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O contrato de previdência complementar como ato jurídico perfeito

O contrato de previdência complementar como ato jurídico perfeito

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A proteção constitucional ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e a coisa julgada, constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República de 1988, constitui verdadeiro imperativo de justiça, impedindo que lei posterior venha alterar situações jurídicas já definitivamente constituídas, em prol da certeza e segurança jurídicas e da efetiva proteção dos direitos fundamentais, tendo em vista, ainda, que o referido dispositivo constitucional constitui cláusula pétrea, insuscetível de ser suprimido ou modificado, inclusive por emenda constitucional, por força do art. 60, § 4º, da atual Carta Magna.

O direito adquirido é comumente conceituado como direito definitivamente incorporado ao patrimônio jurídico do titular, segundo as leis vigentes ao tempo em que ocorreu a efetiva aquisição do direito. O ato jurídico perfeito é entendido como o ato jurídico já consumado, ou seja, perfeito e acabado e em conformidade com as normas legais então vigentes, como, por exemplo, no caso da celebração de um contrato em conformidade com o ordenamento jurídico vigente no momento da referida celebração. Já a coisa julgada é definida como a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso no âmbito do Poder Judiciário, ou seja, insuscetível de qualquer modificação posterior, conforme dispõe o art. 467 do Código de Processo Civil. Vale ressaltar que de atos ilícitos não se originam direitos, em conformidade com o disposto na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

O direito adquirido não se confunde com o ato jurídico perfeito, tendo em vista que um determinado direito pode ainda não ter se incorporado definitivamente no patrimônio do titular, por estar subordinado a uma condição suspensiva, por exemplo, mas estar materializado em um ato jurídico perfeito, merecedor da proteção constitucional do art.5º, XXXVI, da Constituição da República de 1988, e, como tal, insuscetível de qualquer modificação legislativa, impondo-se verdadeiro limite ao poder legiferante do Estado em benefício da segurança jurídica, sem a qual ter-se-ia verdadeiro caos jurídico em detrimento da sociedade politicamente organizada, com as mais nefastas conseqüências. Para evitar tais conseqüências, o art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988 consagrou a doutrina da irretroatividade das leis, dando-lhe embasamento constitucional, diferentemente de outros sistemas normativos, protegendo de forma mais efetiva a segurança jurídica.

Neste sentido e para corroborar os argumentos expendidos, passamos a transcrever as lições do Professor Caio Mário da Silva Pereira1 sobre o princípio da irretroatividade das leis, verbis:

"Outros sistemas de direito, e são a maioria, tomam posição diversa, com a adoção do princípio da não-retroatividade como regra, que a lei ordinária consigna com o sentido de medida de política legislativa. A lei não deve retroagir, e, na sua aplicação, o juiz se guardará de lhe dar interpretação com efeito retrooperante. Mas, como o principio não se dirige, com caráter obrigatório, ao legislador, fica este com a liberdade de votar leis retroativas, quando entender conveniente ao interesse público. É a doutrina em vigor na França, cujo Código Civil (art. 2º) prescreve que a lei só dispõe para o futuro, e não tem efeito retroativo; da mesma forma o Código Italiano de 1865 estatuía (art. 2º) e o novo, de 1942, determina (art. 11); o Código Civil espanhol (art. 3º), diz que a lei não tem efeito retroativo, salvo se o contrário dispuser o legislador; no mesmo sentido o Código Civil argentino (art. 3º), consignando que a lei não tem efeito retroativo nem pode alterar os direitos já adquiridos. As citações poderiam continuar extensamente. Sob a inspiração do preceito, a idéia da não-retroatividade decorre de que a lei não pode alcançar o tempo pretérito sem retroatividade, e como a irretroatividade é imposta ao juiz como norma orientadora da aplicação do direito far-se-á esta sempre orientada pela idéia de excluir qualquer efeito retrooperante. Mas, como o legislador não está sujeito à regra, pode prescrever eficácia retroativa às leis, e, deste jogo de noções, conclui-se que o juiz não pode atribuir efeito retroativo às disposições novas, a não ser que o legislador tenha claramente manifestado sua vontade neste sentido.

Outras vezes, o princípio da não-retroatividade é assentado com caráter mais rijo do que uma simples medida de política legislativa, pois assume o sentido de uma norma de natureza constitucional. Com uma tal valência, reflete muito maior extensão e, especialmente, mais profunda intensidade. Não é apenas uma regra imposta ao juiz, a quem é vedado atribuir à lei efeito retrooperante. Mais longe do que isto, é uma norma cogente para o legislador, à sua vez proibido de ditar leis retroativas. Diferentemente daqueles sistemas que admitem possa o legislador manifestar claramente o propósito de impor às disposições legais efeito retroativo, aqui esta liberdade lhe é negada. Assim, a lei que tenha um tal efeito vem maculada da eiva de inconstitucionalidade, cabendo ao Poder Judiciário declará-lo e recusar-lhe aplicação, pela maioria absoluta dos membros dos tribunais (Constituição Federal, art. 116). O sistema brasileiro inscreve-se nesta corrente. ..."[grifos nossos].

Tendo em vista que o princípio da irretroatividade é dirigido ao próprio legislador, tem-se entendido na doutrina que a norma de ordem pública não poderá retroagir em prejuízo do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada e que os direitos de obrigação regem-se pelas normas do tempo em que se constituíram2.

Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal tem decidido, reiteradas vezes, que a lei não pode retroagir para ferir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, ainda que a pretexto de estabelecer normas de ordem pública, como se pode verificar pela ementa do seguinte julgado, verbis:

"E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CADERNETA DE POUPANÇA - CONTRATO DE DEPÓSITO VALIDAMENTE CELEBRADO - ATO JURÍDICO PERFEITO - INTANGIBILIDADE CONSTITUCIONAL - CF/88, ART. 5º, XXXVI - INAPLICABILIDADE DE LEI SUPERVENIENTE À DATA DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE DEPÓSITO, MESMO QUANTO AOS EFEITOS FUTUROS DECORRENTES DO AJUSTE NEGOCIAL - RE NÃO CONHECIDO. CONTRATOS VALIDAMENTE CELEBRADOS - ATO JURÍDICO PERFEITO - ESTATUTO DE REGÊNCIA - LEI CONTEMPORÂNEA AO MOMENTO DA CELEBRAÇÃO. - Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos - que se qualificam como tos jurídicos perfeitos (RT 547/215) - acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e precedentes. INAPLICABILIDADE DE LEI NOVA AOS EFEITOS FUTUROS DE CONTRATO ANTERIORMENTE CELEBRADO - HIPÓTESE DE RETROATIVIDADE MÍNIMA - OFENSA AO PATRIMÔNIO JURÍDICO DE UM DOS CONTRATANTES - INADMISSIBILIDADE. - A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. Precedentes. LEIS DE ORDEM PÚBLICA - RAZÕES DE ESTADO - MOTIVOS QUE NÃO JUSTIFICAM O DESRESPEITO ESTATAL À CONSTITUIÇÃO - PREVALÊNCIA DA NORMA INSCRITA NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO. - A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) - não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade."(RE-205193/RS, rel. Min CELSO DE MELLO, primeira turma, unânime, julgado em 25/02/1997, publicado no DJ em 06-06-97.)[grifos nossos].

Deve-se, também, ressaltar que o Código Civil de 1916, ao disciplinar os atos jurídicos, mais propriamente ao tratar das modalidades dos atos jurídicos, estabeleceu em seu art. 114 que se deve entender por condição a cláusula que subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto, sendo espécies desta modalidade a condição suspensiva e a condição resolutiva. Sobre a distinção entre condição suspensiva e condição resolutiva, transcreve-se o magistério do ilustre professor Caio Mário da Silva Pereira3, verbis:

"No estado de pendência da condição, o direito já é, contudo, objeto de tutela jurídica, que pode variar em razão da natureza do ato e da qualidade da condição, indo desde a ação para garantir a existência jurídica da prestação, até a indenização por perdas e danos, contra quem tiver atingindo a esfera do titular, embora seja este o de uma spes e não de um direito subjetivo. Mas, pendente conditione, o titular do direito suspenso não pode praticar os atos que interfiram propriamente com o seu exercício. Há, é bem de notar-se, sensível diferença entre a pendência da condição suspensiva e da resolutiva. Se é suspensiva, o direito ainda não se adquire, ou não nasce, enquanto se não realiza: aquele que alienou, continua proprietário; o que adquiriu, não tem ainda nenhum direito nascido e atual; não se constitui senão uma obligatio incerta, mas como algo existe mais do que o nada, pois que a eventualidade futura converterá de plano este estado de incerteza em uma obligatio pura, considera-se a situação imanente como um direito e obrigação em germe, uma situação em que no momento nada é devido, mas vigora a esperança de vir a ser: ‘nihil adhuc debetur, sed spes debitum iri’. Se é resolutiva, e como esta subordina ao evento a extinção do direito, este nasce desde logo e produz seus efeitos, o adquirente torna-se proprietário e o alienante deixa de o ser; constitui-se desde logo uma obrigação como se fosse pura e simples, porém sujeita a morrer: ‘obligatio pura est, sed sub conditione resolvitur’".[os grifos constam do original]

Ressalte-se, ainda, que o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) não alterou em nada a referida diferenciação entre condição suspensiva e condição resolutiva, conforme ficou consignado em seus arts. 125 e 127.

O ilustre professor e constitucionalista José Afonso da Silva4, citando Pontes de Miranda, in Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n 1 de 1969, t. V/102, em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo, assim se manifesta sobre a diferenciação entre direito adquirido e ato jurídico perfeito, ainda que sujeito a termo ou condição, verbis:

      "A diferença entre direito adquirido e ato jurídico perfeito está em que aquele emana diretamente da lei em favor de um titular, enquanto o segundo é negócio fundado na lei. ‘O ato jurídico perfeito, a que se refere o art. 153, § 3º [agora, art. 5º, XXXVI], é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais de vontade como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos, como as reclamações, interpretações, a fixação de prazo para a aceitação de doação, as comunicações, a constituição de domínio, as notificações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou com sua eficácia (ato jurídico stricto sensu)’ Ato jurídico perfeito, nos termos do art. 153, § 3º [art. 5º, XXXVI], é aquele que sob o regime da lei antiga se tornou apto para produzir os seus efeitos pela verificação de todos os requisitos a isso indispensável. É perfeito ainda que possa estar sujeito a termo ou condição." [Os grifos são nossos].

Desta forma, resta evidenciado que o contrato é ato jurídico perfeito, não podendo lei posterior, ainda que de ordem pública, retroagir para alterar as normas contratuais fixadas entre as partes, em conformidade com o ordenamento jurídico em vigor no momento da celebração do ajuste, ainda que haja previsão de direitos subordinados a condição suspensiva, sob pena de verdadeira afronta ao disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República de 1988. Também não será possível evidentemente a alteração unilateral do referido contrato por quaisquer das partes.

Feitas estas considerações iniciais, passemos a analisar o contrato de previdência complementar, que poderá ser celebrado com instituição privada ou pública, fazendo-se uma breve comparação com o regime geral de previdência social e o regime estatutário, a fim de dissipar dúvidas e confusões eventualmente surgidas entre os estudiosos que se debruçam sobre a análise de importante tema. Em seguida, faremos breves considerações sobre a possível vinculação do contrato de previdência complementar ao contrato de trabalho e, conseqüentemente, sobre a competência da justiça do trabalho para dirimir os conflitos surgidos em torno do referido contrato previdenciário.

Inicialmente cumpre ressaltar que a aposentadoria é um direito subordinado ao efetivo cumprimento de determinadas condições, independentemente do tipo de relação jurídica existente entre aquele que presta o serviço e aquele que usufrui a referida prestação, com a correspondente obrigação de pagar salários ou vencimentos.

Todavia, faz-se mister afirmar que o tratamento a ser dado, bem como as condições exigidas, diferem substancialmente entre os diversos regimes, mais propriamente entre o regime geral de previdência social, o regime estatutário ou o regime de previdência complementar, tendo em vista as especificidades inerentes a estes regimes.

Com efeito, em relação ao regime geral de previdência social ou ao regime estatutário, deve-se notar que a vontade do trabalhador não possui qualquer relevância para a aquisição da aposentadoria, sendo que a lei estabelece genericamente as condições para a obtenção do referido benefício, podendo o legislador mudar tais requisitos a qualquer tempo, desde que não viole o art. 5º, XXXVI, da Carta Magna. Estas possíveis alterações irão atingir os que ainda não completaram os requisitos para a aposentadoria, tendo em vista que possuem mera expectativa de direito e não direito adquirido, ou seja, aqueles que ainda não incorporaram definitivamente ao seu patrimônio o referido direito.

A aplicação deste raciocínio, entretanto, não se aplica de forma integral quando estamos a tratar de previdência complementar, tendo em vista que o ajuste tem natureza contratual e a vontade do trabalhador é fundamental para a aquisição do seu complemento de aposentadoria, restando perfeitamente evidenciada substancial diferença em relação aos outros regimes já mencionados.

Como o regime geral de previdência social não assegura aos empregados celetistas a totalidade do valor dos vencimentos percebidos na ativa, o empregado vê-se jungido a celebrar contrato de previdência complementar com uma instituição de previdência complementar, que poderá ser pública ou privada, para obter o restante e complementar a sua aposentadoria. Evidentemente não está o empregado obrigado a celebrar o referido contrato, tratando-se de mera faculdade.

Desta forma, resta evidente que o contrato de previdência complementar nada mais é do que uma espécie do gênero contrato, normalmente caracterizado como contrato de adesão, subordinando-se aos princípios gerais do direito obrigacional, dentre os quais o princípio básico de que o contrato não pode ser alterado unilateralmente por quaisquer das partes, mormente quando há prejuízo para o outro contratante. Ademais, sendo o contrato, genericamente considerado, um ato jurídico perfeito, impõe-se ao contrato de previdência complementar definitivamente celebrado a qualidade de autêntico ato jurídico perfeito, não podendo lei posterior retroagir para alterar as condições firmadas pelas partes para a concessão do complemento de aposentadoria, sob pena de flagrante violação ao art. 5º, XXXVI, da Carta Magna. Não se admite a retroatividade de qualquer tipo de lei, ainda que a pretexto de regular normas de ordem pública, em conformidade com o entendimento dos nossos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

A aposentadoria é um direito subordinado a determinadas condições suspensivas, sendo que a incorporação definitiva ao patrimônio do titular só ocorre com o implemento das condições. Assim, só há direito adquirido após a realização efetiva das referidas condições suspensivas. Antes disso, ter-se-á mera expectativa de direito. Isso não quer dizer, entretanto, que tais condições podem ser mudadas ou alteradas em qualquer hipótese pelo legislador, com incidência imediata. Casos há em que o legislador pode licitamente modificar as condições para a aquisição da aposentadoria com incidência imediata, sem falar-se em retroatividade, enquanto em outras hipóteses será lícita a modificação, porém vedada a incidência imediata e retroativa sobre situações definitivamente consolidadas, devendo aplicar-se tais regras apenas às relações jurídicas formadas posteriormente. A diversidade de tratamento vai depender do regime jurídico a que estiver subordinado o trabalhador, conforme adiante se demonstrará.

Assim, quando o trabalhador está regido pelo regime estatutário ou vinculado ao regime geral da previdência social, tem ele mera expectativa de direito à obtenção da aposentadoria segundo as normas dos respectivos regimes, ou seja, antes do efetivo implemento das condições legalmente previstas, terá apenas expectativa de direito, tendo em vista que sua relação jurídica não é de cunho contratual, mas determinado ex vi legis, razão pela qual se afigura de todo irrelevante a vontade do trabalhador em relação à fixação dos requisitos necessários para a obtenção da aposentadoria. Assim, pode-se logicamente inferir que o trabalhador, neste caso, não estará protegido por nenhum ato jurídico perfeito, estando legitimado o Poder Público a alterar as condições suspensivas referentes à aquisição da aposentadoria com incidência imediata sobre os trabalhadores que ainda não tenham adquirido o referido direito, sem que se possa falar em retroatividade, impondo condições mais benéficas ou mais gravosas, até porque a nossa Constituição não protegeu a expectativa de direito, mas apenas o direito adquirido.

Diversamente, o trabalhador que celebra contrato de previdência complementar realiza verdadeiro ato jurídico perfeito, em que o direito à aposentadoria se encontra logicamente subordinado a condições suspensivas estabelecidas contratualmente e em obediência às normas legais vigentes. No momento da celebração do ajuste não há direito adquirido, mas mera expectativa do direito. Todavia, há um ato jurídico perfeito com a celebração do contrato, não podendo a lei alterar as condições licitamente ajustadas pelas partes, retroagindo e atingindo uma situação jurídica definitivamente constituída. Haveria a chamada retroatividade mínima a que se refere o STF em vários julgados, com evidente violação do art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988.

Deve-se salientar, entretanto, que a Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, atualmente dispõe sobre o regime de previdência complementar, tendo revogado expressamente a Lei nº 6.435, de 15 de julho de 1977, e a Lei nº 6.462, de 09 de novembro de 1977, que tratavam anteriormente do regime de previdência complementar. Antes da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, havia uma diferença substancial entre o contrato de previdência complementar celebrado com entidade aberta de previdência privada (EAPP) e o contrato da mesma natureza celebrado com entidade fechada de previdência complementar (EFPP), tendo em vista que, em se tratando de contrato de previdência complementar celebrado com entidade aberta, o beneficiário poderia obter o benefício do complemento de aposentadoria independentemente de obter a aposentadoria oficial, enquanto o contrato previdenciário celebrado com entidade fechada só admitia a obtenção do complemento de aposentadoria após a concessão da aposentadoria oficial, por força do art. 34 da antiga Lei nº 6.435, de 15 de julho de 1977, que estatuía claramente o caráter de complementariedade das EFPP em relação ao sistema oficial de previdência e assistência social. Tratava-se de condição imposta ex vi legis exigida no caso de contrato previdenciário celebrado com EFPP, resultante do intervencionismo estatal, e inexistente em relação ao contrato celebrado com EAPP. Todavia, a previsão do art. 34 da referida lei nº 6.435/77 não alterava em nada a natureza contratual dos referidos ajustes e a qualificação de ato jurídico perfeito dos mesmos, seja em relação ao pactuado com as EFPP ou com as EAPP. Com o advento da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, deixou de ser exigida a obtenção da aposentadoria oficial como condição para a percepção do complemento de aposentadoria em relação ao contrato celebrado com a EFPP, mantendo-se a mesma disciplina em relação as EAPP, tendo em vista o disposto no art. 68, § 2º, da referida Lei Complementar 109/2001.

A doutrina também sustenta a natureza de ato jurídico perfeito do contrato de previdência complementar. Neste sentido, veja-se o magistério de Leonel José Carvalho de Castro, citado por Wladimir Novaes Martinez5, in Primeiras lições de Previdência Complementar, são Paulo, LTr, 1996, pág. 120, verbis:

"No dizer de Leonel José Carvalho de Castro, ‘tais contratos, sendo atos jurídicos perfeitos e bilaterais, aprovados caso a caso pelo Ministério da Previdência Social, não podem ser revogados por qualquer nova disposição legal, pois as obrigações e direitos dos contratantes, elencados e definidos em cada texto, estão por eles assegurados sob o amparo de preceitos constitucionais’ (‘A constituição, a Lei n. 6.435/77 e demais textos que regem as EFPP’)". [ grifos nossos].

Em outro momento da mesma obra, o referido autor Wladimir Novaes Martinez6, ao tratar das EFPP, estabeleceu que "A relação entre a EFPP e o participante é diferente da vigente entre segurado e INSS, sobressaindo-se a inscrição em detrimento da filiação. Se o participante promove aquela, preenchendo os formulários e o documento é homologado pela entidade, desembolsando a taxa dela exigida, salvo dolo ou má-fé, trata-se de ato jurídico perfeito, a ser respeitado pelas partes", o que se aplica também quando a relação jurídica é estabelecida entre a EAPP e o participante, dada a natureza contratual do ajuste.

Desta forma, um contrato em que foram estabelecidas determinadas condições suspensivas, mormente estabelecendo as condições para a concessão do complemento de aposentadoria, não pode ter qualquer destas condições alteradas por lei nova, ou seja, posterior ao ajuste, ainda que a pretexto de dispor sobre normas de ordem pública, sob pena de violar o art. 5º, XXXVI, da Constituição, vez que o contrato validamente firmado reputa-se ato jurídico perfeito, regulando-se pela lei vigente ao tempo em que se constituiu.

A tese que estamos a defender se aplica principalmente ao caso de alguns trabalhadores que celebraram contratos de previdência complementar com determinados fundos de pensão, caracterizados como entidades fechadas de previdência complementar, não tendo as cláusulas contratuais originárias imposto nenhum limite etário ou previsão futura de fixação de limite etário para a percepção do benefício e que foram prejudicados com o advento do Decreto nº 81.240, de 20 de janeiro de 1978, tendo em vista o disposto no inciso IV do art. 31 do referido instrumento normativo, que estabeleceu o mínimo de 55 anos para a percepção do complemento de aposentadoria e o fato de terem os referidos fundos de pensão alterado seus estatutos para incorporar a referida exigência. Ora, muitos trabalhadores obtiveram a aposentadoria oficial, segundo as normas então vigentes, como, por exemplo, na modalidade de aposentadoria por tempo de serviço em que não se exigia idade mínima para a aposentação, anteriormente à vigência da EC nº20/98, cumprindo, ainda, as condições previstas inicialmente no contrato previdenciário e ficaram impossibilitados de receber o complemento de aposentadoria por não possuírem a idade de 55 anos, exigência esta evidentemente inconstitucional e ilegal, conforme se demonstrará adiante.

Sobre o tema, a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Setor Mineral ingressou com a ADIN n. 992-3/Rio pleiteando o reconhecimento da inconstitucionalidade do referido inciso IV do art. 31 do Decreto nº 81.240, de 20 de janeiro de 1978. Apreciada em 20.5.1994, o Supremo Tribunal Federal deixou de examinar a questão, sob a alegação de que se estava discutindo inconstitucionalidade de decreto quando, na verdade, o cabível seria a alegação de sua ilegalidade7.

Inobstante o entendimento do Supremo Tribunal Federal, entendemos, data vênia, que a norma do inciso IV do art. 31 do Decreto nº 81.240/78 é flagrantemente inconstitucional, por contrariar a Constituição de 1967, com a EC nº 1 de 1969, e não foi recepcionada pela Constituição de 1988, por diversos argumentos. Só a título de argumentação, deve-se ressaltar que, ainda que a norma sub examine fosse considerada constitucional e legal, esta não poderia evidentemente aplicar-se aos contratos de previdência complementar celebrados anteriormente à sua edição, sob pena de violar o ato jurídico perfeito, tratando-se de caso de aplicação inconstitucional de norma supostamente constitucional (em tese), o que redundaria em irremediável inconstitucionalidade no caso concreto. Entretanto, a análise da norma em confronto com o ordenamento jurídico vigente à época, bem como em face do atual ordenamento jurídico, não deixa dúvidas, sendo forçoso admitir a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 31 do referido Decreto n° 81.240/78 em face da Constituição de 1967 e o fato de não ter sido recepcionada pela Constituição de 1988, tendo em vista tratar-se de mero decreto expedido pelo Presidente da República e que não poderia inovar na ordem jurídica criando ou restringindo direitos, inclusive sob a égide da Constituição de 1967, com a EC n. 1 de 1969. Trata-se de verdadeira usurpação das atribuições do Poder Legislativo pelo Poder Executivo em evidente ofensa ao princípio constitucional da separação de poderes, o que evidencia claramente a inconstitucionalidade da norma. É que, mesmo na vigência da Carta Magna anterior, somente era admissível, em regra, o decreto regulamentar, ou seja, aquele expedido tão somente para a fiel execução das leis, não podendo criar ou restringir direitos. Existia apenas uma única hipótese em que alguns sustentavam a possibilidade do decreto autônomo, ou seja, com possibilidade de inovar na ordem jurídica, com base no art. 81, V, da Constituição de 1967, que autorizava o Presidente da República a "dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal".

Não tratando o inciso IV do art. 31 do referido Decreto n° 81.240 da hipótese a que se refere o mencionado art. 81, V, da Constituição de 1967, pode-se concluir perfeitamente que se trata de dispositivo flagrantemente inconstitucional e não apenas ilegal.

A partir da Constituição de 1988, restou vedada qualquer possibilidade de decreto autônomo, tendo em vista que o art. 84, VI, da atual Carta Magna, ao permitir que o Presidente da República tratasse da Administração Pública Federal acrescentou a expressão "na forma da lei". Recentemente, com a Emenda Constitucional n° 32, de 11 de setembro de 2001, restou novamente alterada a redação do art. 84, VI, da CF/88, retirando-se a expressão "na forma da lei" e autorizando o decreto a dispor sobre organização e funcionamento da administração federal, desde que não implique em aumento de despesas nem criação ou extinção de órgãos públicos, podendo-se sustentar a possibilidade de decreto autônomo, a partir da EC n° 32/2001, apenas nesta hipótese. Como a norma do inciso IV do art. 31 do Decreto n° 81.240/78 não foi recepcionada pela atual Carta Magna tem-se que não poderia ser objeto de ADIN, devendo os juízes e tribunais simplesmente afastar a sua aplicação no caso concreto.

Alguns destes casos foram decididos pela Justiça do Trabalho em hipóteses de vinculação do contrato de previdência complementar ao contrato de trabalho, entendendo-se que decorriam da relação de trabalho, o que determinava a competência da Justiça do Trabalho por força do art. 114 da Constituição de 1988. Nestes casos, o Tribunal Superior do Trabalho veio a afastar o limite etário de 55 anos, permitindo aos reclamantes a obtenção imediata dos seus complementos de aposentadoria, tratando-se de contratos em que as cláusulas originárias não possuíam o referido limite de 55 anos nem a previsão de haver posteriormente a fixação de qualquer limite mínimo de idade para a percepção do benefício, aplicando princípios inerentes ao direito do trabalho, como o da inalterabilidade do contrato de trabalho, sem, no entanto, perceber a violação ao ato jurídico perfeito que ocorreu na espécie. Neste sentido, transcreve-se, por oportuno, a ementa do seguinte julgado do TST, decidido em 24/10/2001 e publicado no DJ em 16/11/2001, PG: 520, verbis:

      "EMENTA

      COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA - CEF E FUNCEF - ESTATUTO E REGULAMENTO BÁSICO DA FUNCEF - DECRETO 81.240/78. Embora tenham as Recorrentes sido admitidas após a edição do Decreto nº 81.240/78, esse fato não lhes impõe que suas aposentadorias sejam regidas consoante as normas nele estabelecidas, uma vez que prevista no Decreto em tela a adequação dos estatutos das entidades fechadas em funcionamento em 1º/1/78 à Lei nº 6.435/77, como é o caso da FUNCEF, e respectiva homologação, sendo certo, pois, que antes de 19/6/79, data da referida aprovação, continuavam em vigor as disposições contidas no seu Estatuto e Regulamento Básico - REG, anterior ao REPLAN. Tendo, pois, as Autoras sido admitidas antes que o novo Estatuto tivesse sido aprovado, conclui-se que as regras que disciplinavam a complementação de aposentadoria das Autoras eram aquelas previstas no Estatuto anterior, visto que se incorporaram ao contrato de trabalho na forma em que estabelecidas.

      Recurso conhecido em parte e provido." (RR nº 717003, Rel. Min. José Luciano de Castilho Pereira, unânime, 2ª Turma, julgado em 24.10.2001, publicado no D. J. em 16-11-2001, PG: 520).

Sobre o tema revela-se importante transcrever o conteúdo dos enunciados 51 e 288 do TST, verbis:

51. As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento.

288. A complementação dos proventos de aposentadoria é regida pelas normas em vigor na data da admissão do empregado, observando-se as alterações posteriores desde que mais favoráveis ao beneficiário do direito.

Diante do exposto, não há como negar que o contrato de previdência privada complementar, uma vez celebrado, não pode ser alterado unilateralmente por quaisquer das partes e configura verdadeiro ato jurídico perfeito, não podendo lei posterior retroagir para alterar as cláusulas contratuais, seja fixando limite etário posterior para a obtenção do complemento de aposentadoria, seja alterando quaisquer das condições inicialmente ajustadas pelas partes, sob pena de grave violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988, em detrimento da segurança jurídica e, conseqüentemente, da própria sociedade.


Notas

1. Instituições de Direito Civil, vol. I, 18ª Edição, Editora Forense, Rio de janeiro, 1997, págs. 93 e 94.

2. Instituições de Direito Civil, vol. I, 18ª Edição, Editora Forense, Rio de janeiro, 1997, págs. 106 e 107.

3. Instituições de Direito Civil, vol. I, 18ª Edição, Editora Forense, Rio de janeiro, 1997, pág. 357.

4. Curso de Direito Constitucional Positivo, 13ª Edição, Malheiros, 1997, pág 414.

5. Primeiras Lições de Previdência Complementar, são Paulo, LTr, 1996, pág. 120.

6. Primeiras Lições de Previdência Complementar, são Paulo, LTr, 1996, pág. 124.

7. Primeiras Lições de Previdência Complementar, são Paulo, LTr, 1996, pág. 65.


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CORREIA, Sander Fítney Brandão de Menezes. O contrato de previdência complementar como ato jurídico perfeito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3286. Acesso em: 18 abr. 2024.