Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/3287
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Licitações públicas e a participação de cooperativas

Licitações públicas e a participação de cooperativas

Publicado em . Elaborado em .

A participação de cooperativas de trabalho em licitações públicas é tema que vem provocando debates e divergências no meio jurídico [1]. Argumenta-se que esta participação violaria o princípio da igualdade entre os competidores pois os encargos fiscais das cooperativas são reduzidos se comparados com o das demais empresas o que, somado ao fato de não haver relação de emprego com seus sócios, culminaria por gerar um desequilíbrio na competição. Fala-se então que a participação de sociedades cooperativas em certames licitatórios deveria ser vedada ou - ao menos - que suas propostas deveriam ser "equalizadas" com a finalidade de compensar os eventuais "benefícios" que as ditas sociedades possuem.

Não comungamos deste entendimento. Ao que parece trata-se de mais um, dentre tantos outros equívocos que envolvem a temática das cooperativas na sociedade brasileira por desconhecimento e/ou incompreensão de sua natureza, características e sistema operacional [2].

Primeiramente, ao se analisar as cooperativas é preciso ter em mente o seu regime jurídico diferenciado. Trata-se de uma forma livre de associação de pessoas com natureza civil, não sujeita a falência, com objetivos comuns constituída para prestar serviços aos seus associados, que se distingue das demais sociedades por possuir características próprias: ter o cooperado como sócio e principal beneficiário, adesão voluntária, singularidade do voto nas Assembléias (gestão democrática), não auferimento de lucro e sim sobras líquidas, dentre outras elencadas nos arts. 3º e 4º da lei 5.764/71.

Este regime diferenciado gera importantes consequências no campo tributário. O legislador e, principalmente o fisco na sua ânsia arrecadatória, insiste em equiparar as sociedades cooperativas às empresas sem atentar para suas especificidades dentre as quais se destaca o ato cooperativo entendido como aquele praticado pelas cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos seus objetivos sociais (art. 79 da Lei 5.764/71). Por definição legal o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produtos ou mercadorias. Teima-se, neste aspecto, em confundir hipótese de não incidência com os conceitos de isenção e imunidade.

Por certo, as cooperativas existem para prestar serviços a seus associados (art. 4º da Lei 5.764/71) podendo, nos termos do artigo 5º do mesmo diploma legal, adotar por objeto "qualquer gênero de serviço, operação ou atividade". Nada impede, entretanto que a cooperativa forneça "bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos seus objetivos sociais" (art. 86 da lei 5.764/71). Portanto é, muitas vezes, da própria dinâmica operacional das cooperativas – e legalmente previsto – o desempenho de negócios externos, incluindo-se aí a prestação de serviços a terceiros não associados, desde que vinculadas as suas atividades internas com os associados.

Além disso, de suma importância frisar que a Constituição Federal, consagrou a autonomia do cooperativismo (art. 5º, XVIII), dispôs que a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo (art. 174, d 2º) e, ainda, reservou à lei complementar o tratamento adequado ao ato cooperativo [3].

Pois bem.

Foi a partir da década 90 que verificou-se um aumento significativo de cooperativas de trabalho no Brasil fruto não só do desenvolvimento do "movimento cooperativista", mas também das idéias de flexibilização das relações de trabalho e de terceirização [4] visando a economia de recursos e a simplificação administrativa. Neste quadro é que as cooperativas vêem ganhando espaço como alternativa para o desemprego e instrumento que visa por princípio o aprimoramento social, educacional e o bem-estar de seus sócios.

Ocorre que, na realidade, o empreendimento cooperativista está sendo desvirtuado, notadamente, após a promulgação da Lei 8.949/94 que introduziu o parágrafo único no artigo 441 da CLT pregando não existir vínculo empregatício entre a cooperativa e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela. Foi sob o escudo de tal dispositivo legal que sob o rótulo de trabalho cooperativo, multiplicaram-se fraudes destinadas a ocultar relações de trabalho habitual, fundadas na pessoalidade, subordinação e onerosidade. Enfim, verdadeira relação de emprego. Ou melhor: relação de emprego travestida em relação de trabalho cooperativista eivada de nulidade se analisada à luz da previsão contida no artigo 9º da CLT como vem sendo decidido pelos tribunais [5]. Fala-se então (e com certa dose de razão) da existência de "coopergatos" e "fraudo-cooperativas", isto é cooperativas de fachada que, na prática, apenas camuflam relações empregatícias servindo para subtrair e/ou dirimir os direitos trabalhistas conquistados durante décadas de lutas da classe trabalhadora.

É neste breve resumo fático-legal que discute-se a participação de cooperativas de trabalho em licitações públicas. O assunto chegou inclusive ao Congresso Nacional onde tramita o Projeto de Lei 1.044/2000 de autoria do deputado Paulo Piau (PFL) visando alterar o artigo 1º da Lei 9.444, de 25 de novembro de 1987, que dispõe sobre as licitações e os contratos da administração centralizada e autárquica do Estado. A proposta de nova redação estabelece que os órgãos e as entidades das administrações direta e indireta de todos os Poderes do Estado, do Tribunal de Contas e do Ministério Público subordinam-se, como licitantes ou contratantes, às normas da lei e deixa explícito que as cooperativas poderão participar dos processos licitatórios. Por sua vez, a deputada Elaine Matozinhos do PSB apresentou emenda ao citado projeto de lei em sentido diametralmente oposto, ou seja, retirando a possibilidade das cooperativas de trabalho ou de prestação de serviços participarem de licitações cujo objeto seja o fornecimento de mão de obra a terceiros contratantes.

Pergunta-se: esta expressa previsão em lei da possibilidade de participação de cooperativas em licitações faz-se necessária ? E a proibição é medida legal ?

Como visto a legislação cooperativista prevê, a possibilidade das cooperativas prestarem serviços a terceiros não associados. Além disso, a Constituição Federal prega o princípio da livre concorrência e contém norma de fomento ao cooperativismo [6]. Acrescente-se ainda que a restrição a participação de cooperativas em licitação é forma de restringir o caráter competitivo da licitação com violação do artigo 3º parágrafo 1º, inciso I da lei 8.666/93 podendo, inclusive, tal conduta ser enquadra criminalmente no artigo 90 do Estatuto Licitatório (frustrar mediante qualquer expediente, o caráter competitivo da licitação. Pena de 2 a 4 anos, além de multa). Como se não bastasse o inciso IV, do artigo 28 da Lei nº 8666/93 ao tratar da documentação necessária a habilitação jurídica permite a participação em licitações públicas de sociedades civis. Ora, a Lei 5.764/71 em seu artigo 4º define as cooperativas como sociedade civil. Assim, inevitável concluir que a participação de cooperativas em licitações públicas encontra amplo e total respaldo legal.

Por conseguinte, pode-se afirmar que os editais contendo cláusulas que vedam a participação de cooperativas nas licitações públicas afrontam a legislação em vigor. Trata-se de uma proibição genérica e absurda sanável verbi gratia pela via do Mandado de Segurança. Digo isto, pois nada impede que a Administração Pública vete a participação de cooperativas em licitações públicas. Porém, o deve fazer através de motivo próprio/específico e com embasamento legal. Se é certo – e é certo mesmo!!! - que algumas cooperativas estão violando direitos sociais dos trabalhadores, tal questão deve ser aferida na fase de habilitação do certame licitatório mediante análise criteriosa da sua documentação e de seu funcionamento (como aliás há de ser feito com qualquer outro postulante a licitante vencedor seja este cooperativa ou não).

Na esteira deste raciocínio entendemos que a expressa previsão em lei da possibilidade de participação de cooperativas em licitações públicas é desnecessária, em que pese constituir-se num marco legal incontestável que espancaria de vez qualquer dúvida sobre o assunto.

Já a emenda proposta ao citado projeto de lei, visando inviabilizar através de discriminação genérica a participação de cooperativas nas licitações públicas é, ao nosso sentir, eivada de flagrante inconstitucionalidade. Possui, o mérito de suscitar o debate e chamar a atenção para a perversa simulação violadora dos princípios norteadores do cooperativismo mas não nos parece o caminho jurídico nem a sede adequada para resolver a questão de tais fraudes.

A verificação da legalidade, autenticidade e legitimidade das cooperativas de trabalho é tarefa que a nosso ver cabe ao Ministério Público e as Delegacias Regionais do Trabalho órgãos competentes para agir através do seu poder de polícia e - porque não ? - incumbência também das próprias verdadeiras cooperativas que tem interesse em não ver sua imagem maculada por cooperativas fraudulentas, ilícitas e imorais.

Pelo exposto, conclui-se que não há subsídio legal para a vedação da participação de cooperativas em licitações públicas. Muito pelo contrário. Qualquer procedimento licitatório contendo norma proibitiva da participação de cooperativas (associação civil) em licitações choca-se frontalmente com o disposto no art, 28, IV da Lei 8.666/95 e com a ratio constitucional. O fato de existirem cooperativas fraudulentas não pode levar a presunção de que todas o são, muito menos a uma vedação genérica violadora da livre concorrência, do princípio da competitividade e dos ditames constitucionais e legais que regem o cooperativismo. Não se corrige as distorções existentes no pseudo-cooperativismo inibindo e restringindo o mercado das cooperativas autênticas e legítimas, da mesma forma como não se medica a unha encravada cortando o pé do enfermo.


BIBLIOGRAFIA

RIGOLIN, Ivan Barbosa. "Cooperativas em licitação podem participar ?" DCAP/IOB no 4, abril/2000.

MUKAI, Toshio. "Cooperativas não podem participar de licitações públicas", DCAP/IOB no 3, março 2000.

BITTENCOURT Sidney. "A participação de cooperativas em licitações públicas". Rio de Janeiro, Temas & Idéias Editora, 2001.

POLÔNIO, Wilson Alves. Manual das Sociedades Cooperativas. 2ª ed. São Paulo, Atlas; 1999.

BULGARELLI, Waldirio. As sociedades cooperativas e a sua disciplina jurídica. Rio de Janeiro, Renovar, 1998.

GRUPENMACHER, Betina Treiger (Coord.). Cooperativas e Tributação. Curitiba, Juruá Editora, 2001.

MARTINS, Sergio Pinto. A Terceirização e o Direito do Trabalho. 2ª ed. São Paulo, Malheiros.

MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Vínculo de emprego e Cooperativas de Trabalho. Revista Literária de Direito, nov/dez. p. 31/33, 1997.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3a ed. São Paulo, Malheiros, 1999.

BARROSO, Luís Roberto BARROSO. Interpretação e Aplicação da Constituição, 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1999.

RIGOLIN, Ivan Barbosa. "Cooperativas em licitação: podem participar?". Boletim de Licitações e Contratos, Editora NDJ, jan. 2002, p. 25/27.

COPOLA Gina. "Cooperativas podem participar de licitações". Boletim de Licitações e Contratos, Editora NDJ, fev. de 2002, p. 88/90.

VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Cooperativismo - Nova abordagem sócio jurídica. Curitiba, Juruá Editora, 2002.


NOTAS

1. Em sentido contrário a participação de cooperativas em licitações: posição do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais em resposta a Consulta 439.155 (Revista do Tribunal de Contas do Est. de Minas Gerais, vol. 25, nº 4, págs 182/185). Idêntica posição da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do mesmo Estado ao apreciar a apelação 161.34-2/00. Já o Tribunal de Contas da União admitiu a presença de sociedade cooperativas em licitação (Processo 4908/95-3); Tratando do tema registre-se o crescente número de artigos e publicações sobre a matéria (ver bibliografia).

2. Para uma análise contábil e operacional das cooperativas consultar POLÔNIO, Wilson Alves. Manual das Sociedades Cooperativas. Sobre a natureza jurídica das cooperativas ver BULGARELLI, Waldirio. As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica.

3. Sobre o "adequado tratamento tributário" ao ato cooperativo muito se discute na doutrina. (Cf. GRUPENMACHER, Betina Treiger (Coord.). Cooperativas e Tributação, especialmente págs. 99-126).

4. A terceirização é prática administrativa que permite a uma empresa transferir a terceiros a realização de atividades para as quais não foi criada, isto é, atividades de apoio sem relação com direta com sua atividade fim. A jurisprudência se consolidou ao tolerar a terceirização tão só da atividade-meio conforme consubstanciado no enunciado 331, III do TST. Sobre a temática da terceirização ver o abalizado estudo de Sergio Pinto Martins. A Terceirização e o Direito do Trabalho.

Por fim, diga-se, ainda, que a terceirização é hoje legitimada, inclusive legalmente, na seara da Administração Pública Federal (Art. 1º do Decreto 2271/97)

5. "RELAÇÃO DE EMPREGO – COOPERATIVAS DE TRBALHO – CONFIGURAÇÃO. PROVA TESTEMUNHAL – INDEFERIMENTO – CERCEAMENTO DE DEFESA – INOCOORÊNCIA. "Cooperativas de Trabalho. Vínculo de emprego. A recente inclusão no parágrafo único no art. 442 da CLT não autoriza inobservância à regra de sobredireito emanada do art. 9º da mesma Carta Celetista, sempre que se verificar frades as garantias trabalhistas e sociais asseguradas nos ordenamentos legal e constitucional vigentes. Conquanto induvidosamente as cooperativas de trabalho constituam mais uma opção para o enfrentamentro da grave crise que assola o mercado de trabalho, não há permitir que essa novel modalidade de trabalho seja utilizada como mecanismo de expoloração de mão de obra. Cerceamento de defesa. Não ocorre cerceamento de defesa no indeferimento de prova testemunhal qunado a solução do litígio, pelo que já demonstrado na prova coligida aos autos, dela prescinde. Interpretação do disposto no art. 400, I, do CPC (Ac. da 1ª T. do TRT da 4ª R. – mv – RO 96.005379-4 – Rel Juiz Milton Varella Dutra – j 26/08/97 – Reclte: Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre – COOTRAVIPA; Recda: Nara Regina Silva da Silva – DJ RS RS 13/10/97 p. 38 ementa oficial). Ver também artigo de Pedro Paulo Teixeira Manus, Vínculo de emprego e Cooperativas de Trabalho Revista Literária de Direito, nov/dez. 1997, p. 31/33.

6. De acordo com a consagrada lição de José Afonso da Silva sobre a classificação e eficácia das normas constitucionais a norma contida no art. 174, d 2º da CF pode ser classificada como de caráter programático, com eficácia limitada, por depender de complementação da legislação infraconstitucional e indicar apenas programas de ação, linhas diretoras ao poder público. Não se diga, contudo, que a norma programática seja desprovida de efeitos imediatos. Ao tratar, em acurado estudo, da eficácia das normas constitucionais programáticas o prestigiado professor Luís Roberto BARROSO conclui com maestria que ela produz, desde logo, dois efeitos a saber: a) revogação da legislação com ela incompatível e; b) faz nascer um direito subjetivo negativo de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos contrários ao nela veiculado (Cf. BARROSO Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 109/110 e 263/264)


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

XAVIER, Bruno de Aquino Parreira. Licitações públicas e a participação de cooperativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3287. Acesso em: 19 abr. 2024.