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Do direito marítimo e da responsabilidade civil do transportador marítimo

Aspectos jurídicos que Interessam ao seguro de transporte de cargas

Do direito marítimo e da responsabilidade civil do transportador marítimo. Aspectos jurídicos que Interessam ao seguro de transporte de cargas

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Da Responsabilidade Civil do Transportador Marítimo

            Antes de mais nada, convém posicionar o Direito Marítimo dentro da idéia de completude do Direito.

            Como se sabe, o Direito é um só. Classicamente, porém, costuma-se dividi-lo em Direito Público e Direito Privado.

            Segundo Hans Kelsen, a divisão do Direito em Público e Privado, consiste, via de regra, na generalidade da norma jurídica.

            O Direito Marítimo é misto. O Direito Misto, conforme diz Paulo Dourado de Gusmão, é a parte do Direito em que, sem haver predominância, há confusão de interesse público ou social com o interesse privado.

            Diz-se que o Direito Marítimo é misto porque ora opera com normas de natureza pública (ex.: Regulamento Aduaneiro, Decreto nº 91.030/85), ora com as de natureza privada, como as que regem o comércio marítimo em geral.

            Mas, afinal, qual o conceito de Direito Marítimo?

            Não se tem um conceito ideal da matéria. Há, até, quem defenda a inexistência de um "Direito Marítimo", tratando-se, pois, de um mero segmento do Direito Comercial e, naturalmente, do Direito Civil.

            Não obstante, pode-se conceituar o Direito Marítimo como parte do Direito Comercial dedicada ao estudo das normas que regulam a "indústria" da navegação, o comércio marítimo e todos os atos, fatos e negócios jurídicos inerentes.

            Predomina o entendimento, defendido pela poderosa Scuolla Del Diritto della Navigazione, de que o Direito Marítimo é um Direito autônomo, apesar de ser tido como parte do Direito Comercial, a par de sofrer o influxo das normas publicistas.

            Importante: boa parte da doutrina trata o Direito Marítimo como sendo a mesma coisa que o Direito da Navegação. Não é bem assim!

            O Direito da navegação é essencialmente de ordem pública, contendo inúmeras normas internacionais. Disciplina, predominantemente, as chamadas regras de marinharia. Vale dizer: trata da regulamentação do tráfego visando a segurança da navegação, nos portos, nas vias navegáveis e no alto-mar (Ex.: regras de sinalização e de uso de bandeiras).

            Além disso, o Direito da Navegação não está limitado ao campo marítimo, abraçando, também, o aéreo.

            Logo se vê que o Direito Marítimo é mais amplo que o da Navegação, abrangendo questões mais complexas, normalmente de ordem contratual.

            Pois bem, posicionado o Direito Marítimo, faz-se importante comentar a ferramenta que instrumentaliza os transportes marítimos de cargas, qual seja: o contrato de transporte.

            O contrato de transporte marítimo é o instrumento que estabelece o vínculo jurídico entre o transportador e o consignatário das mercadorias transportadas. O embarcador, ou seja, aquele incumbido de embarcar as mercadorias (normalmente o produtor das mesmas), embora expressamente citado no contrato de transporte, não é parte principal dele, uma vez que ele contrata por conta e ordem do consignatário.

            É denominado Conhecimento de Embarque, Conhecimento de Frete, Conhecimento de Carga, Conhecimento de Transporte e, mais comumente, Conhecimento Marítimo. Universalmente, se faz conhecido pela expressão inglesa Bill of Lading (B/L).

            O Conhecimento Marítimo, sua emissão e legitimidade, é regulado por leis específicas e, principalmente, pela Convenção de Bruxelas, conhecida por Regras de Haia, de 1924. No Brasil, os dispositivos legais que regulam o referido instrumento negocial estão genericamente contidos no Código Comercial e, especialmente, no Decreto nº 19.473/30.

            O contrato de transporte marítimo é um típico contrato de adesão. O embarcador e o consignatário submetem-se às cláusulas e condições estabelecidas unilateralmente pelo transportador. Estas cláusulas e condições já vêm impressas no anverso do contrato, não cabendo aos aderentes qualquer disposição de vontade.

            Daí, dizer-se que mesmo sendo um contrato, o contrato de transporte marítimo não se ajusta, na sua plenitude, com o primado universal dos contratos que é o da livre manifestação de vontades entre as partes contratantes. Nele, somente prevalece a vontade de um, a do transportador marítimo.

            De se notar que sendo um contrato de adesão, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que as chamadas cláusulas impressas devem ser interpretadas, preferencialmente, com base na eqüidade, sendo certo que, havendo dúvida, a interpretação deve favorecer a parte que foi obrigada a aderir, minimizando, assim, os efeitos negativos da imposição ditada pelo transportador.

            Atualmente, a interpretação dos contratos de transporte marítimo deve estar imantada da legislação consumerista, haja vista o fato de o transportador marítimo ser um típico prestador de serviços e o consignatário, o destinatário (consumidor) final destes serviços. Logo, conforme dispõe o Código de Defesa do Consumidor, eventuais cláusulas abusivas, como as que limitam a responsabilidade do transportador, são tidas como não válidas, juridicamente ineficazes (nulas, na verdade).

            O Conhecimento Marítimo serve para registrar as condições pactuadas (ainda que unilateralmente) para determinado transporte, sendo consignada no seu verso a discrição completa das mercadorias confiadas para o transporte. A lei também confere ao Conhecimento Marítimo a qualidade de representar a mercadoria nele estampada, sendo, portanto, verdadeiro título de crédito. Poderá, assim, a mercadoria ser negociada através de simples transferência do conhecimento original, por endosso, sendo que ao último endossatário caberá o direito de propriedade sobre a carga, podendo exigi-la do transportador marítimo no porto de destino convencionado. Por tal razão, costuma-se chamar o Conhecimento Marítimo de "Nota Promissória do Mar".

            Por fim, convém esclarecer, como será visto mais adiante, que o contrato de transporte marítimo, como todo contrato de transporte, é um contrato de fim, ou seja, aquele em que o resultado positivo da obrigação pactuada é imprescindível para o seu regular aperfeiçoamento enquanto negócio jurídico. Nele, o devedor da obrigação, vincula-se ao resultado propriamente dito e não apenas aos meios para se obtê-lo.

            Assim, tem nascedouro a idéia de responsabilidade civil do transportador marítimo.

            O contrato de transporte pode ter por objeto a condução de pessoas, bens ou notícias, e se opera pelos diversos modos disponíveis: terrestre, aéreo, fluvial, marítimo e por meio de carros, carretas, caminhões, trens, aviões, chatas, barcos, navios, etc.

            Interessa-nos o transporte de bens, por via marítima e por meio de navio.

            A responsabilidade civil do transportador marítimo, a exemplo dos transportadores em geral, é de natureza contratual e é regida pela teoria objetiva imprópria.

            A teoria objetiva imprópria é aquela em que a culpa do transportador, havendo inadimplemento do contrato de transporte, é sempre presumida.

            O transportador só conseguirá eximir-se dessa presunção legal de culpa provando a existência, no caso concreto, de alguma das causas excludentes de responsabilidade previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

            A adoção da teoria objetiva imprópria encontra fundamento jurídico no Decreto legislativo (Lei Federal) nº 2.681/12, mais conhecido como "Decreto das Estradas de Ferro" (também "Decreto dos Transportes") e no Código Comercial, especificamente artigos 101/104.

            O Decreto legislativo (Lei Federal) nº 2.681/12, aplicável aos transportadores em geral, elaborado no início do século, e o Código Comercial, datado da época do Império, foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, razão pela qual estão em pleno vigor, produzindo todos os efeitos jurídicos a que se destinam, em especial o de regular a responsabilidade civil dos transportadores de bens.

            Diz o art. 1º do Decreto legislativo (Lei Federal) nº 2.681/12 que: "Art. 1º — será sempre presumida a culpa do transportador". Vê-se nas suas letras inaugurais que o dito dispositivo legal adotou a idéia de responsabilidade objetiva para regrar a situação jurídica dos transportadores — posição vanguardista à época.

            Referida norma jurídica foi elaborada, como já se disse, para disciplinar a responsabilidade civil dos transportadores ferroviários, tanto assim que é mais conhecido pela expressão "Decreto das Estradas de Ferro". Hoje, porém, é pacífico o entendimento de ele ser aplicável aos transportadores em geral, entre eles o transportador marítimo.

            A propósito, diz Carlos Roberto Gonçalves:

            "No direito brasileiro a fonte dessa responsabilidade encontra-se na Lei n. 2.681, de 7 de dezembro de 1912, que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro. Tal lei, considerada avançada para a época em que foi promulgada, destinava-se a regular, tão-somente a responsabilidade civil das estradas de ferro. Entretanto, por uma ampliação jurisprudencial, teve a sua aplicação estendida a qualquer outro tipo de transporte: ônibus, táxis, lotações, automóveis, etc. Inicialmente, referida lei teve a sua aplicação estendida aos bondes elétricos, dada a sua semelhança com os trens. Posteriormente, a idéia foi transferida para os ônibus, automóveis e todas as espécies de transportes, até mesmo os elevadores." (Responsabilidade Civil, Saraiva, 4ª ed., São Paulo: 1988, p. 111)

            Antes do advento do mencionado Decreto legislativo, o Código Comercial já regulava a matéria nos seus artigos. 101, 102 e 103, a saber:

            Art. 101. A responsabilidade do condutor ou comissário de transportes ou comissário de avarias começa a correr desde o momento em que recebe as fazendas, e só expira depois de efetuada a entrega.

            Art. 102. Durante o transporte, corre por conta do dono o risco que as fazendas sofrerem, proveniente de vício próprio, força maior ou caso fortuito.

            A prova de qualquer dos referidos sinistros incumbe ao condutor ou comissário de transportes.

            Art. 103. As perdas ou avarias acontecidas às fazendas durante o transporte, não provindo de alguma das causas designadas no artigo precedente, correm por conta do condutor ou comissário de transportes.

            A redação dos sobreditos artigos evidenciam, tão claro como o sol que reluz, que obrigação do transportador marítimo é a de resultado, devendo ele entregar os bens confiados para o transporte em idênticas condições as recebidas, sob pena de se configurar, a rigor, o inadimplemento da obrigação assumida e, com ela, a respectiva responsabilidade.

            Como é sabido, a obrigação nasce de diversas fontes e deve ser cumprida livre e espontaneamente pelo credor. O contrato de transporte marítimo, por exemplo, é fonte de obrigação específica. Pois bem, quando não ocorre o pronto cumprimento da obrigação pactuada, surge a responsabilidade. Obrigação e responsabilidade são figuras jurídicas afins, porém inconfundíveis. Esta decorre do inadimplemento daquela, sendo considerada a consequência jurídica e patrimonial do descumprimento da relação obrigacional, conforme prescreve o artigo 159 do Código Civil.

            No instante em que recebe os bens, o transportador marítimo assume a mesma natureza de um depositário. A natureza de depositário implica dever objetivo de cuidado, nas modalidades guardar, conservar e restituir. Somente com a efetiva e boa entrega dos bens a quem de direito, é que o negócio jurídico a que o transportador estava vinculado se aperfeiçoa, extinguindo-se, pois, a sua responsabilidade.

            Havendo qualquer dano nos bens, falta e/ou extravio, é imputada ao transportador a presunção de culpa independentemente de prova (a responsabilidade pelo descumprimento da relação obrigacional).

            Como já mencionado, a presunção legal de culpa só poderá ser afastada mediante prova da existência de alguma causa excludente de responsabilidade prevista no rol taxativo do art. 102 do Código Comercial, ou seja: vício de origem, caso fortuito ou força maior. Há, então, inversão do ônus da prova. É a regra insculpida na segunda parte do referido artigo legal.

            Inverter o ônus da prova é dizer que o credor do contrato de transporte inadimplido não está obrigado a provar a culpa do devedor, porque legalmente presumida, mas o devedor, entenda-se: transportador, querendo afastar a sua responsabilidade pelo dano, está obrigado a provar a existência de alguma das causas excludentes já mencionadas.

            É o que diz a lei e o que entende a doutrina brasileira.

            Agostinho Alvim, por exemplo, discorre:

            "Realmente, a obrigação do transportador é de fim e não de meio. Não se obriga ele a tomar providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Daí a apreciação rigorosa da sua responsabilidade" Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências, Saraiva, 1955, p. 341

            O entendimento do citado autor está consagrado na Jurisprudência brasileira, que há muito pacificou o tema. Rodrigues Alchimin, magistrado de 2º Grau, ao enfrentar um caso concreto dessa natureza, fez da sua Decisão uma preciosa lição que, emblemática, serve para traduzir o pensamento dominante nos Tribunais de todo o Brasil:

            "Em se tratando de contrato de transporte, é obrigação do transportador conduzir a mercadoria, sem qualquer dano, ao destino. Se a mercadoria, ao término da viagem, apresenta danos, é evidente que o transportador não deu cabal desempenho ao contrato e responde por falta contratual. Daí a conclusão de que a responsabilidade do condutor e do comissário de transporte começa desde o momento em que receberam as mercadorias e só se expira depois que as entregam ("LYON CAEN ET RENAULT", Traité de Droit Commercial, III, 593, SABRUT, Transport des merchandises, nºs. 653 e seguintes), sendo que as perdas ou avarias acontecidas às ditas fazendas correm por sua conta, salvo se provenientes de vício próprio, força maior ou caso fortuito (Código Comercial, arts. 102 e 103)"

            Nesse sentido e orientando o seu entendimento especificamente aos transportadores marítimos, Luís Felipe Galante, advogado fluminense especializado em Direito Marítimo, diz:

            "O transportador marítimo é responsável pelas avarias ou extravios de mercadorias confiadas ao seu transporte de forma objetiva, isto é independentemente de culpa. Em outras palavras, ocorrendo problemas, ocorrendo problemas com a carga embarcada, ele está a priori obrigado a ressarcir o dono das mercadorias dos prejuízos sofridos, tenha agido ou não com culpa no episódio. Essa obrigação decorre da sua condição de depositário da carga a bordo, pois todo o depositário, como guardião que é da coisa alheia, está obrigado a restituir a coisa depositada tal como ela lhe foi entregue. (Guia Marítimo, 1ª quinzena de abril/97, ano 06, nº 117, São Paulo: 1997)

            No mesmo diapasão, Rubens Walter Machado, advogado paulista também especializado em Direito Marítimo, é muito feliz ao tratar o assunto:

            "Ao transportador, incumbindo-se de transportar mercadorias, cumpre entregá-las ao destinatário no lugar convencionado e no estado e quantidade em que as recebeu, de conformidade com o exposto no art. 519 do Código Comercial: O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado a sua guarda, bom acondicionamento e conservação, e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos. (...) A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto de descarga. (...) Não o fazendo, cumpre-lhe, também, o ônus da prova para elidir a sua responsabilidade pelo inadimplemento do contrato firmado. (...) Sua responsabilidade é, portanto, sempre presumida, amparada pela teoria da culpa sem prova, que tem seu nascedouro na infração das regras pré-estabelecidas da obrigação em si, tal qual dispõe o art. 1.056 do Código Civil, responsabilidade essa que se origina não da culpa aquiliana, mas, sim, do contrato firmado. (...) É presumida a culpa do transportador por motivos óbvios de lógica jurídica, e sua caracterização — tal qual um depositário — predomina nas obrigações de guardar, conservar e restituir (Revista do IRB, Aspectos Jurídicos: o que interessa ao seguro, 44, (232), Set/Dez, 1983, Rio de Janeiro, p. 20).

            Os dizeres do estimado Mestre, Rubens Walter Machado, enfatizam bem o conceito de responsabilidade objetiva (contratual) e consagram a idéia da culpa presumida, institutos estes afetos a todo transportador marítimo. Há de se destacar, porém, dois aspectos apontados por ele e que merecem especial atenção: o primeiro é o fato de o capitão do navio ser preposto do transportador marítimo, e, o segundo, é a natureza de depositário assumida pelo transportador marítimo.

            Invertendo a ordem lógica em benefício da didática, comecemos pelo segundo ponto destacado: a natureza de depositário do transportador marítimo.

            Entende-se por depositário, no plano do Direito das Obrigações, todo aquele que tem o dever jurídico-contratual de guardar um bem até que a outra parte o reclame.

            É, aliás, o que se depreende da simples leitura do art. 1.265, caput, do Código Civil: "Art. 1.265. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame."

            Maria Helena Diniz, ao comentar o referido artigo, especificamente o contrato de depósito, diz:

            "Depósito. O depósito é o contrato pelo qual um dos contraentes (depositário) recebe do outro (depositante) um bem móvel, corpóreo, obrigando-se a guardá-lo, temporária e gratuitamente, para restituí-lo guando lhe for exigido." (Código Civil Anotado, Saraiva, São Paulo: 1995, p. 776)

            O contrato de depósito, importa, ao depositário, deveres de guardar, conservar e restituir a coisa depositada, tendo na custódia da coisa o cuidado e a diligência que costuma ter com o que lhe pertence. Deveres estes, como salientado acima, também afetos aos transportadores.

            Esse é o comando que se entende da redação do art. 1.266, do Código Civil: "Art. 1.266. O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e a diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando lhe exija o depositante."

            Maria Helena Diniz, entende que o depositário deverá responder "pela perda ou deteriorização se culposamente contribuiu para que isso acontecesse" (op. cit., p. 777).

            No que se refere a idéia de o depositário responder pelos danos que culposamente contribuiu para acontecer, nosso entendimento, contudo, ousa ser ligeiramente diverso.

            Tratando-se de contrato de depósito não há que se falar a respeito da eventual culpa na conduta do depositário, uma vez que esta é sempre presumida. O depositário tem a sua responsabilidade civil regida pela teoria objetiva imprópria, logo é irrelevante verificar, no mundo dos fatos, se ele culposamente contribuiu ou não para o dano havido no bem que lhe foi contratualmente confiado. Haja ou não culpa, o depositário é, sempre, presumidamente culpado. Ele, o depositário, responde pelo que é e não pelo que fez ou deixou de fazer. Daí dizer-se que a sua responsabilidade é a de natureza contratual-objetiva.

            A natureza jurídica do contrato de depósito importa responsabilidade civil objetiva imprópria e, a reboque, o instituto da culpa presumida. Somente o caso fortuito, a força maior e o vício de origem são capazes de afastar a presunção de culpa do depositário em caso de inadimplemento contratual, daí não se falar na caracterização de culpa. Tal postulado, bom frisar, é de inteira aplicação aos transportadores.

            Tão desnecessário é o fato de ter o depositário contribuído ou não culposamente para o dano no bem confiado e tão objetiva é a responsabilidade civil dele, que há quem defenda que esta responsabilidade objetiva é a da sua modalidade mais absoluta e rigorosa, qual seja: a responsabilidade civil objetiva própria, aquela que não reconhece qualquer causa excludente de responsabilidade.

            É, por exemplo, o entendimento predominante na doutrina alemã. Para os alemães, o contrato de depósito é tão solene, tão importante e tão rigoroso no cumprimento de todos os seus postulados, que a existência da fortuidade não tem o condão de eximir o depositário de ser responsabilizado por eventuais danos nos bens dados em depósito.

            Sem dúvida, é uma maneira rigorosa de entender o assunto, mas que encontra bastante amparo entre os muitos estudiosos e operadores do direito, em todo o mundo, que se dedicam ao estudo ou ao exercício profissional do tema. Filiamo-nos, humildemente, a essa corrente de estudiosos, "mais por cálculo do que por índole", como diria o grande Machado de Assis (obra Dom Casmurro), haja vista o exercício profissional diário que nos compele a olhar o tema com ares parcialmente rigorosos (e é em nome do honestidade intelectual que, ora, registramos com ressalvas nosso entendimento, porque não despido de certa tendenciosidade, fruto inegável, como dissemos, do exercício profissional).

            Não obstante a pequena polêmica supra, o fato é que, hoje, o sistema normativo brasileiro prescreve que a responsabilidade do depositário, em caso de inadimplemento da obrigação de depósito, é de ordem objetiva (imprópria), informada pela idéia de presunção legal de culpa.

            Eis o motivo pelo qual é correto equiparar as obrigações do transportador marítimo com as do depositário. É feliz a comparação porque ela é revestida de lógica jurídica e tem a capacidade de fazer a justaposição da norma com o contexto fático. Explica-se: o transportador marítimo, ao receber os bens contratualmente confiados para o transporte, deve, antes, guardá-los e conservá-los, para, depois de feita a viagem marítima, restituí-los, entregá-los, a quem de direito e no local de destino.

            O contrato de transporte, pois, reclama, ainda que às avessas e/ou de forma indireta, o de depósito, não existindo aquele sem que, no plano dos fatos, dos acontecimentos do mundo, tenha havido, antes, este.

            Finda a primeira observação, entenda-se, comentário do primeiro ponto abordado por Rubens Walter Machado, há que se perscrutar os caminhos da segunda observação, versando o primeiro ponto tratado pelo referido especialista em sua manifestação, qual seja, aquele que trata do capitão do navio, preposto do transportador marítimo.

            Evitando comentar questões mais específicas ao Direito Marítimo (ou melhor: Direito da Navegação), é tecnicamente certo dizer que o capitão do navio é aquele que representa, em tudo e para tudo o que for relacionado ao navio e a viagem. Conforme o caso, poderá representar o proprietário, o armador ou mesmo o afretador (aquele que loca espaços do navio ou todo este). Via de regra, o capitão é o representante daquele que emitiu o conhecimento marítimo (contrato de transporte marítimo), e que é chamado de transportador marítimo.

            Se o capitão do navio falhou em uma de suas obrigações praxistas, e em consequência desta falha causou danos nos bens confiados para o transporte, é inequívoca a caracterização da sua falta, entenda-se culpa. Neste caso, o interessado, no mundo das pretensões jurídicas (Direito Subjetivo) terá dupla possibilidade de enfrentar o problema, a saber: 1.) ajuizar ação em face do próprio capitão, fundada esta ação na responsabilidade subjetiva, isto é, a prova da culpa do capitão, ou 2.) ajuizar ação em face do transportador marítimo, fundada na responsabilidade objetiva (que é a tônica do presente discurso, modesto por "índole").

            Desnecessário esclarecer que a segunda modalidade de ação é a que é costumeiramente empregada por todos aqueles que tiveram seus bens ofendidos e/ou suportaram, direta ou indiretamente, os prejuízos em virtude do inadimplemento do contrato de transporte marítimo.

            Afinal, é muito mais prático ajuizar uma ação em que o ônus da prova é invertido por presunção legal de culpa, do que uma em que o ônus da prova cabe a quem alega o fato motivador do socorro ao Estado-juiz. Ademais, há outro fator que precisa ser considerado nesta opção: a execução da sentença condenatória. Claro, uma coisa é levar a efeito a execução em face do capitão, pessoa natural; outra, entretanto, é executar o transportador marítimo, pessoa jurídica e, presumidamente, com maior potencial econômico e solvabilidade, importando maior número de bens a serem constritos em meio aos procedimentos executórios.

            Assim colocada a questão, é de se afirmar que mesmo que não existisse no ordenamento jurídico brasileiro dispositivos capazes de regrar a responsabilidade civil dos transportadores marítimos pela teoria objetiva imprópria, ainda assim estaria caracterizado o instituto da culpa presumida em face da responsabilidade objetiva que todo empregador tem em relação aos atos de seu empregado, quando este se encontra no exercício regular de suas funções.

            A Revolução Industrial operou significativas mudanças no mundo, todas elas muito complexas e que mereceram, como continuam merecendo, especial tratamento pelo direito, além de outros ramos do conhecimento humano, notadamente a sociologia. Em razão dessas mudanças, entre outros motivos determinantes, surgiu a idéia de o empregador responder, perante terceiros, pelos os atos danosos praticados pelos seus empregados.

            Com efeito, tão pacificado está o assunto no Direito brasileiro, que o Supremo Tribunal Federal houve por bem sumulá-lo: "STF - SÚMULA 341 - É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto."

            Tal enunciado de súmula é bem empregado no caso específico do transportador marítimo, este entendido como aquele que tem a gestão náutica de um navio e/ou emite conhecimentos de embarque (contrato de transporte) em relação aos atos do capitão, a pessoa natural que incorpora o comando do navio. O transportador marítimo, a quem se incumbe bem escolher os seus prepostos ou representantes, responde pelos atos do capitão não por que tenha dado causa direta pelo fato danoso, mas, sim, pelo que é, pela natureza da relação jurídica que tem com o seu preposto e, sobretudo, pelo modo como se apresenta perante o terceiro que com ele celebra o Contrato de Transporte Marítimo.

            Em homenagem a síntese, sobre todo o exposto, vale dizer: acerca da primeira parte destes modestos comentários, pode-se dizer o seguinte:

            1. a responsabilidade civil dos transportadores marítimos é de natureza contratual e é, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, ditada pela teoria objetiva imprópria, aquela em que a sua culpa, em caso de inadimplemento do contrato, é sempre presumida;

            2. a presunção legal de culpa, segundo o entendimento do Direito brasileiro, é tão inequívoca que alcança os atos praticados pelos empregados e prepostos dos transportadores marítimos, em especial o capitão, comando do navio;

            3. o transportador marítimo tem a obrigação de zelar pelo bem confiado para o transporte tal e qual um depositário, sendo os seus deveres os de guardar, conservar e restituir o bem em condição idêntica a recebida;

            4. o contrato de transporte marítimo só se aperfeiçoa com a perfeita entrega dos bens dados contratualmente para o transporte a quem de direito. Não havendo o adimplemento dessa obrigação, há a presunção legal de culpa do transportador, devendo ele responder pelos prejuízos decorrentes, salvo se conseguir provar, no caso concreto, a existência de alguma das causas legais excludentes de responsabilidade;

            E é na arena das causas legais excludentes de responsabilidade que se funda a segunda parte deste trabalho, pois exatamente nela residem as grandes discussões acadêmicas sobre a matéria, discussões estas com reflexos diretos no exercício prático do cotidiano forense, havendo, no dizer do afamado penalista e estimado professor Luiz Flávio Gomes, a justaposição da "law in books" com a "law in action".

            Se não, vejamos:

            Das Excludentes Legais de Responsabilidade:

            Como visto, são três as causas excludentes de responsabilidade previstas no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no artigo 102 do Código Comercial, a saber: vício de origem, força maior e caso fortuito.

            O vício de origem consiste no defeito existente no próprio bem dado para o transporte. No vício de origem não há, a bem da verdade, inadimplemento contratual pois o transportador marítimo cumpre integralmente a sua obrigação contratual, qual seja, entregar os bens nas mesmas condições quantitativas e qualitativas as recebidas. Se o bem está viciado é coerente imaginar que é assim que ele será entregue, razão pela qual não há falar-se na falta dos deveres objetivos que lhe são afetos. Sua caracterização é fácil e ampara-se, basicamente, na documentação de embarque, ou, em casos mais complexos, na perícia técnica.

            Força maior e caso fortuito, são as causas excludentes de responsabilidade mais alegadas pelos transportadores marítimos e as que são objeto das maiores discussões, posto que a sua caraterização, não raro, é difícil de ser constatada no mundo fático, motivo pelo qual serão tratadas, doravante, com especial atenção.

            Referidas causas fazem parte do gênero fortuidade, sendo diferentes, apenas, no que diz respeito ao agente causador. Explica-se: enquanto na força maior o agente causador é a conduta humana, no caso fortuito, o agente é a força da natureza.

            É importante destacar que esse entendimento não é pacífico na doutrina mundial. O Direito comparado apresenta a doutrina alemã em sentido contrário. Para os alemães, o conceito de força maior implica força da natureza e o de caso fortuito, a conduta humana.

            Há quem considere caso fortuito e força maior expressões sinônimas, sem distinção de qualquer natureza, uma vez que o que é relevante ao ordenamento jurídico é a projeção dos efeitos legais e concretos de um e de outro e que são praticamente os mesmos.

            Em que pese o antagonismo conceitual existente entre os diversos ordenamentos jurídicos do mundo, é certo é que os efeitos são os mesmos e as conseqüências, no mundo dos fatos e no mundo do Direito, também.

            Operando-se o gênero, fortuidade, é possível compreender melhor os institutos e postulados que regem as espécies, força maior e caso fortuito.

            A caracterização da fortuidade depende dos seguintes elementos, tidos como pressupostos essenciais: imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade. Não basta haver um fato considerado como anormal e provocador de um determinado dano para alegar-se a fortuidade, é preciso que este fato seja absolutamente imprevisível, inesperado e irresistível.

            Nesse sentido é interessante o entendimento de Pedro Calmon Filho, professor universitário e advogado especializado em Direito Marítimo:

            "Por caso fortuito, ou força maior, que muitos consideram expressões sinônimas, temos os fatos imprevisíveis ou irresistíveis, que vencem a normal diligência e perícia que se pode razoavelmente esperar do armador e seus prepostos. São os fatos inesperados que ultrapassam a capacidade do homem de prevenir contra um perigo não normalmente esperado, ou lhe fazer face depois de deflagrado." (Estudos do Mar Brasileiro - A Lei do Mar, Renes, Rio de Janeiro: 1972, p. 152)

            A força maior, segundo o entendimento dado pelo Direito brasileiro, é o fato relevante ao mundo jurídico e que foi provocado pela conduta humana. A conduta humana, por sua vez, é entendida como toda ação ou omissão finalisticamente orientada para um dado resultado e que, inserida em um certo contexto fático, interessa ao Direito.

            O caso fortuito é o evento da natureza não esperado, totalmente imprevisível e de força irresistível. É o fato que não depende da conduta humana, superando-a em todos os seus limites. É algo que acontece no mundo concreto, um verdadeiro e devastador happening, ou seja, um fenômeno invencível e que produz efeitos relevantes ao mundo jurídico.

            Muito importante observar que a fortuidade reclama os requisitos imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade. São, aliás, requisitos concorrentes e imprescindíveis. Explicando melhor: para haver a fortuidade, faz-se necessária a prova no sentido de ter existido, no caso concreto e ao mesmo tempo, a incidência das três condições. Significa dizer que o transportador marítimo para se valer da fortuidade precisa provar que o fato que o envolveu foi, ao mesmo tempo, imprevisível, irresistível e inesperado.

            Em outras palavras: a falta de apenas um dos requisitos em destaque tem o condão de afastar eventual caracterização de fortuidade. A força maior e o caso fortuito só existem se existirem os referidos três requisitos, capazes de superar os limites máximos de cuidado do transportador marítimo em relação aos bens sob sua custódia.

            A falta de apenas um deles é o bastante para se ter afastada qualquer pretensão no sentido de se caracterizar a fortuidade. É de vital significado, ter-se como postulado esse entendimento, porque é muito comum os transportadores alegarem, diante dos casos concretos, fortuidade com base em apenas um dos referidos requisitos. Fazem-no porque continuam defendendo a idéia, há muito ultrapassada, de a expedição marítima ser uma verdadeira aventura, sujeita a inúmeros riscos e perigos, todos imprevisíveis ao homem.

            Sobre o tema fortuidade em relação a navegação nos dias de hoje, Rubens Walter Machado, tão estimado mestre, é mais uma vez feliz ao dizer:

            "...a força maior ou o caso fortuito previstos por nossa legislação comercial, são os fatos imprevisíveis ou irresistíveis que superam a normal diligência e perícia que se podem exigir do comando do navio. São os fatos inesperados que extrapolam a capacidade do homem prevenir-se contra um perigo não esperado, ou de enfrentar depois de iniciado. Em nossos dias, com o avanço da tecnologia, os navios são planejados e construídos para enfrentar os usuais perigos do mar. Os meios de comunicação existentes permitem que o comando do navio tenha uma exata e perfeita informação das condições do mar a ser enfrentado, permitindo que se afastem — quase que por completo — os fatos imprevisíveis, imprevistos e inesperados." (op. cit., p. 21)

            A lição acima evidencia a atual tendência pelo repúdio a idéia malsã de a expedição marítima continuar sendo, hoje, final do século XX, considerada uma aventura (tese ampla e isoladamente defendida pelos transportadores marítimos e os seus simpatizantes).

            Existem inúmeras razões e motivos para repudiar a idéia da aventura. É fato notório que o constante avanço da tecnologia impulsionou um enorme desenvolvimento da engenharia naval. Nos dias de hoje, os navios são planejados e construídos para suportarem as adversidades próprias do mar. São, aliás, construídos para superarem os mares mais furiosos e tempestuosos. Não é só: com a explosão da informática, a ciência meteorológica foi premiada com poderosos recursos e fantásticos equipamentos. Os modernos meios de comunicação existentes permitem que o comando do navio, por meio dos poderosos radares e computadores de bordo, diretamente ligados a satélites de última geração, tenha uma exata, ampla e segura informação, a qualquer tempo, das condições do mar e do clima a serem enfrentados.

            Logo, bem se trabalhando o conceito de fortuidade, é muito difícil, para não dizer impossível, haver, nos dias atuais, um caso concreto em que um navio, no curso de uma expedição marítima, venha a ser colhido por um fato, ao mesmo tempo, inesperado, imprevisível e irresistível.

            A questão, bom observar, está praticamente pacificada no Tribunais brasileiros, subsistindo dúvidas não mais em relação ao suporte jurídico, e a forma de entendê-lo e aplicá-lo em um dado caso concreto, mas, sim, ao próprio suporte fático do tema. Vale dizer: se determinado acontecimento é ou não é um fato merecedor de ser amparado pela fortuidade.

            No que se refere ao caso fortuito, a dificuldade de apreciação persiste apenas no fato de se constatar se um sinistro foi ou não objeto de sua incidência, ou seja, se ele está realmente acobertado pelo requisitos inafastáveis para a caracterização da excludente legal.

            Para melhor tratar do assunto, faz-se necessário um breve exercício de imaginação de nossa livre elaboração, figura ilustrativa com forte conteúdo didático:

            "Um navio, recém-chegado no Porto de Santos, vindo de Paranaguá, deve seguir rumo aos Estados Unidos e à Europa, fazendo escala no Porto do Rio de Janeiro. Para chegar ao seu destino final deve singrar os mares do Atlântico Norte, durante a época do inverno, região do globo que, em tal época, é notadamente afetada pelo mau tempo, mares agitados, quando não furiosos, além de ser palco de constantes tempestades. É previsível, portanto, a possibilidade de o navio vir a enfrentar adversidades no curso da expedição marítima. Já no Rio de Janeiro, porto de escala, o comando do navio é oficialmente comunicado que está sendo brevemente esperada uma terrível tempestade, na verdade uma storm, alteração climática equivalente a um furacão, exatamente na área de navegação do navio rumo ao Atlântico Norte. O comando do navio tem duas opções: ficar atracado no porto fluminense até a passagem da storm ou zarpar assumindo todos os riscos inerentes ao enfrentamento da adversidade climática. Antes de mais nada, é importante observar que o mau tempo, que já era previsível, tornou-se esperado. Pois bem, o comando acredita ser capaz de resistir ao mau tempo e o transportador marítimo não aceita o fato de o navio ficar mais tempo parado, sem ganhar o frete. Assim, a opção escolhida é a de levar a efeito a viagem, assumindo todos os riscos inerentes ao próprio navio, a integridade física da tripulação e aos bens confiados para transporte. O resultado não poderia ser outro. O comando do navio não consegue sair absolutamente incólume do enfrentamento com a storm e os bens, as cargas, são extraviados e/ou danificados, acarretando enormes prejuízos.

            Num caso como o ilustrado, é comum o transportador marítimo alegar a fortuidade, baseando-se, tão-só, no protesto lavrado a bordo e judicialmente ratificado no primeiro porto brasileiro de atracagem, sendo este protesto alicerçado, provavelmente, na inteligência do comando do navio de as forças da adversidade natural terem superado os níveis normalmente ocorridos neste tipo de evento, desprezada toda e qualquer consideração de natureza jurídica.

            Não é preciso dizer que esse raciocínio é equivocado, na verdade sofistico, posto que o importante não é o fato de as forças da storm terem sido demasiadamente elevadas, mas sim o de ela ser previsível, pior, esperada. Uma adversidade climática é sempre uma adversidade climática e a sua fúria pode variar em intensidade, razão pela qual, sabendo previamente da sua ocorrência, a ninguém é dado enfrentá-la sem o devido preparo. Quem o faz, assume, integralmente, todos os riscos, não podendo, posteriormente e mediante a constatação de infortúnio, alegar o benefício legal do caso fortuito.

            O caso ilustrado é bastante emblemático e serve para enfatizar a idéia de hoje ser muito difícil, talvez impossível, a caracterização de fortuidade, especialmente caso fortuito, em face de todo o aparato tecnológico existente e que faz previsível, senão esperado, todas as eventuais ocorrências de adversidades climáticas. Com efeito, se o evento é, de qualquer forma esperado, ou previsível, ainda que irresistível, não há como subsistir a excludente de responsabilidade em estudo.

            Naquilo que toca o conceito de força maior, o aspecto mais problemático e bastante relevante, é o da questão do roubo de mercadorias a bordo do navio transportador.

            O roubo, tipo penal previsto no art. 157 do Código Penal brasileiro, está inserido no capítulo reservado aos crimes contra o patrimônio. É, na verdade, um crime complexo, vez que comporta institutos próprios dos crimes contra o patrimônio e outros afetos aos crimes contra a pessoa. Aliás, sob a ótica da dogmática penal, é o mais emblemático exemplo de crime complexo.

            É comum, aos leigos e aos operadores do Direito que não militam na esfera criminal, tratarem o roubo e o furto como expressões sinônimas. Não são. Além de estarem previstos em tipos penais diferentes, a natureza jurídica e a essência conceitual deles também são distintas.

            Simples entender: o furto é a subtração da coisa alheia sem violência e/ou grave ameaça; o roubo também é a subtração da coisa alheia móvel, mas com violência e/ou grave ameaça.

            Ora, os objetos jurídicos do roubo são vários: posse, propriedade, integridade física, saúde e liberdade individual, daí a razão de o roubo ser considerado um crime complexo. Diante do estudo do tipo penal roubo, cabe a seguinte indagação: é o roubo um fato capaz de caracterizar a excludente de responsabilidade do transportador marítimo em razão de inadimplemento contratual?

            Trata-se de uma resposta difícil e, certamente, longe de estar pacificada na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Para melhor estudar a questão, faz-se necessário novo exercício de imaginação, também da nossa livre ilustração:

            Um navio encontra-se atracado em um porto qualquer. Todas as medidas praxistas de segurança foram providenciadas. Um grupo de criminosos, os chamados "piratas modernos", consegue burlar os esquemas de segurança e toma de assalto o navio. Mediante grave ameaça e atos de violência rendem a tripulação e levam parte de um determinado e valioso lote de mercadorias.

            Com base na ilustração supra, indaga-se: há ou não força maior a beneficiar o transportador marítimo, vítima do roubo?

            Muitos entendem que o roubo, como fato caracterizador da força maior, afasta a responsabilidade do transportador marítimo pelo eventual inadimplemento contratual. Os que defendem esse posicionamento, fazem-no sedimentados no pressuposto de o transportador marítimo não se ter desviado das cautelas e precauções a que está obrigado, logo o roubo é acontecimento inevitável e, sendo também imprevisível, é fato irresistível, porquanto rodeado de elevada periculosidade a integridade física da vítima, no caso os prepostos do transportador marítimo.

            Mais: para os partidários dessa posição não há falar-se em eventual previsibilidade da ocorrência do evento, pois o roubo é, por essência e natureza, um fato imprevisível e inesperado. Trata-se de uma tese sedutora, é verdade, porém totalmente distanciada do dinamismo das relações sociais e das constantes mudanças do Direito, o que faz dela refém de seus próprios fundamentos.

            Há certos lugares, portos ou mares, nos quais a pirataria não é muito difícil de ocorrer. Diante de tal constatação, é coerente imaginar que um evento dessa envergadura poderá ocorrer a qualquer tempo, razão pela qual é correto falar em previsibilidade e, falando-se em previsibilidade, impossibilidade de caracterização de fortuidade, entenda-se: força maior.

            Em suma: o fato de a criminalidade ser frequente em um certo local, sendo previsível a ocorrência de roubos na forma de pirataria, não tem, por si só, a prerrogativa de afastar a excludente de responsabilidade força maior.

            Vamos mais além: ainda que o local onde se deu o roubo não seja, costumeiramente, palco de crimes, o contexto geral de violência e criminalidade que imperam hoje no mundo são critérios suficientes para a caracterização do requisito previsibilidade. Afinal, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias, bens e valores deve estar preparado para as mais adversas situações, assumindo o risco em face da inequívoca previsibilidade delas ocorrerem. O roubo, após o furto, é, com toda a certeza, uma das principais ocorrências a que se tem previsibilidade em se tratando deste tipo de atividade comercial.

            É nosso dever informar que esse não é o entendimento predominante na jurisprudência brasileira que, salvo algumas poucas e brilhantes decisões em contrário, firma posição no sentido de o roubo elidir a responsabilidade dos transportadores em geral. O que, aliás, é bastante curioso, considerando-se o elevadíssimo índice de criminalidade urbana no Brasil, índice este que faz do país, sem dúvida, um dos mais violentos de todo o mundo.

            Os Juízos e Tribunais brasileiros, majoritariamente, têm-se orientado a favor do reconhecimento do roubo como uma causa excludente de responsabilidade, da espécie força maior, desde que não se faça prova de o transportador não ter havido com descuido na proteção e vigilância do bem sob os seus cuidados. Nosso modesto entender é de ser este posicionamento equivocado por reclamar institutos próprios da responsabilidade civil subjetiva no âmbito da responsabilidade objetiva. Afinal, o fato de o transportador ter ou não diligenciado seus misteres com cuidado é irrelevante diante do inadimplemento contratual, este sim o item de verdadeira importância a ser operado no caso concreto.

            O roubo, definitivamente, não é um fato que implica força maior. Como exaustivamente mencionado, o contrato de transporte de mercadorias via marítimo, a exemplo de todo contrato de transporte, é um contrato de fim, vale dizer, que só se aperfeiçoa com o resultado, o pronto cumprimento da obrigação celebrada. Por tal razão e pelo que dispõe a legislação brasileira, sua responsabilidade é objetiva. Logo, discorrer acerca de ter ou não o transportador marítimo desviado-se dos cuidados de praxe é subverter os princípios gerais da teoria objetiva e lançar-se ao sabor da teoria subjetiva, ou seja, a caracterização e a prova de culpa.

            Ademais, é interessante notar que os defensores da mencionada tese se esquecem do fato de ela, por via reflexa, espancar o conceito de fortuidade. Claro, uma vez que se faz necessário tomar providências e cuidados para se evitar o roubo, é correto entender que este é previsível, ou mesmo esperado, fatos inibidores da caracterização da excludente. Ora, não pode o roubo ser entendido como um fato caracterizador da força maior por lhe faltar requisitos imprescindíveis a sua existência, em especial: a imprevisibilidade e a inesperabilidade. Com efeito, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias e valores sabe que, a qualquer momento, pode vir a ser vítima de um roubo ou de um furto, daí a razão de ser dos referidos cuidados a que tanto se reporta a jurisprudência.

            Nunca é demais lembrar, sob pena de ser repetitivo, que os elevados índices de criminalidade existentes hoje, em quase todo o mundo, e, em especial no Brasil, servem como indicadores seguros da previsibilidade de ocorrer o fato indesejável, porém fartamente existente no mundo dos fatos. Não é só: há lugares no Brasil, como o Porto de Santos, o maior e mais famoso de toda a América Latina, em que os atos de pirataria acontecem com lastimável freqüência, sendo, inclusive, alvos de amplo noticiário, transcendendo os limites da mera previsibilidade para adentrar naqueles pertinentes a esperabilidade.

            Resumindo: não há como entender, hoje em dia, o roubo como força maior, uma vez que é um fato previsível, quando não esperado, devendo o transportador marítimo, em consequência, acautelar-se, ainda mais, contra a sua ocorrência e, não sendo possível, responder pelo inadimplemento contratual.

            O roubo não elide o inadimplemento contratual que continua subsistindo, nem exime o dever jurídico de reembolsar terceiro prejudicado. Este é um entendimento embasado na lei, mas, sobretudo, nos princípios gerais do Direito, destacando-se, entre estes, o da Eqüidade.

            Do Transporte Marítimo de Mercadorias e da Responsabilidade Objetiva Própria:

            É sabido que o contrato de transporte marítimo, a exemplo de todo e qualquer contrato de transporte, é uma obrigação de fim, também conhecida como de resultado, na qual uma parte obriga-se ao pagamento de um preço certo e determinado (frete) e a outra a entrega dos bens confiados para o transporte em idênticas condições as recebidas. Somente com o pronto e perfeito cumprimento destas obrigações há falar-se em aperfeiçoamento do negócio jurídico celebrado.

            Sabido também é, que a responsabilidade civil a ditar o caso dos transportadores em geral, e o marítimo em especial, é a de natureza contratual, tendo sido abraçada a teoria objetiva imprópria para regrá-la em todos os seus aspectos.

            E, como visto, também é sabido que o que se discute hoje no Direito brasileiro é a existência ou não, em um dado caso concreto, de suporte fático suficiente para caracterizar alguma das causas legais excludentes de responsabilidades, especialmente o caso fortuito e a força maior.

            Diante de tal quadro, a impressão que se tem é a de o assunto estar sedimentado no plano jurídico, subsistindo, tão-só, questões a serem debatidas no campo dos fatos. Não é, contudo, o nosso entendimento.

            Os fatos do mundo inspiram o Direito.

            E, inspirando o Direito, os fatos, a cada dia, reclamam melhores soluções para os problemas que gravitam em torno deles. Com efeito, é a norma jurídica que deve se ajustar aos fatos e não o contrário. Logo, é coerente imaginar que se o mundo dos fatos altera-se com velocidade assustadora, no mesmo ritmo e inteligência deve comportar-se o mundo jurídico, composto pelos chamados sistemas de interação. Tais sistemas devem incorporar a essência dos fatos que pretendem regular. Daí, serem revestidos de lógica e legitimidade.

            Sobre o assunto, ninguém melhor soube estudá-lo do que Pontes de Miranda:

            "Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compostos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais diversos. Essas proposições, regras jurídicas, prevêem (ou vêem) que tais situações ocorrem, e incidem sobre elas, como se as marcassem. (...) Mediante essas regras, consegue o homem diminuir, de muito, o arbitrário da vida social, e a desordem dos interesses, o tumultuário dos movimentos humanos à cata do que deseja, ou do que lhe satisfaz algum apetite" (Tratado de Direito Privado, Parte Geral, v. 1. Borsoi, Rio de Janeiro: 1970, p. IX)

            Extremamente precisa a lição do maior tratadista brasileiro de Direito Privado. O Direito existe para regular os fatos da vida, harmonizando o convívio social e distribuindo o Justo, aquele sentimento inerente a natureza humana e que pode ser comparado, em termos metafísicos, com o equilíbrio universal entre as forças da ordem e do caos. Não é só: as palavras do famoso tratadista enfatizam, e bem, a idéia de a regra jurídica ser parte da norma jurídica e esta, do contexto jurídico. A soma dos contextos jurídicos, levada a efeito dentro de uma razão lógica, faz surgir o sistema jurídico e o conjunto de sistemas, isto é, o próprio Direito.

            Nessa correta linha de raciocínio, é ainda de Pontes de Miranda o seguinte e abalizado comentário:

            "As proposições jurídicas não são diferentes de outras proposições: empregam-se conceitos, para que se possa assegurar que, ocorrendo a, se terá a´,. Seria impossível chegar-se até aí, sem que os conceitos jurídicos não correspondessem fatos da vida, ainda quando esses fatos da vida seja criados pelo pensamento humano. No fundo, a função social do direito é dar valores a interesses, a bens da vida, e regular-lhes a distribuição entre os homens. Sofre o influxo de outros processos sociais mais renovadores; de modo que desempenha, no campo da ação social, papel semelhante ao da ciência, no campo do pensamento. Esse ponto é da maior importância." (idem, ibidem)

            Mais uma vez, só elogios merece o renomado estudioso. É claro que a relação fatos da vida e regra jurídica é o postulado maior do Direito e a fonte de toda a produção legislativa. É claro, também, que os fatos da vida são infinitos e oriundos dos mais diferentes planos existenciais, razões estas que os fazem objetos de constantes e velozes transformações, quando não abruptas. E por serem tão mutáveis é que muito atento deve estar o Direito, para, sempre, estar devidamente apto a se manifestar no sentido de oferecer, ao caso concreto, a melhor e correta resposta.

            Lastreado nesse entendimento e na importância de se observar a mutação do contexto fático e o influxo, no Direito, de outras áreas do saber humano, bem como visando acrescentar um pouco mais de celeuma à dogmática da responsabilidade civil dos transportadores, homenageando, para tanto, institutos afetos a responsabilidade civil do Estado, é o entendimento que, nos dias atuais, a teoria objetiva imprópria, já não é mais a adequada para regrar a responsabilidade civil dos transportadores, em caso de não adimplemento contratual, posto insuficiente para ditar os acontecimentos e circunstâncias observados no mundo dos fatos.

            É verdade, afinal ninguém pode negar aquilo que facilmente se observa e amplamente se constata no plano da realidade. As relações comerciais, hoje globalizadas, alcançaram um rápido desenvolvimento, sedimentando-se em um estágio antes inimaginável, no qual o número de transações havidas por dia é assustadoramente volumoso e os valores envolvidos, elevadíssimos.

            Não é exagero dizer que noventa por cento, senão mais, do transporte internacional de bens e mercadorias é feito por via marítima. Todos os dias, de todos os importantes portos do mundo, centenas de navios zarpam ou atracam, levando ou trazendo as mais diferentes mercadorias, no maior intercâmbio comercial da história da humanidade, intercâmbio este, a propósito, que teve o seu início com os antigos Fenícios e Cretenses, séculos antes de o advento da era Cristã.

            É a realidade fático-social conclamando o Direito.

            Tão relevante quadro, aliado a tudo aquilo que já foi mencionado a respeito da elevada tecnologia com a qual os navios são construídos e os aparatos eletrônicos e computadorizados que auxiliam nos trabalhos de navegação e investigação climática, são indicadores excelentes para, no diapazão da evolução do próprio Direito, autorizarem um entendimento diverso e mais rigoroso acerca dos institutos, preceitos e comandos que operam o tema responsabilidade civil do transportador.

            Com efeito, é razoável imaginar que a correta teoria a ser empregada para o tema destacado é a contratual sedimentada na responsabilidade civil objetiva própria. Tal teoria, também conhecida por responsabilidade civil objetiva pura, é aquela em que a presunção legal de culpa do devedor de uma dada obrigação inadimplida é tão poderosa que nada, absolutamente nada, tem a qualidade de afastá-la, nem mesmo o caso fortuito e a força maior.

            Bom repetir: tratando-se de responsabilidade civil objetiva própria, contratual ou extracontratual, mas especialmente a contratual, nada poderá exonerar ou atenuar a culpa daquele que a tem contra si. Não há falar-se na incidência das chamadas excludentes legais de responsabilidade, nem mesmo culpa exclusiva de terceiro, embora neste segundo ponto haja certa divergência entre os estudiosos do assunto (há quem entenda que a culpa exclusiva da vítima, do prejudicado, tem a propriedade de afastar a referida presunção legal de culpa).

            A responsabilidade civil contratual objetiva pura funda-se na idéia de que nada poderá elidir a presunção legal de culpa de um devedor de uma dada obrigação jurídica. Fácil observar que se trata de um instituto muito rigoroso e que tem o seu provável nascedouro com o desenvolvimento, no âmbito do Direito Administrativo, das teorias disciplinadoras da responsabilidade civil do Estado.

            No remoto passado, a bem da verdade, a responsabilidade civil era a de natureza objetiva e, quase sempre, própria, ou seja, despida de causas excludentes. A fundamentação para a sua vigência, entretanto, não era satisfatória eis que eivada de vingança e não de Justiça. Ao invés de ser o fruto de uma formação jurídico-política visando solucionar, com eqüidade, os casos que a reclamavam, a teoria objetiva do passado, de caráter próprio ou puro, nada mais era do que a retaliação imediata, e não raro desmedida, a um dano causado.

            Nesse sentido, o ilustre Professor Carlos Roberto Gonçalves, comparando o espírito da responsabilidade civil objetiva dos tempos antigos com a dos dias atuais, leciona:

            "Primitivamente, a responsabilidade era objetiva, como acentuam os autores, referindo-se aos primeiros tempos do direito romano, mas sem que por isso se fundasse no risco, tal como o concebemos hoje. Mais tarde, e representando essa mudança uma verdadeira evolução ou progresso, abandonou-se a idéia de vingança e passou-se à pesquisa da culpa do autor do dano. Atualmente, volta ela ao objetivismo. Não por abraçar, de novo, a idéia de vingança, mas por se entender que a culpa é insuficiente para regular todos os casos de responsabilidade" (Responsabilidade Civil, Saraiva, 6ª ed., São Paulo: 1995, p. 18/19)

            Hoje, como disse o Ilustre Professor, já não mais subsiste o espírito de vingança na adoção da teoria objetiva, seja a própria ou a imprópria. Pelo contrário, o que a justifica e ampara é, justamente, um espírito diverso, qual seja: o de Justiça.

            O desenvolvimento das relações sociais, dos fatos da vida, com especial destaque aos fatos de natureza contratual, exigiram dos Operadores do Direito e, consequentemente, dos legisladores, instrumentos mais hábeis e capazes de corretamente regular os eventos revestidos de interesse ao mundo jurídico, daí a razão de ser da responsabilidade civil objetiva.

            A idéia de culpa já não era bastante para resolver todas as questões levadas ao Estado-juiz em todo o mundo. Outra idéia, a da responsabilidade objetiva, portanto, foi criada justamente para preencher o vácuo até então existente e que não promovia outra coisa senão a injustiça e o trato imperfeito nas coisas afetas ao Direito.

            Com efeito, há importante precedente na matéria. Trata-se do caso da responsabilidade civil do Estado. Nos tempos passados, a idéia que predominava era a de o Estado, diretamente ou através dos seus prepostos (funcionários públicos e/ou agentes políticos), jamais ser o autor de uma conduta danosa. O extremo da dita idéia era conhecido pela expressão universal "The King do not wrong". Pois bem, com o passar dos anos e com o avanço social-tecnológico da humanidade, foi-se consagrando, nos vários ordenamentos jurídicos espalhados pelo mundo, a tese de o Estado ser perfeitamente caracterizado como o agente de uma conduta lesiva, razão pela qual se passou a adotar a teoria objetiva imprópria. Não obstante, o sucesso e o acerto da referida mudança de mentalidade, a justiça não conseguia se materializar com a frequência necessária, e os entraves jurídicos decorrentes acabaram por se transformar em odiosos mecanismos de ofensa a dignidade do particular frente ao Estado. Mais uma vez, portanto, o mundo dos fatos reclamou do mundo do direito uma solução mais eficaz; e, esta, veio com a adoção da teoria objetiva própria.

            Não é nosso objetivo, no momento, o estudo específico da responsabilidade civil do Estado, infinitamente mais complexa do que a do transportador marítimo, até mesmo porque inserida num contexto mais importante e expressivo, qual seja: o do Direito Público, especificamente o Administrativo. Não, ao contrário, nossa intenção é facilitar a inteligência e compreensão do tema em estudo demonstrando, como dito, significativo precedente, capaz de ilustrar a hipótese de se alterar o Direito em razão das exigências do mundo, o famoso binômio "dever-ser/ser". Alteração esta que, no presente caso, significa abolir do sistema jurídico brasileiro as causas excludentes de responsabilidade adotando-se, para os contratos de depósito e de transporte (em especial os de transporte marítimo) a teoria objetiva própria.

            Ora, esse mesmo quadro evolutivo deve ser aplicado, feitas as necessárias ressalvas e imprescindíveis adaptações, aos transportadores em geral, especialmente aos marítimos, seja através de regulamentação legislativa específica, seja através da incidência dos principios gerais do Direito na produção jurisprudencial.

            Como já exaustivamente visto, o elevado desenvolvimento da tecnologia reduziu significativamente a probabilidade da existência da fortuidade. Mais, não só reduziu como praticamente eliminou a dita possibilidade. Se, por um lado, não se pode prever a fúria e a intensidade de um fenômeno adverso da natureza, por outro, é perfeitamente possível saber que o mesmo fenômeno irá manifestar-se em um dado momento, num dado local, razão pela qual, sendo esperado, e previsível a possibilidade de ele ser violento, não há que se falar em caso fortuito. Na mesma linha de raciocínio, roubos e furtos são fatos perfeitamente previsíveis, sobretudo em um mundo tão violento e socialmente injusto como o contemporâneo (donde se destaca, infelizmente, o caso do Brasil), não existindo motivo algum a amparar a falta de proteção de um caso concreto.

            Isso tudo, não se pode esquecer, vem a reboque do fato de os navios serem construídos de tal forma que a irresistibilidade aos eventos fortuitos é nula, tornando coisa do passado, há muito sepulto, o chamado espírito de aventura que caracterizava as expedições marítimas.

            Mas, e nesse aspecto justifica-se a defesa ora empregada, mesmo que em uma certa hipótese os requisitos da imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade estejam presentes, o transportador marítimo, a exemplo de o depositário, deve responder pela perdas ocorridas, pois a ninguém colhido pelo infortúnio é dado estender a sua infelicidade a outrem, sobretudo quando este outrem havia lhe pago para o perfeito cumprimento de uma obrigação.

            Se o transportador marítimo foi vítima de um violentíssimo furacão, totalmente inesperado, sequer passível de previsibilidade, ou se, atracado em um porto qualquer, foi vítima de uma abrupta comoção social, é problema exclusivamente dele e de mais ninguém, sobretudo em relação aos proprietários das cargas nele estivadas. É por isso que se diz, com muita propriedade, que a obrigação do transportador é a de risco.

            Uma vez que recebeu o frete, vale dizer o pagamento para o cumprimento da obrigação de transportar, e iniciada a sua obrigação contratual, o transportador marítimo imanta o conceito do risco. O risco, bom frisar, é intrínseco aos seus exercícios regulares e justamente por isso que ele, o transportador, cobra um frete tão elevado. Não é razoável, portanto, que ele venha a se valer, às avessas, desse mesmo risco para, fundado em alguma causa legal excludente de responsabilidade, eventualmente exonerar-se da obrigação de reparar o dano que, por nexo de causalidade, lhe é imputado a título de responsabilidade civil, caracterizada pelo inadimplemento contratual.

            Nunca é demais repetir: as obrigações do transportador marítimo, a exemplo das do depositário, são as de guardar, conservar e restituir. Deixando de cumprir uma delas, existe a sua responsabilidade pelo inadimplemento contratual e por tal responsabilidade ele deve necessariamente responder, independentemente da causa fenomênica que motivou a inadimplência.

            É antiga a idéia de excludentes legais de responsabilidade civil, basta dizer que estão consignadas no vetusto Código Comercial (datado da época do Brasil-Império), e não mais corresponde a realidade e às necessidades vivenciadas no contemporâneo mundo dos fatos. Deve ser urgentemente afastada, em prol de uma nova disciplina legal capaz de atender os reclamos atuais.

            De fato, no século passado e até as três primeiras décadas deste século, havia algum sentido falar-se em fortuidade, ou seja: matéria de defesa e de exclusão de responsabilidade do transportador marítimo. Hoje, às portas do Século XXI é um despropósito enorme e sem qualquer fundamentação fática. Há, contudo, suporte jurídico e é este suporte que se pretende ora contrariar.

            A única excludente legal de responsabilidade que se pode admitir é a do vício de origem, uma vez que este, dentro da sumária digressão histórica feita a respeito da evolução da responsabilidade civil do Estado, é equiparado com a culpa exclusiva da vítima. Claro, se o próprio interessado, dono das mercadorias e dos bens, entregou-os com defeitos, eivados em vícios, não há que se falar na eventual responsabilização do transportador, posto que a culpa é exclusiva da pseudo-vítima. Observa-se, porém, que a caracterização do vício de origem, equiparado com a culpa exclusiva da vítima, é ato de natureza subjetiva, o que significa a exigência de prova e, como se sabe, prova, nesta disciplina, implica inversão do seu ônus.

            A aplicação da responsabilidade civil objetiva própria para os transportadores marítimos, em que pese a falta de produção legislativa específica até o presente momento, ou seja, lei que trate da matéria, pode ser perfeitamente aplicada, nos dias de hoje, com fundamento jurídico na analogia as normas e regulamentos que operam a responsabilidade dos transportadores aéreos.

            Os regulamentos que tratam da navegação aeronáutica são taxativos aos prescreverem, no seu todo, que a responsabilidade civil do transportador aéreo é sempre a de natureza objetiva própria, vale dizer: absolutamente nada é capaz de afastar a sua presunção legal de culpa em caso de dano.

            Há de se observar, somente, o fato de esta responsabilidade estar limitada a determinados valores pré-fixados e concordes com os dispositivos gravados na famosa (e famigerada) Convenção de Varsóvia, da qual o Brasil é, infelizmente, signatário e cuja vigência se encontra em pleno vigor no ordenamento jurídico brasileiro através do instituto da ratificação feita pelo Congresso Nacional e pela recepção da Constituição Federal de 1988.. Trata-se, porém, de uma discussão que não interessa ao mérito da defesa ora tentada, pois a eventual limitação ou não de responsabilidade, no que tange a valores, não tem o condão de impedir a sedimentação da teoria da culpa presumida pura.

            E é verdade inafastável; afinal causas limitativas ou restritivas de responsabilidade sempre foram motivo de acirradas e apaixonantes discussões no cenário jurídico internacional e, em especial, o do Brasil. Não é de hoje que essas cláusulas, também conhecidas como cláusulas impressas são objeto da especial atenção dos Operadores do Direito brasileiros.

            Não raro, elas aparecem nos chamados contratos de adesão, nos quais uma das partes dita as regras e a outra, em face de as exigências e as necessidades circunstâncias, simplesmente adere, ou melhor, é forçado a aderir.. É o caso dos contratos de transporte em geral e com especial destaque o do marítimo.

            Tanto assim que o Supremo Tribunal Federal já firmou correto e abalizado posicionamento ao sumular a matéria: Súmula 161 — "EM CONTRATO DE TRANSPORTE, É INOPERANTE A CLÁUSULA DE NÃO INDENIZAR"

            Mais: é a própria lei que veda, no Brasil, a eficácia dessas cláusulas, abusivas segundo as disposições do Código de Defesa do Consumidor, ao prescrever, no Decreto nº 19.473/30: "...REPUTA-SE NÃO ESCRITA QUALQUER CLÁUSULA RESTRITIVA OU MODIFICATIVA, DESSA PROVA OU OBRIGAÇÃO"

            Daí dizer-se que uma coisa não implica outra e que o que é mais relevante para a presente proposta não é saber se há uma convenção que limita, no que pertine o ressarcimento, a indenização a ser paga pelo transportador aéreo (o que, a propósito, é um verdadeiro absurdo e atentado ao Direito e a Justiça), mas, sim, que há uma fonte legal em que está posto que a responsabilidade do transportador aéreo é norteada pela teoria objetiva própria e que esta fonte legal, por analogia, pode ser perfeitamente aplicada ao caso dos transportadores marítimos de imediato.

            Ademais, ainda a respeito das famigeradas e vergonhosas cláusulas limitativas de responsabilidade, e só a título de ilustração, faz-se necessário dizer que elas, de tão abusivas, estão sendo paulatinamente rechaçadas pelo Direito brasileiro, sobretudo após a vigência do magnífico Código de defesa do Consumidor, diploma legal que espanca qualquer ato fundado em abuso de Direito e formalismo não harmônico aos princípios gerais do Direito.

            Logo, é perfeitamente sustentável, não apenas do ponto de vista da dogmática ou do entendimento doutrinário, mas, sim, do ponto de vista jurídico, ou seja, da fundamentação normativa sustentar-se a idéia de os transportadores marítimos responderem objetivamente e da forma mais pura e absoluta possível sobre todo e qualquer acidente ou incidente que decretar danos nas mercadorias confiadas para o transporte.

            O próprio direito positivo, na sua visão mais estreita, que é a da aplicação rigorosa da lei fornece, através da analogia, elementos suficientes e bastantes para a incidência do mencionado entendimento para o caso dos transportadores marítimos e mesmo os rodoviários.

            Importante será a manifestação dos melhores doutrinadores e estudiosos brasileiros a respeito do tema nos próximos anos e igualmente importante será a Jurisprudência orientando-se gradativa e majoritariamente nesse sentido, de tal sorte que, num futuro não muito distante, os legisladores brasileiros venham a se sentir suficientemente inspirados a elaborarem dispositivos legais capazes de melhor regrar os acontecimentos do mundo dos transportes, especialmente os marítimos, e, assim, aproximarem-se mais da realidade, perfazendo o verdadeiro ideal do direito que, em última análise, é a eterna busca pelo justo.

            Em conclusão: nos dias de hoje é muito difícil, quase impossível, caracterizar-se a excludente legal de responsabilidade tida por fortuidade (caso fortuito e força maior) no transporte marítimo, eis que improvável a manifestação da imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade ao mesmo tempo, e, ainda que um dado caso concreto venha a ser revestido destas prerrogativas, há que se dar, no plano jurídico, o entendimento de ser a teoria objetiva própria a correta a ser aplicada ao transporte marítimo, diante dos fatos do mundo contemporâneo, uma vez que nada deve afastar a responsabilidade daquele que inadimple um contrato tão especial como o de transporte, típico contrato de fim e esmerado em uma atividade de risco que deve ser, sempre, suportada por aquele que recebeu valores vultosos para tal mister.


Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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Informações sobre o texto

Trabalho publicado na Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, edição n.º 85, Tomo I, parte: Doutrina, março de 2002, p. 311/335.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. Do direito marítimo e da responsabilidade civil do transportador marítimo. Aspectos jurídicos que Interessam ao seguro de transporte de cargas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3671. Acesso em: 19 abr. 2024.