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A proteção da dignidade da pessoa humana como fundamentação constitucional do sistema penal

A proteção da dignidade da pessoa humana como fundamentação constitucional do sistema penal

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SUMÁRIO: 1.NOTA INTRODUTÓRIA 2.ASPECTOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – 2.1.Gênese e desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana. Alguma fundamentação filosófica e axiológica – 2.2.A constitucionalização do princípio: atribuição do caráter imperativo e vinculante – 2.3.A dignidade da pessoa humana frente aos direitos humanos fundamentais – 2.4.A dignidade da pessoa humana como escopo da Constituição brasileira de 1988 – 3.ASPECTOS DOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL – 3.1.Constituição e sistema penal: esse sistema como ambiente de concretização dos escopos da Constituição – 3.2.Sistema penal e Constituição: os fundamentos constitucionais para esse sistema – 3.3.A dignidade da pessoa humana como um desses fundamentos: a conexão entre a dignidade do homem e o sistema penal – 4.SINERGIA DOS ELEMENTOS: um sistema penal plasmado na dignidade do homem – 4.1.Estrutura e dinâmica do sistema penal – 4.2.A sua perspectiva funcional – 4.3.O modelo humanitário frente aos problemas jurídico-políticos de segurança pública – 4.4.Alguma manifestação da dignidade humana no âmbito penal – a)Reflexos no processo legislativo penal – b)Na atividade policial – c)Na atividade judicial e na interpretação/aplicação da lei penal – d)Na execução da pena – 5.À GUISA DE CONCLUSÃO.


1.NOTA INTRODUTÓRIA

O princípio constitucional da proteção e da promoção da dignidade da pessoa humana deve influenciar o sistema penal (amplamente considerado) para que ele funcione com respeito aos direitos humanos fundamentais e para que se baseie, precipuamente, no paradigma humanitário.

O presente estudo é dividido em três partes fundamentais. Na primeira delas são buscados alguns aspectos acerca da teoria da dignidade da pessoa humana. Na segunda parte são buscados alguns aspectos acerca da fundamentação constitucional do sistema penal. E na terceira, ocorre a conexão dos dois elementos e a prospecção de alguns dos reflexos práticos da defesa da dignidade da pessoa humana no âmbito penal.

A análise do tema é feita predominantemente sob uma perspectiva da teoria constitucional, da qual são deduzidas as conclusões.


2.ASPECTOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2.1.Gênese e desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana. Alguma fundamentação filosófica e axiológica

As idéias – como proposições – surgem na filosofia, consagram-se na moral e se fortalecem com o Direito.

Da mesma maneira, a noção de dignidade da pessoa humana, concebida como uma idéia, surgiu no plano filosófico como reflexão (ou cogitatum), para em seguida ser consagrada como valor moral, ao qual, finalmente, agregou-se um valor jurídico.

Isto posto, inicia-se aqui uma incompleta e panorâmica exposição de alguma – por isso não toda – fundamentação filosófica e axiológica responsável, pelo menos parcialmente, pela consolidação de um paradigma da dignidade da pessoa humana e pela pré-compreensão dessa noção.

Ao longo da história, podemos observar a evolução do pensamento reflexivo do homem acerca da sua própria essência e da sua própria condição existencial.

No âmbito da filosofia, talvez seja no pensamento clássico que se encontrem as origens da idéia de que a pessoa humana seria dotada de um valor intrínseco. Num primeiro momento, essa premissa teria sido extraída da concepção de que todo ser humano possui um valor próprio que o distingue dos demais elementos da realidade. Bem mais tarde, essa idéia evoluiria para a noção de que esse mesmo ser humano, na figura de uma só pessoa, representaria toda a humanidade.

Na filosofia antiga, o limiar da preocupação com a natureza do homem talvez se encontre entre os sofistas. Foi com esses filósofos que se iniciou o deslocamento do eixo reflexivo do pensamento físico (cosmos) para o pensamento humanista antigo (homem como indivíduo e como membro de uma sociedade).

Nesta época, PROTÁGORAS afirmou que o homem era a medida de todas as coisas ("homo mensura") e ANTIFONTE defendeu a igualdade dos indivíduos independentemente de sua origem.

No pensamento estóico de CÍCERO, verificado nas clássicas tragédias gregas, já estava patente que o ser humano possuía uma qualidade que o distinguia das demais criaturas e que, além disso, esse atributo distintivo era uma característica de todos os seres humanos mesmo diante de eventuais diferenças sociais, culturais ou individuais.

Essa nova qualidade (ou dignidade) resultou do significado filosófico conferido ao universalismo de Alexandre Magno que concebia o mundo como uma única "polis" da qual todos participavam como amigos e iguais, e que nisso fundamentou sua conquistas e seu expansionismo.

A patrística de SANTO AGOSTINHO também buscou distinguir os seres humanos das coisas e dos animais. Anos antes, PLATÃO e ARISTÓTELES também se dedicaram a um objetivo semelhante, elevando o ser humano a um patamar de superioridade frente às demais criaturas.

É importante se notar que embora existisse essa reflexão acerca da condição humana, ainda surgiam e permaneciam arraigadas – mesmo no plano filosófico – muitas idéias que fundamentavam práticas morais prejudiciais ao ser humano e hoje drasticamente condenadas.

Na Idade Média, SÃO TOMAS DE AQUINO sustentou a divindade da chamada "dignitas humana".

Já no Renascimento, período em que se conclamou o homem como um ser ativo e responsável pela transformação da sua própria realidade, surgiu o pensamento de PICCO DELLA MIRANDOLA, humanista italiano que defendia o homem como um ente dotado da prerrogativa necessária para construir e planejar sua própria existência de maneira livre e independente, sem a ingerência abusiva de outros indivíduos.

Da mesma maneira, foi muito importante a contribuição de FRANCISCO DE VITORIA que, ainda no século XVI e contra o colonialismo espanhol, defendeu a liberdade e o respeito aos povos indígenas, com base no pensamento estóico e cristão, e com base na tese de que esses povos da América – da mesma maneira que todos os outros povos – já eram dotados de um direito original em razão de sua natureza humana.

Inauguradas as vertentes do pensamento moderno, a reflexão acerca da liberdade do indivíduo foi lapidada pela filosofia que moveu a Independência Americana e a Revolução Francesa, e que se manifestou por meio do Movimento Iluminista do século XVIII com origens no século anterior.

Entre outros, nesta época destacaram-se DESCARTES, LOCKE, VOLTAIRE, TURGOT, CONDORCET, PAINE, ROUSSEAU e MONTESQUIEU. Existia, então, a concepção de que a sociedade ideal deveria ser organizada visando à felicidade humana e essa sociedade ideal só poderia nascer do respeito aos direitos naturais do homem.

SAMUEL PUFENDORF, ainda com fundamento jusnaturalista, considerava a dignidade humana como a liberdade nata de que o indivíduo desfrutava e que lhe permitia agir de acordo com sua opção de vida. A dignidade era a base da liberdade humana.

É do idealismo alemão de IMMANUEL KANT [1] que talvez tenha surgido a melhor expressão do conceito lógico-filosófico de dignidade humana.

A filosofia kantiana concebia o homem como um ser racional, que existia como um fim e não como um meio, diferentemente dos outros seres desprovidos de razão.

Em função dessa condição de ser racional, comum a todos os seres humanos, é que o homem poderia ser chamado de pessoa – logo, pessoa humana.

Essa pessoa humana seria dotada de um valor intrínseco, um valor próprio da sua essência. Esse valor intrínseco seria superior a qualquer preço e, por isso, não poderia ser apreçado ou substituído por coisa equivalente, já que – como dito – o ser humano seria um fim e não um meio passível de utilização e manipulação. Do que decorre que esse valor intrínseco seria um valor absoluto, uma qualidade absoluta, ou – finalmente – uma dignidade absoluta.

Esse dignidade absoluta seria a qualidade essencial daquele ser racional, a pessoa humana, por isso dignidade da pessoa humana, objeto de respeito e proteção.

Como visto, KANT atribuiu a condição de valor ao atributo da dignidade humana, por meio da lógica e da filosofia.

No pensamento filosófico contemporâneo, a questão da dignidade da pessoa humana assumiu o papel de tema fundamental, como pilar de toda existência social merecedor de atenção e de todo esforço.

Já no âmbito da axiologia, a dignidade da pessoa humana – concebida concretamente como um valor moral – esteve presente em diversas culturas e povos.

É possível perceber, neste aspecto, em várias doutrinas e textos religiosos – ora considerados como códigos morais [2] – a valorização e salvaguarda do homem, justificadas seja por fundamentos metafísicos de fé seja por necessidades meramente materiais.

No judaísmo a salvaguarda do ser humano é julgada como uma necessidade e como uma obrigação. Com relação à dignidade do homem, o cerne da teologia judaica encontra-se no incentivo à caridade, na proteção ao desamparado e no amor fraternal [3].

Na tradição islâmica, da mesma maneira, a pessoa humana é vista como o ser mais nobre e digno de honra que existe. Tudo o que céu e terra abrangem estaria à sua disposição [4]. A ela teriam sido dadas, por graça divina, a razão e a capacidade de pensar e de dirigir seu destino.

Os princípios básicos da civilização islâmica deixaram uma impressão bastante profunda nas sociedades que surgiram a partir do século VII. O ideário islâmico prega que a dignidade do povo não deve ser violada e elege valores como generosidade, cooperação, igualdade, paz e fraternidade [5].

A pessoa humana é concebida como uma criatura de Deus, que a produziu com as próprias mãos, deu-lhe um sopro de alma e fez dela a figura mais bela. O respeito à pessoa é tão importante que a vida de uma única pessoa é tão valiosa como a vida de todo o gênero humano e de sua posteridade [6].

Em 1981 foi proclamada na sede da Unesco a Declaração Islâmica dos Direitos Humanos, um dos documentos que marcaram o começo do século XV da era islâmica. Além de outras proposições o documento afirma que a vida humana é sagrada e inviovável, e que ela deve ser sempre protegida.

Nas várias manifestações do Cristianismo é relativamente uniforme a adoção do ditame da preservação do homem. Com efeito, o fundamento teológico cristão para a proteção da dignidade do homem encontra-se no axioma de que a pessoa humana, criada por Deus à sua imagem e semelhança [7] e remida por Cristo [8], tem necessariamente uma condição que exige a Liberdade e a Justiça como prioridades sobre todas as coisas materiais que lhe possam degradar ou escravizar.

A Igreja Católica, coadunando com o princípio cristão que lhe embasa, inaugurou sua doutrina social [9] numa época em que o homem se via ameaçado pelo estado de selvageria que afetava a sociedade no plano econômico e que transformava o ser humano em insumo a ser consumido na progresso industrial.

Dessa doutrina social originaram-se vários movimentos de caráter renovador e de preocupação humanitária. Na América Latina, e principalmente no Brasil, foi notório o surgimento da chamada Teologia da Libertação preocupada com as questões de inclusão social do indivíduo.

Por outro lado, ainda que no campo da ontologia – livre de juízos de valor, amoral e meramente fática – a proteção e promoção da dignidade do ser humano passa a ser uma necessidade material e uma condição para a construção e para o desenvolvimento da humanidade. Negar a validade desse ideal é negar a própria validade da existência das instituições humanas e, por isso, assumir uma posição auto-destrutiva [10].

Como se disse anteriormente, após o seu reconhecimento como valor moral, foi atribuído valor jurídico à dignidade da pessoa humana. A proteção da dignidade da pessoa humana passou do âmbito da consciência coletiva para o âmbito jurídico.

Consagrado como valor jurídico universal, principalmente após a Declaração da ONU de 1948, a dignidade da pessoa humana – entendida como o atributo imanente ao ser humano para exercício da liberdade e de direitos como garantia de uma existência plena e saudável – passou a ter amparo como um objetivo e uma necessidade de toda humanidade, vinculando governos, instituições e indivíduos [11].

Pelo exposto, nota-se que existe uma importante confluência entre valores morais e valores jurídicos voltada para a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana. Essa confluência é condição para uma contingente e posterior integração da humanidade.

Se é mesmo possível que um dia – superadas diferenças superficiais – toda a humanidade convirja para um vértice comum, início de um novo caminho conjunto, é também muito provável que o fundamento desse vértice de convergência seja a defesa da dignidade do homem.

Essa dignidade é algo imanente ao ser humano. Talvez uma das poucas características comuns e essenciais presentes nas mais antagônicas culturas, religiões ou instituições humanas seja o próprio homem, que – mesmo submetido a diferentes circunstâncias externas – preserva ainda sua essencialidade comum, constituída por sua consciência, seus medos, suas virtudes, seus defeitos e, principalmente, suas necessidades.

Apesar disso e apesar de todo arcabouço filosófico, moral e jurídico para a proteção do homem, a história demonstrou que – desde a antigüidade oriental até os tempos atuais – nem sempre houve de fato o primado do ser humano sobre todos os outros interesses.

É de se notar que são recorrentes os atentados ao bem do homem, sempre preterido, desde a escravatura reinante nas civilizações orientais e européias, passando pelas perseguições da Inquisição e dominação de povos mais vulneráveis, até os despiciendos fenômenos da prevalência dos interesses econômicos sobre os interesses sociais, das guerras, do genocídio, da fome, da miséria, da discriminação social e da animalização do indivíduo.

Somente com a efetiva superação de todos esses fatores degradantes da condição humana é que poderia ser alcançado o patamar da plenitude da humanidade.

O caminho para a comunhão da humanidade passa necessariamente pela preservação da dignidade do homem.

2.2.A constitucionalização do princípio: atribuição do caráter imperativo e vinculante

No plano jurídico, a valorização da noção da dignidade humana está intimamente ligada aos movimentos constitucionalistas modernos, sobretudo ao constitucionalismo francês e ao americano [12].

Embora ao longo da história sejam encontradas algumas manifestações axiológico-constitucionais destinadas à finalidade de organização da estrutura do poder e algumas até de defesa da liberdade individual [13], o constitucionalismo somente se avulta significativamente com o advento das Cartas da segunda metade do século XVIII, sob influência das Revoluções Burguesas, do Contratualismo e do Iluminismo [14].

A constituição moderna, de caráter nitidamente liberal, surgiu com a finalidade de declarar direitos, de fundamentar a organização do governo e de limitar o poder político, limitação essa que era o maior anseio dos mentores burgueses setecentistas.

O valor moral da dignidade da pessoa humana foi consagrado como valor constitucional na Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu a Constituição americana de 1787, e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que resultou da Revolução Francesa. Neste aspecto, ambos os documentos se fundamentavam nas doutrinas de LOCKE, MONTESQUIEU e ROUSSEAU influenciadas pela noção humanista de reserva da integridade e da potencialidade do indivíduo [15].

Com o passar do tempo, a figura da Constituição, nas suas principais aparições, preservou o provimento à dignidade humana [16] e englobou gradativamente outros valores e outros desideratos mais amplos do que aqueles iniciais, assumindo a função de garantia dos interesses sociais e de limitação do poder econômico até adquirir, nos tempos atuais, um caráter programático e democrático voltado para a concretização dos valores por ela enunciados.

Apesar de ser possível sua dedução dos textos constitucionais mais antigos que tutelavam as liberdades fundamentais, a expressa positivação do ideal da dignidade da pessoa humana é bastante recente. Com algumas exceções, somente após sua consagração na Declaração Universal da ONU de 1948 é que o princípio foi expressamente reconhecido na maioria das Constituições [17].

Ressalte-se que, embora inegável a importância do reconhecimento expresso do princípio para a afirmação do ideal, esse recente movimento de sua positivação na ordem constitucional não é pioneiro na criação da obrigatoriedade da proteção da dignidade, já que essa necessidade já era patente, mesmo que implicitamente, nos movimentos anteriores, notadamente a partir daquele constitucionalismo do século XVIII.

No Brasil, país cuja trajetória constitucional foi bastante conturbada e cuja realidade política esteve sempre sob o jugo de períodos ditatoriais poucas vezes atenuados [18], o ideal de proteção da dignidade da pessoa humana somente foi reconhecido formalmente na ordem positiva com a promulgação da Constituição de 1988.

O advento da nossa Constituição foi louvável tanto em razão de seus nobres objetivos quanto por sua natureza compromissória e sincrética de inspiração salientamente democrática. O texto constitucional consagrou o valor da dignidade da pessoa humana como princípio máximo e o elevou, de maneira inconteste, à uma categoria superlativa em nosso ordenamento, na qualidade de norma jurídica fundamental.

Quanto à sua natureza, as normas jurídicas possuem as características de coercitividade e de imperatividade, características essas que as diferenciam das normas não-jurídicas [19] (como as normas de ordem moral – meramente sugestivas).

Os princípios de direito, e notadamente os princípios constitucionais, são equiparados a normas jurídicas no tocante a essas características de coercitividade e de imperatividade [20]. Por isso, não são meros ditames de obediência contingente ou facultativa, mas sim normas jurídicas de aspecto principiológico e dotadas de poder vinculante.

As normas constitucionais (regras e princípios) compartilham desse poder vinculante e dessa característica de imperatividade de que são dotadas as normas jurídicas "latu sensu" [21].

E mais; em âmbito constitucional, essa coercitividade se expressa num grau ainda mais contundente do que nas outras normas jurídicas, já que as regras e os princípios constitucionais, mais que meras normas jurídicas, são normas jurídicas de hierarquia superlativa [22], submetendo todo o conjunto normativo inferior às suas disposições expressas e aos desígnios dos valores consagrados em seu bojo, mesmo que implícitos [23].

Ademais, essa submissão perante às normas constitucionais, mesmo que programáticas, não vincula somente o ordenamento normativo enquanto sistema teórico, mas – mais que isso – vincula todos seus efeitos práticos [24], na medida do alcance dos efeitos do Direito na realidade, e como esse alcance deve ser máximo, os efeitos das normas constitucionais tornam-se, necessariamente, bastante amplos.

Logo, a partir dessa constatação, é possível se verificar a necessária abrangência dos efeitos das regras e princípios constitucionais que se projetam em toda realidade, inclusive além dos âmbitos estritamente normativos ou jurídicos, como, por exemplo, na atividade econômica e na atividade política "latu sensu" (processo legislativo, atividades de governo, efetivação de políticas públicas etc).

E é nos casos práticos que a afirmação do caráter dirigente da Constituição revela sua importância e seu significado mais salientes, na medida que todo o desenvolvimento da sociedade passa a ser submetido aos valores de ordem constitucional.

Assim, uma das conseqüências práticas desse reconhecimento é que diretrizes como, por exemplo, a proteção da dignidade humana deixam de ser meras sugestões filosófico-axiológicas para se tornarem imperativos fáticos [25] em toda amplitude do Direito projetado na sociedade.

2.3.A dignidade da pessoa humana frente aos direitos humanos fundamentais

Existem muitos pontos de contato entre a dignidade da pessoa humana e a teoria dos direitos fundamentais [26]. Em verdade, mais que simples pontos de contato, trata-se de íntima ligação entre eles, sobretudo em cinco aspectos pelo que necessariamente se relacionam, o ente dignidade e o ente direitos fundamentais [27].

Num primeiro aspecto [28], a dignidade da pessoa humana pode ser vista como unidade de valor de uma ordem constitucional e, principalmente, como unidade de valor para os direitos fundamentais [29]. Neste aspecto, a dignidade da pessoa humana assumiria seu caráter axiológico-constitucional, funcionando como um paradigma das liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais, e como elemento de integração e de hierarquização hermenêutico-sistemática de todo o ordenamento jurídico.

Num segundo aspecto, como elementos de habilitação de um sistema positivo dos direitos fundamentais, a proteção e a promoção da dignidade do homem sustenta e afere legitimidade a um Estado e a uma sociedade que tenham a pessoa humana como fim e como fundamento máximos [30]. Aqui, a dignidade assumiria o papel de critério para verificação do sentido de uma ordem estabelecida, sentido esse que não pode ser outro que não aquele baseado na unidade de valor mencionada [31].

Num terceiro aspecto a que se chamaria de aspecto pragmático-constitucional, a relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana seria uma relação de "praxis" no interior teórico da ordem constitucional. Aqui, os direitos fundamentais seriam a concretização da diretriz da dignidade da pessoa humana em substância constitucional, diretriz essa informadora de toda a ordem jurídica. Em verdade, trata-se de um processo de derivação, por meio do qual todos os direitos constitucionais frutificam a partir da gema original da dignidade [32].

Restam ainda dois aspectos que decorrem desses aspectos iniciais. Um, seria a perspectiva da dignidade da pessoa humana como parâmetro na dedução de direitos fundamentais implícitos, seguindo a concepção de que a própria dignidade consistiria um direito fundamental na medida em que se manifestasse "stricto sensu".

Outro, seria a perspectiva da dignidade da pessoa humana como limite e função do Estado e da sociedade, na dupla vertente de que tanto um quanto outro devem respeitar a dignidade (limite – ou função negativa) e promover a dignidade (função positiva ou prestacional), respeito e promoção esses que se manifestariam por meio do respeito e da promoção de todos direitos constitucionais da pessoa e do cidadão [33].

Da relação em epígrafe, é possível se concluir que, dotada de caráter universal, a dignidade da pessoa humana é tanto o fundamento quanto o fim dos direitos fundamentais, para os quais funciona como paradigma e por meio dos quais aflora concretamente.

2.4.A dignidade da pessoa humana como escopo da Constituição brasileira de 1988

A noção de dignidade da pessoa humana funde-se com a definição material de Constituição, já que a preocupação com o ser humano consagrou-se como uma das finalidades constitucionais [34].

Uma Constituição que não consagre a proteção e, principalmente, a promoção da dignidade do homem não pode ser uma verdadeira Constituição.

Assim, por essência, um dos objetivos mais importantes das Constituições – senão o principal deles – consiste nessa proteção da dignidade humana e em sua promoção.

A Constituição brasileira se mostrou simpática aos apelos de abertura política e conformação democrática, consagrando inúmeros princípios que representaram essa tendência.

Após um período de instabilidade constitucional que a antecedeu, a Carta de 1988, com uma opção notoriamente socializante, reafirmou os dispositivos de organização e limitação do poder político, além de votar pela garantia da Democracia e da cidadania, pela enunciação dos direitos fundamentais, pela promoção da justiça social, pelo controle do poder econômico e, sobretudo, pela preservação da dignidade da pessoa humana.

Esses mencionados objetivos seriam os chamados escopos constitucionais que representariam aquela vontade da Constituição de que nos fala KONRAD HESSE [35] e teriam aquele referido caráter imperativo e vinculante, em razão da força normativa das Constituições.

Como visto, encontramos dentre esses escopos da Constituição de 1988 a preservação da dignidade da pessoa humana eleita como um princípio estruturante do atual Estado brasileiro (art.1o., III, CF), princípio esse sob que se deve edificar (ou realizar) materialmente esse Estado Constitucional de aspiração social e democrática.

Outrossim, caracterizada como princípio estruturante [36], a proteção da dignidade da pessoa humana transcende as generalidades teórico-políticas e projeta-se para o campo jurídico-político-pragmático de realização, assumindo tanto – nesse plano geral – seu papel de conformação política "lato sensu", quanto – num plano específico – seu papel casuístico na promoção de justiça e na defesa do homem.


3.ASPECTOS DOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO SISTEMA PENAL

3.1.Constituição e sistema penal: esse sistema como ambiente para a concretização dos escopos da Constituição

A Constituição se projeta no sistema penal (vetor Constituição-sistema penal). As disposições constitucionais vinculam o funcionamento desse sistema e nele se concretizam.

Concretizar as normas e valores constitucionais é realizar efetivamente os escopos da Constituição no seio da sociedade e no cerne do sistema jurídico [37]. De nada adianta enunciar direitos sem concretizá-los efetivamente.

Só é possível a existência de um verdadeiro Estado Democrático se a sua Constituição for efetivamente aplicada e se os valores dessa mesma Constituição surtirem efeitos verdadeiramente.

Por isso – sendo a dignidade da pessoa humana o principal valor constitucional – também só é possível a consolidação desse Estado Social e Democrático de Direito após a efetiva materialização do princípio humanitário.

O sistema penal – como fruto de uma opção político-criminal oriunda de um modelo jurídico-político de Estado fundado na dignidade como valor máximo – passa a ser um dos "loci" de materialização da axiologia constitucional e, especificamente, de realização desse valor da dignidade humana.

Assim, em razão desse processo de concretização constitucional [38], o sistema penal – considerado como toda a estrutura organizada para o exercício do "jus puniendi" – deve manifestar em seu bojo a necessária influência axiológico-normativa ditada pela Constituição e deve evidenciar uma estrutura que tenha verdadeiramente os valores constitucionais – sobretudo o valor da dignidade do homem – como um limite, um paradigma e uma finalidade.

3.2.Sistema penal e Constituição: os fundamentos constitucionais para esse sistema

O sistema penal além de ser um dos ambientes de concretização deve ser também o resultado de uma alquimia sistemática com fundamento constitucional. Por isso, não é só a Constituição que se projeta no sistema penal, mas é também o sistema penal que se fundamenta na Constituição (vetor sistema penal-Constituição).

Os valores constitucionais ao influenciarem a ordem penal – além de limites (aspecto negativo), finalidade (aspecto positivo ou prestacional) e paradigma – passam a ser fundamentos de uma estrutura específica forjada nos padrões constitucionais e dotada de uma identidade particular.

Neste aspecto de fundamentos, o sistema penal ideal deve "emprestar" os valores constitucionais para si e com base neles moldar sua estrutura específica que – consequentemente – manifestará as feições da ideologia constitucional que lhe embasou.

Dentre os valores penalmente fundamentais [39] estão os princípios estruturantes do Estado constitucional (arts.1o. a 4o.), os princípios constitucionais penais expressos e os implícitos (vários incisos do art. 5o.), e todas as normas constitucionais (regras e princípios) que influenciam a política criminal e a dogmática penal.

Com efeito, adotada como um dos princípios estruturantes (art.1o., III), a dignidade da pessoa humana é o superlativo fundamento constitucional em matéria penal, e no momento da conformação do sistema penal deixa de ser somente um ditame axiológico-normativo-constitucional para se tornar também um ditame axiológico-normativo-penal.

3.3.A dignidade da pessoa humana como um desses fundamentos: a conexão entre a dignidade do homem e o sistema penal

A dignidade da pessoa humana é a pedra angular sobre que deve ser construído todo o monumento do sistema penal. O princípio constitucional da proteção e da promoção da dignidade do homem é a célula-mãe desse sistema e, por isso, também seu fundamento máximo [40].

Além de fundamento, o ideal humanitário passa a ser considerado como uma unidade axiológico-penal funcionando como um paradigma geral e imperativo na dinâmica do sistema penal, desde a escolha da política criminal até a execução das conseqüências jurídicas do delito, passando pelo processo legislativo penal e por todos os fatores envolvidos com a aplicação da ordem penal.

Ademais – ainda em âmbito penal – tanto princípio da dignidade quanto a necessidade da prevalência dos direitos humanos tornam-se os elementos de hermenêutica penal e os fatores de habilitação do sistema punitivo, além de desempenharem as funções de limites do "jus puniendi" e de finalidades prestacionais do Estado (também mediatamente da sociedade) ora realizadas por meio da atividade punitiva.

Daí a relação entre o valor jurídico da dignidade do homem e o sistema penal, cuja existência e a dinâmica somente são possíveis se pautadas obrigatoriamente pelos moldes humanitários.


4.SINERGIA DOS ELEMENTOS: um sistema penal plasmado na dignidade do homem

4.1.Estrutura e dinâmica do sistema penal

O sistema penal pode ser concebido como a complexa estrutura punitiva existente em determinada sociedade e derivada de um modelo jurídico-político de Estado que, em âmbito penal, manifesta-se por meio de uma opção de política criminal.

A política criminal – considerada como o conjunto sistemático dos imperativos que regem, no plano objetivo e específico, a atividade de reprovação e de prevenção às infrações penais – deve ser concebida e executada com observância à realidade social e humana vigentes nessa sociedade, em conformidade com os valores constitucionais e, portanto, também em conformidade com o reconhecimento da condição humana dos indivíduos atingidos por essa política [41].

A dinâmica do sistema penal engloba todos os seus elementos constitutivos, cujo funcionamento está internamente concatenado e externamente vinculado aos princípios constitucionais que o fundam [42].

Esses elementos correspondem a todas atividades e instituições destinadas à persecução das finalidades penais do Estado [43]. Portanto, incluem-se nessa categoria de elementos ordenados todas as atividades e instituições envolvidas com o propósito penal, desde a teoria criminal e da dogmática até a atividade carcerária, passando pelo processo legislativo penal, pela interpretação/aplicação da lei penal, pelas estruturas penais burocráticas e administrativas, pela atividade de polícia e pela atividade judicial.

Ocorre que, no plano concreto, o sistema penal está longe de obedecer à seus imperativos humanitários, tendo em vista todos os problemas estruturais e conjunturais que o afetam e que geram prejudiciais efeitos tanto para a realização das suas funções penais próprias quanto para realização da opção de política criminal adotada e para a efetivação do paradigma da dignidade humana.

Apesar dos incansáveis esforços, essa crise resulta na carência do pleno sucesso do sistema penal e no despiciendo quadro de crescimento da criminalidade e da violência. Ademais, dentre outras fontes, as evidências de um iminente colapso surgem dos problemas da deficiência administrativa e burocrática do sistema, da inflação legislativa, das recorrentes rebeliões carcerárias, bem como dos infortúnios de uma atividade policial por vezes brutal, da inefetividade do processo penal, e da dantesca [44] situação dos estabelecimentos prisionais [45], que – em verdade – funcionam como escolas do crime e como fatores de marginalização, de suplício [46] e de exclusão social.

Contra esse quadro, o sistema penal em todas as suas manifestações específicas, bem como principalmente na realização de suas funções próprias, não pode se furtar a resolver o problema da criminalidade e a atender seu precípuo paradigma de respeito à dignidade do homem e aos direitos humanos.

4.2.A sua perspectiva funcional

O sistema penal adquire uma feição instrumental na medida que funciona como um mecanismo de proteção de bens jurídicos essenciais e de garantia da obediência a um modelo de política criminal adotado.

Nessa perspectiva instrumental [47], o sistema penal se incumbe de dupla função. A primeira função seria de salvaguardar os bens jurídicos essenciais, e tutelados, contra os agentes de delito. E a segunda seria de garantir que tanto essa salvaguarda quanto a corolária punição desses mesmos agentes de delito ocorram sob a égide do paradigma político-criminal do Estado.

A primeira função (função protetiva) esboça uma finalidade de conservação dos bens jurídicos essenciais contra sua degradação pelo delito. Ocorre por meio da reprovação ao ato lesivo e da prevenção contra o crime, e – após a aplicação da pena – deve proporcionar a estabilização do ordenamento violado, a disciplina penal pedagógica pelo Estado, a intimidação ao potencial agente e o desestímulo à prática delitiva.

A segunda função (função garantista) diz respeito à observância da conformidade entre a prática da função protetiva e o padrão de política criminal, tanto na aplicação da norma penal em defesa da sociedade quanto na preservação da dignidade do agente do delito com propósito de sua inclusão social.

Com efeito, o propósito de inclusão social torna-se um dos objetivos funcionais do sistema penal [48]. Executar esse propósito – quando necessário – também é promover a dignidade humana.

Por outro lado, não é raro que no âmago da sociedade o sistema penal manifeste uma outra função. Essa seria a função jurídica de estabilização política do poder. Neste aspecto, o sistema penal assume um caráter de mecanismo de controle dos fatores de poder arraigados na sociedade com a finalidade de direção dessa mesma sociedade e de preservação do poder político instituído.

Essa terceira função é bastante temerária, já que – se deturpada – pode ensejar odiosas circunstâncias de repressão e de indiscriminada arbitrariedade. O sistema penal não deve ser um instrumento de coerção política e de imposição ideológica. Por isso, essa função jurídico-política assume um caráter de função imprópria e secundária desse sistema, sendo mitigada em favor dos mecanismos próprios de preservação democrática do poder político estatal.

4.3.O modelo humanitário frente aos problemas jurídico-políticos de segurança pública

Freqüentemente, a progressão da violência e as crises de segurança pública provocam um clamor geral pelo recrudescimento da atividade punitiva do Estado.

Ocorre que – mesmo nesses tempos críticos – inexiste qualquer justificativa para afronta aos ideais democráticos e humanitários, cuja preservação é sempre imperativa. Essa preservação não impede nem a realização da prevenção geral positiva nem o combate ostensivo ao crime.

É possível a solução do problema sem atentados contra o ideal humanitário e com respeito à ordem democrática, o que – em verdade – não é só uma necessidade mas também uma obrigação. O crime e a violência não podem vencer a Democracia.

Dignidade do homem e direito humanos não são contrapontos de sistema penal. É um equívoco colocar o paradigma humanitário como inimigo da persecução punitiva, já que essa função do Estado pode se realizar plenamente, e alcançar sua finalidade, sem ofensa aos valores jurídico-políticos máximos, que na realidade são sua base.

Os valores constitucionais são aliados da dinâmica jurídico-política de combate ao crime e da estratégia de solução dos problemas de segurança pública.

4.4.Alguma manifestação da dignidade humana no âmbito penal

Deriva do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana uma série de outros princípios particulares e importantes para o campo penal [49].

Esses princípios decorrentes tanto indicam o conteúdo material e específico do ditame geral da dignidade quanto demonstram aquela mencionada trajetória (ou "praxis") dos princípios constitucionais estruturantes [50] (no caso art. 1o., III) rumo à informação do sistema penal por meio da realização dos direitos e garantias fundamentais (notadamente art. 5o.).

Assim, no plano principiológico, promanam da norma constitucional da dignidade vários outros princípios que nela buscam fundamento, e que ou são naturalmente penais ou meramente desfrutam de relevância penal.

Dentre esses princípios, encontramos o princípio da legalidade penal expresso no art. 5o., XXXIX e que compreende o princípio da reserva legal, o da taxatividade e o da retroatividade da lei penal mais benigna e irretroatividade da mais gravosa (inc. XL), bem como encontramos o princípio do devido processo legal (incs. LIII, LIV, LVI), o princípio processual do contraditório e da ampla defesa (incs. LV e XXXVIII,a), o princípio da presunção de inocência do acusado (inc.LVII). Além desses, observamos também o princípio da intervenção mínima ou da necessidade deduzido do texto constitucional e que compreende os fatores da fragmentariedade penal, da proporcionalidade, da insignificância e da subsidiariedade penal, bem como observamos o princípio da responsabilidade pessoal (inc.XLV), o princípio da individualização das penas (inc.XLVI), o princípio da humanidade derivado por excelência da norma da dignidade (incs. III, XLVII, XLIX, L), entre outros.

Apesar disso, a manifestação prática da dignidade humana em âmbito penal não se resume tão-só à teoria dessa derivação principiológica, na medida que todo esse arcabouço diretivo necessariamente aduz significativos efeitos concretos para a dinâmica do sistema penal.

Com efeito – exposta a base de princípios e patente a obrigatoriedade do respeito e da promoção da dignidade humana no plano penal – resta saber então como toda essa principiologia se expressa de fato no sistema penal, ou seja, resta saber como o princípio da dignidade se manifesta concretamente nesse sistema penal.

A primeira manifestação prática do princípio da dignidade ocorre ainda na formulação e na realização da estrutura do Estado que será o fulcro do sistema penal. Só é realmente capaz de proporcionar a dignidade do homem um modelo de Estado com aspiração social e democrática, e que não só acate mas também pratique o princípio da primazia do ser humano sobre quaisquer outros interesses.

Em seguida, é necessária uma política criminal realmente fundada nesse Estado Social e Democrático de Direito, e que realmente abrigue o valor humanitário, propiciando o incremento de um sistema penal também fundado na primazia do ser humano [51].

Disso decorre a necessidade do desenvolvimento de uma doutrina penal que – sob a luz da premissa de valorização do potencial humano, e exercendo o seu poder de influência na formação estrutural das instituições da sociedade – apologize teoricamente a mudança prática de um sistema penal degradante.

Consolidadas essas bases de modelo de Estado, de política criminal e de doutrina penal, enseja-se a construção ou modificação estrutural do sistema penal. Esse fomento de construção ou de reformulação se expressa em todos aqueles mencionados elementos constitutivos do sistema penal [52].

a) Reflexos no processo legislativo penal

Ainda no processo legislativo penal – concebido como a fonte formal do "insumo positivo" do sistema penal – devem ser atendidas determinadas exigências para que esse sistema tenha legitimidade e seja coadunante com o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, as principais pontes de ligação da dignidade da pessoa humana com o processo legislativo penal são os imperativos derivados do princípio da legalidade penal, do princípio da supremacia da Constituição e do princípio da intervenção mínima.

Do princípio da legalidade derivam o princípio da reserva legal e o princípio da taxatividade. Para o processo legislativo, o aspecto relevante do princípio da reserva legal diz respeito à competência para a edição das leis penais, que devem ser elaboradas privativamente pela União, em atenção ao art. 22, I da Constituição. Respeitado o imperativo anterior da competência e doravante com relação ao princípio da taxatividade, fica patente que a enunciação formal dos preceitos dessas leis penais deve ser clara, precisa e objetiva, já que não se admitem, no âmbito penal, leis vagas e incertas que prejudiquem a segurança jurídica e a dignidade dos cidadãos por elas atingidos.

Da mesma maneira, o processo de elaboração da lei penal – em acatamento ao princípio da supremacia da Constituição – deve atender às disposições dos imperativos que decorrem desse princípio, a saber o princípio da constitucionalidade formal e o princípio da constitucionalidade material.

O atendimento ao princípio da constitucionalidade formal corresponde a elaboração da lei penal com observância aos requisitos formais e legais para o trâmite do projeto de lei penal (arts. 61 a 69, CF). Não atende a esse princípio uma lei penal que traga vício formal já em seu bojo.

Outrossim, o atendimento ao princípio da constitucionalidade material corresponde à observância da natureza do conteúdo substancial da lei penal. Por isso, somente atende ao princípio em questão uma lei penal cujo conteúdo contemple os valores da Constituição. Disso decorre que somente é materialmente constitucional uma lei penal cujo conteúdo substancial abrigue – ou pelo menos não contrarie – a axiologia constitucional humanitária e a axiologia constitucional de inclusão social.

Resta ainda a breve prospecção dos efeitos do princípio da intervenção mínima sobre o processo legislativo penal. No aspecto da gênese legislativa, decorre do princípio em questão que somente serão legítimas a criminalização ou a tipificação de determinados fatos, se essa criminalização ou essa tipificação constituírem o meio necessário para a proteção de um bem jurídico. Caso existam outros meios suficientes para essa proteção, não será correta a elaboração de uma lei penal que tipifique o fato.

A aplicação desse princípio da intervenção mínima colabora para a solução do problema da inflação legislativa ou para o problema da "nomorréia" penal de que falou FRANCESCO CARRARA [53] já em 1883.

b) Na atividade policial

Outro elemento constitutivo da atividade punitiva do Estado seria a atividade policial (art. 144, CF). Com efeito, só é possível um sistema penal que contemple a dignidade humana, se a atividade policial que o constitui também contemplar esse paradigma. E somente contempla esse paradigma uma atividade policial que, apesar de firme, seja serena e pautada no respeito aos direitos constitucionais e no respeito à integridade psicológica, moral e física do indivíduo.

Por isso, todo o universo da atividade das polícias deve estar pautado pela constitucionalidade e pela humanidade, seja na apuração e investigação das infrações penais, seja na prevenção e repressão do crime ou mesmo na diligência para preservação da ordem pública.

São proibidos, portanto, na atividade policial a prática de tortura e quaisquer outros tratamentos que degradem o indivíduo da sua condição de ser humano (art.5o.,III, CF e art.5o. do Pacto de São José da Costa Rica).

Da mesma maneira, a investigação policial, apesar de norteada pelo princípio inquisitivo, deve estar pautada na legalidade, sendo por isso repelidas, v.g, a violação de correspondência e a quebra arbitrária de sigilo pessoal (art.5o.,XII,CF e Lei 9.296/96), bem como a invasão injustificada de domicílio por deliberação da autoridade policial (art.5o.,XI,CF).

c) Na atividade judicial e na interpretação/aplicação da lei penal

A observância do princípio da dignidade humana requer uma atividade judicial de cunho constitucional, instrumental e teleológico, e que vislumbre o processo penal como uma ferramenta de Justiça que lida com seres humanos e não como um mecanismo "kafkaniano" que valoriza o formalismo e trata os homens como coisas.

Por isso, o processo penal deve ser visto como "mero meio" de alcançar os fins penais de proteção e de garantia [54], e como um ente submetido aos parâmetros constitucionais. Esse novo processo penal (constitucional) afirmaria seu caráter garantista em detrimento das anacrônicas características de meio opressor e degradante.

No mesmo sentido, atende ao imperativo do respeito ao homem uma interpretação/aplicação da lei penal à luz do método sistemático que, no caso concreto, propicie efetivamente a "praxis" do valor constitucional da dignidade humana e a aplicação eficaz dos princípios penalmente relevantes derivados desse valor.

d) Na execução da pena (ou das conseqüências jurídicas do delito)

O art. 1o. da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) deixa claro o objetivo da (re)integração social do condenado e do internado. Entretanto, existem alguns requisitos materiais necessários para a consecução desse resultado. Esses requisitos dizem respeito à satisfação das condições para a existência digna e para o perfeito desenvolvimento da pessoa do condenado, com a finalidade de viabilizar seu harmônico (re)ingresso no convívio social.

É imprescindível que a execução da pena imposta ocorra em estabelecimentos carcerários que – da mesma maneira que propiciem a necessária cominação do castigo nos moldes da política criminal – preservem a integridade do condenado e lhe garantam tanto a habilitação pessoal para o convívio na sociedade quanto a possibilidade de sua efetiva inclusão nessa mesma sociedade.


5.À GUISA DE CONCLUSÃO

A dignidade da pessoa humana surgiu como fundamento filosófico e ganhou espaço como valor moral na consciência coletiva de bem. Esse valor moral foi constitucionalizado e internacionalizado como princípio universal, adquirindo um caráter de norma jurídica superlativa e vinculante.

Como máxima unidade de valor do sistema jurídico, esse princípio universal funciona como paradigma, fundamento, limite e desiderato de um ordenamento jurídico, de um Estado e de uma sociedade aos quais confere legitimidade.

O conteúdo do princípio diz respeito ao atributo imanente a todo ser humano e que justifica o exercício da sua liberdade e a perfeita realização de seu direito à existência plena e saudável. Decorre da elevação do ser humano ao patamar mais elevado das considerações, com a finalidade de impedir a sua degradação e a sua redução a um mero objeto de manipulação. Compreende a proteção e a promoção das condições fundamentais para uma vida adequada, o respeito a igualdade entre os indivíduos, a garantia da independência e da autonomia do ser humano, a coibição de qualquer obstáculo que o avilte ou que impeça o desenvolvimento do potencial de sua personalidade, bem como compreende a garantia e efetivação de seus direitos essenciais inalienáveis.

Considerado um escopo da Constituição brasileira, o princípio da dignidade humana vincula toda a dinâmica do sistema penal e nele deve se realizar concretamente. O sistema penal é, por isso, um dos ambientes de concretização desses escopos da Constituição e, especificamente, do princípio da dignidade da pessoa humana. É com fundamento nesse princípio que todo o sistema deve ser formulado.

O sistema penal, concebido como a complexa estrutura punitiva estatal, compreende todas as atividades e instituições destinadas à persecução das finalidades penais do Estado. Por isso, para que o sistema penal seja formulado nos moldes humanitários é necessário que todas essas atividades e essas instituições que o constituem também sejam formuladas de acordo com esse princípio.

Destarte, um sistema penal humanitário – além de contemplar as suas funções de proteger do crime os bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à comunidade, de garantir a realização efetiva de um padrão de política criminal e de executar os intentos jurídico-políticos do Estado – contempla também o fomento de uma atividade policial respeitosa, de um processo penal teleológico e constitucional, de uma aplicação eficaz das leis penais justas, e de um sistema prisional digno.

Em fim, um sistema penal plasmado na dignidade do homem deixa de ser tão-só um mero mecanismo estatal de estabilização política e de repressão da sociedade (amiúde de repressão do pobre marginalizado) para se tornar tanto um instrumento de lapidação do indivíduo e de proteção da comunidade quanto um instrumento de inclusão social.


NOTAS

01. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes.

02. Como ilustração, doravante enfatiza-se tão-só o aspecto moral (axiológico) dos textos religiosos referidos, sem embargo ao respeitável mérito teológico e teosófico de cada um deles, que, entretanto, não nos compete analisar.

03. Levítico, 19:18 – "... e amarás ao próximo como a ti mesmo".

04. Suna: os que estão de joelhos, verso 13 – "E Ele colocou, por livre vontade, tudo o que existe no céu e na terra a vosso serviço".

05. Segundo a concepção islâmica, todos os direitos humanos provêm de Deus e não podem ser usurpados por ninguém. Tanto o Alcorão quanto a Suna apresentam uma série de direitos que Deus teria concedido às pessoas em sociedade.

06. Suna: a mesa, verso 32 – "Se alguém matar uma pessoa isto deve ser considerado como se tivesse matado todas as pessoas. E se alguém mantiver com vida outra pessoa é como se tivesse mantido com vida todas as pessoas".

07. Velho Testamento – Gênesis, 1:26.

08. Novo Testamento – Epístola de S.Paulo aos Efésios, 1:7; Epístola de S.Paulo aos Hebreus, 9:22; I Epístola de S.Pedro, 3:18.

09. Entre outros documentos: Encíclica "Rerum Novarum"(1891) do Papa Leão XIII; "Quadragesimo Anno"(1931) do Papa Pio XI – que fala das conseqüências da industrialização afirmando a primazia do bem comum sobre os interesses estatais e classistas; "Mater et Magistra"(1961) e "Pace in Terris"(1963) do Papa João XXIII; "Populorum Progressio"(1967) do Papa Paulo VI; Encíclicas do Papa João Paulo II, "Laborem Exercens"(1978), "Sollicitudo Rei Socialis"(1987) – que trata da incompatibilidade da Doutrina Social da Igreja com o liberalismo e o coletivismo estatal e que ressalta a solidariedade na dimensão ética do desenvolvimento no contexto mundial, "Centesimus Annus"(1991) – que analisa os novos acontecimentos, reafirmando a centralidade da pessoa humana na sociedade.

10. No plano fático, a construção de instituições está para a afirmação da dignidade do homem, assim como a destruição de instituições está para a negação dessa dignidade. Realidades somente baseadas na destruição estão fadadas à insubsistência. Se não há sentido em destruir as próprias instituições também não há sentido em negar a proteção e promoção da dignidade humana. Daí o fundamento ontológico dessa proteção e dessa promoção.

11. Atualmente se reconhece que a vigência dos direitos humanos independe de seu reconhecimento formal, já que se tratam de exigências imanentes de respeito à dignidade humana.

12. SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da Democracia. In: RDA 212, p.91 – Nota-se, entretanto, que o constitucionalismo apenas consagrou juridicamente essa noção – o que foi muito importante – mas não a criou de fato, já que "a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, [...] ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana".

13. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, passim.

14. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.147, 150 e 198.

15. Cf. KRIELE, Martin. Libertação e Iluminismo político: uma defesa da dignidade do homem. São Paulo: Loyola, 1983, p.47-54.

16. Como, verbi gratia, nas marcantes Constituiçôes Francesa de 1848 (Preâmbulo), Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919 (art.151), bem como na Constituição Portuguesa de 1933 (art.6o.) e na da Irlanda de 1937 (Preâmbulo).

17. Como ilustração numerus apertus: Alemanha (art.1o.,I), África do Sul (arts.1o.,10,39), Bélgica (art.23), Bolívia (art.6,II), Bulgária (preâmbulo), Cabo Verde (art.1o.), Chile (art.1o.), China (art.38), Colômbia (art.1o.), Cuba (art.8o.), Espanha (preâmbulo e art.10.1), Grécia (art.2o.,I), Guatemala (art.4o.), Hungria (art.54), Irlanda (preâmbulo), Itália (art.3o.), Lituânia (art.21), Namíbia (preâmbulo e art.8o.), Paraguai (preâmbulo), Peru (art.4o.), Polônia (art.30), Portugal (art.1o.), Rússia (art.12-1),Turquia (art.17,III), Venezuela (preâmbulo). Na União Européia o acatamento ao princípio é comum a todas as Constituições.

18. BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos Avançados. São Paulo: IEA, n.40, p.155-176, 2000.

19. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.46-48.

20. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.259 – O insigne autor conclui que - na vertente de VEZIO CRISAFULLI, JOSEPH ESSER, ROBERT ALEXY e RONALD DWORKIN - "não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie."

21. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1991 – Ao considerar os limites e possibilidades bem como os pressupostos de eficácia da Constituição jurídica, HESSE a defende como norma imperativa cujos preceitos devem ser realizados no seio da sociedade, com o condão até de modificar os fatores reais de poder de que falava LASSALE.

22. GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de Direito Público. São Paulo: Ed. RT, ano XIX, n. 78, 1986, p.10-11 – O prof. leciona que " la Constitución, por una parte, configura y ordena los poderes del Estado por ella construidos; por outra, establece los límites del ejercicio del poder y el ámbito de libertades y derechos fundamentales, así como los objetivos positivos y las prestaciones que el poder debe de cumplir en beneficio de la comunidad. [...] Pero la Constitución no sólo es una norma, sino precisamente la primera de las normas del ordenamiento entero, la norma fundamental, lex superior. [...] Primero, porque la Constitución define el sistema de fuentes formales del Derecho, de modo que sólo por dictarse conforme a lo dispuesto por la Constitución una Ley será válida. [...] Segundo, porque en la medida en que la Constitución es la expresión de una intención fundacional, configuradora de un sistema entero que en ella se basa, tiene una pretensión de permanencia o duración. [...] La idea llevará también al reconocimiento de una ‘superlegalidad material’, que asegura a la Constitución una preeminencia jerárquica sobre todas las demás normas del ordenamiento. [...] Esas demás normas sólo serán válidas si no contradicen, no ya sólo el sistema formal de producción de las mismas, sino, y sobre todo, el cuadro de valores que en la Constitución se expresa".

23. Aqui é importante que se grife que o mencionado caráter imperativo não é prerrogativa somente das regras e princípios constitucionais mas também de todos valores consagrados pela Constituição. Daí também a relevância do caráter axiológico-normativo de uma Constituição.

24. CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982.

25. Para uma visão da dignidade como norma jurídica fundamental: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 67-78.

26. Da doutrina alemã, KLAUS STERN faz distinção entre as expressões direitos humanos e direitos fundamentais. Nessa concepção, os direitos fundamentais seriam os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis ou nos tratados internacionais, e reconhecidos pela autoridade competente para editar normas no interior dos Estados ou no plano internacional. Aqui, mais relevante que a discussão acerca dessa distinção, é a afirmação da imperativa necessidade [1]de que esses direitos fundamentais positivados sejam realmente a concretização daquelas garantias da dignidade humana, e [2]de que, por isso, esses direitos fundamentais positivados sejam realmente verdadeiros direitos humanos fundamentais (expressão positiva dos direitos humanos).

27. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 80.

28. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1988, t.IV, p.166-176.

29. Embora o reconhecimento oficial confira mais segurança às relações sociais e desfrute de uma função pedagógica no seio da sociedade, nada assegura que falsos direitos também sejam inseridos na ordem positiva sob o indevida epígrafe de direitos fundamentais, o que mesmo assim não lhes dotará de valor. Conseqüentemente, para a vigência legítima desses direitos positivados, é necessária a busca de um fundamento mais profundo que o simples reconhecimento estatal ou institucional, isto é, que eles sejam realmente direitos fundados na dignidade da pessoa humana e dela sejam decorrentes, e por isso sejam verdadeiros direitos humanos. Numa paráfrase a SÓFOCLES, os direitos humanos são as "leis dos deuses", os direitos fundamentais são esses direitos humanos positivados nas "leis de Creonte". Em caso de contradição, as "leis dos deuses" prevalecem sobre as "leis de Creonte", já que essas "leis de Creonte" devem necessariamente coadunar com as "leis dos deuses", sob pena de invalidade.

30. OTTO BACHOF discutiu a possibilidade de existirem normas constitucionais, inconstitucionais.

Os Direitos Fundamentais são ORDENAMENTO JÚRIDICO ("Lex") e os Direito Humanos são DIREITO ("Jus").

Nem sempre o ORDENAMENTO coincide com o DIREITO, embora seja obrigatório que sempre coincida. Um ORDENAMENTO que não seja DIREITO não pode ser válido, da mesma maneira que não podem ser válidos os Direito Fundamentais ("Lex") que não sejam Direitos Humanos ("Jus").

O DIREITO é superior ao ORDENAMENTO. Os Direitos Humanos são superiores aos Direitos Fundamentais. Assim, Direitos Fundamentais contrários aos Direitos Humanos não podem ser válidos.

Um exemplo são as execráveis leis nazistas fundadas no autoritarismo, no fanatismo nacional e no fervor eugenista. Esses documentos eram ORDENAMENTO mas não eram DIREITO. Eram uma "Lei de Creonte" que feria as "Leis dos Deuses". Essa falsa Constituição continha normas formalmente constitucionais mas que – na realidade – não eram verdadeiras normas constitucionais por serem contrárias ao DIREITO.

Com base na falsa tese de que um mandamento simplesmente por ter o reconhecimento oficial se torna um mandamento justo, foram cometidos abomináveis e irreparáveis crimes contra a humanidade. Daí o perigo da confusão entre as noções de "Lex" e "Jus". "Jus" é superior a "Lex".

31. COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p.30 – "A dignidade do ser humano, fonte e medida de todos os valores, está sempre acima da lei, vale dizer, de todo direito positivo".

32. Aqui expressão direitos constitucionais é empregada no seu sentido amplo com a intenção de que compreenda todos os direitos de liberdade, de igualdade e de fraternidade (ou solidariedade) garantidos constitucionalmente.

33. Ressalte-se que esse caráter prestacional (de promoção e não só de proteção) seria o principal fator de distinção entre a noção liberal setecentista e a noção atual democrática da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.

34. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 21-22 – O ilustre professor ensina que "a Constituição é a declaração da vontade política de um povo, feita de modo solene por meio de uma lei que é superior a todas as outras e que, visando a proteção e a promoção da dignidade humana, estabelece os direitos e as responsabilidade fundamentais dos indivíduos, dos grupos sociais, do povo e do governo."

35. Op. Cit., p. 19 – Vontade essa originalmente referida como "Wille zur Verfassung".

36. O prof. J.J. GOMES CANOTILHO classifica os princípios constitucionais basicamente em duas categorias: princípios jurídico-constitucionais e princípios político-constitucionais.

Os princípios jurídico-constitucionais seriam princípios gerais informadores da ordem jurídica nacional. Decorreriam de certas normas constitucionais, e não raramente, constituiriam desdobramentos (ou princípios derivados) dos fundamentais, como o princípio da supremacia da constituição e o conseqüente princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o princípio da isonomia, entre outros que mutatis mutandis figurariam nos incisos XXXVIII a LX do art. 5o. da nossa Constituição Federal.

Os princípios político-constitucionais também seriam chamados de Princípios Constitucionais Fundamentais, ou Princípios Fundamentais, ou Princípios Constitucionais Fundamentais ou ainda Princípios Estruturantes do Estado Constitucional. Seriam constituídos por aquelas decisões políticas fundamentais concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional positivo, e seriam normas-princípio, isto é, normas fundamentais de que derivam logicamente as normas particulares regulando imediatamente relações específicas da vida social. Manifestar-se-iam como princípios constitucionais fundamentais, positivados em normas-princípio que traduziriam as opções políticas fundamentais conformadas na Constituição. Seriam esses princípios fundamentais que constituiriam a matéria dos arts. 1o. a 4o. da CF, dentre eles a dignidade da pessoa humana. Seriam os princípios que, segundo CANOTILHO, constituiriam os princípios definidores da forma de Estado, dos princípios definidores da estrutura do Estado, dos princípios estruturantes do regime político e dos princípios caracterizadores da forma de governo e da organização política em geral.

Além da anterior, existiria ainda a classificação dos princípios constitucionais em explícitos e implícitos.

Explícitos, aqueles literalmente expressos no texto constitucional, como da legalidade (art. 5o., II; 37, caput e XXXIX; 84, IV), da igualdade (arts. 3o., III; 5o., caput e I), do contraditório (art. 5o., LV), do juiz natural (art. 5o., LIII), do devido processo legal (art. 5o., LIV), da presunção de inocência (art. 5o., LVII), da inafastabilidade do controle judicial (art. 5o., XXXV), da impessoalidade (art. 37, caput), da publicidade (arts. 5o., XXXIII; 37, caput), da moralidade administrativa (art. 37, caput), da responsabilidade do Estado por atos administrativos (art. 37, §6o.), da anterioridade tributária (art. 150, III, b), da capacidade contributiva (art. 145, §1o.), da livre concorrência (art. 170, IV).

Implícitos, aqueles que não se encontram expressos na letra da lei, mas podem ser depreendidos do texto constitucional pela interpretação, como o princípio da segurança jurídica e o princípio da presunção de constitucionalidade das leis.

Por isso, temos que o ideal de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana é um princípio estruturante do Estado brasileiro e expresso no art. 1o., III, da nossa Constituição. Esse ideal está presente ainda em outras partes do texto constitucional brasileiro, tais como no art. 5o., XLII, XLIII, XLVIII, XLIX, L, no art. 34, VII, b, no art. 226, §7o., no art. 227, no art. 230, dos quais pode ser deduzido.

37. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.85 – "A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser e o ser da realidade social".

38. Esse processo complexo seria espécie de "praxis" e compreenderia instrumentos políticos, jurídicos e filosóficos, dentre os quais é possível destacar a participação política, os grupos democráticos de pressão, o exercício constitucional do poder político, o processo legislativo constitucional, a formação de uma consciência constitucional, a interpretação/aplicação conforme a Constituição, a tutela constitucional do processo judicial e administrativo, a tutela constitucional da atividade de todos os órgãos do Estado, a jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade e remédios constitucionais), o magistério constitucional, entre outros.

39. PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1989, p.22-26.

40. CARVALHO, Márcia Dometila Lima. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1992, p.24-28.

41. DOTTI, René Ariel. A crise do sistema penal. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, ano 88, v.768, 1999, p.424.

42. PALAZZO, Francesco. Op. cit., p.30.

43. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte geral. São Paulo: Ed. RT, 1997, p.70.

44. Na Divina Comédia, Virgílio, diante do Portal do Inferno, convida DANTE para iniciar uma árdua jornada pelos ciclos inferiores não muito diferentes dos cárceres brasileiros, horrorosos ambientes de degradação em que são infligidas as mais duras penas às "almas pecadoras": "[...]‘Noi siam venuti al loco ov’io t’ho detto/ che tu vedrai le genti dolorose/ c’hanno perduto il bem dell´intelletto.’// [...]Quivi sospiri, pianti e alti guai/ risonavan per l’aere sanza stelle,/ per ch´io [Dante] al cominciar ne lagrimai.// Diverse lingue, orribili favelle,/ parole di dolore, accenti d´ira,/ voci alte e fioche, e suon di man com elle// facevano un tumulto, il qual s´aggira/ sempre in quell´aura sanza tempo tinta,/ come la rena quando turbo spira.// E io [Dante] ch´avea d´error la testa cinta,/ dissi: ‘Maestro, che è quel ch´i´odo?/ E che gent´ è che par nel duol sí vinta?’// Ed elli [Virgílio] a me: ‘Questo misero modo/ tegon l´anime triste di coloro/ che visser sanza infamia e sanza lodo.[...]’// ‘[...]Questi non hanno speranza di morte,/ e la lor cieca vita è tanto bassa,/ che´nvidïosi son d´ogni altra sorte.// Fama di loro il mondo esser non lassa;/ Misericordia e Giustizia li sdegna:/ non ragioniam di lor, ma guarda e passa.’ (Inferno – Canto III).

45. VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, passim – São úteis para ilustrar o crítico estado do sistema prisional brasileiro, as descrições que o médico DRÁUZIO VARELLA faz em seu célebre livro Estação Carandiru.

46. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987 – A punição no sistema prisional, em razão da degradação, assemelha-se de fato aos repugnáveis suplícios de que falou FOUCAULT (p.11 e ss.).

47. ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal.

48. No âmbito criminológico, CESARE BONESANA (Marquês de BECCARIA) já havia sucitado o propósito penal da inclusão social, ao falar da ressocialização, em sua obra Dei Delitti e Delle Pene. Da mesma maneira procedeu a chamada Escola da Nova Defesa Social composta, entre outros, por MARK ANCEL autor de A Nova Defesa Social. Outrossim, em texto de lei penal, o respeito aos objetivos de inclusão foi expresso na LEP de 1984 cujo art. 1o. demonstra claramente essa obrigação.

49. LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: S.A.Fabris, 1991, p.9.

50. Cf. item 2.3, supra.

51. PALAZZO, Francesco. Op. cit., p.17 – "[...] existe uma constante e insuperável exigência de eticidade própria do direito penal, e com a qual [...] se pode ‘simplesmente’ aludir ao fato de que se no manancial do direito penal se encontram a política e a exigência da tutela da sociedade, em seu âmago se encontra a pessoa humana".

52. Cf. item 4.1, supra.

53. Apud LUISI, Luiz. Op. cit., p.28.

54. Cf. item 4.2, supra.


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BOLDRINI, Rodrigo Pires da Cunha. A proteção da dignidade da pessoa humana como fundamentação constitucional do sistema penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4171. Acesso em: 16 abr. 2024.