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Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor entre os consorciados

Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor entre os consorciados

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01 – INTRODUÇÃO.

A intenção deste artigo é fazer com que a interpretação sistemática dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor seja corretamente aplicada no sistema de consórcio, uma vez que tais dispositivos estão sendo aplicados de forma errônea, em benefício do consorciado que deixou de contribuir com sua cota mensal em dinheiro, em prejuízo dos demais consorciados que estão adimplentes, o que jamais poderá ser admitido.

A defesa dos interesses dos consumidores pode e deve ser exercitada corretamente, o que não é o caso quando se trata de assuntos relacionados ao sistema de consórcio, quando o consorciado deixa de contribuir mensalmente com sua cota mensal em dinheiro, obrigando a administradora de consórcio a interpor a ação de busca e apreensão, depósito, execução, etc., prestando assim serviços ao grupo de consórcio.

Geralmente não é essa prestação de serviços que é questionada quando da apresentação da defesa pelo consorciado na ação de busca e apreensão, depósito, execução, etc. Nas defesas apresentadas e até mesmo nas ações contrárias propostas pelo consorciado, geralmente são outras as questões discutidas. Na maioria das vezes, o consorciado inadimplente ou até mesmo insatisfeito, pretende a modificação de cláusulas contratuais, utilizando-se do argumento de que essa ou àquela cláusula contratual estabelece prestações desproporcionais, abusivas, excessivamente onerosas, etc., quando todos os consorciados, sem exceção de nenhum, assinam o contrato que é igual para todos, assumindo a obrigação de contribuir mensalmente, em condições de igualdade.

É em virtude desse raciocínio lógico que se deve entender que as normas do Código de Defesa do Consumidor, em relação aos consorciados entre si, não devem ser aplicadas, mas sim quando discutir a má prestação de serviços da administradora, o que, efetivamente, não é o assunto tratado aqui.


02 – ELABORAÇÃO, APROVAÇÃO E SANCIONAMENTO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

A Constituição Federal de 1.988, no capítulo relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos, em seu artigo 5º, inciso XXXII, diz textualmente que:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...omissis...)

XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor".

Além disso, no artigo 24, inciso V, a Constituição Federal, assim também dispõe:

"Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...omissis...)

V – produção e consumo".

No artigo 170, inciso V, a Constituição Federal, em atenção aos princípios gerais da atividade econômica, assim também dispõe:

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...omissis...)

V – defesa do consumidor".

Finalmente, o artigo 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1.988, diz que:

"Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor".

Foi em atendimento ao que dispõe a Constituição Federal de 1.988, que o Congresso Nacional elaborou, aprovou e o Presidente da República sancionou o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.90).


03 – CONCEITO DE CONSUMIDOR

A Lei nº 8.078, de 11.09.90, em seu artigo 2º "caput", assim define o que é consumidor. Vejamos:

"Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".

Em análise ao artigo 2º "caput" da Lei nº 8.078, de 11.09.90, verifica-se que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Para GUIDO ALPA [1], a definição preferida pela comunidade européia, consumidor é: "um soggeto che acquista o é fruitore di servizi ad uso personale".

J. M. OTHON SIDOU [2], em seu Esboço de Lei de Proteção ao Consumidor, através do artigo 2º, denomina consumidor, como: "Qualquer pessoa, natural ou jurídica, que contrata para sua utilização, a aquisição de mercadoria ou prestação de serviço, independentemente do modo de manifestação da vontade".

WALDIR BULGARELLI [3], também define consumidor como: "Aquele que se encontra numa situação de usar ou consumir, estabelecendo-se, por isso, uma relação atual ou potencial, fática sem dúvida, porém a que se deve dar uma valorização jurídica, a fim de protegê-lo, quer evitando quer reparando os danos sofridos".

FÁBIO KONDER COMPARATO [4], um dos mais festejados e progressistas precursores da matéria, define o consumidor como: "Os que não dispõem de controle sobre bens de produção e, por conseguinte, devem se submeter ao poder dos titulares destes".

ORLANDO GOMES [5], um dos maiores Civilistas brasileiros, indiretamente, conceitua o consumidor como: "quem compra um bem para uso pessoal" ou "quem utiliza um serviço para um fim da mesma natureza, no mercado, como destinatário da atividade empresarial".

ANTONIO HERMAN V. BENJAMIN [6], em sua doutrina cível, assim define o que é consumidor: "Para nós, modestamente, consumidor é todo aquele que, para seu uso pessoal, de sua família, ou dos que se subordinam por vinculação doméstica ou protetiva a ele, adquire ou utiliza produtos, serviços ou quaisquer outros bens ou informação colocados a sua disposição por comerciantes ou por qualquer outra pessoa natural ou jurídica, no curso de sua atividade ou conhecimento profissionais".

É de se concluir, pois, que é para o consumidor e pensando nele que as fábricas produzem novos produtos, que as prestadoras de serviços lançam novos serviços no mercado, etc. É a ele que se vendem os produtos novos produzidos e os serviços que se prestam; é a ele que se busca seduzir com a publicidade que se dá a um novo produto fabricado, ou a um novo serviço lançado no mercado. É o consumidor quem paga a conta da produção e é dele que vem o lucro obtido com a venda do novo produto fabricado, ou do novo serviço lançado no mercado.


04 – CONCEITOS DE CONSÓRCIO E CONSORCIADO.

A Constituição Federal de 1.988, no título III, mais precisamente no capítulo II, que trata da União, em seu artigo 22, inciso XX, diz textualmente que:

"Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...omissis...)

XX – sistemas de consórcios e sorteios;".

Antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1.988, já existia a Lei nº 5.768, de 20.12.71, que através dos artigos 7º, inciso I e 8º, regulavam as operações conhecidas como consórcio.

Em atenção ao que dispôs o artigo 22, inciso XX, da Constituição Federal, foi sancionada a nova Lei nº 8.177, de 01.03.91, a qual, em seu artigo 33, parágrafo único, transferiu para o Banco Central do Brasil as atribuições previstas nos artigos 7º, inciso I e 8º, da Lei nº 5.768, de 20.12.71, no que se refere às operações conhecidas como consórcio.

No entanto, a Portaria 190, de 27 de outubro de 1989, do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, foi a primeira e a única norma legal, através de seu item 1.1, a definir o consórcio, "in verbis": "Consórcio é a união de diversas pessoas físicas ou jurídicas, com o objetivo de formar poupança, mediante esforço comum, com a finalidade exclusiva de adquirir bens móveis duráveis, por meio de autofinanciamento".

FABIANO LOPES FERREIRA [7], define o consórcio como sendo: "... o agrupamento de um determinado número de pessoas, físicas ou jurídicas, aderindo a um regulamento coletivo e multilateral, assumindo as mesmas obrigações e visando aos mesmos benefícios, administrado por empresas legalmente autorizadas pelo Poder Público, com a finalidade exclusiva de angariar recursos mensais para formar poupança, mediante esforço comum, visando à aquisição de bens móveis, imóveis e serviços".

SÉRGIO VIEIRA HOLTZ [8], também define o consórcio como sendo: "...uma operação de captação de poupança popular entre um determinado grupo fechado de pessoas, com a finalidade de aquisição de bens. Basicamente, consiste na reunião de um determinado número de pessoas, que efetuam uma contribuição mensal ajustada, durante um tempo certo, com o objetivo de adquirir um determinado bem por todos os integrantes deste grupo, utilizando para esse fim o resultado da contribuição de todos. As pessoas se reúnem e têm como objetivo primordial ajudarem-se mutuamente, numa comunhão de interesses. Aderem a um regulamento coletivo, multilateral, através de contrato, assumindo os mesmos direitos e contraindo as mesmas obrigações. Consórcio é uma forma de poupança programada, pois cada participante poupa uma determinada importância, igual para todos, com um objetivo comum. A famosa frase do livro de Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros, Um por todos e todos por um resume de forma bastante objetiva o Sistema de Consórcio. Concluindo, consórcio é a união de diversas pessoas físicas ou jurídicas, com o objetivo de formar poupança, mediante esforço comum, com a finalidade exclusiva de adquirir bens por meio de autofinanciamento".

O "Novo Aurélio – O Dicionário da Língua Portuguesa – Século XXI [9]", também diz que consórcio é o: "Sistema de autofinanciamento para a compra de bens de consumo duráveis, baseado na formação de grupos onde cada participante contribui, durante o número de meses combinado, com uma quantia mensal equivalente ao preço do bem a ser adquirido dividido por aquele número; os bens sorteados entre os participantes".

Pode-se dizer também que consórcio é a união de diversas pessoas físicas ou jurídicas, em grupo fechado, administrado por empresas legalmente autorizadas pelo Poder Público, cuja finalidade é angariar recursos financeiros, por meio de autofinanciamento mensal, em dinheiro, para a formação de um fundo comum (poupança) destinado à compra de bens móveis duráveis, imóveis e serviços, para, através de sorteios e lances, contemplar o consorciado adimplente, até que todos os integrantes do grupo recebam o bem objetivado.

Além disso, pode-se definir o consorciado como toda pessoa física ou jurídica que une-se em grupo fechado, com comunhão de interesses que, através de contribuições mensais, em dinheiro, formam um fundo comum (poupança), caracterizando assim um autofinanciamento, para a aquisição de bem móvel, imóvel e serviços, até que todos os integrantes do grupo receba o bem objetivado.

Tendo-se as conceituações de consumidor, consórcio e consorciado, passa-se agora à conclusão.


05 – CONCLUSÃO

Existe, contudo, diferença entre consumidor e consorciado, como a seguinte: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, enquanto que consorciado é toda pessoa física ou jurídica que une-se em grupo fechado, com comunhão de interesses que, através de contribuições mensais, em dinheiro, formam um fundo comum (poupança), destinado à compra de bens móveis duráveis, imóveis e serviços, caracterizando assim um autofinanciamento, até que todos os integrantes do grupo receba o bem objetivado".

A distinção entre "consumidor", "consórcio" e "consorciado", é patente, se atentarmos para as definições transcritas acima dadas pelos juristas de escol, tanto num, quanto noutro aspecto.

Assim, levando-se em consideração que o Código de Defesa do Consumidor foi promulgado para regular as relações de consumo entre fornecedor e consumidor, não se pode dizer que os consorciados entre si, sejam consumidores. Eles até podem ser consumidores, em relação a administradora do grupo de consórcio, mas jamais entre si.

Em sendo o consórcio a união de pessoas físicas ou jurídicas, em grupo fechado, tendo como objetivo adquirir determinados bens móveis (automóveis, camionetas, utilitários, buguies, motocicletas, motonetas, ciclomotores, triciclos, ônibus, microônibus, caminhões, tratores, etc.), aeronaves, embarcações, máquinas e equipamentos agrícolas e equipamentos rodoviários, nacionais ou importados, produtos eletroeletrônicos, bens imóveis (residenciais, comerciais, rurais, construídos ou na planta e terrenos) e, finalmente, serviços turísticos, com pagamentos parcelados, cujo preço será uniforme para todos os consorciados, independentemente da data de recebimento do bem obtido por sorteio, ou lance, não há como se falar em relação de consumo entre eles consorciados.

A relação contratual existente entre os consorciados participantes do grupo de consórcio, não é uma relação de consumo, mas sim de união de várias pessoas físicas ou jurídicas, em busca de igual objetivo, qual seja, a aquisição de um bem móvel durável, imóveis e serviços.

A única relação de consumo que pode existir, é entre o consorciado e a administradora, porque esta ao prestar serviços, como administradora do grupo de consórcio que é, coletando os nomes dos interessados em participar do grupo, bem como emitindo os boletos mensais das parcelas, além de realizar a respectiva contabilização, a organização das assembléias e a promoção dos sorteios, a compra dos bens para a entrega ao consorciado contemplado, por meio de sorteio, ou de lance, a promoção de buscas e apreensões, depósitos, execuções, etc., efetivamente está prestando serviços ao grupo de consórcio.

No entanto, não é essa prestação de serviços que geralmente é questionada judicialmente, mas sim a anulação de algumas cláusulas contratuais, bem como a revisão de outras, o que, mesmo assim, não há como se falar em relação de consumo entre eles consorciados.

Além do mais, em se tratando de consórcio, presume-se que deve prevalecer o interesse coletivo e geral do grupo de consorciados, que poderão ser afetados pela declaração de nulidade de qualquer cláusula contratual, bem como a revisão de outras, eleitas em benefício de todos, não apenas de um só, uma vez que o sistema consorcial repousa na estrita igualdade de participação entre os consorciados participantes do grupo.

Na verdade, o consórcio nada mais é que uma forma de captação de poupança popular, pelo qual se antecipa parte do pagamento ou todo ele, para a compra de determinados bens e, como tal, a relação dos consorciados entre si não se submete as normas do Código de Defesa do Consumidor, porque a união de pessoas físicas ou jurídicas em busca de um mesmo objetivo, não configura a relação de consumo.

Vale ressaltar, pois, que a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1.990, veio justamente para proteger os consumidores em sentido lato, qualidade esta que não pode ser atribuída aos consorciados entre si. Neste sentido lecionam as insignes doutrinadoras RITA VERA MARTINS FRIEDMAN e SELMA STEHLICK QUEIQUE [10], que:

"Analisando-se globalmente todos os artigos desse Capítulo chega-se a conclusão que o legislador do CDC comunga com as tendências atuais da teoria contratual de primazia dos interesses sociais sobre os individuais.

Os contratos adotados no sistema de consórcio também são regidos por normas de ordem pública. Sua forma e seu texto são totalmente regulados pelo Poder Executivo, o qual age por intermédio de órgão investido de poderes para tal (...). Assim, a impossibilidade de modificar o seu conteúdo não vicia o consentimento das partes contratantes, pois sem essa rigidez o alvo colimado pereceria.

(...omissis...)

O intuito do CDC foi harmonizar os interesses dos participantes das relações de consumo (...), abuso seria instituir o benefício a consorciado, em detrimento do grupo de consórcio.

(...omissis...)

A modernidade desses contratos utilizados para pactuar direitos e obrigações entre consorciados e Administradora de Consórcios, advém da supremacia dos interesses do grupo de consórcio (coletividade de consumidores) sobre os de cada consorciado (um único consumidor). É o reconhecimento da preponderância do bem social sob o individual". (Destaques e grifos nossos).

Bem se vê que a relação dos consorciados entre si não está submetida as disposições do Código de Defesa do Consumidor, porque a relação entre eles não se configura como relação de consumo, mas sim de união de pessoas físicas ou jurídicas em busca de igual objetivo, qual seja, a aquisição de um bem móvel durável, imóveis e serviços.

Na verdade, repita-se, a única relação de consumo que pode existir é entre a administradora e os consorciados participantes do grupo de consórcio, se estes vierem discutir em juízo a qualidade da prestação de serviços que é feita pela administradora, pelos quais recebe a taxa de administração, o que, efetivamente, também não é raro acontecer, uma vez que determinada administradora poderá não promover a cobrança das parcelas e respectiva contabilização, bem como não realizar as assembléias e os sorteios dos consorciados, como também pode não adquirir os bens, não promover a entrega dos mesmos aos consorciados contemplados, isto é, não realizar a contento, a administração do grupo de consórcio, causando assim, prejuízos aos consorciados adimplentes.

Além do mais, o artigo 52, do Código de Defesa do Consumidor, é expresso ao aludir a sua aplicabilidade somente nas relações negociais embasadas no fornecimento de produtos ou serviços que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento, situação diametralmente diversa do sistema de consórcio, onde os consorciados se autofinanciam, mediante a contribuição mensal, em dinheiro, tendo como finalidade a aquisição de um bem móvel durável, imóveis e serviços.

Assim, se o Código de Defesa do Consumidor veio justamente para proteger os consumidores e não sendo os consorciados consumidores entre si, tais disposições não devem ser aplicadas, porque cuida-se de consórcio e, sendo o consorciado participante de um grupo de consórcio, por certo que não há como favorecê-lo em detrimento dos demais consorciados participantes do grupo, que, por motivos pessoais e/ou administrativos e também estruturais, deixa de contribuir mensalmente, dando causa a interposição da ação de busca e apreensão, depósito ou de execução, etc., conforme o caso.

Aliás, vale ressaltar ainda que o entendimento sobre a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, em casos onde envolve litígio de consorciado inadimplente e o grupo de consórcio (representado pela administradora), já está se pacificando nos Tribunais Pátrios, uma vez que, na maioria das vezes, tratam-se de ações que envolvem tão somente os próprios consorciados, tendo em vista que as administradoras de consórcio são meras representantes do Grupo de Consórcio, que através da interposição das medidas judiciais cabíveis (busca e apreensão, depósito, execução, etc.), viabilizam tal fim.

Neste sentido, é de bom alvitre transcrever trechos do V. Acórdão proferido nos autos do Agravo de Instrumento n.º 637273-00/0, pela Colenda 9ª Câmara do Egrégio Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, tendo como Relator o Juiz GIL COELHO. Vejamos:

"Em princípio, tal decisão mereceria prevalecer, não fossem duas peculiaridades próprias do caso concreto.

A primeira é pertinente ao Código de Defesa do Consumidor, no tocante aos contratos de consórcio.

A relação entre o grupo de consorciados e o fornecedor dos bens, objeto do consórcio, submete-se ao Código de Defesa do Consumidor. Também se sujeita a esse Código a relação dos consorciados com a administradora, em razão dos serviços que esta presta para aqueles. Mas, a relação dos consorciados entre si não está submetida ao mesmo Código, não configurando relação de consumo a união de pessoas em busca de igual objetivo. Assim, quando um consorciado deixa de contribuir com sua cota de participação no grupo, a relação é deste inadimplente com os demais consorciados, sem haver incidência do Código de Defesa do Consumidor. A administradora, ao promover a ação de busca e apreensão, efetivamente está prestando serviço ao grupo, mas não é essa prestação de serviço o objeto da ação, que visa a proteção dos consorciados, quer pela purgação da mora pelo inadimplente, quer pela recuperação do bem e subseqüente venda, para que o produto restabeleça o equilíbrio financeiro do grupo.

(...omissis...)

A segunda peculiaridade está no próprio contrato de consórcio. Sua característica principal é a união de várias pessoas, todas com o mesmo objetivo de aquisição de um bem durável. Nele deve haver predominância do interesse coletivo". (Destaques e grifos nossos).

Neste mesmo sentido, vale a pena transcrever trechos do Acórdão proferido nos autos do AI nº 689.964-1, que teve como Relator o Juiz Roberto Caldeira Barioni do Egrégio 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo. Vejamos:

"Entretanto, o mesmo entendimento não pode ser adotado no caso de contrato de consórcio. A administração de grupos de consórcios destinados à aquisição de bens – que nada mais são do que uma forma de captação de poupança popular, pela qual se antecipa parte do pagamento ou todo ele, para a compra de bens, é atividade negocial e, como tal, sujeita a riscos negociais.

Todavia, trata-se de negócios alheios. E a administradora cuida dos negócios não somente de um consorciado: cada grupo tem dezenas de participantes. A facilidade que se outorgará a um inadimplente, (...) será a dificuldade dos demais integrantes do grupo consorcial, que também são consumidores (...). E contra o interesse deles, consumidores, está-se facilitando, em nome da regra da ampla defesa, apenas um consumidor, o mais das vezes um inadimplente". (Destaques e grifos nossos).

Ainda neste mesmo sentido, transcreve-se mais um trecho do Acórdão proferido nos autos do AI nº 602.645-00, que teve como Relator o Juiz Renzo Leonardi – 8ª Câmara Cível do Egrégio 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, j. 07.10.99. Vejamos:

"(...omissis...)

Cumpre ressaltar, ainda, que, "in casu", não há se brandir com o Código de Defesa do Consumidor, porque cuida-se de consórcio (fls. 10/12) e sendo a ré participe de um grupo de consorciados, por certo que não há se favorecer um só consumidor, já que o grupo é formado por vários consumidores.

(...omissis...)

Todavia, o consórcio não tem apenas um interessado, mas vários, ou seja, todos os participantes do grupo, de modo que, nesse passo, não é recomendável a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (....), em desfavor de todos os demais integrantes do grupo". (Destaques e grifos nossos).

Transcreve-se também trechos de outro Acórdão proferido nos autos do AI nº 585704-00/4, que teve como Relator o Juiz Francisco Casconi - 9ª Câmara Cível do Egrégio 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, j. 23.06.99. Vejamos:

"(...omissis...)

Em se tratando de contrato de consórcio, onde o interesse individual de único consorciado não deve suplantar o coletivo, nem contar com tratamento especial em relação aos demais (...).

O ônus extraordinário apto a desconstituir a cláusula contratual – de adesão ou não – é aquele que ofende concretamente o consumidor, aquele que acarreta efetivo prejuízo. De forma mais objetiva, não se concede impar benefício ao consorciado inadimplente que impõe à administradora a via judicial, em detrimento de todo o grupo que, fatalmente será onerado, não só em razão de descumprimento da obrigação, mas, também, frente às despesas que a medida impõe facilitando o impontual (...). Em benefício do inadimplente, lícito não será onerar-se extraordinariamente os demais integrantes do grupo, que merecem a mesma proteção outorgada pelo legislador". (Destaques e grifos nossos).

Além do mais, o Egrégio 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, em análise a recurso de apelação interposto nos autos da Ação de Busca e Apreensão, também já decidiu pela inaplicabilidade das normas do Código de Defesa do Consumidor. Vejamos:

"AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – Bem adquirido através de consórcio – Bem apreendido – Sentença que acolhe o pedido inicial, consolidando nas mãos do autor o domínio e a posse do bem, facultando-lhe a venda, na forma do art. 3º, § 5º, do Decreto-lei nº 911/69 – Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor - Tratando-se de bem adquirido através de consórcio, inexiste relação de consumo, uma vez que o credor fiduciante, mero administrador de grupo consorcial, simplesmente administra o consórcio, tomando como garantia, em favor do grupo, o bem objeto do contrato". (2º TACSP – Ap c/Rev. 540.434 – 8ª C. – Rel. Juiz Renzo Leonardi – Apte.: Lourdes A. Antoniete S. Justo; Apdo.: Itaú Seguros S/A - j. 18.03.1999). (Destaques e grifos nossos).

Assim sendo, pode-se concluir que o pedido de declaração de nulidade de qualquer cláusula contratual, feito por qualquer consorciado, não merece convalidação, porque referidas cláusulas contratuais foram estipuladas em benefício de todos os participantes do grupo de consórcio, onde, inclusive, o consorciado que pleiteia tal benefício, faz parte, em igualdade de condições com os demais consorciados.

No sentido de corroborar a tese de que em sendo beneficiado o consorciado inadimplente, quando este vem a juízo e pleiteia a revisão de algumas cláusulas contratuais, tendo como argumento que essa ou àquela cláusula contratual são abusivas, leoninas e que estabelecem prestações desproporcionais, excessivamente onerosas, etc., pleiteiam a diminuição do valor da parcela do consórcio, etc., transcreve-se abaixo algumas ementas de Acórdãos onde acha-se implicitamente inserida a vulneração ao princípio da igualdade ou da isonomia, como queiram, existente entre os consorciados. Vejamos:

"1. Consórcio para aquisição de veículo. 2. O consórcio representa um aglomerado de certo número de pessoas para aquisição de um determinado bem e em igualdade de condições para todos. 3. Mantido o equilíbrio entre o custo e o benefício, não há porque se colher a pretensão do autor de que houve excessivo aumento do valor das prestações mensais. Recurso conhecido e desprovido. Unanimemente.

Apelação cível 2914792 – DF – TJDFT - 1ª Turma Cível – Rel. Des. Edmundo Minervino – DJ 05.08.93 - DJU 09.12.1993, pág. 54.291". (Destaques e grifos nossos).

Também,

"CONSÓRCIO – PREÇO – PRAZO DE PAGAMENTO – ATUALIZAÇÃO DAS PARCELAS – DILATAÇÃO DO PRAZO. Mostra-se consentânea com as noções relativas ao ato jurídico perfeito a cobrança de parcelas suplementares decorrentes da projeção no tempo de majoração do preço do veículo. No contrato coletivo de consórcio, a obrigação primeira do consorciado é o pagamento total e atualizado do preço do veículo, ficando viabilizada, com isso, a entrega a todos os consorciados. A ordem jurídico-constitucional não agasalha óptica conducente a verdadeiro enriquecimento sem causa, potencializando-se interesse individual, momentâneo e isolado, em detrimento dos interesses do grupo e, portanto, da coletividade.

Recurso extraordinário nº 141298-4 – RJ – 2ª Turma - Rel. Min. Marco Aurélio – Recte.: União dos Revendedores Administradora de Consórcio Ltda.; Recdo.: Auto Serviço João Pessoa Ltda. – DJ 13.05.96 – DJU 18.06.01". (Destaques e grifos nossos).

Finalmente,

"Consignação em Pagamento – Consórcio – Valor das Prestações – Débito originalmente contraído – Insuficiência dos depósitos – Improcedência. 1. Em se tratando de contrato típico de consórcio, que envolve o gerenciamento de interesse de um grupo de pessoas que aderem no propósito de consumo de determinado bem, a contribuição diferenciada de um consorciado pode comprometer a higidez de todo o grupo. 2. Sendo assim, se os valores consignados não se afiguram suficientes para saldar o débito originalmente contraído, é de se julgar improcedente o pleito consignatório, sob pena de se transferir injustamente o rateio do prejuízo aos demais integrantes do grupo consorcial. 3. Recurso improvido. Unânime.

Apelação Cível 5071198 – DF – TJDFT – 5ª Turma Cível – Rel. Des. Adelith de Carvalho Lopes – DJ 07.06.99 – DJU 04.08.99". (Destaques e grifos nossos).

Assim sendo, se o consórcio é a união de diversas pessoas físicas ou jurídicas, em grupo fechado, que têm o mesmo objetivo de adquirir bens móveis, imóveis e serviços, mediante a contribuição mensal, em dinheiro, o que caracteriza o autofinanciamento, para a formação de um fundo comum (poupança), destinado à compra dos bens móveis duráveis, imóveis e serviços desejados, não se pode falar em aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, para beneficiar apenas um consorciado que, na maioria das vezes, é um inadimplente, uma vez que em sendo aplicado referidas normas, estar-se-á vulnerando o princípio da igualdade ou da isonomia, como queiram, existente entre os consorciados do grupo de consórcio, consagrado no "caput" do artigo 5º da Constituição Federal, tendo em vista que o sistema consorcial repousa na estrita igualdade de participação entre os consorciados participantes do grupo.

Portanto, pode-se concluir que as normas do Código de Defesa do Consumidor são inaplicáveis entre os consorciados, porque inexiste relação de consumo entre eles, até mesmo porque não se pode conceder ímpar benefício ao consorciado inadimplente que impõe-se à administradora, por via judicial, em detrimento de um grupo de consórcio que fatalmente será onerado não só em razão do descumprimento da obrigação, mas, também, frente às despesas que a medida impõe, facilitando, no mais das vezes, interesse individual do consorciado impontual, em detrimento do interesse do grupo e, sem dúvida alguma, da coletividade, o que jamais poderá ser admitido.


NOTAS

01. Guido Alpa, Tutella del Consumatore e Controlli Sulla Impresa, Bolonha, Itália, ed. II Mulino, 1977.

02. J.M. Othon Sidou, Proteção ao Consumidor, Rio, Forense, 1977.

03. Waldir Bulgarelli, "A tutela do consumidor na jurisprudência brasileira e de lege ferenda", in A Tutela dos Interesses Difusos, São Paulo, Max Limonad, 1984.

04. Fábio Konde Comparato, Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Rio, Forense, 1978.

05. Orlando Gomes, "Os direitos dos consumidores", in Defesa do Consumidor: Textos Básicos, coordenação de Luiz Amaral, Brasília, CNDC, 1987, p. 50.

06. Antonio Herman V. Benajamin, "in" O Conceito Jurídico de Consumidor, RT 628, pág. 78.

07. Fabiano Lopes Ferreira - Consórcio e Direito – Teoria e Prática – Editora Del Rey, ed. atualizada até fevereiro de 1.988, pág. 18/19.

08. Sérgio Vieira Holtz, Os Grupos de Consórcio, 1ª ed., São Paulo: MH Marins Holtz.

09. Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa / Aurélio Buarque de Holanda Ferreira – 3ª ed., totalmente revista e ampliada – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pág. 535.

10. Rita Vera Martins Friedman e Selma Stehlick Queique, "in" O Consórcio e o Código do Consumidor, Ed. Hermes, 1.991, pág. 61/62, 71 e 80.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Milton Vieira da. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor entre os consorciados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3904. Acesso em: 20 abr. 2024.