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Luta por um Mundo Melhor.

Resenha crítica da obra de Robert F. Kennedy

Luta por um Mundo Melhor. Resenha crítica da obra de Robert F. Kennedy

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Política e discurso político estão intimamente ligados, presente e passado também.

Robert F. Kennedy, vulgarmente conhecido como Bobby Kennedy, morreu em junho de 1968 sem chegar à Casa Branca como intencionava. O atentado que ele sofreu no Hotel Ambassador, em Los Angeles, foi documentado em vídeo. Nesta curta versão do incidente postada no YouTube o assassinato do irmão de JFK é precedida por um discurso que ele fez referindo-se à sua intenção de encerrar a Guerra do Vietnã e retirar as tropas norte-americanas daquele país: https://www.youtube.com/watch?v=lmc2EzkRDkI .

As idéias política do líder que não chegou a ser presidente dos EUA estão condensadas no livro “Luta por um Mundo Melhor”, publicado nos EUA em novembro de 1967, obra que funciona como uma espécie de programa de governo. Caso fosse eleito ele certamente tentaria colocar em prática as idéias que divulgou.

O livro de Bobby Kennedy 8 tópicos que podem ser divididos em dois eixos temáticos: política interna e política externa. Na primeira parte da obra, ele trata da juventude norte-americana e da questão racial e urbana (favelas e comunidades nos EUA). Na segunda,  o ex- Ministro da Justiça dos EUA aborda temos como a Aliança para o Progresso, o controle nuclear, a política chinesa e, obviamente, a Guerra do Vietnã.

Comprei a primeira edição brasileira de “Luta por um Mundo Melhor” por R$ 10,00 num sebo em 02/07/2014. A obra foi editada pela Editora Expressão e Cultura, tem 324 páginas e encadernação comum (capa mole). O texto foi traduzido do inglês por Álvaro Cabral e a impressão ficou a cargo da Empresa Gráfica O Cruzeiro S/A, Rio de Janeiro, Guanabara. O livro de Bobby Kennedy foi editado no Brasil em abril/1968, portanto, apenas alguns meses antes do AI-5, que foi imposto à força à nação em dezembro/1968.

Os militares brasileiros provavelmente não gostaram muito do livro em questão. As idéias do autor sobre o militarismo latino-americano não eram muito populares nos EUA, menos ainda no Brasil. Diz Bobby Kennedy que:

“O outro obstáculo principal à democracia progressista na América Latina é o hábito fundamental radicado de intervenção das forças armadas na política de muitos países latino-americanos. Numa certa época, tais intervenções assumiam freqüentemente a forma de ditaduras militares destinadas a reter o poder político por um prazo indefinido. Depois da onda de revoluções da década de 1950, que varreu a maioria dos generais do poder, a intervenção militar adquiriu uma nova forma. É utilizada para depor líderes civis que desagradam os militares ou, algumas vezes, os seus aliados entre as forças reacionárias de determinado país. Depois de certo tempo, o país é então devolvido a um governo civil mais ao gosto dos militares.” (p. 168/169)

Um pouco adiante o autor afirma que:

“...os tempos e os peritos de ditadura militar ainda não passaram. Embora devamos reconhecer que os militares constituíram uma importante  força da ordem em algumas situações críticas, todavia muitos líderes políticos latino-americanos são obrigados a viver constantemente cônscios de que estão sendo vigiados pelos quartéis, que, ao menor passo em falso, colocarão os tanques à porta de suas casas. Em tais circunstâncias, o estabelecimento de tradições democráticas e processos constitucionais torna-se extremamente difícil.” (p. 169)

Bobby Kennedy foi Ministro da Justiça dos EUA. Portando, podemos  muito bem presumir que ele estava bem ciente de que as ditaduras militares que pipocaram na América Latina na década de 1960 foram fomentadas pelo seu país. Na sua obra, porém, ele deixa bem claro que não apoiaria as ditaduras latino-americanas e refere-se especificamente ao Brasil a propósito da Aliança para o Progresso, que segundo ele:

“...não foi criada com o propósito – e não podia ser – de constituir um meio para os Estados Unidos determinarem o governo de todas as nações americanas. Compete ao povo de cada nação latino-americana determinar o governo que quer; suas lutas e seus conflitos políticos devem ser exclusivamente seus. A independência e a responsabilidade não são dadas nem ensinadas; só podem ser aprendidas na prática – inclusive a prática de cometer erros. Mas quando o poder é tomado pelos militares, ou um governo constitucional é derrubado, a nossa ajuda deveria ser reduzida a um mínimo compatível com a preocupação humanitária pelo povo do país. Em termos práticos, deveríamos apoiar, no máximo, aqueles projetos específicos que contribuem diretamente para a reforma – por exemplo, escolas rurais, clínicas ou programas de reforma agrária – e evitar ‘empréstimos de programa’ de natureza geral, que tendem a identificar-nos com esses governos. As nações latino-americanas, no futuro como no passado, podem temporariamente consentir em seu domínio pela força militar. Contudo, a assistência e identificação do gênero e da amplitude que fornecemos ao Brasil, desde 1964, não pode ajudar essa nação nem a América Latina e é suscetível de desferir um golpe mortal nos ideais da Aliança.” (p. 158/159 – grifos nossos).

A preocupação de Robert F. Kennedy com a difusão da tecnologia militar é exposta na obra de maneira humanitária:

“... em breve, a capacidade nuclear estará ao alcance de muitos e é sumamente provável que, se os acontecimentos prosseguirem no seu curso atual, essa capacidade técnica acabará sendo usada para produzir armas nucleares. Depois da explosão da primeira bomba atômica chinesa, por exemplo, tem-se feito uma forte pressão para fabricar na índia uma réplica, pressão essa que ainda mais se avolumou depois do conflito fronteiriço entre os dois países e a realização dos testes chineses da bomba de hidrogênio. Se a Índia começar a estocar armas nucleares, certamente o Paquistão não lhe ficará atrás por muito tempo. No atitado Oriente Médio, repleto de ódio, há muito existem profundas suspeitas de atividades conducentes ao fabrico de engenhos nucleares e novos progressos israelenses, por certo impeliriam os egípcios à intensificação de seus atuais esforços de domínio. Uma evolução semelhante é possível em muitas outras partes do mundo.

Uma vez iniciada uma guerra nuclear, mesmo entre pequenas e remotas nações, seria extraordinariamente difícil sustar uma progressão gradual que acabaria convertendo uma guerra local numa conflagração geral. Cerca de 160 milhões de americanos e centenas de milhões de outros povos poderiam morrer nas primeiras vinte e quatro horas de um duelo nuclear em grande escala. E, como disse Nikita Krushev, os sobreviventes teriam  inveja dos mortos...” (p. 178/179)

Duas páginas depois o autor faz a seguinte declaração retumbante:

“A necessidade de sustar a proliferação de armas nucleares deve constituir uma prioridade central da política americana, merecendo e exigindo novos e maiores esforços. É uma afirmação ampla, pois os nossos interesses são amplos e as crises do momento propõem, freqüentemente, questões urgentes de grave importância para a segurança nacional. Mas esses problemas imediatos e outros semelhantes tem sido para nós uma constante, nos últimos vinte anos, e assim continuará sendo ainda por muito tempo, no futuro. Contudo, se as armas nucelares se generalizarem em todo mundo, cada crise momentânea poderá converter-se na derradeira crise para toda humanidade.” (fls. 181)

As vantagens econômicas para os  EUA derivadas do monopólio da tecnologia nuclear (e da supremacia militar absoluta diante de nações que não tem armas nucleares) não são nem mesmo discutidas por Bobby Kennedy. Sua formulação é singela. O irmão de JFK explora e reforça o medo público da hecatombe nuclear e aceita como fato consumado (que obviamente deveria ser preservado para o bem do seu país), a dualidade de poder que caracterizou a Guerra Fria.

Os negócios e lucros que gravitavam em torno da capacidade nuclear dos EUA e que seriam potencialmente afetados pela proliferação da tecnologia nuclear e das armas atômicas não interessava ao grande público.  O autor pressupõe que ninguém necessita saber ou discutir quais seriam os danos econômicos para a indústria nuclear norte-americana se o Brasil quisesse, por exemplo, processar e aproveitar dentro do país as jazidas de minerais radioativas que existiam (e ainda existem) em solo brasileiro ao invés de vender matéria prima em estado bruto para empresários dos EUA.

Em  1965 o Brasil assinou um acordo com a Westinghouse Electric Company dos EUA para obtenção do seu primeiro reator nuclear, negócio que foi concretizado em 1971 (segundo informa a Wikipédia). Para fazer este reator funcionar o Brasil teria que comprar material físsil dos EUA, pois não tinha a capacidade de processar o mineral radioativo em estado bruto que vendia para os norte-americanos.

A tensão entre Brasil e EUA, provocada pelo programa nuclear brasileiro aumentou lentamente na década de 1960 e chegou ao clímax quando nosso país construiu Angra dos Reis após firmar o acordo nuclear com a Alemanha (intensamente combatido pelos EUA na época). Há bem pouco tempo as autoridades norte-americanas ficaram incomodadas com as novas tecnologias brasileiras de enriquecimento de urânio que tem o potencial de transformar o Brasil em exportador de material físsil. Quando escreveu seu livro Bobby Kennedy tinha consciência de que em alguns anos os EUA não poderiam mais contar com a matéria prima nuclear brasileira. Esta é a razão econômica que o fez dizer que não apoiaria a ditadura brasileira?

Kennedy é especialmente eloqüente quanto se trata da Guerra do Vietnã:

“A violência estarrecedora do poderio norte-americano abate-se, agora sobre um povo remoto e estranho, num pequeno e desconhecido país. É difícil sentirmos em nossos corações o que essa guerra significa para o Vietnã; fica no outro extremo do mundo e seu povo nos é estranho. Poucos, dentre nós, se encontram diretamente envolvidos, enquanto os demais continuam tratando de suas vidas, lutando por suas ambições, sem que os sons e terrores da batalha os perturbem. Entretanto, para os vietnamitas, freqüentemente deve parecer que se cumpre a profecia do Apocalipse de S. João, o Divino: ‘E olhei: e eis um cavalo amarelo e o seu cavaleiro, sendo este chamado Morte; e o inferno o estava seguindo, e foi-lhe dada autoridade sobre a quarta parte da terra para matar a espada, pela forme, com a mortandade e por meio das feras da terra...’

Embora as imperfeições do mundo possam provocar atos de guerra, a abundância de razões não pode apagar a agonia e a dor que tais atos causam numa simples criança. A guerra do Vietnã é um evento de conjuntura histórica, mobilizando o poderio e as preocupações de muitas nações. É também aquele momento sem sentido, misto de medo e estupefação, em que a mãe e o filho vêem a morte pelo fogo, chovendo da máquina inverossímil, enviada por um país, cuja existência só vagamente suspeitam. É o terror súbito do humilde funcionário ou do miliciano da aldeola, absorvido no trabalho de seu povoado, quando percebe que o assassinato lhe está roubando a vida. É o vaguear perplexo dos refugiados sem lar, sobreviventes das aldeias agora eliminadas, deixando para trás apenas aqueles que não viveram para fugir. São os jovens,  vietnamitas e americanos, que num instante sentem a noite da morte destruir as promessas de ontem, de uma família, de uma terra, de um lar.

É um país onde a juventude nunca viveu um dia em paz e as famílias jamais conheceram um tempo em que não fosse preciso ter medo. É uma terra ensurdecida pelo crescendo interminável de violência, do ódio e da fúria selvagem, onde a meta absorvente para milhões de seres não é viver bem ou melhorar sua existência, mas, simplesmente, sobreviver. É um país onde centenas de milhares de pessoas lutam, porém muitos milhões são vítimas inocentes e confusas de paixões brutais e de convicções que mal entendem. Para elas, a paz não é um termo abstrato descrevendo um daqueles intervalos raros em que os homens não se matam uns aos outros. É um dia sem terror, sem chuva de bombas. É uma família e a vida familiar de suas aldeias. É alimento, uma escola, a própria vida.

Tudo que dizemos e fazemos deve ser acusado pela nossa consciência de que, em parte, esse horror é responsabilidade nossa; não apenas a responsabilidade de uma nação, mas a vossa e a minha. Somos nós que vivemos na abundância e enviamos a nossa mocidade para a morte. São os nossos engenheiros químicos que calcinam as crianças e as nossas bombas que arrasam as aldeias. Todos nós participamos. Saber isso, sentir o peso dessa responsabilidade, não é ignorar interesses importantes, nem esquecer que as vezes a liberdade e a segurança devem ser pagas com sangue. Apesar de tudo, embora, como nação, devamos saber o que é preciso fazer, também, como homens,  devemos sentir a angustia pelo que estamos fazendo.” (p. 230/231)

A citação é longa, mas importante. Pelo tom emocional utilizado por Bobby Kennedy, podemos inferir que se fosse eleito ele provavelmente tentaria por um fim à guerra. O medo do comunismo, a lógica do dominó (segundo a qual se o Vietnã fosse controlado por comunistas todo o sudoeste Asiático estaria perdido para a democracia e o capitalismo), o racismo e o ódio devotado ao inimigo vermelho, todas as formulas verbais e conceitos ideológicos utilizadas naquele tempo pelos defensores da Guerra do Vietnã, não ocupam qualquer lugar nas cogitações do candidato a presidente dos EUA. Ele procura comover o leitor (e o eleitor) de que há algo profundamente humano nos vietnamitas, de que há muita desumanidade na conduta norte-americana no Vietnã. A tragédia da guerra é reconhecida, assim como a responsabilidade pelo mal que está sendo diariamente causado à milhões de inocentes.

Uma leitura cuidadosa e crítica de “Luta por um Mundo Melhor” pode ser bastante proveitosa. Alguns dos temas abordados por Robert F. Kennedy ainda fazem eco na realidade brasileira e nas relações entre Brasil e EUA.  

Por mais que estejamos vivendo numa democracia consolidada, os brasileiros que cresceram durante a ditadura sempre ficam com a impressão de seus líderes políticos, especialmente os de esquerda, “...são obrigados a viver constantemente cônscios de que estão sendo vigiados pelos quartéis...”. O desconforto entre militares e poder civil sempre fica evidente quando temas relativos à ditadura e que são considerados delicados pelos militares são levados à discussão, como por exemplo, punição dos militares que praticaram torturas, pedido de desculpas das Forças Armadas à nação pelos crimes cometidos no período de 1964/1985, etc...

A questão nuclear tem sido fonte de constante atrito entre Brasil e EUA. Tudo indica que o tema continuará sendo fonte de tensão no futuro, apesar do nosso país ter assinado o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares desde 1998. Além disto, cresce entre alguns setores políticos brasileiros os rumores de que em algum momento teremos que nos retirar do TNP para poder desenvolver todas nossas potencialidades nucleares, inclusive do ponto de vista militar. De fato, ninguém precisa ser muito inteligente para perceber que não faz qualquer sentido a Marinha do Brasil possuir submarinos nucleares que possam apenas disparar torpedos e mísseis convencionais.

Por fim, política e discurso político coexistem. Um não existe sem o outro, quer coincidam ou não. A análise do discurso de Bobby Kennedy nos ajuda a compreender melhor a mentalidade dos norte-americanos, destinatários da mensagem. As falhas e omissões intencionais de qualquer discurso sempre revelam algo sobre quem o enunciou.

Pode um líder político modificar radicalmente a direção que foi tomada pelo seu país? A julgar pela modalidade do discurso utilizada para expor o que ele pensava e sentia em relação à Guerra do Vietnã, Robert F. Kennedy provavelmente diria que a resposta é SIM ou TALVEZ. A história, porém, seguiu seu curso implacável. Somente após perceber que seria inevitavelmente derrotado no campo de batalha, os EUA aceitaram negociar a paz no Vietnã (o fim da guerra ocorreu em 30/04/1975, sete anos após a morte de Bobby Kennedy).

Quais foram as consequencias políticas da publicação de “Luta por um Mundo Melhor”? A mais provável foi o assassinato do autor, cujo discurso certamente não agradou aos arautos da guerra e aos industriais que estavam auferindo lucros para fornecer os armamentos utilizados pelos EUA no Vietnã. A percepção que o autor tinha da América Latina estava em grande medida distorcida. A ditadura brasileira sobreviveu até 1985, não tendo sido breve. O apoio dos EUA à mesma foi sendo removido gradual e lentamente, mas se manteve firme mesmo após a edição do AI-5. Lyndon B. Johnson, Richard Nixon, Gerald Ford e Ronald Reagan parecem ter convivido muito bem com os generais-presidentes brasileiros. Jimmy Carter os incomodou um pouco em razão de dar ênfase aos direitos humanos. A ditadura brasileira nasceu pelas mãos da CIA, mas parece ter morrido mais por esclerose múltipla do que por pressão da Casa Branca.

As objeções humanitárias de Bobby Kennedy à Guerra do Vietnã, porém, continuam válidas. Se substituirmos Vietnã por Iraque e vietnamitas por iraquianos o discurso acima transcrito poderia ser proferido com louvor por qualquer líder político norte-americano contrário às desastradas campanhas militares da era Bush Jr. O problema é que neste momento todos nos EUA são pró-guerra. Há aqueles que desejam uma guerra menor, com o uso de Drones como Obama e seus seguidores, mas ninguém é definitivamente contra a guerra nos EUA. Faz tempo que não vemos um líder político norte-americano importante levantando a voz em favor das vítimas inocentes dos EUA.

Obama foi eleito dizendo que fecharia a prisão de Guantánamo. Ele assinou a ordem, mas foi obrigado a voltar atrás porque o Pentágono não o obedeceu. Pode um líder político modificar radicalmente a direção que foi tomada pelo seu país? A resposta neste momento para os EUA é NÃO. 



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