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A norma jurídica em Kelsen.

Concepção de sanção na norma primária e na norma secundária

A norma jurídica em Kelsen. Concepção de sanção na norma primária e na norma secundária

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Sumário: RESUMO. 1 INTRODUÇÃO. 2 A NORMA JURÍDICA EM KELSEN. 2.1 Concepção kelseniana de norma (sanção). 2.1.1 Norma primária. 2.1.2 Norma. 2.2 KELSEN corrigiu KELSEN? 2.2.1 José Florentino DUARTE. 2.2.2 Marcos Bernardes de MELLO. 2.2.3 Maria Helena DINIZ. 2.2.4 Arnaldo VASCONCELOS. 2.2.5 Opinião da autora. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


RESUMO

            A doutrina de Hans KELSEN acerca da norma jurídica, em sua dúplice estrutura formada por norma primária e norma secundária, considera a sanção, constituída de uma vantagem ou desvantagem, como elemento caracterizador dessa norma. Sua concepção originária assevera que norma primária é a que prescreve uma sanção e norma secundária aquela que determina a conduta, vislumbrando-se, no Capítulo 35 da Teoria Geral das Normas, um esboço de reformulação desse pensamento.


1 INTRODUÇÃO

            A teoria da norma jurídica, segundo Hans KELSEN, fundamenta-se na distinção entre o sein (ser) e o sollen (dever), ou, seja, na existência do mundo físico, sujeito às leis da causalidade, e do mundo social, sujeito às leis do espírito, as quais, sendo leis de fins, podem ser traduzidas em normas.

            A diferença crucial entre a lei natural e a norma consiste em que a primeira limita-se a declarar as relações existentes, não produzindo, portanto, nenhum efeito; a segunda, ao contrário, destina-se a modificar o estado das coisas, valendo pelos efeitos que produz e enquanto produz.

            Partindo dessa premissa, infere-se que norma diz respeito a atos futuros, como salienta Vicente RÁO, inspirado em KELSEN: "como as normas, consideradas do ponto de vista do fim e do efeito, tendem a dar nascimento a uma certa atitude e como os sujeitos aos quais se dirigem devem optar entre cumpri-las ou desrespeitá-las, segue-se que as normas devem anteceder os atos que formam o seu conteúdo, ou seja, os atos que lhes servem como fins e que resultam da opção realizada pelos sujeitos"1.

            Todavia, essa concepção não deve levar o intérprete ao equívoco de confundir a validade de uma norma e a eficácia da idéia de uma norma, consoante afirma KELSEN: "A idéia de uma norma como fato psíquico pode tornar-se eficaz apenas no futuro, no sentido de que essa idéia deve preceder temporalmente a conduta em conformidade com a norma, já que a causa deve preceder temporalmente o efeito. Mas a norma também pode se referir à conduta passada. O passado e o futuro são relativos a um determinado momento no tempo"2.

            A discussão acerca da validade da norma jurídica traduz um importante questionamento: a pertinência da norma ao ordenamento jurídico. Como leciona Norberto BOBBIO, saber se uma norma jurídica é válida, ou não, não é uma questão ociosa. Se uma norma jurídica é válida significa que é obrigatório conformar-se a ela. E ser obrigatório conformar-se a ela significa geralmente que, se não nos conformarmos, o juiz será por sua vez obrigado a intervir, atribuindo esta ou aquela sanção"3.

            A problemática da conceituação do que seja norma jurídica remete à análise de várias questões do Direito, como validade, eficácia, conteúdo e estrutura da norma. Tal estudo detalhado e profundo, porém, refoge ao âmbito deste trabalho, cujo objetivo específico é examinar os seguintes aspectos:

            a) a sanção como fundamento da norma;

            b) concepção kelseniana de norma primária e norma secundária; e

            c) perquirir se KELSEN reformulou essa concepção.

            O presente estudo tem a relevância de trazer a lume questões cruciais do Direito pois, definir a concepção de norma jurídica, em cotejo com a sanção - considerada como seu elemento essencial - a partir das idéias de KELSEN, constitui o ponto de partida para o entendimento de várias idéias pertinentes a tal norma.


2 A NORMA JURÍDICA EM KELSEN

            2.1 Concepção kelseniana de norma (sanção)

            Como dito, o conceito de norma jurídica envolve a análise de vários temas conexos. Todavia, o ponto central dessa questão repousa em um elemento específico, qual seja, o fundamento de validade da norma jurídica.

            Para KELSEN a validade traduz o modo de existência peculiar das normas. Em outras palavras, a norma só é válida se emanada de um ato legítimo de autoridade, não tendo sido por ela revogada. Tal ato representa a condição para sua validade, mas não o seu fundamento de existência. O fundamento de uma norma, segundo o criador do purismo jurídico, está contido em outra norma, a qual ele denomina norma hipotética fundamental.

            A validade, portanto, nada mais é que o nome da relação estabelecida entre as normas do respectivo sistema. Por validade se designa uma propriedade das relações entre normas, que independe de seu usuário ou da sua ligação a um comportamento que a norma exige. Nessa perspectiva, é possível inferir-se que a validade da norma não depende de sua aplicação, nem da existência de seu editor.

            A norma fundamental de KELSEN possui um caráter hipotético: suposta sua validade, resulta igualmente válido o sistema jurídico que sobre ela se embasa. Neste pressuposto se radica a chamada soberania da ordem jurídica estatal, expressa através da unidade e da validade exclusiva do sistema escalonado de normas com o qual o próprio Estado se confunde. Esta, porém, é uma questão que conduz a um impasse em sua teoria, pois se a norma fundamental é um pressuposto, não há lugar para o problema de seu fundamento, como observa Miguel REALE4.

            As teorias positivistas sustentam a separação entre moral e Direito, não permitindo que se inclua no conceito de Direito nenhum elemento moral. Assim, para estabelecer o conceito positivista de Direito, são necessários apenas dois elementos: a legalidade conforme o ordenamento e a eficácia social. KELSEN define Direito como uma ordem normativa coercitiva, cuja validade se baseia em uma norma fundamental pressuposta.

            Na primeira edição da Teoria Pura do Direito, KELSEN expõe seus argumentos com base em uma exigência metódica fundamental: a que deslinda, a partir de um enfoque logico-transcendental, o âmbito da natureza do âmbito do Direito. Ainda que a relação entre dois fenômenos se expresse naquela por meio da lei natural, dita relação é expressa no âmbito do Direito por meio da norma jurídica. Assim como com o auxílio da lei natural um efeito é atribuído a uma causa, com o auxílio da norma jurídica uma conseqüência de Direito é imputada à sua condição.

            Sustenta KELSEN que a diferença essencial existente entre as ciências causais e as ciências normativas radica, em última instância, na distinção dos princípios peculiares de conhecimento que estas aplicam respectivamente, quais sejam: a) o princípio da causalidade, cuja diretriz permite estabelecer a relação de causa e efeito entre os fatos da natureza; b) o princípio da imputação, cujo objeto e finalidade é descrever as normas e as relações que elas estabelecem. O que os torna essencialmente diferente é o fato de que o princípio da imputação conduz a um fim, enquanto o da causalidade, não5.

            As ciências causais buscam explicar os fatos que integram o objeto de seu estudo, ou seja, os acontecimentos pertencentes à ordem da natureza, utilizando-se do princípio da causalidade. As ciências normativas, entretanto, cujo objeto e finalidade é, segundo KELSEN, descrever as normas e relações sociais que elas estabelecem, aplicam o princípio da imputação, que lhes permite relacionar os fatos humanos normativamente regulados de acordo com um mecanismo análogo, mas criteriologicamente distinto do da causalidade6.

            Tais princípios se estruturam logicamente sob a forma de juízos hipotéticos que permitem estabelecer a relação entre uma condição e uma conseqüência, segundo o esquema relacional: "Se A, então B". Contudo, a função gnoseológica desta relação não é a mesma nos dois casos. De acordo com a lei natural, "Se A é, então B é" (v. g., se um corpo metálico é aquecido, produz-se dilatação). No entanto, o juízo (regra de Direito) formulado pelo jurista para descrever seu objeto constituído pelas normas jurídicas criadas dentro do marco de uma ordem jurídica, imputando uma conseqüência normativamente estabelecida a uma condição, expressa: "Se A é, então B deve ser" (v. g., se um indivíduo comete um roubo, deve ser condenado à pena de prisão)7.

            Na concepção de KELSEN, as normas jurídicas prescrevem, necessária e fundamentalmente, deveres jurídicos, ainda que, por derivação, determinem, também, faculdades. Contudo, os deveres da maioria dos indivíduos não são expressos por normas, embora estejam efetivamente determinados por elas. Assim, o que se pode deduzir da formulação proposta por KELSEN ("Se A é, deve ser B") é que a norma primária considera apenas duas situações fáticas relacionadas como conduta regulada, a saber: um fato antecedente, que é a ilicitude (A), e um fato conseqüente, que é o ato coativo ou sanção imputável a essa ilicitude (B)8.

            Ao discorrer sobre a ordem social, KELSEN ressalta a possibilidade de prescrição de uma conduta, independente da vinculação às conseqüências do dever de sua observância, ou não. Ressalta, ainda, que é possível tal prescrição concomitante à vinculação a uma vantagem, no caso de cumprimento, ou desvantagem, na hipótese diversa, isto é, de conduta contrária à preconizada. Conforme o princípio retributivo, na primeira situação tem-se um "prêmio", e, na última, um "castigo" ou pena, sendo que, ambos, constituem a sanção. A ordem jurídica, como ordem social que é, prescreve "uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem"9.

            A ordem jurídica expressa um "dever ser", e, assim, uma vez constatada determinada conduta, seguir-se-á determinada sanção. Então, entende-se que a conduta que condiciona a sanção é que é a proibida, ao passo que a conduta oposta é a correta, a prescrita10.

            Nesse contexto, é razoável deduzir que a sanção está contida na concepção kelseniana de norma e é desta inseparável, tendo em vista ser o Direito aqui concebido como uma ordem coativa, distinguindo-se das demais pela possibilidade de aplicação pela força, ou seja, contra a vontade do indivíduo.

            2.1.1 Norma primária As normas primárias são aquelas que estipulam sanções diante de uma possível ilicitude, e as secundárias são as que prescrevem a conduta lícita, sendo consideradas somente como conceitos auxiliares do conhecimento jurídico11.

            Maria Helena DINIZ destaca que Hans KELSEN, na primeira edição da Teoria Pura do Direito, define a norma como um duplo juízo hipotético, distinguindo entre norma primária e norma secundária, com ênfase para a sanção, considerada como elemento central e específico da norma. Assim, a norma primária é a que impõe uma sanção para a conduta ilícita e secundária aquela que, por derivação, explicita o conteúdo da primeira. Todavia, para o mestre da Escola de Viena, estas normas não possuem a mesma gradação hierárquica, e somente a norma primária detém autêntico valor ontológico, sendo esta a verdadeira norma12.

            Por outro lado, importante ressaltar a contribuição de L. H. HART, em O Conceito de Direito, ao desenvolver teoria que também distingue norma primária de norma secundária, porém, partindo de outra premissa: a noção de regra como obrigação.

            A propósito, César RODRÍGUEZ13 anota que, "para entender la noción de obligación es indispensable la noción de regla: el que una persona tenga una obligación jurídica qiere decir que existe una regla que prevê la obligación y que el caso de esa persona se encuentra dentro del campo de aplicación de la regla".

            A partir dessa noção, ressalta RODRÍGUEZ que HART estabeleceu duas distinções fundamentais: a) entre regras primárias e secundárias e; b) entre os pontos de vista interno e externo diante das regras. As regras primárias impõem deveres positivos (ações) ou negativos (omissões) aos indivíduos. Nesse caso, toma por empréstimo um exemplo claro, tal a obrigação dos pais de sustentar os filhos. As regras secundárias, por sua vez, outorgam poderes aos particulares ou às autoridades públicas para criar, modificar, extinguir ou determinar os efeitos das regras do tipo primárias. Tal distinção entre ambas é crucial, tendo em vista que essa nova concepção de regras primárias e secundárias constitui o fundamento de sua doutrina acerca da regra de reconhecimento14.

            2.1.2 Norma secundária

            Entende KELSEN que a norma secundária destina-se apenas a enunciar de forma explícita o que foi estabelecido implicitamente pela norma primária. Por essa razão, diz-se que tal norma nada mais é que mero expediente técnico para fazer atuar a primária - como salienta Maria Helena DINIZ15.

            Como foi salientado linhas atrás, a norma secundária refere-se à conduta lícita e sua existência só se justifica em razão da norma primária, sendo certo que elas não se colocam no mesmo nível hierárquico.

            O entendimento de HART acerca do que seja norma secundária difere por completo da visão de KELSEN, e tal pode ser facilmente verificado, uma vez que ele cria três tipos de norma secundária: a) regras de mudança, b) regras de adjudicação e c) regras de reconhecimento. As regras secundárias, como dito alhures, apenas outorgam poderes aos particulares ou às autoridades públicas para criar, modificar, extinguir ou determinar os efeitos das regras do tipo primária. Tomam-se como exemplos a obrigação do devedor de pagar uma dívida no prazo estipulado, as normas constitucionais sobre a elaboração das leis e as normas processuais que regulam o exercício da função jurisdicional. Observa HART que, em ambos os casos, podem ser extraídas regras primárias das regras secundárias, como acontece com as leis e as sentenças judiciais. Tais regras foram denominadas de "regras de mudança" porque conferem faculdades aos particulares e aos legisladores para criar regras primárias. Continuando seu raciocínio, HART fala, ainda, em reglas de adjucación, referindo-se às normas que dispõem sobre o exercício da função jurisdicional. Por último, ele explicita o terceiro tipo de regra secundária, a qual denomina de regla de reconocimiento16, a qual tem importância particular para a teoria de HART, posto que, como em outras teorias positivistas, preocupa-se em identificar o direito vigente em uma sociedade a partir de um parâmetro independente da moral.

            2.2 KELSEN corrigiu KELSEN?

            A ordem jurídica, para KELSEN, como visto, prescreve um dever ser, o qual, uma vez contrariado, atrai a incidência de determinada sanção compreendida por um prêmio (representado por uma vantagem) ou por um castigo (desvantagem), uma pena - como é mais usual.

            A norma jurídica por ele designada "primária" contém a sanção, ao passo que a norma denominada "secundária" estabelece a conduta devida17.

            Retomando esse assunto, isto é, norma primária e norma secundária, no Capítulo 35 da Teoria Geral das Normas18, KELSEN, após enfatizar a distinção entre "norma que prescreve uma conduta determinada" e "norma que prescreve uma sanção", retifica a qualificação que havia proposto, de sorte a denominar "norma primária" a que estabelece a conduta, e "norma secundária" a prescrevedora da sanção, mesmo porque a primeira pode existir desatrelada da segunda.

            Resta examinar, nesse contexto, se KELSEN revisou seu pensamento na obra editada postumante - Teoria Geral das Normas, mormente no seu Capítulo 35.

            E, para tanto, não se pode deixar de recorrer à opinião dos estudiosos do tema, adiante destacados.

            2.2.1 José Florentino DUARTE

            As palavras do tradutor brasileiro da Teoria Geral das Normas, José Florentino DUARTE ("Kelsen corrige a si mesmo") bastam para expressar seu entendimento.

            Depois de observar que o Tratado representa "obra-revelação", na qual KELSEN, entre outros aspectos, cuidou de retificar e ratificar o "que elaborou ao longo da vida, dizendo porquê assumia ou repelia o que manifestara", DUARTE ressalta o novo conceito kelseniano de norma fundamental, que "passou a ser vista como uma norma fictícia, meramente pensada, produto de um mero ato de vontade também fictício". Mais adiante, o tradutor reafirma a opinião, segundo a qual, KELSEN retificou sua posição, valendo-se das palavras do próprio autor: "Admite-se que a distinção de uma norma que descreve uma certa conduta e de uma norma que prescreve uma sanção para o fato de violação da primeira é essencial para o Direito, então precisa-se qualificar a primeira como norma primária e a segunda, como norma secundária - e não ao contrário, como foi por mim anteriormente formulado". E arremata salientando que, assim, quase sempre, o preceito figurará somente na norma secundária, "na qual já é implícita a norma primária"19.

            2.2.2 Marcos Bernardes de MELLO

            O mestre alagoano pensa diferente do tradutor brasileiro, ressaltando, de logo, a pequena diferença detectada entre a versão inglesa da Teoria Geral das Normas, feita por Michael HARTNEY, e a portuguesa de José Florentino DUARTE: "na edição brasileira está escrito ... e não ao contrário, como foi por mim anteriormente formulado", enquanto na tradução inglesa se faz menção a capítulo anterior)"20.

            Embora não descarte a possibilidade de se entender que KELSEN reformulou sua idéia primitiva, para MELLO a eventual mudança deve ser vista com reservas, pelas seguintes razões: a) tal assertiva contraria o que está dito no Capítulo 15 da Teoria Geral das Normas, do qual constam os referidos os conceitos originários de norma primária e norma secundária; b) do teor do mesmo Capítulo 35, admite-se, razoavelmente, que KELSEN tenha apenas esboçado uma revisão de seu pensamento, porém, ainda de forma incipiente, sem convicção, considerando-se a confusão constante do texto entre norma e sua formulação legislativa21.

            2.2.3 Maria Helena DINIZ

            Afirma Maria Helena DINIZ que KELSEN, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, abandonou a distinção entre norma primária e norma secundária desde o momento em que passou a referir-se a uma outra categoria de normas: normas autônomas e não autônomas. Assevera, ainda, que ele reduziu, então, todas as normas a um só tipo: imperativo sancionador, que prescreve: "deve-se punir tal comportamento, se ele ocorrer, com determinada pena". De acordo com esse raciocínio, a norma jurídica não proíbe, v. g., o homicídio; prescreve apenas que o órgão competente deve aplicar sanções aos que matarem. Por conseguinte, não é o fato de alguém ter tirado a vida de outrem que caracteriza o pressuposto estatuído pela ordem jurídica, mas sim o fato de o órgão competente, através de um processo previsto pelo ordenamento, verificar que um indivíduo praticou um homicídio22.

            Ressalta, por fim, que "a norma de direito é, para KELSEN, comando dirigido ao órgão para que aplique a sanção. O autor fala em norma não autônoma que não estatui sanção, mas salienta que só vale quando se liga a uma autônoma, estatuidora de sanção"23.

            2.2.4 Arnaldo VASCONCELOS

            Segundo Arnaldo VASCONCELOS, KELSEN reformulou seu pensamento a partir do instante em que firmou a "distinção entre norma jurídica e regra de Direito, tematizada pela primeira vez em 1945, em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, e incluída, desde então, nas subsequentes edições da Teoria Pura do Direito". Acrescenta que KELSEN passou a "acolher a idéia imperativista ao lado da teoria do juízo hipotético", na seguinte passagem de Contribuciones a la Teoria Pura del Derecho: "En consecuencia no puede existir la más duda de que de acuerdo com la teoría que expuse en mi General Theory of Law and State las normas jurídicas no son juicios hipotéticos. En mi Théorie Pure du Droit distinguí la norme juridique (norma jurídica) y la règle du Droit (regra de Derecho) y afirmé que la regla de derecho (formulada por la ciencia del Derecho) no es un imperativo sino un juicio hipotético... Sin embargo, la norma jurídica puede muy bien presentarse bajo la forma de un imperativo... Inclusive el llamado juicio de un tribunal no es un juicio lógico del término. Es una norma jurídica que prescribe cierta conduta a los individuos a quienes se dirige". "Em mi Reine Rechtslehre afirmé: Las normas jurídicas no son juicios, es decir, enunciados acerca de um objeto de conhecimento. Las normas jurídicas son, por su sentido, prescripciones, y, como tales, órdenes, pero también son permisiones y autorizaciones"24.

            HELSEN tentou, na verdade, compatibilizar seu primeiro pensamento, concebendo "a fórmula do imperativismo despsicologizado", de sorte que a conduta do homem é sancionada, estatuída ou prescrita por uma regra independente de vontade psíquica"25.

            2.2.5 Opinião da autora

            A mudança de pensamento de KELSEN é voz corrente entre os doutrinadores, porém, não é pacífica. Aliás, como a Teoria Geral das Normas somente foi editada após sua morte, torna-se extremamente difícil estabelecer um ponto de vista conclusivo, definitivo, sobre a matéria, vez que qualquer opinião que se formule padecerá da fragilidade de tentar estudar uma obra inacabada.

            Entretanto, por tudo quanto se viu, o que se pode inferir com um grau maior de segurança é que, KELSEN, provavelmente movido por pressões e resistências opostas à sua tese, tentou revisá-la, sem, contudo, abandonar por completo antigos conceitos.

            Com efeito, é inegável que KELSEN, no Capítulo 15 da Teoria Geral das Normas, denominou norma primária a que prescreve a sanção, e norma secundária aquela que prescreve determinada conduta. No Capítulo 35 da mesma obra, retificou essa qualificação, seja no sentido de rever sua teoria sobre o assunto, como se infere da tradução brasileira26, seja para corrigir apenas "capítulo anterior" (deve ser o Capítulo 15), como salientado por MELLO, a partir da tradução inglesa27.

            No referido Capítulo 35 (final do segundo parágrafo)28, o mestre vienense reforça que a "primeira" ou "norma primária" é a "que impõe uma conduta determinada", e a "segunda", ou "norma secundária", "a que estabelece a sanção", salientando que aquela, geralmente, não aparece. Aliás, comporta, aqui, evidenciar, para explicar a ênfase dada por KELSEN à sanção e ao ilícito, a influência recebida do Direito Penal, onde se desenvolveu, inicialmente, a concepção normativista do Direito29.

            Prosseguindo a análise do mencionado Capítulo 35, verifica-se que KELSEN, ao justificar a importância da sanção do ato de coação no Direito, considerado como "ordem de coação", como bem vislumbrou MELLO30, retoma a concepção original ao afirmar que "a norma que estatui um ato de coação como sanção aparece como a norma primária e a nela implicada que, de modo algum é expressamente formulada, e não precisa ser expressamente formulada, aparece como norma secundária" 31.

            Tem-se, assim, que KELSEN permaneceu "sancionista", quer dizer, dando à sanção o status de elemento essencial da norma jurídica, a ponto de afirmar que "o Direito impõe uma conduta determinada somente por ligar à conduta contrária um ato de coação como sanção, de modo que uma certa conduta somente depois de juridicamente `imposta` pode ser considerada como conteúdo de um `dever jurídico`, quando o oposto é a condição à qual uma norma liga uma sanção" 32. No particular, então, KELSEN permaneceu fiel às suas convicções.

            No tocante à qualificação de norma primária e norma secundária, há-de se concordar com MELLO, a menos que se queira subestimar o gênio de KELSEN e admitir contradições na sua teoria. O autor da Teoria Pura do Direito e da Teoria Geral das Normas não mudou, inteiramente, de opinião, de convicção, conservando traços da idéia original que considera norma primária e secundária - a primeira responsável pela prescrição da sanção, e a última pela prescrição de determinada conduta. Admite-se, no máximo, uma tentativa de KELSEN de compatibilizar seu pensamento com as críticas sofridas ao longo da vida, sem, no entanto, estender-se bastante, fundamentar-se à saciedade, enfim, convencer, inequivocamente, o leitor, no sentido de que, em todas as situações enfocadas, no "novo" pensar kelseniano, a norma primária prescreveria a conduta, ao passo que a secundária prescreveria a sanção.

            Não é razoável, de mais a mais, que se receba, sem ressalvas, um texto 33 publicado depois da morte de KELSEN - produto dos últimos anos de sua vida, inacabado, oriundo de escritos esparsos, sem correção ou revisão do próprio autor - como reformulação das fortes convicções em que se sustenta a conhecida teoria do mestre vienense.

            Admite-se, nesse contexto, uma tentativa, um esboço de retificação do pensamento, mas não, propriamente, sua reformulação completa.


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A norma jurídica, para KELSEN, é, sobretudo, uma norma que impõe sanção para uma conduta ilícita. O substrato essencial da norma, pode-se dizer, em sua concepção, repousa na sanção. Todavia, é importante que a sanção seja atribuída ao indivíduo dentro de uma certa medida e proporção, e, quem irá fixar tais parâmetros será o ordenamento jurídico de onde provém a norma. Interessa lembrar que a imposição de uma sanção pode exigir o uso da força e o que o ordenamento irá regular será, precisamente, as condições e o momento em que isso ocorrerá. Neste contexto, a idéia de ordenamento jurídico remete à de poder coercitivo, inerente ao Estado, mesmo porque KELSEN identifica o Direito com o Estado.

            A obra de KELSEN revela seu pensamento sancionista imodificável: a norma primária e a norma secundária estruturam o todo denominado norma jurídica, onde a primeira estabelece a sanção, e, a segunda, a conduta determinada.

            Verifica-se, porém, em trechos do Capítulo 35 da obra póstuma Teoria Geral das Normas, uma tentativa de inversão desse entendimento, de sorte a qualificar a norma prescrevedora da sanção como secundária, e, como primária, a que estabelece a conduta. Esse esboço, porém, pelas condições em que foi feito, não pode ser tomado como abandono das convicções kelsenianas primitivas, nada obstante expressivas opiniões em sentido contrário.


REFERÊNCIAS

            BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, 5ª ed., Brasília: UNB, 1982.

            DINIZ, Maria Helena. Conceito de Norma Jurídica como Problema de Essência, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996.

            HART, H. L. El Concepto de Derecho, 2ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995.

            KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas, tradução de José Florentino Duarte, Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1986.

            ______. Teoria Geral do Direito e do Estado, tradução de Luís Carlos Borges, 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1992.

            ______. Teoria Pura do Direito, tradução de João Baptista Machado, 6ª ed., Coimbra: Armênio Amado, 1984.

            MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico (Plano da Existência), 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

            RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

            REALE, Miguel. Fundamentos do Direito, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

            RODRÍGUEZ, César. La Decisión Judicial - El Debate Hart-Dworkin, Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1997.

            SMITH, Juan Carlos. El Desarrollo de las Concepciones Jusfilosoficas, 2ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998.

            VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993.


Notas

            1 O Direito e a Vida dos Direitos, p. 558.

            2 Teoria Geral do Direito e do Estado, p.47.

            3 Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 61.

            4 Fundamentos do Direito, p. 167.

            5 SMITH, Juan Carlos. El Desarrollo de las Concepciones Jusfilosoficas, p.218.

            6 SMITH, J. C. Idem, p. 219.

            7 SMITH, J. C. El Desarrollo..., p. 219.

            8 SMITH, J. C. Idem, ibidem.

            9 Teoria Pura do Direito, p. 49.

            10 KELSEN, H. Teoria Pura do Direito, p. 50.

            11 DINIZ, Maria Helena. Conceito de Norma Jurídica como Problema de Essência, p. 76.

            12 DINIZ, M. H. Idem, ibidem.

            13 La Decisión - El Debate Hart-Dworkin, p. 25.

            14 RODRÍGUEZ, C. La Decisión..., p. 25.

            15 Conceito de Norma..., p. 76.

            16 RODRÍGUEZ, C. La Decisión..., p. 26.

            17 KELSEN, H. Teoria Geral das Normas, Capítulo 15, p. 68 e seguintes.

            18 v. p. 181 e seguintes.

            19 DUARTE, J. F. Palavras do Tradutor in Teoria Geral das Normas, p. IX/X.

            20 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico (Plano da Existência), nota 35-A, p. 30.

            21 MELLO, M. B. de. Teoria do Fato Jurídico..., p. 30.

            22 DINIZ, M. H. Conceito de Norma..., p. 76.

            23 DINIZ, M. H. Idem, p. 77.

            24 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica, p. 82/83.

            25 VASCONCELOS, A. Idem, p. 83.

            26 Teoria Geral da Normas, traduzido por José Florentino DUARTE, p.181 "... como o foi por mim anteriormente formulado...".

            27 General Theory of Normas, edição inglesa traduzida por Michael HARTNEY, "... capítulo anterior...", apud MELLO, M. B. Teoria do Fato Jurídico..., p. 30.

            28 KELSEN, H. Teoria Geral das Normas, p. 181.

            29 VASCONCELOS, A. Teoria da Norma Jurídica, p. 81/82.

            30 Teoria do Fato Jurídico..., p. 30.

            31 KELSEN, H. Teoria Geral das Normas, p. 182.

            32 KELSEN, H. Idem, ibidem.

            33 Refere-se à obra Teoria Geral das Normas.


Autor

  • Evanna Soares

    Procuradora Regional do Ministério Público do Trabalho na 7ª Região (CE). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA, Buenos Aires). Mestra em Direito Constitucional (Unifor, Fortaleza). Pós-graduada (Especialização) em Direito Processual (UFPI, Teresina).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Evanna. A norma jurídica em Kelsen. Concepção de sanção na norma primária e na norma secundária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3269. Acesso em: 28 mar. 2024.