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Resenha crítica: Os Batalhadores Brasileiros

Resenha crítica: Os Batalhadores Brasileiros

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Uma resenha da obra "Os Batalhadores Brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora" de autoria de Jessé Souza.A obra trata da dificuldade integração à sociedade brasileira de uma "nova classe média" ascendente.

PROLEGÔMENOS

O objeto de estudo da obra é o que o autor denomina como os “batalhadores”, estes que são uma nova classe média, mas que lutam para não serem olvidados pelas aspirações comuns da classe média tradicional e pela elite brasileira. Estes batalhadores são oriundos da também chamada “ralé brasileira”: indivíduos que resultam de famílias desestruturadas, tipicamente conduzidas por uma mãe apenas e que acumulam crenças que favorecem a sua própria sabotagem. Os batalhadores, entretanto, fazem parte do grupo daqueles que, com devido esforço e sofrimento, passam a integrar o rol da “pequena burguesia” empreendedora e emergente.

A sua realidade não é refém apenas de ambições materiais: os batalhadores padecem de um processo delicado que envolve uma criação de uma realidade e identidade de Ser. Em outras palavras, a criação de uma própria consciência de classe.

O estado brasileiro possibilitou, econômica e socialmente, o estabelecimento desta nova classe média, na figura dos batalhadores, mas ainda assim carece de verdadeiras mudanças para sua adequada integração na esfera social. Por serem oriundos da já citada ralé brasileira, sentem a exclusão por não terem suas aspirações levadas em consideração ou diminuídas, ao passo de que não se confundem totalmente com a atual classe média.

A obra de Jessé Souza irá ilustrar, por meio de casos fáticos que permitem uma adequada análise sociológica, em que pilar se encontram os batalhadores brasileiros, quais suas dificuldades, em que se separam tanto da “ralé brasileira” que os originou quanto da classe média, posicionando-se como uma nova classe média, sui generis.

PARTE I

PERFIS DE TRABALHADORES BRASILEIROS

 

Capítulo 1: A formalidade precária: os batalhadores do telemarketing

Com o crescimento intenso do terceiro setor no Brasil a partir dos anos 1990, houve também uma intensa onda de terceirização de serviços. Um aspecto diretamente relacionado a este fenômeno foi o crescimento notável dos setores de telemarketing nas empresas e, de forma análoga, a ocupação como atendente de telemarketing; emprego este de origem recente. O ponto principal neste capítulo é a de que a ocupação com telemarketing é precária, contribuindo na piora da vida do batalhador como um todo.

O primeiro sintoma percebido foi que, com o surgimento de empregos neste “novo espírito do capitalismo”, estaria o empregado constrangido cada vez mais a regimes “flexíveis” de trabalho, e como consequência uma constante insegurança no mercado de trabalho. Esta precariedade não está sozinha: a ela acompanham baixos salários, condições de trabalho piores, subcontratações etc.

As empresas de telemarketing encarnam esta ideia: são empresas contratadas por empresas de telefonia para recrutar os atendentes. Dessa forma, as empresas contratantes tornam-se mais “eficientes”, mantendo em sua estrutura central apenas os empregados mais qualificados e indispensáveis.

De fato, a democratização escolar teve sua importância no aumento do contingente de escolarizados, mas não trouxe consigo uma valorização relativa desses diplomas. Quanto menos qualificado é o trabalhador, mais ele é encaixado em posições e empregos de instabilidade. A situação das empresas de telemarketing, segundo o autor, constitui “um verdadeiro exército de reserva minimamente escolarizado para o trabalho precário”. O batalhador precarizado encontra-se em setores desprotegidos do mercado de trabalho formal.

O caso apresentado na obra é o de Rodolfo, rapaz de 21 anos e operador de telemarketing. Ele decidiu tentar este emprego diante de falta de alternativa nos estudos. Sua jornada de trabalho, de seis horas, é marcada por uma rígida disciplina (a posição de atendimento), estressante rotina de trabalho e exigências (menor tempo de atendimento, bater metas, lidar com o influxo crescente de ligações). Um de seus mantras é inclusive fazer uso de um botão de “mudo” no seu headset para extravasar o stress, inclusive por meio de xingamentos. E apesar de todos os empregados trabalharem em um mesmo ambiente, dividido em cubículos ou ilhas, há uma total individualização.

A preocupação de Rodolfo em contribuir com a vida econômica de sua família revela-se diante da cessão do seu ticket de alimentação para sua mãe, decisão em parte impactada pelo seu breve horário de almoço, de apenas vinte minutos. Há arbitrariedade na empresa ao estabelecer regras e impor ao empregado um desgastante regime de trabalho, sem recompensas de fato.

Essa relação precária de trabalho, que não há exposição a condições de fato insalubres ou braçais mascara uma ocupação que gera diversos problemas de saúde, sob a fachada de um serviço intelectual, de escritório.

Diante da extenuante rotina de trabalho, que se torna muitas vezes a única rotina do trabalhador, há a mitigação de outras oportunidades e previsões para a vida, não poucas vezes associados a um fracasso de competência exclusivamente pessoal. A escolaridade média do atendente de telemarketing, muito embora o tenha “salvo” de empregos mais precários e insalubres, não o aproximou das instituições de ensino, apresentando-se como uma possibilidade real de melhora de condições.

Diante de tamanha incongruência entre a situação real das condições de trabalho de um batalhador no ramo de telemarketing e a ilusão neles criada pela sua condição de escolaridade, reforça o autor o termo infoproletário no sentido de que tais relações de emprego, ainda que possam dispor das tecnologias do Século XXI, mascarram circunstâncias de trabalho do Século XIX.

O aspecto mais interessante do capítulo inteiro é a análise sociológica feita em sua parte final pelo autor. A partir de sua constatação da precariedade presente nas condições de trabalho de um emprego tido como intelectual e tecnológico, percebe dois fatores principais: uma sociedade com melhores níveis de escolaridade não se converte automaticamente em melhores condições de vida para a população; e nem sempre novas tecnologias, sobretudo as informacionais, vêm acompanhadas de condições igualmente modernizadas de trabalho.

Além disso, diante da degradante condição do Século XIX em empregos recentes, típicos do Século XXI, mitos de coesão social criam outro entrave aos ditos batalhadores: apesar das condições extenuantes serem muitas vezes responsáveis por sua apatia na mudança de melhoras de suas condições(um emprego tido como temporário tomando a posição de maior prioridade na vida), tal fracasso é capciosamente vislumbrado como própria incompetência ou desinteresse, diante de um sistema que oferece plenas condições de superação.

Capítulo 2 – O batalhador feirante e sua administração

O segundo capítulo da obra orbita a tão famosa Feira de Caruaru, em Pernambuco. Assim como boa parte do Nordeste brasileiro, as feiras livres ainda ocupam espaço importante na vida da cidade, originadas em um contexto de capitalismo pré-moderno, mas adaptadas a uma dinâmica econômica contemporânea.

A configuração atual das feiras é deplorável. Espaço marcado por intensas intervenções pela vigilância sanitária e polícia, nela encontram-se tanto feirantes regularizados quanto aqueles que, desempregados ou excluídos, buscam uma alternativa qualquer. Nesse espaço conturbado, fétido, apenas poucas áreas destinadas ao artesanato são frequentadas por um influxo maior de turistas.

Pesquisando neste ambiente de decadência e baseado em diversas entrevistas realizadas ao longo desta pesquisa, montou o autor um tipo ideal, denominado Pedro, que personifica o batalhador que, oriundo do contexto nordestino e da feira, busca administrar seu negócio.

Pedro, nascido em família pobre e com pais pouco alfabetizados, trabalhou desde cedo para crescer na vida. Mais escolarizado que seus pais, porém ainda pouco, seus filhos já possuem melhores oportunidades neste aspecto, e por ele são incentivados, como uma melhor possibilidade de ascensão; por ter trabalhado desde cedo em diversas funções para ajudar a família e a se sustentar apresenta-se como um bom exemplo aos filhos. É sobre os reflexos de sua trajetória de vida na administração dos negócios e projeção de vida que o autor fará sua análise.

Por meio de um quadro síntese, é possível perceber a influência das experiências de vida por observação da atividade cotidiana de agricultor-comerciante não somente na atividade de administração do negócio, também nas projeções que faz para a sua vida e para a família. Mesmo desviando dos conceitos teóricos e acadêmicos tradicionais da administração, busca incorporar as lições aprendidas ao longo da vida e do seu pai nas duas disposições econômicas e administrativas, com o fim último de ser reconhecido socialmente como um batalhador; parte daqui também o seu interesse em ser um bom exemplo para os filhos, cuja escolaridade percebe como um bom mecanismo de ascensão social.

Pedro, ao ter “ido longe” e reconhecido que poderia ter ido mais, também reconhece, tacitamente, que não poderia ir muito além. O reflexo imediato está na projeção de escolaridade que faz sobre os filhos, para um mundo além da feira, com melhores e maiores possibilidades. E nessa mentalidade é que o autor identifica um elemento de distinção entre os batalhadores brasileiros e a já estabelecida classe média.

E a diferenciação na formação de um batalhador da feira da “ralé brasileira” pôde ser constatada empiricamente: a grande maioria dos entrevistados afirmou ter sido criado por pai e mãe (não somente um deles), absorvendo deles esta distinção no aspecto de buscar administrar seus negócios baseados nas suas disposições e experiências de vida, bem como uma busca constante por melhoras e ascensão social, quando não para si, para seus filhos.

Capítulo 3 – Batalhadores empreendedores rurais: unidade familiar, unidade produtiva

Este capítulo consiste na exposição da história bem-sucedida de um pequeno produtor rural do Rio Grande no Sul, para quem a vida de fato começou após os 40 anos. Das histórias apresentadas, talvez seja a que mais se assemelhe à qualificação de self-made man. Capítulo curto, se dedica quase que exclusivamente a narrar a trajetória de Elimar (nome modificado), o pequeno produtor, ao passo que exalta algumas das qualidades do batalhador brasileiro.

Ao longo dos anos, conciliando trabalho árduo e constante com a aspirações por dias melhores, buscando capacitação e mantendo-se firme diante das adversidades, Elimar possui um trajeto similar a muitos dos batalhadores Brasil afora.

De origem humilde, os batalhadores tendem a trabalhar desde cedo para ajudar na economia do lar (traço também partilhado pelo caso modelo de Caruaru, exposto no capítulo anterior), e ciente da crueldade do mercado de trabalho com aqueles que não estudam, outro traço que reforça seu compromisso de estudo para os filhos como meio para ascensão social e melhores condições de vida. Não somente isso, o batalhador, diante deste impasse, busca por amenizar a diferença entre a falta de escolaridade e o trabalho, por vezes empatando a relação, como no caso de Elimar.

Mesmo diante de fracassos, não se pode deixar de ressaltar que sempre há uma aposta na vinda de dias melhores, de que o infortúnio é passageiro. Claro que, no caso do batalhador, não se trata apenas de crença: por meio do intenso trabalho e busca por conhecimento na sua área de atuação, em conjunto com a família. Colher os frutos, diante das origens humildes, leva tempo e determinação, a fé serve como alento nos momentos de dificuldade.

Outro traço determinante do batalhador acrescentado neste capítulo foi o empreendedorismo: buscar novas formas de organização (como no caso das associações de produtores, inevitavelmente de famílias), novos meios de produção e aliar o esforço e trabalho árduo e subsequente investimento na geração dos filhos, acreditando no potencial contido em altos graus de escolaridade para ir além.

Capítulo 4 – O batalhador e sua família

A parte introdutória do capítulo lista duas críticas recorrentes feitas aos laços familiares das famílias das “classes populares”: arcaísmo patriarcal e instrumentalidade. Pelo arcaísmo patriarcal entende-se pelo sentimento de pertencimento a família como “rede de benefícios pessoais”, em que um homem detém a autoridade sobre os demais, organizando esta rede. E no quesito de benefícios pessoais propriamente dito entra a questão  da instrumentalidade como uma visão da família como rede de benefícios: quanto mais extensa, maior a possibilidade poder “tirar vantagem” (o autor menciona o típico malandro).

Por isso, as classes baixas negariam a moralidade e seriam inaptas à participação decente na esfera pública, que pressupõe a impessoalidade e a igualdade. Seria uma herança colonialista e atrasada, conservadora e incompatível com o cenário da esfera pública, como supracitado.

A proposta do capítulo é subverter essa posição de arcaísmo, satirizada até mesmo pela mídia, e demonstrar como esta base familiar, alheia ao modelo familiar burguês (que é igualmente uma construção histórica), não é um resquício colonial, mas sim uma adaptação que permite que os batalhadores, desprovidos de capital nas suas mais diversas formas, possam adequar-se ao mercado e tornar-se a nova classe média.

Uma das histórias escolhidas para ilustrar o capítulo é a de Paulo e Helena. Com trajetória similar aos casos anteriores, em que cresceram diante de poucas oportunidades, e aprenderam e transmitem aos filhos seus valores da ética do trabalho duro e do aprendizado prático do trabalho. Algo específico no caso deles é a intensa dedicação e sacrifícios em nome da família: renunciam até mesmo à vaidade e da esfera erótica.

Por outro lado sua relação subsiste no reconhecimento mútuo: reconhecem a necessidade que têm um do outro para alcançar certos objetivos, que gera uma apreciação que por muitas vezes prescinde de rituais como jantares e viagens. Sua ciência de dificuldades passadas pauta sua diligência para administrar o futuro.

A segunda história escolhida é a de Seu Luís. Proprietário de terras e policultor, encontrou na família o apoio produtivo que necessitava. Ao contrário do caso de Paulo e Helena, orientados por dificuldades passadas, mas sim em previsões de rendimento para o futuro, que orientam suas escolhas na tomada de empréstimos e plantação. Mesmo vislumbrando um futuro longe da “terra” para os filhos, tratou de integrá-los à rede de produção.

Como apêndice ao exemplo, cita o autor o caso de Joaquim, cuja timidez levou ao celibato e por não compor família sua propriedade e produção são evidentemente decadentes. Aqui é possível sentir uma falha na relação entre o celibato e a decadência na administração das terras: muitas vezes o que se acredita ser uma relação de causalidade pode ser apenas uma correlação influenciada por uma variável desconsiderada.

Entrementes, é clara a diferença que a relação familiar faz entre o fracasso e o sucesso de um batalhador para ascender como a nova classe média. A transmissão do aprendizado prático do trabalho aos filhos gera o circuito de reciprocidade que é essencial aos batalhadores. O núcleo familiar é também um núcleo moral, que batalha em nome da sua unidade e sua boa fortuna.

Apesar de ainda existir uma extensa dominação patriarcal, a relação de gênero é muitas vezes questionada em situações como a do mútuo reconhecimento ou no simples reconhecimento da importância da ação de familiares e parentes na consecução do árduo trabalho e da melhora de condições sociais e econômicas.

Capítulo 5 – Batalhadores feirantes: o ver-o-peso de Belém e a Feira de Caruaru

Em Belém, a trajetória dos batalhadores mistura-se com um estigma específico da região norte: o de ausência de civilização, terra de índios, de incultos, talvez um estigma até mais violento que o associado à região Nordeste. O estabelecimento dos batalhadores por lá não só busca combater estas visões preconceituosas como também utilizar-se de tradição para tentar fugir ao cruel momento do capitalismo globalizado. A feira do Ver-o-Peso, em Balém do Pará guarda muitas similaridades com a já analisada Feira de Caruaru, em Pernambuco, não somente no aspecto físico de feira.

Os casos apresentados remetem a habilidades específicas desenvolvidas pelos trabalhadores nestas condições. Uma trabalhadora não se caracteriza por um empreendedorismo estrito mas viu seu negócio florescer diante de sua desenvoltura. Outros, por meio do árduo trabalho e vigor decidiram implementar mais escolarização na própria vida como meio de melhora de condições. Outros até mesmo contavam com o aparato familiar para tal objetivo.

A repetição de padrões é importante de ser observado como sendo quase homogêneo na história de subida dos batalhadores, permitindo tecer um perfil de uma classe que não se resume a traços regionais. Por isso, retorna-se ao ambiente da Feira de Caruaru, e a trajetória de seus batalhadores mais bem-sucedidos não é muito distinta do já observado.

E o listado como fatores importantes na formação de batalhadores de sucesso é: origem familiar estruturada, infância com pai e mãe juntos, disposição para o trabalho esforçado e honesto, disposições econômicas básicas para cálculo e administração primários. Na hipótese específica de trabalhador empreendedor, aos fatores supracitados somam-se disposição e cálculo para autossuperação e disposição para chefia e liderança.

Como conclusão para este captíulo é interessante resgatar um detalhe que ocasionalmente é levantado e que foi foco do primeiro capítulo da obra: maior escolaridade não necessariamente trouxe benefícios imediatos. Os ambientes das feiras, seja em Belém ou Caruaru, com a maior escolarização primária das crianças, viu suas condições e oportunidades decaírem em relação a um passado mais próspero.

Capítulo 6 – Batalhadores e Racismo

Assim como qualquer questão acerca de classe social não pode prescindir de uma observação em quesito de cor, tampouco poderia uma obra sobre os batalhadores do Brasil olvidar outro tema que reflete a dominação na sociedade e que data desde a época da escravidão mas nunca se dissipou.

Ao apresentar a história de três gerações de uma família de batalhadores negros, a família Ramos. O autor busca depreender que desafios e preconceitos a mais passam esses trabalhadores, ainda que a questão dos batalhadores seja em geral, difusa de cor.

A primeira geração ficou marcada resignada às suas limitações pela condição econômica quanto pela exclusão racial. A segunda geração já foi capaz de batalhar por melhores condições de vida, inclusive planejar uma aposentadoria em que não tivessem que trabalhar, ingressando em instituições como Exército (reflexo de seu zeitgeist)e adquirindo educação superior em Universidade.

Nessa segunda geração, não obstante as maiores oportunidades e a não resignação, lidando com ambientes acadêmicos e profissionais com pouca ou nenhuma presença de outros negros, bem como a discriminação por sua tez: falta de respeito, olhares de desdém, boicote de superiores.

A família Ramos submeteu-se a vários níveis e tipos de racismo, dentre eles o processo de embraquecimento, descrito como “processo simbólico ao qual o indivíduo via de regra precisa se submeter para ser aceito em um grupo em que normalmente seria repelido pelo fato de ser negro”. A dinâmica social de bens desejáveis e “bons” muitas vezes não é oferecida sem indivíduos que remetem a um padrão branco, de sorte que o negro que ascende socialmente não tem alternativa senão passar por este embranquecimento.

Nesta seara é de importante relevância o racismo estético (“racismo que sofre aquele que possui características corporais que são desqualificadas na vida social”), que atinge sobretudo as mulheres negras, pois, além de sua situação de desempoderamento, também se valem mais de tratamentos estéticos do que homens. O padrão de beleza física envolve quase que exclusivamente traços brancos, notadamente os cabelos crespos. Além disso, mesmo modelos negras tidas como belas apresentam diversos traços físicos europeus, fruto da miscigenação.

As batalhadoras negras, mesmo possuindo mais recursos econômicos para adequar-se ao inevitável embranquecimento (roupas, tratamentos estéticos etc.) em relação à “ralé”, também possuem outros meios de lutar contra este processo. Por pertencerem a famílias mais estáveis em sentido amplo, podem se posicionar de forma mais segura no estabelecimento dos padrões estéticos que devem seguir.

Infelizmente isso não é sempre uma alternativa quando se quer participar no mercado de trabalho, o que as força a seguir padrões de embranquecimento para “vencer”. Por fim, sua compensação e superação vêm na forma de comparações revanchistas, ao observar a diferença entre sua situação atual e daquelas que as debochavam.

Tais padrões racistas estendem-se a uma maior necessidade de provar virtudes e capacidade no mercado de trabalho (fator também afetado pela aparência), bem como na questão religiosa quando o racismo afeta a possível relação matrimonial de uma mulher negra. Por outro lado, o seio da religião também se mostra importante como apoio na superação de situações em que se sofre por condutas racistas.

A negação da beleza e a afirmação de que não podem ser bons funcionários levam inevitavelmente ao processo de embranquecimento para garantir um espaço no mercado de trabalho, onde não estão isentos de discriminação.

PARTE II

ECONOMIA POLÍTICA DO BATALHADOR

 

Capítulo 7 – Populismo ou medo da maioria? Como transformar em tolice as razões da massa?

 A exposição da influência do quase mítico Padre Cícero no desenvolvimento de Juazeiro do Norte e da região do Cariri, no Ceará, revela a importante relação entre a devoção religiosa e motivações éticas para o desenvolvimento social e econômico, e como a inspiração da fé e da “ética do sofrimento”, importante característica do catolicismo, mesclaram-se tão bem ao trabalho árduo do batalhador.

A história relatada, a da senhora Das Dores, serve como frutífero exemplo dessa relação tradicional e ao mesmo tempo moderna, por se tratar de uma batalhadora empreendedora. Repleta de provações e dificuldades, em semelhança a outras histórias, a da senhora Das Dores está mais permeada pelo aspecto religioso: a fé em Deus ameniza a dor das dificuldades e do sofrimento, que são vistos como provações. Para ela, a providência divina serviu como conforto, mas nunca a deixou prostrada à espera de milagres.

Nesse contexto, o profeta ou salvador, dotado de carisma, elege um valor sagrado como meio para a obtenção de salvação se dirigir o modo de vida. Não raro a elite local se aproveitou destas características para explorar a religiosidade do povo, que se tornou dependente de atos de caridade como atenção divinas às suas preces.

A presença da mística religiosa de origem semita, predominantemente e quase exclusivamente cristã muitas vezes é criticada como fonte de apatia e conformismo das classes mais baixas, foi possível identificar traços da crença religiosa indispensável na trajetória dos batalhadores.

A maior lição aprendida é a de que o fator da fé não é exclusivamente ligado a um pensamento colonialista, podendo muito bem ser dotado de uma flexibilidade fonte de um estoicismo frente às dificuldades oriundas do trabalho. Os batalhadores não apreciam sua falta de educação e suas mazelas, entretanto vê-se capaz de enfrentar o mundo por meio também de sua fé.

Capítulo 8 – Entre a glorificação do oprimido e a legitimação da opressão, há uma alternativa?

Como sugere o título do capítulo, este versa sobre os dois extremos que envolvem os discursos no âmbito da “nova classe trabalhadora”. O discurso que glorifica o oprimido, da pobreza como um modo de vida alternativo e dotado de virtudes únicas e o discurso que legitima a opressão, fundamentando que só há uma maneira de organização do sistema, e que nenhuma alternativa àquela existente seria satisfatória ou válida.

O estudo de três grupos (em Manaus, no sertão nordestino e em uma comunidade autodenominada quilombola) no limiar do império das forças naturais mas que se sobrepõem à natureza por mecanismos humanos, serve para compreender melhor um discurso que foge aos extremos. De partida, sofrem de racismo regional, que busca desqualificar pessoas que vivem sob tais condições por sua condição em si.

O povoado quilombola de Cambará, no Rio Grande do Sul, é o primeiro caso apresentado. Sua agropecuária consiste na plantação de hortaliças e pequenos pomares e na criação de animais de menor porte, como galinhas e porcos. Gado é incomum. Sua tentativa de adotar novas técnicas produtivas sugeriu a alguns o abandono das suas raízes e abandono de sua identidade.

Contraditório seria o seu dever de provar sua identidade como negros apenas por técnicas rústicas de cultivo e criação, quando a adoção de novas técnicas permitiria à comunidade um incremento na qualidade de vida, fortalecendo sua capacidade e autoestima para reagir ao racismo em sociedade.

A questão das técnicas rústicas pelo sertanejo, por sua vez, traz enorme perigo ao frágil bioma da caatinga. Nesta situação, o mito romântico do homem rústico em quase total comunhão com o meio ambiente é deveras prejudicial. Há plena evidência de que a modernização tanto no extrativismo quanto na criação de animais poderia provar-se eficiente na melhora de vida dos indivíduos quanto em uma melhor preservação de tão delicado bioma. De forma similar

A conclusão é que as pessoas “podem muito bem abrir mãos da ‘sua cultura’ quando se interessam por ambientes dentro os quais aquela ‘cultura’ pouco atende como recurso de adaptação e de aprendizado”. A importância está na capacidade de compreender os diversos sistemas que existem sem ser vítima de nenhuma das generalizações levantadas no início do capítulo: de  glorificar o oprimido nem de legitimar o opressor.

 

Capítulo 9 – As estruturas sociais do microcrédito

Como mais uma cria de construção social, a economia possui intensa participação do Estado na sua configuração, de forma ativa ou passiva: redistribuição ou com restrições. Na sua função de política econômica financeira, pode o Estado também tomar posição protagonista, podendo fomentar e capitalizar iniciativas, a exemplo de empréstimos para iniciativas de menor porte.

O capítulo faz uso do CrediAmigo, do Banco do Nordeste como um sistema de fomento a tais iniciativas, oferecendo empréstimos de baixo volume em intervalos curtos. Uma verdadeira política econômica de crédito que atinge as classes tradicionalmente dominadas. O programa CrediAmigo abrange uma variedade de negócios em diversos tamanhos. A seleção de histórias deste capítulo (Seu José, Márcia, Daniel e Lindomar) servem de embasamento à proposição de que este sistema de crédito serve a uma pletora de iniciativas variadas com origem nesta classe batalhadora.

A origem das relações de cessão de crédito também é vislumbrada como resultado de uma dinâmica de classes, que vem a definir quem ou não tem acesso a empréstimos. Mais uma vez o autor ressalta a importância do trabalho árduo e autossuperação dos batalhadores nas suas conquistas.

PARTE III

A RELIGIÃO DO BATALHADOR

 

Capítulo 10 – Os batalhadores e o pentecostalismo: um encontro entre classe e religião

O pentecostalismo é, via de regra, religião típica das classes dominadas, com raízes fortes na origem daqueles que compõem os batalhadores em profunda sintonia com mecanismos modernos de exclusão e opressão. A sistemática e origem do pentecostalismo é então descrita, em um exercício histórico por parte do autor.

Os desafios na vida dos batalhadores os compele a manter um esforço permanente para acreditar em promessas para o futuro. Boa parte dessa fé, como já observado em capítulos anteriores, advém do conforto em face da adversidade, mas também nessa projeção ao futuro, sem necessariamente causar resignação e espera de milagres a serem orquestrados por um ente superior.

A religião é pedra de toque na composição da dinâmica das classes. O ingresso nos mecanismos religiosos faz parte de projetos de horizontes, bem como meios para fugir às mazelas do preconceito e exclusão, dos quais tanto padecem os trabalhadores, mais intensamente os negros.

A possibilidade de reconhecimento social, consolidação da perspectiva de família, mobilização de condições econômicas necessárias para que esta família seja dotada de autonomia; todos estes fatores orientam-se parcialmente no escopo religioso, e neste âmbito, o pentecostalismo é mais receptivo e compatível com estas novas aspirações do batalhador brasileiro.

CONCLUSÃO

O elo orgânico entre patrimonialismo e racismo de classe

Como a batizada “nova classe média” de emergentes foi responsável pela grande mobilização da economia interna do Brasil no período da realização do estudo que culminou na obra resenhada, e de certa forma, compreensão sobre esta classe de batalhadores é compreender o desenvolvimento brasileiro.

A crítica está na presença ainda de meios de exclusão e preconceito em relação à classe dos batalhadores. A sua excepcional superação, quando vista pela antiga classe média e pela elite tradicional, aparentemente se resume a uma equiparação de situação econômica financeira, subsistindo o racismo de classe.

Por não contar com os mesmos recursos de capital cultural, sua ascensão não é considerada boa ou vista com bons olhos. Sua participação na esfera pública é mitigada ou mal vista, pois ainda existem visões preconceituosas e arcaicas. São vistos como indivíduos com maior poder de compra e recursos, mas com educação inferior ou insuficiente.

A reforma institucional para acomodar os batalhadores brasileiros, os protagonistas das transformações criadoras desta nova classe média brasileira, é o que verdadeiramente caracteriza uma genuína revolução brasileira.


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