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O Novo Código Civil e a autonomia do Direito Comercial

O Novo Código Civil e a autonomia do Direito Comercial

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O novo Código Civil revogou a primeira parte do Código Comercial de 1850. Com isso, a noção jurídica de "atos de comércio" perde importância, uma vez que era a parte revogada do Código Comercial de 1850 que conferia um conjunto de direitos e obrigações (regime jurídico) diferenciado para os atos jurídicos que fossem considerados como "atos de comércio".

A doutrina da primeira metade do século XX considerava que, juridicamente, matéria comercial era toda relação que derivava dos atos de comércio e do exercício profissional dos mesmos.

Se tomada como válida essa definição para os dias de hoje, não restaria dúvida: o direito comercial simplesmente desapareceu. Afinal de contas, se desapareceram do mundo jurídico os "atos de comércio", por via de conseqüência, todo o arcabouço de regras jurídicas que verse sobre os tais "atos de comércio" também desaparece.

Sob os aspecto econômico, porém, o que era juridicamente chamado de "atos de comércio" não desapareceu. Ganhou apenas nova roupagem sob o prisma do direito. Em outras palavras, no mundo dos fatos, a compra e venda continua ocorrendo milhares de vezes por minuto, só que a partir do novo Código Civil não mais diferenciamos uma compra e venda mercantil de uma compra e venda civil, pois toda compra e venda será regida (exclusivamente ou não) pelo novo Código Civil, revogadas que ficaram as disposições pertinentes dos códigos de 1850 (comercial) e 1916 (civil).

Isso significa que os fatos (economia) que ensejavam a existência de todo um ramo jurídico continuam existindo. E mais: continuam sendo regulados pelo direito.

Vejamos, assim, quais são as disposições trazidas pelo novo Código Civil a regular esses fatos, antes regulados por dois diplomas legais distintos (Código Comercial de 1850 e Código Civil de 1916).

O novo Código Civil trouxe uma novidade jurídica: é a figura do empresário. Há, portanto, quem seja empresário e quem não seja empresário. A existência dessa figura jurídica tem como conseqüência lógica um conjunto de direitos e obrigações (regime jurídico) diferenciado para quem é e para quem não é empresário. Em outras palavras, o empresário tem certos direitos e certas obrigações que o não-empresário não tem e vice-versa.

Em larga medida, o regime jurídico do empresário, de acordo com o novo Código Civil, é o regime jurídico do antigo comerciante. É o que diz o art. 2.037 do novo Código Civil:

     "Art. 2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis."

Como se vê, nem mesmo o regime jurídico do comerciante desapareceu por completo. Os institutos jurídicos antes aplicáveis ao comerciante que não foram revogados pelo novo Código Civil continuam aplicáveis, só que agora ao empresário.

Sob o aspecto lógico poderia parecer paradoxal essa afirmação, pois a noção de comerciante decorria da noção de "ato de comércio"; se o "ato de comércio" desaparece, também deveria desaparecer a noção jurídica de comerciante e, portanto, todo o regime jurídico do comerciante...

Na verdade, o que ocorreu foi algo distinto: o novo Código Civil não fez desaparecer o mundo (nem poderia!) os fatos que antes eram considerados juridicamente considerados "atos de comércio". Ao contrário, apenas passou a regular todos os atos praticados na economia entre pessoas de direito privado, pondo termos na divisão existente entre atos regidos pelo direito civil e atos regidos pelo direito comercial.

E mais: o novo Código Civil não revogou parte das normas que regiam a antiga figura do comerciante, dispondo expressamente que essas normas passariam a reger uma nova figura, a do empresário.

Poderíamos dizer que o direito comercial desapareceu e que surgiu um direito novo, o direito empresarial, que regeria o empresário e os atos praticados pelo empresário?

O direito comercial não abrangia apenas os atos de comércio e o regime jurídico do comerciante. Isso consistia a parte geral do direito comercial.

Com efeito, o direito comercial tem divisões. É no direito comercial que se estuda, além da caracterização de quem seria comerciante (parte geral), os títulos de crédito, as marcas e patentes, a falência e concordata, o direito societário, o direito marítimo, o direito aeronáutico e, dependendo da corrente doutrinária a ser seguida, também o direito do mercado de capitais e o direito bancário.

Então seria correto dizer que o direito comercial desapareceu e que todas as suas divisões fazem parte do direito civil?

Não se pode confundir autonomia formal com autonomia cientifica. Autonomia formal decorre da existência de um corpo legislativo diferenciado (ex. um código ou uma lei ou um conjunto de leis) Já a autonomia cientifica de um ramo do direito decorre de vários outros aspectos: existência de um objeto único ou de objetos relacionados de regulação, existência de princípios e institutos próprios, método interpretativo diferenciado.

Já é consagrado que disposições de ramos distintos se interpretam de forma distinta. Isso decorre, evidentemente, da natureza específica de cada ramo do direito, já que cada ramo do direito tem objeto de regulação distinto, expressões próprias, visam atender necessidades sociais diferenciadas etc.

O que podemos concluir?

O direito comercial regulava grande parte das relações econômicas mantidas pela pessoas jurídicas de direito privado. Ele passa, com o novo Código Civil, a regular, exclusivamente ou não, todas essas relações econômicas.

Sob o aspecto científico, pouco importa se parte das normas de direito comercial estão no novo Código Civil e não em um outro diploma legislativo, que poderia se chamar "Código Empresarial", "Código da Atividade Econômica" ou mesmo "Código do Direito Privado".

O direito falimentar continua existindo, tendo modificado apenas seu âmbito fático de incidência, agora a todos os empresários; o direito das marcas e patentes permanece inalterado; títulos de créditos, como objeto de regulação, continuam sendo títulos de créditos, ainda que novas disposições legislativas; o "Registro Público de Empresas Mercantis" também continua existindo, passando apenas a registrar empresários e não mais comerciantes; direito societário também continua sendo direito societário, ainda que com algumas alterações legislativas trazidas pelo novo Código.

Como se vê, apenas o que mudou foi a morte da noção jurídica de "ato de comércio", a morte da noção jurídica de "comerciante" e o nascimento da figura jurídica de "empresário", que embora seja totalmente distinta da noção jurídica de "comerciante", herdou o seu regime jurídico na parte não revogada.

Assim, cientificamente, apenas há alteração na parte geral do direito comercial, que passa a ser direito empresarial. As demais divisões internas do direito comercial continuam, cientificamente, inalteradas.

Assim, dizer que o direito comercial perdeu sua autonomia jurídica por causa do novo Código Civil é não perceber que a maior parte do seu objeto de regulação (falência e concordata, títulos de créditos, marcas e patentes, direito societário, registro de empresas etc) continua vivo e sem alteração sob o prisma científico, já que alterações legislativas de específicos tópicos regulados não tem o condão de modificar a estrutura científica de um ramo do direito, como vimos acima.

O que se pode discutir é a conveniência de unificação do estudo do direito comercial com o direito civil. Ou seja, dizer se as divisões do direito comercial pertencem ao direito civil ou se deveriam ser estudadas dentro de uma única disciplina, que seria chamada de "direito civil" ou de "direito privado". Assim, por exemplo, um professor de direito societário, especializado na Lei das S/As, seria chamado de professor de "direito civil" e não de professor de "direito comercial"... Tanto o professor de direito de família como o professor de direito falimentar seriam tratados como professores do mesmo "ramo" do direito, o "direito civil"...

Essa tese lembra uma escola de alguns autores do período soviético, que incluíam no "direito econômico" não apenas a regulação dos instrumentos de intervenção indireta do Estado na economia, mas toda a regulação da economia, o que abrangia toda e qualquer norma de conteúdo econômico, o que incluiria parte do direito civil e todo o direito comercial. Como a expressão "direito econômico" na doutrina atual já tem um significado específico, essa opção não seria das mais adequadas...

Desde que não provoque confusão nas pessoas, pouco importa a nomenclatura adotada. Cientificamente, existe um ramo jurídico que regula as relações econômicas entre pessoas de direito privado. Esse ramo pode (e deve) continuar sendo chamado de "direito comercial", embora não mais exista a figura do "comerciante" ou dos "atos de comércio"; ou pode-se adotar um novo nome "direito dos negócios privados" ou "direito da atividade econômica privada" ou mesmo "direito empresarial", embora a expressão "direito empresarial" devesse ser utilizada para significar a divisão interna que trata do empresário e de seu regime jurídico, que incluiria o estudo da empresa e do estabelecimento.


Autor

  • Bruno Mattos e Silva

    Bacharel em Direito pela USP. Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha). Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores, Procurador Federal da CVM e Assessor Especial de Ministro de Estado. Desde 2006 é Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de direito empresarial, de regulação, econômico e do consumidor. Autor dos livros Direito de Empresa (Ed. Atlas) e Compra de Imóveis (Edi. Atlas/GEN).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Bruno Mattos e. O Novo Código Civil e a autonomia do Direito Comercial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3946. Acesso em: 18 abr. 2024.