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Imposto único: reflexões

Imposto único: reflexões

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Propõe-se uma reflexão acerca do tão falado “imposto único”. Não se pretende analisar os prós e contras de sua instituição, mas sim demonstrar por que tal pretensão é juridicamente impossível.

A recente notícia de que a Câmara dos Deputados estava analisando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333/13, do deputado Mendonça Prado, que propõe a revogação do Sistema Tributário Nacional e a instituição do imposto único sobre todas as transações financeiras realizadas no País, somada às promessas eleitorais, reabriu espaço para a discussão acerca da viabilidade da adoção de um imposto único no Brasil. Logo, o presente artigo propõe uma reflexão acerca do tão falado “imposto único”. Não se pretende aqui analisar os prós e contras de sua instituição, mas sim demonstrar por que tal pretensão é juridicamente impossível de vir a se tornar realidade. Para tanto, faremos uma exposição do conceito de imposto único, seguida de um breve histórico, passando-se à análise das características do Estado Federal e das cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988, quando então atingiremos nosso objetivo: a demonstração de inviabilidade de um imposto único no País.

PALAVRAS-CHAVE: Imposto único. Estado Federal. Autonomia fiscal. Cláusulas pétreas.


1. Introdução

Em fevereiro de 2014, noticiou-se que a Câmara dos Deputados estava analisando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333/13, do deputado Mendonça Prado, que propõe a revogação do Sistema Tributário Nacional e a instituição do imposto único sobre todas as transações financeiras realizadas no País. Tal notícia, somada aos discursos “eleitoreiros”, reabriu espaço para discussão acerca da viabilidade da adoção do imposto único. De fato, com a proximidade das eleições, o tema encontrava o terreno fértil das promessas eleitorais.

Nosso intuito aqui não é analisar os prós e os contras da instituição de tal imposto, mas sim demonstrar que, juridicamente, tal pretensão é impossível de se concretizar.

Disseminou-se entre os brasileiros o mito de que “o Brasil tem a maior carga tributária do mundo”. Tal afirmação é falaciosa. Não obstante, é bem verdade que temos “a carga tributária mais pesada entre os países emergentes e mais alta até que Japão e Estados Unidos”. E essa já pesada carga tributária vem crescendo a cada ano.

Há quase 20 anos fala-se em reforma tributária que, apesar de necessária, parece que está longe de ocorrer. Nesse cenário, surgiu a proposta do imposto único, que seria, nas palavras do professor Marcos Cintra, seu idealizador, “um caminho para a reforma tributária”.


2. O que é o imposto único?

De fato, o complexo Sistema Tributário Brasileiro  é composto por 92 tributos  (abrangendo tal número os impostos, as contribuições, as taxas e as contribuições de melhoria).

Visando encontrar uma solução para a ineficaz, injusta e irreal questão tributária brasileira, o professor Marcos Cintra, da Fundação Getúlio Vargas, concebeu a ideia do imposto único. Vejamos como funcionaria tal sugestão, conforme explicação extraída do próprio sítio na internet do professor:

A proposta do Imposto Único prevê a substituição de todos os tributos de natureza arrecadatória por apenas um. Haveria uma alíquota incidente sobre cada parte de uma transação bancária (débito e crédito). Na proposta original, a alíquota estimada era de 1% e ela seria suficiente para arrecadar cerca de 23% do PIB, valor que equivale à carga tributária média histórica no Brasil anteriormente à explosão fiscalista iniciada na década de 90. Hoje, com carga tributária de 35% do PIB, a alíquota necessária seria de 2,81% em cada parte de uma transação nas conta-correntes bancárias. Esta alíquota substituiria tributos que representam 27% do PIB. 

Continua o professor, assim ponderando:

O imposto único torna-se, a cada momento, a grande e a melhor alternativa para a reforma tributária brasileira. Além de ser o único sistema que garante o fim da sonegação e a dramática redução do "custo Brasil" para governo e contribuintes, seu projeto vem sendo testado empiricamente, comprovando quase tudo o que seus defensores haviam tenazmente pregado no passado.

A ideia do imposto único não é de hoje. Conforme explica João Damasceno Borges de Miranda ,

A adoção de um imposto único, da simplificação da tributação e de sua arrecadação é tema mui antigo, desde época imemorial. Há relatos quanto aos Reis Henrique III e Luís XV, de fisiocratas: Vaudan, Quesnay, Turgot, Mirabeau e Condocert. No Brasil, desde o Império com o relato de Tavares Bastos; outra proposta em 1915 por Dr. Souza Reis ao Ministro Dr. Sabino Barroso. Viveiros de Castro, então presidente do TCU e autor de Tratado dos Impostos, deplora e condena a adoção de tributação pseudo-única [sic].  Contudo, não se tem notícia da instituição de tal imposto em nenhum país do mundo.


3. O Estado Federal

A implementação do imposto único mostra-se de todo inviável, porquanto esbarra em preceito de ordem constitucional.

De fato, a República Federativa do Brasil, como o próprio nome diz, adotou a Federação como forma de Estado.

Conforme explica o professor Dalmo de Abreu Dallari: “Nas classificações tradicionais, os Estados são considerados unitários quando têm um poder central que é a cúpula e o núcleo do poder político. E são federais quando conjugam vários centros de poder político autônomo” (1998, p. 91).

 A forma de Estado Federal surgiu com a Revolução norte-americana do século XVIII, que resultou no aparecimento dos Estados Unidos da América do Norte. Dentre as suas características , estão: a descentralização política, que dispõe que a própria Constituição prevê núcleos de poder político, concedendo autonomia para os referidos entes; a repartição de competência, que garante a autonomia entre os entes federativos e, assim, o equilíbrio da federação; e a soberania do Estado federal, que significa que a partir do momento em que os Estados ingressam na Federação perdem soberania, passando a ser autônomos.

O Brasil é uma Federação. Participam de sua organização político-administrativa a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 18). A Federação, que resulta de um pacto, pode ser vista como critério de distribuição de competências públicas entre as unidades políticas autônomas. (FACHIN, p. 363).

A Constituição Federal de 1988 erigiu à condição de cláusula pétrea a forma federativa de Estado , em seu artigo 60, parágrafo 4.º, inciso I.

As cláusulas pétreas são um núcleo que reúne determinados assuntos que não podem ser suprimidos do texto constitucional. Estão elencadas no artigo 60, parágrafo 4.º, incisos I, II, III e IV, da CF/88. Vejamos:

Art. 60. (...)§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:I - a forma federativa de Estado;II - o voto direto, secreto, universal e periódico;III - a separação dos Poderes;IV - os direitos e garantias individuais.(...)

Como se vê, dentre elas está a forma federativa de Estado. Assim, está proibida Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sequer tendente a aboli-la.


4. A impossibilidade jurídica da instituição do imposto único

Pois bem. Já foi dito que o Brasil é uma federação e, portanto, sua principal característica é a autonomia financeira, administrativa e legislativa de seus entes.

Assim, tratando-se a forma federativa de cláusula pétrea, eventual adoção de um imposto único violaria o pacto federativo, porquanto a arrecadação ficaria a cargo da União que, posteriormente, repassaria o numerário para os estados, os municípios e Distrito Federal, repartindo, assim, “o bolo tributário”. É justamente isso que não pode ocorrer.

Neste aspecto, cumpre destacar os ensinamentos do professor Dallari:

No Estado Federal as atribuições da União e as das unidades federadas são fixadas na Constituição, por meio de uma distribuição de competências. Não existe hierarquia na organização federal, porque a cada esfera de poder corresponde uma competência determinada. (...) A cada esfera de competências se atribui renda própria. (...) Como a experiência demonstrou, e é óbvio isso, dar-se competência é o mesmo que atribuir encargos. E indispensável, portanto, que se assegure a quem tem os encargos uma fonte de rendas suficientes, pois do contrário a autonomia política se torna apenas nominal, pois não pode agir, e agir com independência, quem não dispõe de recursos próprios. (1998, p. 93).

Ou seja, cada entidade federativa possui a sua autonomia. A mais importante delas é a autonomia financeira, que é justamente a decorrente dos impostos. Cada entidade federativa tem de ter os tributos que ela própria institui e arrecada. É a forma pela qual cada ente obtém a renda utilizada em seus projetos, sejam regionais ou locais.Instituir um imposto único faria com que os estados e os municípios dependessem de verbas federais, podendo delinear um quadro de disputa entre governos de partidos opositores, dificultando, assim, o repasse de verbas para projetos, por exemplo (e, aqui, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência). Logo, a autonomia política tornar-se-ia “apenas nominal”, nas palavras do ilustre professor Dallari, acima transcritas.


5. Conclusão

Como se vê, juridicamente, o imposto único não pode ser instituído no Brasil, pois a sua adoção alteraria a forma federativa de Estado, ferindo de morte uma cláusula pétrea da Carta Magna. Jamais poderíamos ter um imposto único, pois ele retiraria a autonomia financeira dos estados e dos municípios. Quebrando a autonomia, consequentemente, quebra-se a Federação (pois a sua principal característica é a autonomia entre seus membros) e infringe-se uma cláusula pétrea.


REFERÊNCIAS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Osmar Donizeti da Silva Jr.; BALBINO, Luciana Faria Sarmento. Imposto único: reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4314, 24 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32770. Acesso em: 25 abr. 2024.