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Limites à revisão aduaneira

Limites à revisão aduaneira

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Revisam-se os limites do fisco ao realizar revisão aduaneira nos casos em que as mercadorias foram são aos canais amarelo, vermelho e cinza de conferência.

Têm sido rotineiras as fiscalizações perpetradas pela Receita Federal para lançar autos de infração com base na revisão do valor aduaneiro de mercadorias importadas. Em suma, o procedimento de revisão aduaneira pretende a readequação da classificação fiscal adotada pelo importador, de forma que, a partir da nova classificação fiscal imposta pelo Fisco, cobra-se a diferença dos tributos devidos.

Ocorre que o direito do Fisco em realizar a revisão aduaneira não é absoluto.

É que uma sociedade que se pretende civilizada sob a alcunha de democrática deve, como condição insuperável, zelar pela segurança jurídica de sorte a garantir que os cidadãos sejam municiados da capacidade de prever os sucedâneos jurídicos decorrentes dos seus atos, conferindo estabilidade às relações que se submeterão às regras cogentes naquele tempo. Este é o posicionamento de Heleno Taveira Torres, para quem, no positivismo inerente ao constitucionalismo de direitos do Estado Democrático de Direito, a segurança jurídica é valor a ser considerado a cada ato de aplicação do direito, o que se verifica apenas e tão somente quando o Estado cumpre e faz cumprir as regras e princípios em vigor no ordenamento jurídico[1].

É bem verdade que, por se tratarem os tributos sobre o comércio exterior de tributos sujeitos à lançamento por homologação, cabe ao importador verificar a correta classificação fiscal dos seus produtos e realizar a declaração e pagamento antecipado dos tributos devidos. Também é verdade que, com a implementação do SISCOMEX a análise fiscal das importações passou a se realizar por uma amostragem, a qual é sistemicamente parametrizada para os canais de conferência aduaneira.

Estes canais, referenciados por cores, determinam que as cargas selecionadas para o canal verde ficam dispensadas do exame documental e a verificação da mercadoria; aquelas parametrizadas para o canal amarelo serão submetidas ao exame documental, e, não sendo constatada irregularidade, efetuado o desembaraço aduaneiro, dispensada a verificação da mercadoria; as alocadas para o canal vermelho sofrerão o exame físico e documental das mercadorias importadas; e, por fim, quando parametrizadas para o canal cinza, será realizado o exame documental, a verificação da mercadoria e a aplicação de procedimento especial de controle aduaneiro, para verificar elementos indiciários de fraude, inclusive no que se refere ao preço declarado da mercadoria, nos termos do artigo 21 da Instrução Normativa 680/2006.

Quando há parametrização para o canal verde (grande maioria dos casos), a autoridade determina o desembaraço reservando para o si o direito de revisar o procedimento no prazo decadencial de cinco anos.

Ocorre que, por outro lado, quando há seleção para os canais amarelo e vermelho, os termos informados na Declaração de Importação são, efetivamente, submetidos ao crivo de um Auditor Fiscal da Receita Federal, o qual possui o dever funcional de avaliar, dentre outros fatores, a classificação fiscal eleita pelo importador.

Disso deflui que, nos casos em que a importação foi submetida à efetiva fiscalização sob o rito dos canais vermelho, amarelo ou cinza, qualquer revisão aduaneira posterior significa mudança do critério jurídico adotado pelo Fisco, situação esta que esbarra na Súmula 227 do extinto Tribunal Federal de Recursos, ex vi:

MUDANÇA DE CRITÉRIO JURÍDICO ADOTADO PELO FISCO - REVISÃO DE LANÇAMENTO - IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO - SERVIÇOS ADUANEIROS. A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão de lançamento.

Emerge desta súmula verdadeira materialização do princípio da segurança jurídica, por meio do qual aquele tribunal consignou seu reiterado posicionamento no sentido de que eventual alteração na interpretação dos fatos (erro de direito e consequente mudança de critério jurídico), não autoriza o fisco a fazer retroagir no tempo sua nova interpretação, fazendo-o incidir sobre fatos pretéritos, consumados sob anterior interpretação.

Isso porque, à autoridade fiscal, nesses casos, é dado o dever de diligenciar acerca da NCM indicada pelo importador e, havendo discrepância com o entendimento da administração, de exigir a reclassificação e seus ônus, como condição ao desembaraço aduaneiro.

Observado sob outro ângulo, se a autoridade fiscal (frise-se, em canal amarelo ou vermelho) promover o desembaraço, estará chancelando e convalidando os critérios jurídicos eleitos pelo contribuinte, com o que não poderá vir a revisá-lo posteriormente.

Este entendimento é endossado pela jurisprudência atual do Poder Judiciário, conforme se observa dos julgados abaixo transcritos:

RECURSO ESPECIAL - ALÍNEAS "A" E "C" - TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO - RECLASSIFICAÇÃO TARIFÁRIA – REVISÃO DO LANÇAMENTO - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE ERRO QUANTO À IDENTIFICAÇÃO FÍSICA DA MERCADORIA - ART. 149 DO CTN. A impetrante importou da França 2.200 Kg do produto TESAL e recolheu o imposto de importação após regular conferência da mercadoria pela autoridade fiscal. Diante dessas circunstâncias, é de elementar inferência que não poderia o contribuinte, em momento posterior, ser notificado para novo recolhimento do imposto de importação, sob a alegação de que a classificação do produto deveria ser diversa, com incidência de alíquota maior. O art. 149 do CTN autoriza a revisão do lançamento, dentre outras hipóteses, "quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória", ou seja, quando há erro de direito. Se a autoridade fiscal teve acesso à mercadoria importada, examinando sua qualidade, quantidade, marca, modelo e outros atributos, ratificando os termos da declaração de importação preenchida pelo contribuinte, não lhe cabe ulterior impugnação do imposto pago por eventual equívoco na classificação do bem. Divergência jurisprudencial não-configurada ante a ausência de similitude fática entre os acórdãos confrontados. Recurso especial improvido. (grifei) (REsp 202958/RJ, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, Segunda Turma, j. em 25/11/2003, unânime, DJU de 22/03/2004, p. 263)

EMENTA: TRIBUTÁRIO. ADUANEIRO. MULTA. ART. 711, III, DO DECRETO N.º 6.759/09. DESCRIÇÃO INEXATA DAS MERCADORIAS. CLASSIFICAÇÃO FISCAL PREJUDICADA. CANAIS DE PARAMETRIZAÇÃO. PROCEDÊNCIA SOMENTE EM RELAÇÃO AO CANAL VERDE. 1. Conforme o previsto no art. 711, III, do Regulamento Aduaneiro, é cabível a imposição de multa de 1% do valor aduaneiro da mercadoria quando o importador ou beneficiário de regime aduaneiro omitir ou prestar de forma inexata ou incompleta informação de natureza administrativo-tributária, cambial ou comercial necessária à determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado. 2. É cabível a imposição de tal multa no caso de as omissões detectadas - caso dos autos -, terem prejudicado o procedimento de classificação fiscal das mercadorias. 3. Improcede a pretensão de revisão da conferência aduaneira nos casos de a mercadoria ter sido submetida à verificação física e/ou documental, uma vez que nesses casos o Fisco teve acesso a todas as informações prestadas pelo importador, razão pela qual não pode rever o seu posicionamento original. (TRF4, APELREEX 5008216-33.2012.404.7100, Segunda Turma, Relatora p/ Acórdão Carla Evelise Justino Hendges, juntado aos autos em 17/06/2014)

Se as Declarações de Importação foram submetidas ao efetivo procedimento de fiscalização aduaneira, realizado pessoalmente por uma autoridade administrativa, lícito se faz concluir que houve, sim, a chancela da classificação fiscal indicada pelo importador.

Com efeito, o procedimento de desembaraço aduaneiro, conforme se infere do próprio Regulamento Aduaneiro, “é o procedimento mediante o qual é verificada a exatidão dos dados declarados pelo importador em relação à mercadoria importada, aos documentos apresentados e à legislação específica” (artigo 542 do Decreto 6.759 de 2009) e uma das nuances traduz-se na conferência aduaneira, que, também por definição regulamentar, “tem por finalidade identificar o importador, verificar a mercadoria e a correção das informações relativas a sua natureza, classificação fiscal, quantificação e valor, e confirmar o cumprimento de todas as obrigações, fiscais e outras, exigíveis em razão da importação”.

Não restam dúvidas, portanto, que no curso do procedimento de desembaraço aduaneiro é dada à Fiscalização a oportunidade de verificar e manifestar-se sobre o critério jurídico adotado pelo importador para classificar sua mercadoria.

Mais importante, porém, do que o ato de desembaraçar a mercadoria e ratificar a conduta do importador é o precedente que o ato de desembaraço aduaneiro cria: o importador passa a confiar que aquela interpretação da norma está correta e, com lastro no seu dever de confiar na administração, calcado na segurança jurídica e na previsibilidade das normas jurídicas, passa a adotar esse procedimento de forma reiterada, crendo estar em consonância com o entendimento do Fisco.

É evidente que esta relação somente se sedimenta quando há boa fé entre as partes, o que é caracterizado mormente pela correta descrição dos produtos que são importados. Dito de outro modo, e convertendo para a linguagem jurídica, inexistindo imprecisão nos fatos, isto é, ausente o erro de fato, é deferido ao contribuinte acreditar que o critério jurídico adotado está correto, dado que o Fisco, nestes casos, chancelou a sua interpretação.

É justamente por esse motivo que o direito não tolera o procedimento de revisão aduaneira para revisar exclusivamente o critério jurídico (ou seja, por “erro de direito”) nos casos em que não se faz presente a espécime do “erro de fato”[2], justamente porque essa espécie de erro não encerra qualquer das hipóteses legais de revisão de ofício previstas no Art. 149 do CTN[3].

Sobressai, portanto, que é defeso ao fisco, posteriormente ao desembaraço realizado através dos canais amarelo, vermelho e cinza, rever o critério jurídico em prejuízo do importador.


Notas

[1] TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 66

[2] PAULO DE BARROS CARVALHO qualifica o erro de fato como o resultado de uma falha na tradução do evento em linguagem jurídica, isto é, quando o fato descrito não é compatível que a prova que o sustenta. Por sua vez, o erro de direito é um problema de subsunção, emerge por ocasião de eleição equivocada de norma jurídica aplicável, é resultado de uma inadequação do antecedente do fato jurídico à hipótese de incidência da norma em que busca fundamento.

Dito de outro modo, haverá erro de fato, na declaração de conteúdo da importação, quando a descrição oferecida ao bem for incompatível com ele (p. ex., importar bananas e declarar que são maçãs); Já o erro de direito surge quando interpreta-se equivocadamente o fato descrito (p. ex. importar bananas, declarar bananas mas imputar a classificação relativa à maçãs – o erro de direito está justamente em classificar equivocadamente as bananas como maçãs).

[3] Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

I - quando a lei assim o determine;

II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária;

III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;

IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória;

V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte;

VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária;

VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;

VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;

IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial.

 Parágrafo único. A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública.


Autor

  • Paulo José Zanellato Filho

    Advogado na Zanellato Advocacia & Consultoria, Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Pós-Graduado em Direito e Processo Tributário pela Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst. Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Aperfeiçoou-se como Despachante Aduaneiro pela Associação Brasileira de Comércio Exterior. Professor nas cadeiras de Direito Constitucional e Tributário na Universidade Tuiuti do Paraná. Ex-Procurador do Município de Matinhos. Membro da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da Ordem dos Advogados do Brasil/PR; Membro do Instituto Paranaense de Direito e Economia. Instrutor da Universidade Corporativa Contabilista. Presidente do Instituto de Pesquisa Tributária e Aduaneira - IPTA.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANELLATO FILHO, Paulo José. Limites à revisão aduaneira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4756, 9 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44343. Acesso em: 19 abr. 2024.