Lisboa, Vega, 1988, falou de catástrofes recorrentes, que levam continuamente a humanidade ao estágio primitivo, ao que se segue uma evolução, que a leva novamente a um estágio de civilização avançada, que atinge o ponto atingido pelo anterior, ao que se segue uma nova catástrofe e assim por diante, ao infinito.

Os estoicos introduziram inclusive a teoria da destruição cíclica não só da civilização sobre a terra, mas também do cosmo inteiro, que, depois, se reforma ciclicamente, da mesma forma que antes, inclusive nos pormenores mais insignificantes. Em suma, repete-se tal qual no passado, ao infinito.

Isso é a negação do progresso.

A concepção de história expressa na mensagem bíblica, ao contrário, não é cíclica, mas retilínea. No transcorrer do tempo, verificam-se eventos decisivos e não repetíveis, que são como etapas que destacam o seu sentido.

O fim dos tempos é também o fim para o qual eles foram criados: é o juízo final e o advento do reino de Deus em sua plenitude (Mt 24, 30; 26, 64; Mc 13, 26; 14, 62; Lc 21, 27). E assim a história, que vai da criação à queda (Gn 1-3), da aliança ao tempo de espera do Messias (Gn 6, 18; Is 7,10ss), da vinda de Cristo ao juízo final (Mt 25, 31-46), adquire um sentido, tanto no seu conjunto como em suas diversas fases.

Na história assim entendida, também o homem se compreende a si mesmo bem melhor: compreende melhor de onde vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar. Sabe que o reino de Deus já fez seu ingresso no mundo com Cristo e com sua Igreja e que, portanto, já se encontra entre nós, ainda que só no fim dos tempos vá se realizar em toda a sua plenitude.

O antigo grego vivia na dimensão da pólis e pela pólis e só sabia pensar dentro de seus quadros. Destruída a pólis, o filósofo grego refugiou-se no individualismo, sem descobrir um novo tipo de sociedade.

Já o cristão vive na Igreja, que não é uma sociedade política nem uma sociedade puramente natural. É uma sociedade que, por assim dizer, é ao mesmo tempo horizontal e vertical: vive neste mundo, mas não para este mundo; manifesta-se em aparências naturais, mas tem raízes sobrenaturais. Na Igreja de Cristo, o cristão vive a vida de Cristo na graça de Cristo (Rm 5, 2; 1Co 1, 4).

A parábola da videira e dos ramos que Cristo conta aos seus apóstolos expressa melhor do que qualquer outra coisa o novo sentido da vida do cristão em união com Cristo e com os outros que vivem em Cristo:

Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo o ramo em mim que não produz fruto ele o corta, e todo o que produz fruto ele o poda, para que produza mais fruto ainda. Vós já estais puros, por causa da palavra que vos fiz ouvir. Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer. Se alguém não permanece em mim é lançado fora, como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e se queimam. Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vós o tereis (Jo 15, 1-7).

Há uma grande riqueza no pensamento grego. Mas a mensagem cristã vai muito além, ultrapassando-o precisamente nos pontos essenciais.

O erro de fundo dos gregos esteve no fato de procurarem no homem o que só podem encontrar em Deus.

Depois da mensagem cristã, até a medida grega do homem deve ser reavaliada. Protágoras (480-411 a.C.), na sua obra Antilogias, apresenta uma proposta basilar com o axioma: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.”

Esse homem, que os gregos tanto exaltaram, é para o cristão algo muito maior do que pensavam os gregos, mas numa dimensão diversa e por razões diversas.

Se Deus considerou que deveria confiar aos homens a difusão de sua própria mensagem e se, até mesmo, chegou a fazer-se homem para salvar o homem (Gl 4, 4-5),  então a medida grega do homem, também tendo sido tão elevada, torna-se insuficiente e deve ser repensada a fundo. E na grandiosa tentativa de construir essa nova medida do homem é que nasceria o humanismo cristão.                                     


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