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Transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano

Transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano

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Uma abordagem crítica sobre a legislação brasileira acerca dos aspectos jurídicos do consentimento post mortem.

Sumário: 1. Introdução. 2. Transplante de órgãos e tecidos. 2.1 Breves considerações jurídicas sobre o tema. 3. Sinopses históricas sobre a evolução do transplante 4. Conceitos de transplantes, órgãos e tecidos. 5. Classificação científica dos transplantes. 6. Consentimento inter vivo e post mortem. 7. Conclusão. 8. Referências. 9. Anexos.


1. INTRODUÇÃO

Os contornos jurídico-científicos são os mais densos, seja pelo fato da iminência da morte para aqueles que estão aguardando uma oportunidade na longa fila de transplantes, seja para os que partem dessa vida concreta, deixando, muitas vezes, os seus familiares em estado de suspensão e não raro revolta, por não aceitarem a perda do ente querido. O campo cientifico, especialmente a medicina é uma área do saber que precisa viver em constante evolução, transmudação, inspiração, de modo a tentar encontrar uma síntese que permitir a cura ou até mesmo a sobrevida dos enfermos em geral. No transplante de órgão após a morte, pela própria especificidade do tema e a delicadeza da sua abordagem ético-filosófica,

Com efeito, todo esse contexto leva a um sério problema a ser enfrentado pelo Direito, qual seja: o de encontrar uma solução pragmática fim de permitir que as pessoas que se disponham em vida a terem os seus órgãos doados tenham a sua vontade respeitada. Com isso, encontra-se á uma síntese de interesses, pois de um lado o Direito garantirá aos indivíduos a concretude da sua autonomia da vontade, in casu, que a sua decisão será respeitada após a sua morte e por outro as vítimas de doenças que levam a necessidade de transplantes de órgãos o direito à vida, estampado no preâmbulo da constituição da República Federativa do Brasil. Ou seja, todos esses interesses podem ser resumidos em um único princípio constitucional: o da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1°, lll, da Carta Magna.

Todavia, esse modelo que parece ser ideal nem sempre é possível, seja talvez em virtude de algumas falhas legislativas, seja também pela própria cultura do povo brasileiro. Esse trabalho limitar-se à, portanto, a abordar a problemática legal do tema, estabelecendo algumas críticas que se entende ser pertinentes para um amadurecimento da matéria. Por outro lado, problemas de ordem ética, social, filosófica, e até psicológica não serão objetos de estudo, até porque tornaria a pesquisa infindável.

Logo, considerando a diversidade de áreas que se interessam e que permeiam a matéria em análise o transplante de órgãos após a morte deve ser objeto de vários estudos, dentro de diversos contextos e enfoques.

Por conseguinte, com o propósito de despertar o interesse pelo debate e posterior reformulação de algumas incoerências legislativas que, data vênia , servem para dificultar o insucesso do transplante de órgãos, o presente trabalho abordará a problemática à luz da legislação brasileira, estabelecendo críticas que se acredita serem pertinentes à evolução do Biodireito, nomeadamente à eficácia dos transplantes de órgãos e tecidos.

Para tanto, no primeiro capítulo abordar-se à a evolução histórica dos transplantes no Brasil, estabelecendo-se, ainda, alguns conceitos técnicos do ponto de vista da Medicina, tudo isso para facilitar a compreensão do tema. Já no segundo capítulo passar-se à trabalhar as legislações brasileiras que trataram do problema, consignado as semelhanças, diferenças, vantagens e desvantagens de todas elas.

O terceiro capítulo terá como preocupação a análise técnico-científica do problema, trabalho alguns aspectos ligados ao procedimento do transplante, na tentativa de esclarecer o momento da morte e os trâmites seguidos pelos profissionais para efetivar o transplante.

No quarto capítulo analisar-se á necessidade do respeito á autonomia da vontade ao direito de escolha e consentimento do doador morto para, finalmente, chegar-se à conclusão de que a legislação em vigor precisa evoluir para dar completude ao sistema de transplante à luz do modelo já disposto em outros países, conforme será também abordado no quarto capítulo.

Conforme já mencionado, entende-se que a grande celeuma em resolver a manifesta escassez de doadores deve-se ao fato de que um transplante envolve questões religiosas, filosóficas, éticas e jurídicas. Existe, consequentemente, uma diversidade de visões de princípios e valores que muitas vezes tornam a efetivação desse ato impraticável.


2. TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS

2.1 Breves considerações jurídicas

Ao longo da evolução das sociedades, o corpo humano tem sido objeto de interesses de diversas ciências. Os estudos contemporâneos realizados por essas disciplinas ocorrem sob as tensões sociais e procura focalizar a estreita relação entre os avanços nas pesquisas cientificas e os meios aplicados para tal fim (SÁ, 2000).

Nesse contexto, cumpre ressaltar a questão da utilização de órgãos, tecidos e outras partes do corpo humano para fins de transplantes, conforme os ensinamentos da insigne doutrinadora, Bandeira (2001), a importância que essa conduta terapêutica alcançou na sociedade, provocou intermináveis questionamentos nas áreas éticas e jurídicas.

Mencionam-se as palavras de França (2007, p.474) o problema do transplante de órgãos e tecidos não interessa apenas á clinica, à cirurgia, à imunologia, mas também afeta os princípios básicos da ética e do biodireito.

Consoante o propugnado, relevante se faz aduzir que o tema proposto configura como procedimento de alta complexidade científica. Seus benefícios abrangem diversas áreas, em especial e com maior repercussão no âmbito da medicina, pelo qual se verifica sua incidência nas várias especialidades deste segmento.

Para essa pesquisa o transplante não tem seu fundamento alicerçado apenas na generosidade e no altruísmo, devendo ainda ser sedimentada na condição de uma prática específica, onde se observa uma situação carecedora de legislação que permitam o uso adequado de novas regras normativas.

Sobre o assunto Diniz (2008, p.292) afirma que

O transplante de órgãos e tecidos, apesar de ter sido uma das mais notáveis conquistas cientificas, apresenta ainda muitos obstáculos a serem vencidos pelos enormes problemas de natureza ético-jurídica que engendra, embora constitua uma técnica de grande importância para salvar milhares de vidas humanas [...]

Para tão inovadora área da medicina cirúrgica, os transplantes apresentam–se em último caso, a oportunidade de cura para quem é acometido das mais diversas doenças. Entretanto a evolução nas ciências dos transplantes de órgãos engendrou naturalmente uma prática corriqueira desse procedimento, passando a exigir uma adequada resposta jurídica.

Pois, se por um prisma, tais avanços conquistaram novos horizontes na medicina, que de pronto recebeu o aplauso e a admiração da sociedade, criando esperanças, em contrapartida, impôs ao jurista a árdua tarefa de normatizá-la, atendendo os preceitos e aspirações, éticas, humanas, sociais dentre outras [...] (BANDEIRA, 2001).

Desse modo, o nível de desenvolvimento alcançado pelas ciências médicas em beneficio da humanidade, não validam atos que atentem contra a dignidade da pessoa humana, mesmo sob a égide de tecnologias salvadoras.

Consoante o descompasso existente entre o progresso científico e os valores religiosos, políticos e culturais, é que a bioética e o biodireito são convocados para construir soluções aos desequilíbrios que ocorre entre, a liberdade cientifica e os freios ético-jurídicos.

Nesta esteira, configura-se incontroverso que o tema proposto, suscita grande interesse nos diversos ramos das ciências, sobretudo nas áreas ligadas diretamente a problemática dos transplantes, em especial para o estudo da bioética, que ocupa hodiernamente posição relevante, quando o assunto em discussão são os novos desafios advindos do vertiginoso desempenho das ciências médicas. (BANDEIRA, 2001)

É inegável a importância da bioética para a composição dos problemas ético-filosóficos que afligem as novas concepções das ciências, contudo não devemos nos aprofundar neste duplo estudo, mas simplesmente lembrar que transplante é objeto de debate dos parâmetros éticos proposto pela bioética.

Do nosso ponto de vista, todo esforço cientifico que beneficie o ser humano segundo a sua natureza e sua finalidade, será visto com bons olhos, contudo para uma ação humana ser boa, sua finalidade terá objetividade para o bem, e que os meios para atingir este fim também o sejam.

O reflexo do desenvolvimento médico-científico no campo dos transplantes apresentou ao longo de três décadas, considerável aperfeiçoamento na capacitação técnica dos profissionais, que atuam em diversas modalidades de transplantes, este fato se deve ao aprimoramento e emprego de medicações imunológicas que prepõe eliminar a rejeição dos órgãos transplantados, sendo superado dessa forma uma das maiores dificuldades para a concretização dos transplantes. (SGRECCIA, 1996)

Ante as considerações iniciais, proceder-se-á uma síntese histórica da gênese dos transplantes de órgãos, trazendo a lume e cultura folclórica até o desenvolvimento de técnicas cientifica que objetivam a continuidade e melhoria na qualidade de vida.


3. SINOPSE HISTÓRICA SOBRE A EVOLUÇÃO DO TRASNPLANTE NA MEDICINA

No passado a ideia de remover partes de pessoas para fins de transplante, segundo a medicina antiga estava ligada a lendas, divindades e histórias mitológicas. Entretanto as anotações mais remotas desses acontecimentos, Catão (2004) encontra-se na Índia antiga e na China, onde os textos criados há cerca de 1.200 a.C compõem os fundamentos da tradição religiosa e filosófica desse povo.

Nesta seara, a professora Sá em sua obra (2000), enfatiza que o aparecimento dos atos transplantológicos tem seu fundamento erigido na antiguidade, notadamente a partir de acontecimentos insólitos de seres sobrenaturais.

Contudo ainda seguindo a doutrina ora mencionada, a narrativa histórica trazida pela medicina encontra relatos em épocas distintas, a exemplo da idade moderna

Nos séculos XV e XVI, ocorreram às primeiras tentativas de utilizar tecidos procedentes de pessoas e animais para serem aproveitados. Contudo, as operações culminaram em fracasso, visto serem primitivos os procedimentos adotados, sem levar em conta as infecções contraídas.

Esta concepção de transplantes, também encontra berço nas lendárias escrituras dos povos chineses. Por volta de 300 anos a.C o cirurgião Pien Chiao realizou a transferência de órgão cardíaco de um irmão para outro.

As pesquisas, no campo da arqueologia, fazem menção às civilizações Egípcia, Grega e na América pré-colombiana que registram transplantes de dentes, ligamentos de orelhas e narizes. (CATÃO 2004).

Segundo chaves ( apud DINIZ 2008, p.291) entre 285 e 305 da era cristã os relatos lendários contam que, os médicos e mártires do catolicismo, Cosme e Damião, em beneficio de um doente que precisava amputar a perna gangrenada, se dirigiam até o cemitério e exumaram o corpo de um etíope e transplantaram o membro no moribundo.

Esse arcabouço imaginário atravessou os tempos e teve sua contribuição para o reconhecimento do transplante curativo, difundindo a ideia da valorização do corpo humano como repositório de órgãos e tecidos.

Inclui-se de igual modo outras passagens nos experimentos nessa ambiência dos transplantes de órgãos, em meados dos séculos XX, nos Estados Unidos, ocorreram cirurgias transplantadoras de órgãos renal. Porém, o maior problema constatado e enfrentado pela medicina, encontrava-se ligado a rejeição do organismo receptor desse novo órgão doado ( OLIVEIRA, 2004).

Estes acontecimentos foram assimilados e seguidos por outros povos, em várias regiões do mundo, assim estivessem presentes as condições técnicas para realização de transplantes de diferentes partes do corpo humano. Sobre o assunto Sá (2000) pontua que

[...] o primeiro transplante ósseo remonta ao ano de 1990, em Glasgow, Escócia. Posteriormente, na Itália, em 1931, foi realizado um transplante de glândulas genitais. Tal fato suscitou polêmicas no campo das ciências médicas e jurídicas, porquanto o doador vivo cedeu a glândula por dinheiro.

Todavia, o reconhecimento dos transplantes, propriamente dito como método cientifico, nos dizeres de santos (1992, p. 129) se consolidou em Boston no ano de 1954, com a cirurgia praticada por Joseph Murray ao transplantar de um irmão gêmeo univitelino para o outro um rim. O êxito alcançado por tal feito foi atribuído à inexistência de diferenças imunológicas entre os irmãos.

Tinha inicio, então, a fase pioneira dos transplantes a partir de 1960 com o aperfeiçoamento de técnicas cirúrgicas modernas, ou seja, o emprego de soluções antissépticas, instrumentais cirúrgicos específicos, medicações anestésicas; imunossupressoras, antibióticos e outros aparatos de igual valor para efetivação do ato operatório.

Disseminou-se, assim a utilização desse suporte técnico, garantindo que os atos cirúrgicos envolvendo: fígado, pulmão, medula, coração e ossos fossem acolhidos para possível transplante. Essas manifestações do progresso que cuidam da vida e da morte são vistas inicialmente com cautela e desconfiança, pois envolvem a integridade física e psíquica do ser humano.

Ainda, no entendimento da autora Fátima Oliveira (2004), o esforço cientifico, nesse segmento, começou a mostrar resultados com o transplante realizado pelo cirurgião Dr. Christian Barnard, em 03 de dezembro de 1967, na cidade do Cabo (África do Sul), o ato cirúrgico retirou o coração de um ser humano falecimento e transplantou em um dos seus pacientes, que sobreviveu apenas 18 dias.

Foi neste mesmo ano (1967) nas palavras de Clamente (2008) que os brasileiros tiveram um primeiro contato com o universo dos transplantes, quando Dr. Christian Barnard concedeu a um programa de televisão entrevista, relatando a dramaticidade de uma cirurgia de alto risco;

No Brasil, Oliveira (2004) destaca que as cirurgias de transplantes alcançaram seu período de glória , com o cardiologista Dr. Euryclides Zerbine ao realizar o primeiro transplante de coração de America Latina na cidade de são Paulo, 26 de março 1968, no Hospital das Clinicas. O transplantado conseguiu sobreviver por 27 dias.

Assim, pode-se afirmar que diante das muitas conquistas alcançadas pelo desdobramento e materialização desses estudos, a medicina cirúrgica transplantológica é uma das áreas que mais se destacou, nos resultados obtidos, em resposta a um número crescente de pacientes.

O reconhecimento da sociedade a esta modalidade terapêutica, é indiscutível, entretanto o sucesso desse tratamento, nos ensinamentos de França e (2007) Bandeira (2001) envolve uma delicada relação entre: o paciente que espera um órgão e depende da beneficência do doador vivo ou da filantropia da família do doador cadáver, e por fim a perfeita regência da equipe médica cirúrgica.

A esses admiráveis acontecimentos seguiram-se muitos outros. A experiência histórica traduzida na efetivação desses esforços certamente desperta a necessidade de um aprimoramento técnico.

Para estabelecer as bases desse estudo trataremos a seguir dos conceitos de transplantes e os demais significados correlacionados ao tema.


4. CONCEITOS DE TRANSPLANTE, ORGÃOS E TECIDOS

Por se tratar de uma terminologia comum, é imprescindível delimitar o objeto em análise de acordo com a especificidade do assunto. Por tanto, há que se conceituar harmonicamente a expressão transplante tanto para área médica quanto para jurídica, sem desviar o foco do objetivo especifico desse estudo que corresponde ao consentimento post mortem.

É oportuno distinguir inicialmente o vocábulo transplante como dito no Aurélio Buarque de Holanda (2004, p. 721)

Transplante sinônimo de transplantação, ato ou efeito de transplantar, arrancar (planta, árvore) de um lugar e plantar em outro. Transferir (órgão ou porção deste) de uma para outra parte do mesmo individuo ou de individuo vivo ou morto para outro[...]

De igual forma, a legislação especial conceitua o transplante como sendo manifestação de ablação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para que seja reutilizado com a finalidade terapêutica.

A acepção que emprega a Aliança Brasileira pela doação de Órgãos e Tecidos definiu o transplante de órgãos e tecidos como

Procedimento cirúrgicos, que consiste na reposição de um órgão (coração, pulmão, rim, pâncreas, fígado) ou tecido (medula óssea, ossos, córneas.) de uma pessoa doente (RECEPTOR), por outro órgão ou tecido normal de um (DOADOR) vivo ou morto.

Tomaremos a definição de transplante trazida por Casabona (apud Santos 1992, p.104) por transplante compreende-se

Técnica cirúrgica, denominada cirurgia substitutiva, que se caracterizou em essência por que se introduz no corpo do paciente um órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou falecimento, com fim de substituir a outros da mesma entidade pertencente ao receptor, porém, que tenham perdido total ou sensivelmente sua função. A natureza desse tipo de intervenção do ponto de vista do receptor – posto que com relação ao doador a situação é diversa – é de estima –lá, em consequência, como uma intervenção curativa, sempre que exista a indicação terapêutica e se aplique a técnica adequada ao caso.

O que se entende a partir dessas condições, é que o transplante de órgãos em seres humanos, é um procedimento cirúrgico a qual se submete o paciente, acometido de falência de um ou mais órgãos, com a finalidade de substituí-lo por outro saudável.

Portanto, entre as definições relevantes para o entendimento do assunto é adequado conceituar alguns termos usados pela medicina que passou a ser tratado como objeto de relações jurídicas na legislação especial, quais sejam : órgão, tecido e enxerto.

A terminologia enxerto é tratada por algumas doutrinas como sendo sinônimos de transplantes, no entanto esclarece Santos (1992) que o entendimento é diferente, pois por enxerto entende-se qualquer coisa inserida em outra de modo a se tornar parte integrante desta ultima, especificamente um pedaço de osso, pelo, dente, etc., implantado para suprir um defeito.

Nesse diapasão, a legislação de transplante refere-se ao termo doador para designar quem dispõe de órgão em favor de outrem e receptor para indicar a quem se implantou o órgão doado.

Ao definir

Conjunto de células especializadas no desempenho da mesma função ou de um grupo definido de funções, tendo a mesma matriz extracelular. Em geral apresenta organização semelhante ou entre elas predomina um tipo e estrutura celular.

No cerne deste estudo cumpre ressaltar a definição de transplante, como dito por Oliveira (2004, p.17), [...] é uma técnica cirúrgica que consiste em retirar material genético (transgênese ou transgenia ), células, tecidos ou órgãos de organismo e implantá-los em outro, da mesma espécie ou de espécie diferente.

Enfim, entende-se que os transplantes são cirurgias complexas cercadas por um aparato técnico altamente sofisticado, que, portanto, deverão ser realizadas quando os tratamentos convencionais, já não apresentam resultados. Dada a riqueza dos elementos que compõe o objeto estudado.

Vale frisar sinteticamente a classificação das modalidades e dos tipos tratado na legislação própria.


5. CLASSIFICAÇÃO CIENTIFICA DOS TRANSPLANTES

Comumente é empregado o termo transplante para designar todo ato cirúrgico que retire o órgão, tecido ou parte de corpo humano vivo ou morto para implantá-lo em outra pessoa.Sendo assim, a literatura médica lançou mão de uma categorização para identificar com precisão os tipos de cirurgias existentes nos anais da medicina. Como bem esclarece o professor Catão(2004, p.202) [...] “em geral os transplantes estão submetidos a uma classificação no âmbito cirúrgico voltada, principalmente, a resguarda a compatibilidade biológica entre doador e receptor”.

Assim sendo, para um adequado atendimento em torno das necessidades do doador e receptor foi instituído uma categoria no campo da medicina legal para denominar os vários tipos de transplantes( CATÃO,2004)

Já para Santos (1992, p.132) a terminologia adotada pela doutrina médico legal padeceu de Imprecisões. Entretanto, explica que foi acolhida uma categorização como a mais adequada pelas ciências, quais sejam:

  1. Isogênico ou isotransplante: Transplante de tecido ou órgão entre indivíduos da mesma espécie e com caracteres hereditários idênticos. É o caso dos gêmeos univitelinos.

  2. Alotransplante ou homotransplante de tecido ou órgão entre indivíduos da mesma espécie, porém com diferentes caracteres hereditários. Este pode ser dividido em:

    • Homotransplante entre vivos, quando a parte anatômica provém de pessoa viva através de cirurgia terapêutica eletiva, que realizo-se possivelmente por acidente ou fato por lesão.

    • Homotransplante do cadáver quando sua origem é de corpo humano sem vida. Se para o homotransplante entre pessoas vivas a preocupação é proteger a saúde do doador, já na doação de cadáver o problema centra-se na certeza do momento da morte do disponente para mantença da vida do receptor.

  3. Autotransplante ou autógeno: transferência de tecido ou órgão de um lugar para o outro, na mesma pessoa. Um exemplo é as cirurgias plásticas corretivas, que deslocam pele de um lugar para o outro na mesma pessoa.

  4. Xenotransplante: é a transferência de órgãos ou tecidos de um ser vivo para outro de espécie diferente. É o caso do aproveitamento de órgãos e tecidos de animais em pessoas; chipanzé ao homem: doador e receptor de espécies diferentes.

Para a área cirúrgica esta divisão torna-se importantíssima, pois identifica os transplantes pelo grau de afinidades biológica entre o doador e o receptor, ou seja o fenômeno imunológico do grau de rejeição.

Os transplantes também são distintos quanto à natureza das partes anatômicas:

  1. Isotransplantes, que são utilizados em virtudes de traumatismos ou processos mórbidos irreversíveis e necessários, não só para suprir funções secundárias, mas também para reintegrar ao organismo em seu aspecto morfológico;

  2. Organotransplantes, estes são destinados a suprir a função total de um órgão comprometido, estando este com completas lesões anatômicas difusas ou circunscritas, não remediáveis com o enxerto daquela parte alterada.

Essa distinção segue uma sequência de maior abrangência, porém para as considerações adiante é satisfatório o exposto. Como bem menciona Santos (1992) Em razão desse amoldamento o legislador pátrio entendeu que deveria contemplar na lei especial as duas espécies citadas.

Logo, para efeito do assunto aqui abordado se tratará do transplante entre indivíduos da mesma espécie, tendo em vista as disposições trazidas no texto da lei de transplantes.


6. CONSENTIMENTO INTER VIVO E POST MORTEM

O termo consentimento, em sua acepção alude, “acordo de vontade das partes para alcançar um objeto comum” ou, uniformidade de opiniões, concordância de declaração, aceitação, pressupõe, por fim a existência de dois sujeitos que reciprocamente manifesta conscientemente a sua vontade sobre o mesmo objeto.

Alude enfatizar que o uso da expressa, consentimento, contido no texto de lei, sob a ótica da ambiência medica em especial o código que rege a categoria, legitima o profissional a atuar neste complexo e polêmico segmento, isto é pautado nos ditames legais na ética, e acima de tudo no principio constitucional da dignidade da pessoa humana.

No campo doutrinário especializado, estar pacificado que, na relação médico paciente, há que existir a necessidade do consentimento. Assim, em regra o acordo prévio, expresso ou tácito, será necessário, salvo três exceções: quando a lei de intervenção vislumbrar risco para a saúde público; quando ocorrer incapacidade do paciente, sendo nestas condições, delegado aos familiares ou pessoas próximas se posicionarem; quando da hipótese de se deparar com um caso de urgência, e o perigo da demora erigir dano irreparável ou óbito (BANDEIRA, 2001)

6.1 Consentimento inter vivos

O estudo concernente aos transplantes de órgãos e tecidos entre pessoas vivas requer que situemos dentro do contexto legal vigente lei nº 9.434/97 artigo 9º parágrafos 3º ao 8º, faz-se necessário a transcrição do artigo 9º lei 9.434/97 com a atual redação apresentada pela Medida Provisória nº 1959-27 de 24 de outubro de 2000 (CATÃO, p 205)

Art. 9º É permitido a pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecido, órgãos e parte do próprio corpo vivo para fins terapêuticos ou para transplante em cônjuge ou consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do 4º deste artigo, ou qualquer pessoa mediante autorização judicial, dispensada essa em relação á medula óssea.

Em conformidade com o acima exposto, nos transplantes inter vivos é sempre necessário que o doador tenha pleno conhecimento das implicações que poderá advir desse ato. Pois a disposição de pare do corpo em vida por alguém se entende como manifestação da vontade, seria e definitiva.

6.2 Consentimento post mortem

No procedimento de transplante de órgão e tecidos advindo de um corpo humano em óbito, suscita grande discussão no meio cientifico, duvidas no que concerne ao exato momento da determinação da morte, todavia a questão encontra-se pacificada no art. 4º na lei especial nº 9.434/97, a partir do qual habilita o procedimento da colheita, surge neste aspecto o problema do consentimento da família, notadamente quando a pessoa falecida não manifestou em vida vontade.

Diante do modelo de consentimento dotado pela lei especifica, se faz necessário trazer a baila uma reflexão critica dos aspectos, mas relevantes, no sentido de promover a efetivação dessa forma de doação, ou seja, a retirada de material orgânico do cadáver.

Desse modo, ante a constatação da morte encefálica, caberá à família desse possível doador, autorizar os procedimentos da colheita dos órgãos e tecidos, neste aspecto torna-se imprescindível a habilidade multidisciplinar para capitação desses órgãos, eis que trata-se de momento de dor e constemação para os parentes. Fragilizados pela noticia da perda de seu ente querido, associado ao desconhecimento da matéria (BANDEIRA, 2001, p 139)

Vale lembrar que no período de 1968 a 1977 era legítimo o consentimento da vontade do individuo no que concerne à disposição de seu corpo após sua morte. Todavia a redação do atual diploma passou a outorgar a aludida decisão para família, demonstrou-se então que a questão do consentimento, ainda é um obstáculo na capacitação de órgãos de doadores mortos.

Bandeira faz as seguintes considerações (201, p. 67)

[...] diversos projetos de lei foram apresentados para regulamentar a caótica situação da cirurgia de transplante. Mas, somente em 02/09/92, a Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que, com intenção de elevar o numero de transplante, propunha que, se a pessoa se manifestasse em vida com doadora, não semas necessária a consulta a família para retirada de órgãos, depois de sua morte.

Ainda sob o aspecto do consentimento, Catão (2004, p.216) leciona no sentido de que deva ser observada e executada a vontade objetiva por ato inter- vivos, cuja eficácia e respeito se verificam após morte.

Nessa direção o professor Roquette (2006, p. 9) esclarece que

Se para uns a outorga do direito de disposição à família corresponde a um apelo de natureza solidária, ainda assim consideramos que a lei 10.211/01 viola o direito à integridade em sentido imaterial ou moral da pessoa humana ao considerar o individuo como centro emanador de vontade sobre si mesmo conforme principio constitucional da liberdade individual, transferindo à sua família o direito de dispor sobre o corpo humano post mortem do mesmo.

Nesta seara, no que pese todo esforço legislativo para atender os princípios que norteiam a matéria e solucionar a questão do consentimento, observa-se que esta não surtiu o efeito desejado, eis que a norma ora pontificada, no intuito de garantir o principio constitucional da liberdade individual, acabou por restringir o fenômeno do consentimento, gerando grave incongruência com Carta Magna, uma vez que o próprio texto constitucional, estatui que a lei infraconstitucional disporá no sentido de facilitar a remoção de órgãos.

Em suma, o espírito do texto constitucional no que versa sobre a determinação de facilitação por meio da lei infraconstitucional, poderá ser viabilizado, de forma a contemplar com, mas eficácia o problema perene da escassez de órgãos, para tanto deverá o aludido texto coadunar-se com ideia de atribuir maior importância a liberdade individual sem prescindir do fenômeno do consentimento em ser doador ou se opor a esta condição expressamente.

Na hipótese de ocorrer ausência expressa do doador, para satisfazer o mandamento constitucional, e a eficácia do sistema de transplante, cumprirá a família decidir sobre a doação, em decidindo positivamente estará dinamizando e disponibilizando mais órgãos para transplante.

Ainda no que tange aos argumentos aduzidos, é impossível perder de vista, a condição de permanente limitação de órgãos no país.

No Brasil, a legislação atual especial que versa sobre a doação de órgãos para fins de transplante adotou o consentimento informado, logo, com a certificação da morte encefálica, pertencerá à família a decisão de reconhecer a vontade do de cujus autorizando ou não a doação.

Assim, no momento de concordar ou discordar da disposição dos órgãos para doação, é o parente maior, na linha reta ou colateral, até o segundo grau que poderá determinar a retirada de órgãos, e tecidos para transplante

Lembrando ainda, que após a decretação da morte encefálica, o tempo decorrido entre a solicitação do consentimento dos parentes e o tempo necessário para que possam formular sua vontade, poderá inviabilizar a retirada dos órgãos e consequentemente o êxito do transplante. (BANDEIRA, 200, p. 140)

6.3 O consentimento no direito comparado

A questão trazida como maior desafio pra a legislação transplantologica brasileira, é sem dúvida o consentimento. Esta afirmação justifica-se pela ineficiência apresentada pelo modelo atual (DINIZ, 2008)

Neste sentido, importante se faz promover um estudo das legislações aplicadas em outros países, tendo em vista a existência de quatro modalidades para doação de órgãos e tecidos.

Na classificação descrita por Diniz, (2008, p. 318) o modelo adotado nos Estados Unidos, Brasil, Canadá, México, Inglaterra e outros são o do consentimento, que exige a anuência expressa do doador ou de sua família para realização da doação.

O modelo de informação, adotado pela Italia determina que em não havendo manifestação da pessoa, após sua morte é feita uma comunicação aos seus parentes sobre a intenção da retirada dos órgãos e tecidos para salvar humanos.

E por fim o da oposição ou discernimento ou do consentimento presumido, sistema adotado na Áustria, Dinamarca, Suécia, Bélgica, Austrália, França e outros, poderá o cidadão se opor, caso não o faça tornar-se-á um doador em potencial depois que os médicos constatarem a morte encefálica.

Esse tipo de doação como anteriormente dito vigou no Brasil, por determinado período, entretanto acabou sendo substituída por pressão das entidades religiosas, ensejando assim o atual modelo. Este por sua vez revelia que a pessoa falece e, meso que tenha deixado registrado vontade de doar seus órgãos, essa anuência não terá validade, seus familiares é quem tem a palavra final.

A inexistência dessa espécie de consentimento demonstra dificuldade reais que são exteriorizadas na recusa dos familiares, à doação dos órgãos de seu parente, pois trata-se de um pedido num momento dificílimo e muitas vezes estão presas as suas convicções religiosas.


7. CONCLUSÃO

Os avanços da medicina e das ciências biológicas em geral, cada vez mais, vão colocar desafios para entendimento do home comum, principalmente quando geram possibilidades de modificar o seu cotidiano.

Quanto ao transporte, para o jurista, esse desafio será duplo, pois implica o entendimento do que vem a ser essas mudanças e a sintonia com a visão de mundo e os direitos do individuo de se submeter, ou não as intervenções possibilitadas por esses avanços.

O consentimento para as doações de órgãos e tecidos abre um leque de questões que necessitam de respostas tanto da medicina quanto do Direito, ness diapasão apresenta-se a questão da manifestação para doação de órgãos, tecidos e parte do corpo, disciplinada por lei especial § 4 da lei nº 9.434/97 determinando que o consentimento para doação de material orgânico post mortem seja única e exclusivamente de responsabilidade da família. Logo com a certificação da morte encefálica, pertencerá aos parentes a decisão de reconhecer a vontade do de cujus, autorizando ou não a doação.

Desta forma, o texto legal limitou a manifestação de vontade à quem no momento de dor e sofrimento, nem sempre concorda em doar os órgãos de seu ente querido, talvez por desinformação, convicções religiosas ou simplesmente por não saber a vontade do falecido.

Vale lembrar que no período de 1968 a 1997 era legitima a vontade da pessoa para disposição de seu corpo após sua morte. Entretanto com a entrega dessa decisão à família, demonstrou que a questão do consentimento, ainda é um obstáculo na capacitação de órgãos de doadores mortos.

Ainda no que tange os argumentos aduzidos a Constituição Federal determina que a lei infraconstitucional “disporá de condições que facilitem a remoção de órgãos”, por conseguinte , a matéria em análise não recebeu o tratamento que deveria, tendo em vista o entrave criado aos que desejam dispor de seus órgãos em vida para doação após a morte.

Por fim, propõe-se o crescimento desse debate, para o transplante no Brasil deixe de enfrentar os problemas ligados a qualidade e quantidade de órgãos, tecidos ou partes do corpo doado.


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