Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/38223
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Segurado especial: a solidariedade social como fundamento para a não observância do princípio constitucional da contributividade

Segurado especial: a solidariedade social como fundamento para a não observância do princípio constitucional da contributividade

Publicado em . Elaborado em .

A solidariedade social cumpre importante e primordial função no tocante à sustentabilidade de todo o sistema de seguridade social e se revela como base para a não ocorrência da compulsoriedade das contribuições dos segurados especiais.

Resumo: A solidariedade social cumpre importante e primordial função no tocante à sustentabilidade de todo o sistema de seguridade social. Partindo do objetivo constitucional de se criar uma sociedade livre, justa e solidária temos que todos os cidadãos, com um maior ou menor grau relativamente à sua capacidade econômico-contributiva, se unem, num verdadeiro exercício de cooperação e fraternidade, para manterem os direitos expressos na Constituição. Como expressão da solidariedade, as contribuições objetivam financiar não só o benefício do próprio contribuinte, mas formar o suporte de todo o sistema, daí se falar em contributividade obrigatória. A situação peculiar dos segurados especiais, relativamente ao benefício da aposentadoria revela-se como uma exceção à compulsoriedade das contribuições, ao passo que encontra seu principal fundamento de concessão no princípio da solidariedade social.

Palavras-chave: Solidariedade Social, Contributividade, Segurado Especial, Previdência Social.

Sumário: Introdução. 1 Do Caráter Contributivo da Previdência Social. 2 O Princípio da Solidariedade Social. 3 A Solidariedade Social como Fundamento para Concessão de Benefício ao Segurado Especial. Considerações Finais. Referências.


INTRODUÇÃO

Historicamente a Previdência Social foi criada partindo de pressupostos básicos, tais como a caridade e a solidariedade entre as pessoas. Desde o início, este instituto tem como objetivo proteger seus segurados dos riscos sociais iminentes.

A Previdência social pode ser conceituada, basicamente, como “um seguro coletivo, destinado a estabelecer um mecanismo de proteção social, mediante contribuição, com o objetivo de proporcionar meios indispensáveis de subsistência ao segurado e a sua família, quando ocorrer certa contingência prevista em lei.” (STEPHANES apud SILVA, 2012).

Ao longo de muitos anos, a seguridade social, como um todo, existia apenas na iniciativa privada. Atribui-se as Constituições do México de 1917 e a Alemã de 1919 (Constituição de Weimar), a constitucionalização dos direitos sociais. Somente após essa elevação dos direitos sociais ao nível constitucional é que a seguridade social deixou de ser setorial para ter abrangência geral, exigindo, dessa forma, uma atuação do estado.

Neste sentido, buscando alcançar esse ideal de solidariedade, foram criadas diversas formas de custeio que permitissem ao Estado financiar a seus segurados, ou seja, aqueles que não pudessem trabalhar em razão da ocorrência de contingências seria oferecido pelo Estado benefícios que garantissem, minimamente, o essencial para uma vida digna.

No Brasil, o regime previdenciário é caracterizado pela obrigatoriedade da filiação e contribuição. No entanto, em relação ao trabalhador rural admite-se que este preceito constitucional seja dispensado, dando origem a figura do Segurado especial.

A Lei assegura ao Segurado Especial as benesses do sistema previdenciário com base apenas no comprovação do labor rurícula durante lapso temporal previsto em lei. Situação diversa dos demais integrantes deste regime, que devem, obrigatoriamente, demonstrar a realização da contribuição em pecúnia.

A pesquisa foi desenvolvida valendo-se dos métodos dedutivo, histórico e bibliográfico. Através da interpretação de materiais relacionados ao assunto, como livros, artigos científicos, sítios eletrônicos e tem como objetivo demonstrar que a não observância do princípio da contributividade em relação ao segurado especial possui fundamento em outro princípio constitucional: o da Solidariedade Social.


1. DO CARÁTER CONTRIBUTIVO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL.

A Seguridade Social abrange a assistência social, a saúde e a previdência social. Por determinação constitucional (artigo 195 da CF/88), o financiamento deste instituto é feito por toda a sociedade, de forma direta ou indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das contribuições sociais.

A contribuição social é a principal fonte de custeio da Seguridade Social e é considerada uma forma direta de financiamento. Já a forma indireta, é aquela realizada por meio das dotações orçamentárias fixadas no orçamento fiscal. O autor Hugo Goes, afirma que tanto na forma direta ou indireta, os recursos são sempre custeados pela sociedade.

Especificamente em relação à previdência social, é válido mencionar que são aplicados os mesmos princípios destinados a Seguridade Social, uma vez que aquela é parte integrante desta. Entretanto, destaca-se o princípio da contributividade, que trata-se de um preceito constitucional, com aplicação restrita ao instituto da previdência.

Este princípio impõe aos segurados o dever de contribuir para o regime previdenciário, de forma a financiar não só o benefício próprio do contribuinte, mas também a formar o sustentáculo de todo o sistema.

Dessa forma, a Previdência Social, conforme dispõe o artigo 201 da Constituição Federal do Brasil de 1988, possui caráter público ou contributivo, isto é, para que o segurado faça jus ao benefício previdenciário é indispensável a demonstração de contribuição em pecúnia.


2. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL

A solidariedade, como um conceito que envolve a fraternidade nas relações humanas, é o fundamento para a materialização do bem-estar social, sendo o meio necessário para a redução das desigualdades sociais. Como bem define Pedro Buck Avelino, a solidariedade pode ser compreendida como:

Atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros, tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade subjetiva é se auto-realizar, por meio da ajuda ao próximo. (AVELINO apud MENEGHEL, 2013, p.145).

A Constituição Federal contempla como um de seus objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Como bem ressalta José Afonso da Silva:

É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática,a dignidade da pessoa humana. (SILVA apud MENEGHEL, 2013, p.148).

É deste pressuposto que se toma forma o princípio da solidariedade na seguridade social, “solidariedade quer dizer cooperação da maioria em favor da minoria, em certos casos, da totalidade em direção à individualidade.” (MARTINEZ apud SARRUF CARDOSO, 2007).

Deste entendimento, observa-se não ser viável a completa implantação das premissas do estado social por parte do Poder Público, cabendo a atuação direta da sociedade para que, de fato, os objetivos da Constituição sejam atingidos.

Nesse sentido, dentre os princípios que caracterizam e norteiam a aplicação e a interpretação das regras relativas ao sistema protetivo, a solidariedade social revela-se como o de maior importância, uma vez que representa o viés comunitário que permeia o suporte financeiro não só da previdência, mas de toda a seguridade social.

Embora não esteja previsto no parágrafo único do artigo 194 da Constituição, este princípio securitário ressalta a proteção coletiva, “[...] na qual as pequenas contribuições individuais geram recursos suficientes para a criação de um manto protetor sobre todos, viabilizando a concessão de prestações previdenciárias em decorrência de eventos preestabelecidos.” (IBRAHIM, 2012, p.64).

Desta feita, o próprio caput do artigo 195 da Constituição prevê que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei. Revela-se, pois, como um princípio em que os membros da sociedade, indistintamente, devem contribuir para a Seguridade, independentemente do grau de utilização desse benefício. Como bem compreende o doutrinador Hugo Goes:

Aqueles que têm melhores condições financeiras devem contribuir com uma parcela maior; os que têm menores condições financeiras contribuem com uma parcela menor; os que ainda estão trabalhando contribuem para o sustento dos que já se aposentaram ou estejam incapacitados para o trabalho; enfim, vários setores da sociedade participam do esforço arrecadatório em benefício das pessoas mais carentes. (GOES, 2011, p.28).

Em estrita relação com a compulsoriedade da contributividade, o princípio da solidariedade social se faz presente, por exemplo, através do financiamento de uma geração para com outra. Tendo em vista que o sistema previdenciário adota o regime de repartição simples como forma de financiamento, os trabalhadores ativos acabam sustentando a previdência para que cidadãos inativos usufruam dos benefícios; tudo isto de forma cíclica, isto é, aqueles que financiam hoje serão financiados amanhã.

Num outro aspecto de aplicação deste princípio, o qual se revela como o objeto de estudo deste artigo, salienta-se a concessão de benefícios previdenciários aos segurados especiais (espécie de trabalhador rural), para os quais é dispensada a contribuição em pecúnia, a partir da demonstração probatória de efetivo labor rurícola. Este princípio é o principal fundamento para esta dispensa, o qual se passa a analisar.


3. A SOLIDARIEDADE SOCIAL COMO FUNDAMENTO PARA CONCESSÃO DE BENEFÍCIO AO SEGURADO ESPECIAL

O regime geral de previdência social é o que abrange o maior percentual da população brasileira, sendo, portanto, o principal regime previdenciário existente hoje no país.

Conforme já mencionado, uma das principais características do regime previdenciário consiste na obrigatoriedade contributiva, com a vinculação automática ao sistema previdenciário, independentemente da vontade do beneficiário.

Tem-se, portanto, que uma das formas de custeio do sistema previdenciário, segundo determinação legal, é o pagamento de contribuições do segurado. Fato este que combinado a outros requisitos, garantirão ao segurado a cobertura previdenciária. Entretanto, deve se destacar a figura do segurado especial, que por determinação constitucional, possui tratamento diferenciado.

Considera-se segurado especial, conforme compreensão do artigo 195, §8º, da CF/88, o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o pescador artesanal, que exerça atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar, sendo admitido o auxílio eventual de terceiros a título de mútua colaboração, em remuneração ou subordinação entre as partes.

Também são considerados como segurados especiais os respectivos cônjuges ou companheiros desses trabalhadores rurais, bem como seus filhos, desde que comprovem que trabalham com o grupo familiar.

Os segurados que se enquadram na condição de especiais, conforme explanado acima, possuem, por força do artigo 201, §7º, inciso II, da CF/88, reduzido o prazo para concessão de aposentadoria por idade em cinco anos. Ademais, a carência do segurado especial é contada apenas com base no tempo de exercício da atividade rural, sendo dispensado da comprovação dos recolhimentos, configurando, dessa forma, uma exceção ao princípio da contributividade. Neste caso, o responsável pelo recolhimento será o adquirente da produção do segurado.

Muito se discutiu sobre a concessão do benefício previdenciário aos trabalhadores rurais, lastreados somente nos critérios de idade e tempo de carência do exercício da atividade rural, sem a obrigatoriedade do recolhimento. No entanto, a condição especial destes trabalhadores, aliados aos princípios basilares, que sustentam a previdência social, justificam a adoção de critérios diferenciados.

Conforme já explicitado, o princípio da solidariedade social, considerado por muitos autores como o mais importante princípio do direito da Seguridade Social, possui como parâmetro principal a cooperação dos cidadãos, ou seja, a união visando assegurar benefícios àqueles que necessitarem.

O impacto da previdência social rural é bastante significativo no combate a erradicação da pobreza no país, vez que tem contribuído para elevação da qualidade de vida, não só do trabalhador rural aposentado como, também, de sua família.

Ressalta-se, ainda, que a contribuição previdenciária do segurado especial, da forma em que é cobrada, incidindo sobre a produção comercializada, além de garantir a sobrevivência do homem no campo contribui para incentivar a atividade produtiva, gerando mais renda no meio rural.

Diante de todo o exposto, verifica-se que a regra peculiar aplicada aos segurados especiais encontra fundamento no princípio da solidariedade social, que por sua vez, é o sustentáculo do regime geral de previdência social.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os princípios, como verdadeiras normas abstratas e norteadoras do sistema jurídico assumem mister importância no tocante à interpretação de situações peculiares, como se demonstra na seara previdenciária, no tocante à aposentadoria dos segurados especiais.

Para compreensão desta temática, partiu-se da análise do dever de contribuir no âmbito do regime geral de previdência, que determina a compulsoriedade no custeio da seguridade social, até se chegar no estudo do princípio securitário da solidariedade social, entendido como o de maior importância, vez que traduz o verdadeiro espírito da previdência social: a proteção coletiva.

No âmbito da regulamentação constitucional e legal dos segurados especiais, verificou-se que a comprovação do exercício de atividade rural é suficiente para a concessão da aposentadoria, não se integrando à regra de contribuição obrigatória em pecúnia.

A Previdência Social Rural Brasileira prevista a partir da CF/88 revelou-se como o meio integrador social eficaz para incluir aqueles que eram alijados do sistema previdenciário.

Na Previdência Social Rural, observamos no que se refere ao impacto socioeconômico, que o principio da solidariedade é o seu fundamento básico, na medida em que a sociedade financia a seguridade, com o intuito de beneficiar aqueles que precisam, quando necessitam do benefício. (MENGHEL, 2013, p. 156).

Desta forma, compreende-se que a concessão da aposentadoria por idade aos segurados especiais é a própria concretização do princípio da solidariedade social, o qual objetiva reduzir as desigualdades sociais por meio da atuação conjunta da sociedade no custeio do sistema previdenciário, revelando-se, pois, como um manto protetor que ampara a todos e que justifica a não observância da contributividade neste caso concreto.


REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado. 7. ed. São Paulo (SP): Método, 2011.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Publicada no Diário Oficial da União em 05 de outubro de 1988.

GOES, Hugo Medeiros de. Manual de direito previdenciário. 4.ed. Rio de Janeiro: Ferreira, 2011.

IBRAHIM, Fabio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 17.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

MENEGHEL, Heloise. O princípio da solidariedade social como fundamento ao benefício previdenciário de aposentadoria por idade rural. In: Argumenta - UENP Jacarezinho nº20 p.143-157 2014. Disponível em: <https://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/viewFile/341/pdf_53>. Acesso em: 27 de outubro de 2014, às 11h.

SARRUF CARDOSO, Rodrigo Felix. A solidariedade social e a contributividade como alicerces da Previdência Social dos servidores públicos civis. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, IX, n. 36, jan 2007. Disponível em: <https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1629>. Acesso em 30 de outubro 2014, às 20h.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pela autora. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.