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Constrangimento ílegal

Constrangimento ílegal

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O crime de constrangimento ilegal pode ser praticado inclusive na ausência do ofendido e de forma indireta, como no exemplo de obrigar alguém a certo ato via mensagem eletrônica sob ameaça de grave dano para seu filho.

Dentre os crimes contra a liberdade individual encontra-se o de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal, com a seguinte redação:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Aumento de pena

§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.

§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - a coação exercida para impedir suicídio.

Observe-se, ab initio, que há possibilidade de aplicação dos institutos de transação penal e do sursis processual em face das penas in abstrato. É uma pena pequena para a gravidade da conduta.

 Os romanos conheceram o crimen vis, que foi antecedente histórico do crime de constrangimento ilegal, tendo sido previsto pelas Leges Iuliae de vi, e, anteriormente, pela Lex Plotia (ou Plautia) de vi. Vis era a força, o constrangimento de uma pessoa a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, em virtude de ameaça ou do medo.

A liberdade é protegida como um fim em si mesmo. De forma que o objeto da tutela jurídica é a liberdade individual, ou seja, a livre autodeterminação da vontade e da ação. Protege-se a liberdade psíquica (na livre formação da vontade, sem coação) e, ainda, a liberdade física (liberdade de movimento, liberdade de locomoção).

Trata-se, nitidamente, de um crime subsidiário, um meio repressivo conhecido como suplementar, uma vez que somente subsiste quando o constrangimento ilegal não é meio ou elemento de outro crime. A sanção penal nele prevista é um meio repressivo suplementar, predisposto para o caso em que determinado fato, compreendido no conceito de constrangimento ilegal, não seja especialmente previsto como elemento integrante de outro crime, como roubo e extorsão, o estupro, o exercício arbitrário das próprias razões (RT 393/321, 546, 344, dentre outros). Pelo princípio da especialidade, tem-se um crime eleitoral, na conduta de “exercer, no dia da eleição, qualquer forma de aliciamento, coação ou manifestação tendente a influir na vontade do eleitor”, do que se vê do artigo 57, IV, da Lei nº 8.713, de 30 de setembro de 1993. Discute-se o crime de constrangimento ilegal diante da ameaça: no crime de ameaça, o incutimento do medo é um fim em si mesmo. Mas, se através do mal anunciado, o objetivo é subjugar-lhe a vontade para alcançar outro fim, o crime é de constrangimento ilegal (RT 616/361). Já se entendeu que pratica o crime de constrangimento ilegal e não extorsão, o agente que exige, mediante graves ameaças, que a vítima faça algo a que legalmente não está obrigada, porém sem o fim precípuo de obter vantagem econômica indevida (TACrSP, RJDTAcCr 20/73).  Distingue-se o delito de sequestro do delito de constrangimento ilegal. Isso porque o constrangimento ilegal reclama a simples voluntariedade do fato e um fim imediato específico expressamente enunciado na lei(constranger alguém a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ele não manda), o sequestro exige a vontade consciente e dirigida à ilegítima privação ou restrição da liberdade alheia (TJSP , RT 651/269).

Há caso emblemático envolvendo o conhecido cantor Wilson Simonal, que foi processado sob a acusação de ser o mentor de uma sessão de tortura – nas dependências do Dops – para obter confissão de desfalque de Raphael Viviani, ex-funcionário de sua firma:

O cantor foi julgado por ter levado Rafhael Viviani, ex-funcionário de sua firma, para a sede do Dops, na rua da Relação, região central da cidade do Rio de Janeiro. Segundo a acusação, Simonal foi ao departamento e emprestou seu carro aos policiais, que buscaram Viviani em casa quase à meia-noite de 24 de agosto de 1971, passaram pelo escritório do artista e terminaram na rua da Relação.Lá torturaram Viviani com choques elétricos, socos e pontapés até ele assumir por escrito o desvio.  .Simonal estava no Dops, para onde ajudou a transportar -desde seu escritório, em Copacabana- o ex-chefe de escritório da Simonal Comunicações Artísticas.Ele não participou da tortura nem a testemunhou.Um inquérito foi instaurado na 13ª DP porque a mulher do funcionário registrou o desaparecimento.Foram condenados o cantor, um policial do Dops, Hugo Corrêa de Mattos, e um colaborador do órgão, Sérgio de Andrada Guedes, em 1974, por crime de extorsão, a pena de cinco anos e quatro meses de reclusão. Em 1976, depois da desclassificação do crime para constrangimento ilegal, a três meses. Simonal passou nove dias detido. Os três negaram as acusações (Folha de São Paulo, 21 de junho de 2009, relatando dados do processo 3.540/72).

Será crime de tortura, constranger, com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa, provocar ação criminosa, ou em razão de discriminação racial ou religiosa (artigo 1º, I, "a", "b" e "c", da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997). Por outro lado, coagir pessoa idosa sem discernimento a outorgar procuração é crime definido no artigo 107 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2002.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de constrangimento ilegal. Se for funcionário público, no exercício de sua atividade funcional, o crime será o exercício arbitrário ou abuso de poder (artigo 350 do CP) e ainda o de violência arbitrária (artigo 322 do CP)

Qualquer pessoa física que possui a capacidade de querer poderá ser sujeito passivo. Entende-se que excluem-se do crime os doentes mentais, o ébrio total, as crianças em sua tenra idade e as pessoas inconscientes. Mas a conduta pode ser exercida contra seus representantes, forçando-os a permitir que se faça algo com relação aos incapazes.

Em que consiste a ação que dá azo ao crime? A ação consiste em constranger, em forçar alguém à atividade que a lei não lhe impõe, sendo indiferente a natureza e a espécie de conduta a que o agente visa forçar a vitima, salvo se constituir ela própria um crime, pois, assim, o crime de constrangimento ilegal estaria excluído.

O núcleo do tipo é dado pelo verbo constranger, que significa forçar, coagir e obrigar determinada pessoa a ação ou inação.

Bem ensinou Magalhães Noronha (Direito penal, volume II, 12ª edição, pág. 161) que o constrangimento há de ser obtido mediante violência, grave ameaça ou  qualquer outro meio que reduza a capacidade de resistir do ofendido.

A violência é o emprego de força física para vencer a resistência da vítima, podendo ser empregada diretamente contra ela, podendo recair sobre outra pessoa ou coisa.

Ameaça é a vis compulsiva, é a forma típica de violência moral, de forma que se exerce sobre a vítima uma ação inibitória, paralisando-se a vontade e o querer, obstando ou impedindo que se defenda ou se oponha à ação do delinquente, como revelou Magalhães Noronha (obra citada, pág. 162). O mal deverá ser determinado, pois, se indefinível e vago, não terá grandes efeitos coativos; deverá ser verosímil também.

Entende-se que a ameaça pode ser feita na presença, como na ausência do ofendido, podendo ser indireta, como no exemplo de obrigar alguém a certo ato sob pena de grave dano para seu filho.

Há registros de coação para ingerir bebida alcóolica (JTACrSP 61/182), para confessar crime (RT 503/416), para entregar documentos (RT 444/372).

Sendo assim, será considerado ilegítimo o constrangimento, quando o sujeito passivo não estiver legalmente obrigado a fazer ou deixar de fazer o que pretende o agente, ou quando não é lícito a este empregar violência ou ameaça para conseguir a conduta visada, como ensinou Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, 7ª edição, artigos 121 a 212, pág. 209). Essa ilegitimidade poderá ser absoluta (obrigar a vítima a proferir uma frase, a usar um distintivo, a passar por determinado lugar) ou relativa (pagamento de dívida de jogo).

Mas, impedir a prática ou continuação de crime ou de qualquer ação antijurídica não é crime.

Assim há crime na ação de constranger, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de haver reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência da vítima. A violência pode constituir-se: com a prática de lesões ou ato que atinja fisicamente a vítima, como o ato de amarrar o ofendido, amordaça-lo etc.; no caso de violência imediata, ou contra coisa; nos casos de violência mediata, como tirar as muletas da vítima (RT 526/391). Pode haver violência à coisa nos danos causados ao automóvel da vítima. Pode, ainda, o constrangimento vir de grave ameaça ou qualquer outro meio, como quando se utiliza narcóticos, inebriantes, drogas, álcool e, até mesmo, hipnose. Assim, há processos fisiopsíquicos, porque atuam sobre o físico da pessoa, mas produzem anormalidades psíquicas.

A coação pode ser absoluta, quando o agente não dá nenhum direito à ação ou omissão da vítima (obrigar a tirar o chapéu, impedir que a esposa saia com determinado vestido). Será relativa, como ensina Júlio Mirabete (Manual de direito penal, volume II, 25ª edição, pág. 157), “quando não é proibida a pretensão do comportamento ativo ou passivo da vítima, porém não tem o sujeito ativo direito de empregar violência ou grave ameaça para consegui-lo” (o pagamento de uma dívida de jogo), Haverá o crime de exercício arbitrário das próprias razões, se o agente constrange a vítima a praticar algo que poderia ser obtido através de meios legais (recebimento de promissória vendida, despejo).

Trata-se de um crime material, que se consuma com o efetivo constrangimento da vítima, pois seria tentado, se não fosse atingido o fim visado.

O Projeto Alcântara Machado (impedir alguém de praticar ato ilícito, ou constranger alguém a fazer ou tolerar coisa a que a lei não o obrigue), incluindo a tolerância, não foi seguido, pois, como explicou Nelson Hungria (Comentários ao código penal, 5ª edição, volume VI, pág. 147) tal referência seria supérflua. Para Nelson Hungria, “a tolerância não é senão uma modalidade de abstenção ou omissão”

Fala-se que o constrangimento pode ser exercido para que a vítima pratique um  crime. Mas, se o constrangimento foi irresistível, será, sem dúvida, hipótese de autoria mediata, como ensina Heleno Cláudio Fragoso (Contra: Mirabete, para quem a melhor solução para o caso é de concurso formal, excluindo-se a agravante prevista no artigo 62, inciso II, diante da impossibilidade do bis in idem). Haverá concurso material entre o crime que vier a ser praticado pelo coagido e o previsto no artigo 146 do CP. Mas, se a coação for resistível, não haverá constrangimento ilegal, sendo hipótese de instigação, devendo o coacto responder pelo crime, com a atenuante a ser aplicada. Haverá concurso formal no constrangimento ilegal de mais de uma pessoa através da mesma ação. No caso de prática da violência, poderá ocorrer concurso material com os delitos que atingem a vida ou a integridade corporal da vítima, somando-se as penas da coação e da violência nos termos do artigo 146, § 2º. A respeito do crime continuado, afirma-se que não se deve confundir a repetição do emprego de meios para se conseguir ação ou omissão da vítima (quando haverá crime único) com a reiteração, correspondendo a cada ação do agente a ação ou inação do ofendido, o que, com a homogeneidade objetiva somada a unidade do sujeito passivo, irá integrar o delito continuado.

O tipo subjetivo é composto pelo dolo, na vontade consciente de empregar violência física ou moral para o fim de obter da vítima a ação ou omissão pretendida, de sorte a cobrir o nexo causal entre a ação e o efetivo constrangimento. Porém, o erro de fato sobre a ilicitude da ação é hipótese de erro sobre a ilicitude do fato.                 

O parágrafo primeiro do artigo 146 do CP apresenta hipóteses de agravantes. No primeiro caso, a presença de mais de três pessoas (quatro no mínimo) torna a ameaça mais aterradora, sendo a violência mais grave, diminuindo a possibilidade de defesa, devendo se constatar a presença de todos os agentes no crime. O emprego de armas é outra agravante. Há agravante com relação ao emprego de arma simulada? Para Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 212) o uso de arma pode ser idôneo para a prática do crime, mas não basta para configurar a agravante. Será necessário que a arma (própria ou imprópria) seja utilizada pelo agente, para lesionar ou ameaçar, não se configurando o agravamento pelo simples porte dela. Não é apenas a arma própria que se tem em vista. Há ainda as armas impróprias, que são instrumentos ou objetos que, não tendo o fim especial de matar, ferir, ou ameaçar, servem para a sua realização. Será o caso de uma pedra, uma garrafa, corda etc. Será necessário que o intrumento sirva para efetivação da violência ou realização da ameaça, devendo ser idôneo à consecução desses meios. Observe-se que Magalhães Noronha (obra citada, pág. 165) fala que “muita vez, uma arma pode não ser idônea para a realização da violência, de acordo com seu destino próprio; assim, por exemplo, um revólver descarregado. Mas será idôneo para a ameaça se a vítima desconhecer essa circunstância. A lei exige apenas que a ameaça ou violência sejam exercidas com emprego de arma. Não há questionar se o agente preparou-se de antemão, com ela, para pôr em ação aqueles meios. É suficiente emprega-la, ofendendo a integridade corporal da vítima ou ameaçando-a”.

Nesses dois casos qualificam-se o delito e as penas de detenção e multa, alternativas no crime simples, são ambas cumuladas e duplicadas.

O artigo 146, parágrafo terceiro, apresenta hipóteses de exclusão de crimes.

Somente haverá exclusão de crime no caso da intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente, se ela for justificada por iminente perigo de vida, pois o perigo remoto não levará a tal exclusão. Entende-se que o tratamento médico arbitrário é um caso de estado de necessidade em que se viola a liberdade individual para salvar-se a vida de um paciente. Será admissível a inclusão na hipótese de transfusão de sangue e cirurgia contra a vontade do paciente ou de seu representa legal, ainda que por  motivos religiosos, quando há iminente perigo de vida.

Ainda, é excluída a hipótese de crime na coação para impedir suicídio. Mas é indispensável não ocorrer risco para o agente, constituindo a omissão o crime previsto no artigo 135 do Código Penal.

Já se decidiu que age no exercício regular de direito o patrão que obtém a confissão de estar sendo furtado por seus empregados (fato verdadeiro), sob ameaça de levar a ocorrência ao conhecimento da Polícia (RT 495/351), apesar de não excluir o delito a circunstância de ser legítimo o mal prenunciado na ameaça. No mesmo sentido, tem-se a lição de Nelson Hungria e Heleno Fragoso (Comentários, volume VI, 4ª edição, pág. 154).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Constrangimento ílegal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4349, 29 maio 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38751. Acesso em: 24 abr. 2024.