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O mercado de capitais e o FGTS

as propostas do Projeto de Lei nº 247/2002

O mercado de capitais e o FGTS: as propostas do Projeto de Lei nº 247/2002

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Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 247/02, desenvolvido pela Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aproveitando o lançamento do "Plano Diretor do Mercado de Capitais".

I - O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – Base normativa, financeira e caráter social.

            A Lei 5.107, de 13 de setembro de 1966, foi o primeiro diploma legal a disciplinar o FGTS. Criado pelo Governo Federal, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço é formado por depósitos mensais efetivados pelos empregadores, em nome dos empregados, no valor correspondente a 8 % (oito por cento) da sua remuneração, representando cerca de um salário por ano.

            O Fundo tem como objetivos assegurar ao trabalhador a formação de um pecúlio relativo ao seu tempo de serviço, garantir os meios para as empresas efetuarem as indenizações necessárias a trabalhadores não optantes, bem como formar Fundo de recursos para o financiamento de programas de habitação popular, saneamento básico e infra-estrutura urbana. É regido por normas e diretrizes estabelecidas pelo Conselho Curador do FGTS, colegiado composto por representantes do Governo, dos trabalhadores e dos empregadores.

            Os valores que envolvem o Fundo sempre surpreendem. Em dezembro de 2000, o FGTS possuía em seu cadastro 54.270.546 (cinqüenta e quatro milhões, duzentos e setenta mil e quinhentos e quarenta e seis) contas vinculadas ativas, com saldo no valor de quase R$ 68 bilhões, e 9.378.841 (nove milhões, trezentos e setenta e oito mil e oitocentos e quarenta e um) contas vinculadas inativas, com R$ 1,3 bilhão. Ativos perto de R$ 86 bilhões.

            Só no ano de 2000, foram aplicados cerca de R$ 3,3 bilhões em financiamentos de moradia, saneamento e infra-estrutura em todo território nacional. Foram 310.406 unidades habitacionais, beneficiando uma população de 1.363.962 habitantes e gerando nada mais nada menos que cerca de 160.000 (cento e sessenta mil empregos) empregos.

            De acordo com a Caixa Econômica Federal, esse valor superou em 61,3% o contratado no ano de 1999, e propiciou efetiva melhoria nas condições de vida da sociedade, especialmente nas camadas de menor renda da população, mediante a oferta de financiamento para obras de melhoria e expansão em sistemas de abastecimento de água tratada, esgotamento sanitário e outras modalidades, além da produção de moradias.

            Com a arrecadação de R$ 18,7 bilhões, o ano de 2000 representou um marco na gestão do FGTS. O valor arrecadado, que superou em 7,5% (sete e meio por cento) ao do exercício de 1999, foi o maior registrado em toda a história do Fundo. Esse desempenho deveu-se à melhoria na conjuntura econômica em razão das políticas implementadas pelo Governo Federal, e a diversos esforços envidados no processo de arrecadação. (1)

            Em suma, o FGTS é o fundo de valores administrados pela Caixa Econômica Federal, "destinado a assegurar a compensação do tempo de serviço do trabalhador e propiciar recursos ao poder público para a realização de sua política habitacional" (2), saneamento básico e infra-estrutura urbana.

            O regime normativo que hoje abarca o FGTS é bastante extenso. Note-se que o Fundo foi elevado à categoria de direito social, albergado no artigo 7o, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e é disciplinado pela Lei 8.036, de 11 de maio de 1990 e seu Decreto regulamentador, 99.684/90. Também tratam do tema as Leis 8.844/94 e 7.374/85. Em decorrência desse arcabouço legal, a adesão ao regime é imposta por lei, caracterizando sua natureza eminentemente estatutária. (3)

            Assim, é indiscutível que estamos diante de direito do trabalhador, sob o conceito de verba alimentar futura. Todavia, não se pode olvidar, e seriam parciais os que não a admitem, que a contribuição tem caráter social amplamente conhecido, vinculado ao sistema habitacional do país.

            Vê-se que os objetivos do FGTS são muito claros, refletidos num dos mais brilhantes instrumentos que o administrador público fez viger no país. A um, protege-se o trabalhador, em legítima efetivação de direito laboral. E, a dois, cria-se um Fundo, de capacidade financeira incomparável, para lastrear operações de cunho social patrocinadas pelo executivo federal.

            Cite-se como exemplo os programas Pró-Saneamento, cuja implementação se dá pela concessão de financiamentos a Estados, Distrito Federal, Municípios, concessionárias dos serviços de saneamento e órgãos autônomos municipais; Pró-Moradia, cujo objetivo é criar, fora do SFH, alternativas habitacionais para as populações de baixa renda e, assim, promover a melhoria da qualidade de vida e o mais conhecido Programa de Arrendamento Residencial (PAR). No que se refere à geração de empregos, embalada pelos recursos do Fundo, foram criados ou mantidos mais de 60 (sessenta) mil postos de trabalho na cadeia produtiva da construção civil. Outros 100 (cem) mil postos surgiram em outras áreas da produção. (4)

            Em resumo, não é exagero concluir que o FGTS é um dos poucos lastros de cunho eminentemente social que restam ao administrador público. Sua desmantelação teria conseqüências desastrosas para as políticas públicas de contorno social, abalaria as estruturas do Sistema Financeiro da Habitação e, porque não, em médio prazo, do próprio Sistema Financeiro Nacional.


II – O Projeto de Lei 247/2002 – Equívocos e inconsistências

            Em contraste aos fatos até agora relatados, corre no Congresso Nacional o Projeto de Lei 247/02, desenvolvido pela Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aproveitando o lançamento do "Plano Diretor do Mercado de Capitais".

            O projeto, cujo relator é o senador Tasso Jereissati, tem como principais pontos a possibilidade de compra, por parte dos trabalhadores, de ações com a parcela de 1% (um por cento) dos 8% (oito por cento) referente à alíquota recolhida pelas empresas ao FGTS, o que equivaleria a 12,5% (doze e meio por cento) do volume de depósitos.

            Para os defensores do projeto, a medida representaria o início da democratização do mercado de capitais, aumentando os recursos disponíveis para capitalização das empresas, favorecendo a economia e tornando os trabalhadores "sócios" do crescimento do país. Em suma, os empregados teriam uma alternativa de diversificação de investimentos; restaria fortalecido o mercado primário de ações como meio de capitalização das empresas nacionais, viabilizando investimentos para uma maior geração de empregos e os padrões superiores de Governança Corporativa seriam fortemente perseguidos pelas companhias abertas.

            O trabalhador seria remunerado por dividendos e, entre dois e cinco anos, poderia resgatar as ações com a atualização atualmente paga pelo FGTS. O texto do projeto não esclarece a quem caberia ressarcir o investimento em caso de quebras.

            Com efeito, o acesso ao vultoso Fundo seria o primeiro passo da revitalização do mercado de ações no Brasil. É norte ambicioso previsto no plano Diretor do Mercado de Capitais, que entre outras medidas prevê a redução da alíquota do IR sobre os ganhos de capital, de 20% (vinte por cento) para 10% (dez por cento).

            O que se percebe, contudo, é a falta de clareza do projeto, ante a afoiteza de um mercado em desespero. Da proposta se extrai que o equivalente a 12,5% (doze e meio por cento) da totalidade das contas ativas do Fundo, e não reserva de arrecadação futura, seria objeto do permissivo legal para investimentos no mercado. E quanto a isso as cabeças pensantes da BOVESPA silenciam.

            De acordo com um estudo recentemente concluído pela Caixa Econômica Federal (5), caso o projeto seja aprovado e obtenha aceitação da população de trabalhadores, com um desvio do Fundo naquela proporção acima aludida, estaria configurada uma retirada de nada mais, nada menos, do que R$ 2,5 (dois bilhões e meio de reais) anuais do caixa do FGTS.

            A partir de 2006, caso o executivo pretenda manter seus padrões de investimento social (habitação, saneamento básico e infra-estrutura urbana), que hoje gira em torno de R$ 4,5 (quatro bilhões e meio de reais), o Fundo precisaria buscar recursos no mercado financeiro.

            Caso não pretenda recorrer a essa desastrada medida, os desembolsos do Fundo para o crédito social teriam que decrescer para algo em torno de R$ 1,6 bilhões de reais, um terço do montante de hoje. Isso tendo em mente que o déficit habitacional do país é de 6,6 milhões de moradias, ou seja, 12 milhões de pessoas ou 12% da população. E que 25% (vinte e cinco por cento) dos domicílios brasileiros não são atendidos pela rede de água e 55% (cinqüenta e cinco por cento) não tem acesso ao esgoto sanitário. Ao mesmo tempo, dados do próprio governo, confirmados por estatísticas de organismos internacionais, dão conta de que cada um real aplicado em saneamento economiza-se dois reais e cinqüenta centavos em tratamento de saúde. De acordo com estudo do IPEA, 65% (sessenta e cinco por cento) das internações hospitalares de crianças decorrem de doenças hídricas, ou seja, por deficiência ou falta de serviços de água e esgotamento sanitário, com enormes custos de saúde pública, e, segundo o Datasus, a cada 24 horas, morrem 20 crianças no Brasil em conseqüência da falta de saneamento básico. (6)

            Como se observa, o FGTS é um Fundo privado com função pública. Ele pertence ao trabalhador, mas tem como norte, estabelecido em lei, o financiamento da habitação, infra-estrutura e saneamento urbano. Por esta razão é que se justifica a remuneração atual dos recursos do Fundo, que, como se demonstrou, servem de lastro para investimentos no social.

            O fato é que o PL 247 é muito aplaudido e pouco estudado. Os laivos não se atinam que a argumentação hipotética de melhor remuneração das contas vinculadas e o fomento das grandes sociedades abertas não compensaria o evidente impacto negativo nos projetos sociais patrocinados pelo Fundo, nas taxas de emprego (note-se que das empresas que operam com o FGTS, 96% - noventa e seis por cento - delas se caracterizam como micro e pequenas), na estrutura do mercado da construção civil e na formatação do SFH, passando pelos inequívocos e insidiosos efeitos para a CEF e para o Sistema Financeiro Nacional, como um todo.

            Cabe esclarecer, antes que os afoitos gritem, que as aplicações na Vale e Petrobrás tiveram características diversas do que se pretende agora. Para aquelas operações, os recursos disponibilizados eram títulos do FCVS – Fundo de Compensação de Variações Salariais, aprovados pela Comissão Nacional de Desestatização para essas operações. Nesse caso o FGTS trocou papéis de 30 anos por títulos de liquidez imediata, o que significou impacto evidentemente positivo na composição do Fundo.

            Assim, não se justifica, sob qualquer argumento, projetos como o PL 247/02. O Mercado de Capitais merece toda a atenção do poder público, mas sua revitalização se faz com lastro de confiabilidade nas companhias e crescimento econômico. A comunidade jurídica não deve se curvar às argumentações, quase sempre vazias, de que a mudança seria boa, já que individualmente a remuneração das contas seria potencialmente maior e coletivamente o benefício adviria do fomento à economia.

            De fato, a projeto, como está, se limita a autorizar a captação de crédito barato às grandes sociedades abertas, vilipendiando o FGTS sem guardar quaisquer contrapartidas que resguardem, dentro do ordenamento, os "órfãos" do Fundo. A sociedade brasileira não merece mais esse engodo.


Notas

            01. Todos os dados foram obtidos no site da CEF: http://www.caixa.gov.br/voce/servicos/fgts/index.asp em 08 de julho de 2003

            02. Magano, Octávio Bueno, O FGTS e a nova Constituição, in Repertório IOB de Jurisprudência, 2a quinzena de dezembro de 1988, n. 24/88, p. 326.

            03. Netto, Domingos Franciulli, Fundo de Garantia na Justiça Federal, in Meio Jurídico, ano IV, n. 43, p. 16/17.

            04. Dados da Caixa Econômica Federal e do Sinduscon-RJ.

            05. A Caixa e suas arestas, in Carta Capital, 25 de junho de 2002, n. 246. Artigo escrito por Amália Safatle.

            06. Dados obtidos em pesquisa junto ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e Ministério da Saúde.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Douglas Henrique Marin dos. O mercado de capitais e o FGTS: as propostas do Projeto de Lei nº 247/2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 116, 28 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4444. Acesso em: 23 abr. 2024.