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Falência das sociedades de economia mista

impossibilidade

Falência das sociedades de economia mista: impossibilidade

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         Anteriormente à revogação do art. 242 da Lei 6404, de 15 de dezembro de 1976, procedida pela Lei 10.303, de 31 de outubro de 2001, grande era a polêmica sobre a possibilidade de falência das sociedades de economia mista.

         A revogação em questão longe de afastar a dúvida, apenas tornou o tema ainda mais nebuloso. Afinal, estão ou não sujeitas tais entidades da administração indireta à falência?

         Assim rezava o preceito em comento:

         Art. 242. As companhias de economia mista não estão sujeitas a falência mas os seus bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas obrigações.

         Segundo definição de Celso Antônio Bandeira de Mello [1], "Sociedade de economia mista federal é a pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes desta natureza auxiliar da atuação governamental, constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de sua Administração indireta, sobre remanescente acionária de propriedade particular".

         Cretella [2] leciona que "Este novo tipo de sociedade não pode ser considerado como o termo de evolução de um progressivo labor doutrinário. Antes, ao contrário, é um ensaio de fusão de duas formas antitéticas de economia: a individualista e a de socialismo de Estado".

         O mencionado autor noticia que "Foi na Alemanha que a sociedade de economia mista teve origem, remontando seu nascimento às sociedades públicas (‘offentliche-Handlungs-Compagnien’), criadas no início da idade moderna (Companhia das Índias Orientais, Companhia das Índias Ocidentais), sociedades de que participavam, em estreita aliança, Estado e particulares com objetivo de colonização".

         A sociedade de economia mista integra a administração indireta, ao lado da empresa pública, da autarquia e da fundação. Enquanto a autarquia tem personalidade jurídica de direito público e a fundação pode ser instituída pelo poder público quer com personalidade de direito público, quer com personalidade jurídica de direito privado, a sociedade de economia mista e a empresa pública são pessoas jurídicas de direito privado.

         Ao contrário da empresa pública, cujo capital é exclusivamente público e pode ser organizada sob qualquer das formas admitidas em direito, na sociedade de economia mista, há capital público e privado na sua constituição (como o próprio nome dá a entender) e participação do poder público e privado na gestão. Quanto a sua organização, esta se dá apenas sob a forma de sociedade anônima.

         Desde a edição do Decreto-lei 200/67, essas entidades devem ser criadas por lei. O artigo 236 da Lei 6.404/76 fez depender de prévia autorização legislativa a constituição das companhias de economia mista. A partir da Constituição Federal de 1988, tal lei deve ser específica (art. 37, inciso XIX). Não havendo autorização legislativa, a sociedade, ainda que sob controle acionário do Estado, não é sociedade de economia mista.

         Por fim, outro requisito para a configuração de sociedade de economia mista é que, aliada à participação acionária majoritária do poder público, "haja participação na gestão da empresa e a intenção de fazer dela um instrumento de ação do Estado, manifestada por meio da lei instituidora e assegurada pela derrogação parcial do direito comum" [3].

         A sociedade de economia mista, no direito brasileiro, pode ser prestadora de serviço público, concedido pelo ente federativo titular do serviço; exercer atividade econômica, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, nos termos do art. 173 da Constituição Federal; e, ainda, executar, mediante contrato, atividade econômica monopolizada pela União, conforme estatui o art. 177 da Constituição.

         Devido a essa diversidade de objeto, é geralmente aceita a idéia de que não se aplicam, às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, as mesmas regras aplicáveis àquelas que exercem atividade econômica em concorrência com a iniciativa privada.

         Por isso mesmo, anteriormente à revogação do art. 242, e em que pese a vedação expressa de falência das sociedades de economia mistas, não faltavam posicionamentos doutrinários no sentido da possibilidade de falência destas sociedades, ao menos daquelas que não fossem prestadoras de serviço. Neste sentido, merece referência a seguinte passagem de Celso Antônio Bandeira de Mello [4]:

         "Põe-se, aqui, o problema de saber se, tendo forma mercantil, podem vir a desaparecer em decorrência de falência. Surge, concomitantemente com este tópico, tema da existência ou não de responsabilidade subsidiária do Estado em relação aos débitos que estas não tenham como solver.

         A Lei de Sociedades Anônimas (Lei 6.404, de 15.12.76), em seu art. 242, estabelece que as sociedades de economia mista não estão sujeitas a falência, mas seus bens são penhoráveis e executáveis, respondendo a pessoa controladora, subsidiariamente, por suas obrigações. Cremos, entretanto, que a solução do problema não pode ser dada uniformemente, nem para as sociedades de economia mista – como pretendeu fazê-lo a lei citada –, nem para as empresas públicas. Entre tais entidades, é necessário distinguir as que são prestadoras de serviço público das exploradoras de atividade econômica." (Grifamos).

         Daí concluía o festejado autor, no tocante às sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica, que:

         "Com relação às exploradoras de atividade econômica, nem a lei poderia excluí-las de sujeição à falência, assim como não poderia estabelecer responsabilidade subsidiária do Poder Público. Isto porque, quando a Constituição atribuiu-lhes regime correspondente ao das empresas privadas, inclusive quanto aos ‘direitos e obrigações civis, comerciais (...)’ etc (§ 1°, II, do art. 173), pretendeu evitar que tais sujeitos desfrutassem de uma situação jurídica suscetível de colocá-las em vantagem em relação às empresas privadas em geral.

         Ora, é isto que sucederia – e não pode suceder – se o Estado respondesse subsidiariamente por elas. Se lhes fosse dada a possibilidade de se eximirem de falência, vindo o Poder Público a respaldá-las para garantir os créditos de terceiros quando as entidades ficassem insolventes, é bem de ver que, graças a tal respaldo juridicamente assegurado, aquele que com elas negociasse estaria em todo e qualquer caso garantido por alguém que é sempre solvente. Seriam, pois, mais confiáveis que as demais empresas privadas. Destarte, as estatais desfrutariam de situação privilegiada no mercado – precisamente o que quer a Constituição interditar.

         Em síntese: tanto empresas públicas como sociedades mistas exploradoras de atividade econômica podem vir a falir." (Grifamos).

         Já no tocante às prestadoras de serviço público, diverso era o entendimento do referido doutrinador, não obstante inexistir, no preceito do artigo 242 da Lei de S.A., distinção entre as sociedades desse tipo e as exploradoras de atividade econômica:

         "Já, no que atina às prestadoras de serviço público a situação é outra.

         Se forem sociedades de economia mista, ainda que se tornem insolventes, não se assujeitarão à falência e o Poder Público responderá subsidiariamente, perante terceiros, procedendo-se no forma disposta no precitado art. 242 da Lei das S/A. Entretanto, como os bens que estejam afetados à prestação do serviço são bens públicos e, ademais, necessários à continuidade das prestações devidas ao corpo social, não podem ser distraídos de tal finalidade. Com efeito, não faria sentido que interesses creditícios de terceiros preferissem aos interesses de toda a coletividade no regular prosseguimento de um serviço público. Assim, jamais caberia a venda destes bens em hasta pública, que seria o consectário natural da penhora e execução judicial, previstas no citado artigo. Donde, o efeito das medidas referidas seria tão-somente o de caracterizar juridicamente a irrupção da responsabilidade subsidiária do Estado. Já, com relação aos bens não afetados ao serviço nenhum problema haveria em que os credores neles se saciassem normalmente."

         Maria Sylvia Zanella Di Pietro [5], ainda que apreciando não a temática da falência das sociedades de economia mista, mas sim a possibilidade de penhora de bens da sociedade de economia mista, também levou em conta a distinção em razão do objeto das companhias de economia mista:

         "Ora, dentre as entidades da Administração Indireta, grande parte presta serviços públicos; desse modo, a mesma razão que levou o legislador a imprimir regime jurídico publicístico aos bens de uso especial, pertencentes à União, Estados e Municípios, tornando-os inalienáveis, imprescritíveis, insuscetíveis de usucapião e de direitos reais, justifica a adoção de idêntico regime para os bens de entidades da Administração Indireta afetados à realização de serviços públicos.

         É precisamente essa afetação que fundamenta a indisponibilidade desses bens, com todos os demais corolários.

         Com relação às autarquias e fundações públicas, essa conclusão tem sido aceita pacificamente. Mas ela também é aplicável às entidades de direito privado, com relação aos seus bens afetados à prestação de serviços públicos.

         É sabido que a Administração Pública está sujeita a uma série de princípios, dentre os quais o da continuidade dos serviços públicos. Se fosse possível às entidades da Administração Indireta, mesmo empresas públicas, sociedades de economia mista e concessionárias de serviços públicos, alienar livremente esses bens, ou se os mesmos pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, haveria uma interrupção do serviço público. E o serviço é considerado público porque atende às necessidade essenciais da coletividade. Daí a impossibilidade da sua paralisação e daí a sua submissão a regime jurídico publicístico.

         Por isso mesmo, o art. 242 da Lei das Sociedades Anônimas, que permite a penhora de bens das sociedades de economia mista, não pode ser aplicada no caso de entidade que preste serviço público". (Grifamos).

         Na mesma linha, se posicionou Odete Medauar [6]:

         "As sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos sujeitam-se também à Lei das Sociedades Anônimas, sem prejuízo de disposições especiais. Incide sobre elas grande carga de normas do direito público, abrangendo prerrogativas e sujeições características dos órgãos públicos.

         Conforme o art. 242 dessa Lei, não estão sujeitas a falência, mas os seus bens são penhoráveis e executáveis e a pessoa jurídica a que se vinculam responde, subsidiariamente por suas obrigações. Tratando-se de sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos, seus bens, porque associados a tais atividades, são insuscetíveis de penhora e execução." (Grifamos).

         José Cretella Júnior [7], por seu turno, leva em consideração para a verificação da possibilidade de falência das sociedades de economia mista a existência de interesse público em jogo:

         "Quanto à penhora dos bens da sociedade de economia mista, a resposta também é conseqüência direta da própria natureza da sociedade que, sendo organismo privado e, disciplinado, pois, pelas normas do direito comum, pode ter seus bens constitutivos sujeitos a penhora, como os de qualquer sociedade de direito privado.

         O problema da falência é de grande importância, no estudo destas sociedades, sustentando alguns autores, como Bielsa, a impossibilidade da quebra, porque o Estado colaborou com dinheiro e a quebra não é concebível, relativamente ao Estado. Em sentido contrário, pensam outros autores que distinguem entre várias espécies de sociedades de economia mista. Regra geral, como qualquer outra sociedade, a sociedade de economia mista está sujeita ao regime falimentar, mas, entrando em jogo interesses públicos, como no caso das concessionárias, a continuidade do serviço deve ser assegurada."

         De um modo geral, percebe-se que a doutrina tende a aceitar a falência das sociedades de economia mista exploradoras de atividades econômicas, afastando essa possibilidade para as prestadoras de serviço.

         Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a questão da penhora de bens da sociedade de economia mista, anteriormente à Emenda Constitucional no. 19/98, a qual alterou a redação do § 1º do art. 173 da Carta Magna, entendeu que as sociedades de economia mista estão sujeitas ao regime comum das sociedades em geral, apenas afastando a possibilidade de penhora dos bens diretamente comprometidos com a prestação do serviço público:

         "PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA EM BENS DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE PRESTA SERVIÇO PÚBLICO.

         A sociedade de economia mista tem personalidade jurídica de direito privado e está sujeita, quanto à cobrança de seus débitos, ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o fato de que preste serviço público; só não lhe podem ser penhorados bens que estejam diretamente comprometidos com a prestação do serviço público. Recurso especial conhecido e provido."

         (REsp 176078/SP, Segunda Turma do STJ, Relator Min. Ari Pargendler. DJ de 08/03/1999, pág. 00200). (Grifamos).

         Muito embora no referido julgado não tenha sido apreciada especificamente a possibilidade de falência das sociedades de economia mista, não é demais supor que, após a revogação do artigo 242 da Lei das S/A, a segunda turma tenderá a aceitar a falência das sociedades de economia mista, haja vista o entendimento vazado no RESP 176078/SP de que este tipo de sociedade "tem personalidade jurídica de direito privado e está sujeita, quanto à cobrança de seus débitos, ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o fato de que preste serviço público", apenas resguardada a impenhorabilidade dos "bens que estejam diretamente comprometidos com a prestação do serviço público".

         O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no RE 172.816 (in, RDA 195/197 e RTJ 153/337), antes da EC 19/98, embora não tenha conhecido do recurso, asseverou que "A norma do art. 173, § 1°, da Constituição aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade", não alcançando o dispositivo "sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado à União", pois o preceito, que se completa com o do § 2°, "visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiam de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem à atividade econômica na mesma área ou em área semelhante".

         Na nossa modesta concepção, não pode ocorrer a falência das sociedades de economia mista, sejam elas exploradoras de atividade econômica, sejam prestadoras de serviço público.

         Tal posicionamento está, portanto, desvinculado da questão da continuidade dos serviços públicos. Mesmo porque não se deve confundir a titularidade do serviço público com a entidade que o presta.

         O serviço público é de responsabilidade do ente federativo, por disposição constitucional ou legal. A sua execução é que pode ser delegada a entidades de direito privado, seja de capital público (empresa pública), misto (sociedade de economia mista) ou privado (firmas particulares concessionárias de serviço público).

         Sendo assim, a continuidade do serviço público deve ser garantida pelo ente federativo (União, Estado-membro ou Município) titular do respectivo serviço, seja executando-o diretamente, seja transferindo-o a outra entidade.

         Caso contrário, teríamos que admitir que as empresas privadas que prestam serviço público sob a forma de concessão também não estariam sujeitas à falência.

         A nosso ver, a solução do problema passa, primordialmente, pela análise das normas e princípios constitucionais, notadamente aqueles relativos às sociedades de economia mista e, em especial, o artigo 173 da Carta Constitucional.

         Dispõe o art. 173 da Constituição Federal de 1988:

         "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

         § 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

         I-sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;

         II-a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

         III- licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;

         IV-a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;

         V-os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

         § 2º. As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

         § 3º. A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

         ..." (Grifamos).

         Merece nota o fato de que a Constituição da República, no caput do artigo 173, apenas admite a exploração direta da atividade econômica pelo Estado quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

         Assim, a sujeição das sociedades de economia mista ao regime jurídico próprio das empresas privadas de que trata o inciso I, do § 1º, do artigo 173, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, também sofre, embora em menor escala, o influxo de regras de direito público, já que, repita-se, somente é admitida a exploração direta da atividade econômica pelo Estado (leia-se: a criação de empresas públicas e sociedades de economia mista para exercê-la) quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

         Aliás, em várias outras passagens, a Carta Magna claramente imprime caráter publicístico às sociedades de economia mista, sem distinção entre prestadoras de serviço público e exploradoras de atividade econômica. Cabe aqui trazer o magistério de Celso Antônio Bandeira Mello [8]:

         "Justifica-se, pois, assim, a assertiva, dantes feita, de que o precitado art. 173, § 1º, II, da Lei Magna expressou-se de modo muito imperfeito ao estatuir que tais entidades, quando exploradoras da atividade econômica, sujeitar-se-iam ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.

         Com efeito, a série de dispositivos supramencionados, além de não fazer disseptação alguma entre os tipos de empresa pública e sociedade de economia mista – o que já induziria a concluir que efetivamente abarca ambas as espécies –, contém regras que, quando menos em sua esmagadora maioria, a toda evidência, não teriam por que ser restritas apenas às prestadoras de serviço público, pois suas razões informadoras comparecem com igual procedência perante as exploradoras de atividade econômica. Logo, não é exato que estas últimas sejam disciplinadas na conformidade das normas regentes das empresas privadas." (Grifamos).

         É evidente, portanto, que a interpretação do inciso I, do § 1º, do art. 173, deve-se submeter obviamente à regra contida no caput desse artigo.

         Não desconsideramos, porém, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência encartados pela nossa Lei Maior, mas é que, conforme ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto [9], os princípios informadores da ordem econômica se moderam entre si:

         "O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da iniciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdade de empresa, corrige-se com o da definição da função social da empresa; o princípio da liberdade de lucro, bem como o da liberdade de competição, moderam-se com o da repressão do poder econômico; o princípio da liberdade de contratação limita-se pela aplicação dos princípios de valorização do trabalho e da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípio da propriedade privada, restringe-se com o princípio de função social da propriedade. (Grifamos).

         Por seu turno, José Afonso da Silva [10] demonstra, de forma muito feliz, que a liberdade de iniciativa, na ordem econômica constitucional, está delimitada pelo regramento estabelecido pelo Poder Público:

         "A atividade econômica, no regime capitalista, como é o nosso, desenvolve-se no regime da livre iniciativa sob a orientação de administradores de empresa privada. É claro que ... numa ordem econômica destinada a realizar a justiça social, a liberdade de iniciativa econômica privada não pode significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público". (Grifamos).

         De outro giro, é evidente que o próprio caráter misto do capital da sociedade de economia mista, por si só, já pressupõe que esta empresa não pode ser submetida de forma integral ao regime privatístico. Está na própria essência desta empresa o conflito público-privado. Neste passo, a lição de José Cretella Júnior [11]:

         "Com efeito, os fins visados pelo sócio-Estado são radicalmente opostos aos fins pretendidos pelo sócio-particular. O sócio-Estado objetiva alcançar o interesse público, no mais alto grau. O sócio-particular objetiva o lucro pessoal, se possível a curto prazo."

         Ademais, a Lei Maior exige lei específica para autorizar a criação de sociedade de economia mista (CF, art. 37, XIX), lei esta que, por envolver uma opção de descentralização administrativa – decisão de direção superior da administração (CF, art. 84, II) – é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, § 1°, II, e).

         Tal lei, em se tratando de empresa exploradora de atividade econômica, deverá reconhecer o relevante interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional a justificar a exceção ao princípio da abstenção (CF, art. 173).

         Ora, sendo a falência "o processo destinado a realizar o ativo, liquidar o passivo e repartir o produto entre os credores, tendo em vista os seus direitos de prioridade, anterior e legitimamente adquiridos", conforme lição de Sacerdotti, in "Del Fallimento", citado por Waldemar Ferreira [12], estar-se-ia admitindo, em última análise, a possibilidade de extinção da sociedade de economia mista sem lei para tanto.

         Ocorre que é geralmente aceita a posição de que tais sociedades só podem ser extintas por lei ou na forma da lei, eis o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello [13]:

         "Uma vez que empresas públicas e sociedades de economia mista são criadas por lei, simetricamente, só podem ser extintas por lei ou na forma da lei, a qual pode conferir ao Executivo autorização específica para a dissolução da ou das empresas tais ou quais."

         Adotamos, portanto, com as adaptações contidas no presente trabalho, o pensamento de Marcos Juruena Villela Souto [14], que, no nosso entendimento, prevalece mesmo após a revogação do art. 242 da Lei das S/A:

         "O art. 242 da lei de S.A., que admite a penhora de bens de empresas de economia mista, mas as poupa do processo falimentar, sempre foi questionado pelos comercialistas, que entendiam, aí (além de uma incoerência), estar-se diante de exceção não autorizada pelo art. 173, § 1º, CF.

         Com o advento da EC no. 19/98, foi explicitado que, além das obrigações fiscais e trabalhistas, as empresas públicas e sociedades de economia mista deveriam também se submeter às obrigações civis e comerciais a que estão sujeitas as empresas privadas.

         Diante da nova redação dada ao art. 173, § 1º, CF, pretendem alguns (em maioria) que o dispositivo da Lei de S.A. não tenha sido recepcionado.

         Na verdade, o dispositivo esclarece – apenas para a sociedade de economia mista – o que está implícito no ordenamento jurídico, i.e., o interesse privado não se sobrepõe ao interesse público.

         A falência é um instituto de direito processual, pelo qual o Estado-jurisdição se substitui ao devedor, arrecadando seu patrimônio e substituindo seus administradores para, após inventário e avaliação, alienar os bens para atender os interesses (privados) dos credores.

         Destarte, por força de tal processo, uma empresa poderia ficar inviabilizada de exercer a atividade para a qual foi criada, porque a decisão judicial busca o atendimento do credor.

         Ora, por óbvio tal linha não pode prevalecer diante da empresa pública (ainda que não mencionada na Lei de S.A.) e da sociedade de economia mista, porque criadas por lei (ato do Poder Legislativo em parceria – na iniciativa e na sanção – com o Poder Executivo) para atendimento de um relevante interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional, conceitos que não podem ser afastados por ato do Judiciário para satisfação de um interesse privado.

         A dúvida remanesce e se agrava diante da previsão constitucional da função social dessas empresas (CF, art. 173, § 1º, a)". (Grifamos).

         Tomada essa posição no tocante à impossibilidade de falência das sociedades de economia mista, cabe analisar a questão da possibilidade ou não de penhora e execução dos bens dessas empresas, bem como da responsabilização subsidiária da pessoa jurídica controladora pelas obrigações de sua controlada, matérias estas que também estavam contidas no preceito revogado.

         Sem dúvida é possível a penhora e a execução dos bens das sociedades de economia mista para pagamento de suas obrigações, tanto de exploradoras de atividade econômica como de prestadoras de serviço público.

         É interessante notar que, no que diz respeito à penhora e execução de bens de empresa prestadora de serviço público, pode ser relevante a questão da continuidade do referido serviço, ocasionando, em algumas hipóteses, o afastamento da possibilidade de constrição e venda do bem, v.g., no caso de sociedade de economia mista criada para realizar determinado serviço público para o qual, por qualquer razão (necessidade de vultosos aportes de capital, remotas probabilidades de lucro, condições inóspitas para prestação do serviço, etc), inexistam no mercado empresas ofertantes ou dispostas a oferecê-lo em condições de bem atender a população.

         Em casos que tais, por haver real possibilidade de interrupção do serviço público e visando à proteção do interesse coletivo, é prudente considerar impenhorável determinado bem da sociedade de economia mista afetado a realização do serviço.

         No mais, ressalvados os casos extremos como o do exemplo dado, nos quais há risco iminente de interrupção da prestação do serviço público, sem possibilidade de substituição da empresa prestadora de serviço público por outra, entendemos ser ampla a penhorabilidade dos bens das sociedades de economia mista, tanto prestadoras de serviço público quanto exploradoras de atividade econômica, pois, no nosso entender, o Poder Público não é proprietário dos bens destas empresas, mas de percentual de suas ações.

         Quanto à responsabilidade subsidiária do Poder Público perante terceiros, entendemos que esta é consectário do interesse público que acompanha a criação e atuação dessas empresas. Afinal, como se extrai do texto constitucional, se até mesmo a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (sendo maior ainda a carga de interesse social que acompanha as prestadoras de serviço público), e tendo em vista a possibilidade anteriormente mencionada de penhora e execução dos bens de tais entidades, é natural que o Poder Público controlador responda subsidiariamente no caso de exaustão das forças de sua criatura.

         Na verdade, é aplicável aqui, como as adaptações decorrentes do que foi até aqui exposto e olhos postos no caput do artigo 173 da Lei Maior, a lógica contida no ensinamento de Rubens Requião [15]:

         "Insolvente uma sociedade de economia mista, impõe ao poder que a criou e que detém o seu controle levá-la à dissolução e liquidação. Caso contrário, responde ele subsidiariamente pelas suas obrigações, dispensando-se dessa forma, como garantia dos credores, o processo falimentar. Mas estarão sujeitas, sem dúvida, ao processo de execução singular."

         Obviamente, por razões de coerência aos fundamentos desenvolvidos no presente artigo, só se pode conceber a dissolução e a liquidação às quais faz referência a autor citado antecedidas de autorização legal, já que a criação de tais entes também depende dessa autorização, e desde que não mais se justifique a exploração da atividade econômica pelo Estado, através de sua companhia, por ter deixado de ser necessária tal exploração aos imperativos da segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo que motivaram a criação da sociedade mista.


NOTAS

         01. MELLO, Celso Antônio Bandeira de . "Curso de Direito Administrativo". São Paulo, Ed. Malheiros, 2001, p. 151.

         02. CRETELLA JÚNIOR, José. "Curso de Direito Administrativo". Rio de Janeiro, Ed. Forense, 14ª edição, 1995, p. 52.

         03. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. "Direito Administrativo". São Paulo, Ed. Atlas, 13ª edição.

         04. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit., pp. 165-166.

         05. Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. "Direito Administrativo". São Paulo, Ed. Atlas, 13ª edição.

         06. MEDAUAR, Odete. "Direito Administrativo Moderno". São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 104.

         07. CRETELLA JÚNIOR, José. Ob. cit., p. 55.

         08. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. "Curso de Direito Administrativo". São Paulo, Ed. Malheiros, 2001, p. 163.

         09. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. "Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988". Rio de Janeiro: APEC, 1989, pp. 14-15.

         10. SILVA, José Afonso da. "Curso de Direito Constitucional Positivo". 5ª ed. São Paulo: RT, 1989, p. 550.

         11. CRETELLA JÚNIOR, José. "Regime jurídico das empresas públicas". Rio de Janeiro. Revista Forense, vol. 237, nos. 823-5, mar. 1972.

         12. Apud FERREIRA, Waldemar. "Instituições". Cit., v. 5, p. 64.

         13. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit., p. 165.

         14. SOUTO, Marcos Juruena Villela. "Aspectos do planejamento econômico". Rio de Janeiro. Ed. Lúmen Júris, 2000, 2ª edição, pp. 117-118.

         15. REQUIÃO, Rubens. "Curso de Direito Comercial". Vol. 2. São Paulo. Ed. Saraiva, 1993. p. 38.


BIBLIOGRAFIA

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         ________. "Regime jurídico das empresas públicas". Rio de Janeiro. Revista Forense, vol. 237, nos. 823-5, mar. 1972.

         DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. "Direito Administrativo". São Paulo, Ed. Atlas, 13ª edição.

         FERREIRA, Waldemar. "Instituições". Cit., v. 5.

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ULHOA, Daniel da Silva. Falência das sociedades de economia mista: impossibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3745. Acesso em: 26 abr. 2024.