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Admissibilidade da "reformatio in melius"

Admissibilidade da "reformatio in melius"

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Prescreve o art. 617 do Código de Processo Penal que "o tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença". Segundo esse dispositivo, em se tratando de recurso exclusivo da defesa, o agravamento da situação do réu, em grau de apelação, é legalmente vedado (proibição à reformatio in pejus), posto que dito recurso possui devolutividade limitada à matéria impugnada. Aliás, como fundamento deste preceito do tantum devolutum quantum appelatum costuma-se invocar o princípio da personalidade dos recursos, consoante o qual a impugnação só poderá favorecer a parte que o interpôs, de modo que aquele que não recorreu não poderá ter sua condição agravada, se não houver irresignação da parte adversa.

Tomando por base essa argumentação, bem como algumas decisões da Corte Suprema, parte dos doutrinadores pátrios entende ser igualmente inadmissível a possibilidade do órgão ad quem, em recurso exclusivo da acusação, melhorar a situação do réu, seja minorando-lhe a pena aplicada pelo juízo a quo, seja proferindo decisão absolutória ou, ainda, reconhecendo-lhe algum benefício processual.

De acordo com os defensores dessa corrente, a proibição da reformatio in melius – como é conhecido o instituto retro explicitado – decorre do fato de que, uma vez verificado o trânsito em julgado para a defesa, com a formação da coisa julgada, o Tribunal, ao modificar a decisão em favor do réu, estaria, contrariamente ao determinado pelo princípio do ne eat judex ultra petita partium (o juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido), exorbitando da sua competência recursal e julgando extra petita.

Conforme Julio Fabrini Mirabete, "o dispositivo, ao se referir aos arts. 383, 386 e 387, não está ditando uma regra geral de proibição à reformatio in pejus e permitindo implicitamente a reformatio in melius, mas apenas procurando prever os requisitos das sentenças absolutórias e condenatórias, traçando limites quanto às sentenças de desclassificação e proibindo a aplicação de pena mais grave quando se der ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou denúncia, diferentemente do que se estabelece no art. 383, ao qual, apenas nessa parte, lhe faz exceção. Cabe ao condenado, na hipótese, valer-se da revisão". (1)

Referindo-se à impossibilidade de reformatio in melius, o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

"Insubsistente a reforma da sentença em benefício do réu a partir de recurso de acusação que perseguia a exasperação da pena. Precedentes do STF. Recurso extraordinário de que se conhece e a que se dá provimento para anular o acórdão recorrido, a fim de que a C. Câmara a quo julgue, como de direito, a apelação interposta pelo Ministério Público". (2)

"Apelação criminal. Recurso da acusação (parcial). Efeito devolutivo. Princípio tantum devollutum quantum apellatum. Código de Processo Penal, art. 599. Reformatio in melius.É insubsistente o julgado que procede a reformatio in melius a partir de recurso exclusivo e parcial recurso da acusação que visa a exasperação de determinada pena, de modo desbordante do princípio tantum devollutum quantum apellatum ". (3)

E, ainda:

"Reformatio in melius. O princípio tantum devollutum quantum apellatum configura obstáculo à reformatio in mellius, diante de recurso exclusivo da acusação, pleiteando o agravamento da pena". (4)

Todavia, há que se ressaltar que a vedação a reformatio in melius não constitui uma questão pacífica na doutrina e jurisprudência pátrias, sendo válido aqui transcrever as ponderáveis colocações apostas pelo jurista Fernando da Costa Tourinho Filho, ipsis verbis: "não obstante o rigor lógico do raciocínio, o art. 617 do CPP torna claro que o apelo do Ministério Público devolve, integralmente, ao juízo ad quem o conhecimento do thema decidendum. É que, naquele dispositivo, não há nenhuma proibição à reformatio in melius. Não se deve deslembrar que o Tribunal pode, ex officio, conceder hábeas corpus... E repetimos: se o Tribunal pode conceder habeas corpus de ofício, nos termos do art. 654, § 2º, do CPP, por que razão estaria impossibilitado de, ante uma apelação exclusiva da acusação, abrandar mais ainda a situação do réu?(... ) Por essas razões, pouco importa provenha, ou não, o recurso de apelo do Ministério Público ou do particular. É sempre lícito ao juízo ad quem agravar a situação do réu ou mitigá-la, suavizá-la. O que não se permite, o que é defeso, repita-se é a reformatio in pejus, e não a reformatio in melius". [5]

Permissa vênia, em que pese a posição sufragada pela Corte Máxima de que a reformatio in melius ofende aos princípios do tantum devolutum quantum appelatum e da coisa julgada para a defesa, entendemos perfeitamente admissível, em recurso exclusivo da acusação, a reforma da decisão em favor do réu, haja vista que a impugnação interposta pelo Ministério Público, a teor do que se subtende do art. 617 do CPP, tem efeito devolutivo amplo, devolvendo ao Tribunal a análise de toda a matéria meritória e probatória. A bem da verdade, isso se verifica porque o Parquet não é um órgão acusador por excelência, mas sim um legítimo representante e defensor da ordem jurídica e da sociedade (art. 127 da CF/88), tendo por interesse maior a busca de uma solução justa para a lide penal e não a impreterível condenação do réu.

Demais disso, no Ordenamento Jurídico pátrio, o princípio do favor rei ou favor libertatis constitui a base de toda a nossa legislação processual, de forma que, uma vez constatado pelo Tribunal o erro da sentença condenatória, a ocorrência de alguma nulidade absoluta, ou mesmo, a injustiça da decisão, deve ele, em obediência ao critério superior da liberdade, corrigir, anular ou modificar o decisum em favor do réu, ainda que se trate de recurso exclusivo da acusação, levando em consideração sobreveste o fato de o art. 617 do CPP vetar expressamente a reformatio in pejus e não a reformatio in melius.

Corroborando essa nossa posição Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes assinalam que "militam em prol desse entendimento vários argumentos, desde o favor rei ou favor libertatis – que ditaram a regra do art. 617, in fine, CPP apenas para beneficiar a defesa -, até princípios como o da simplicidade e da economia processual, pois o mesmo resultado poderia sempre ser obtido por intermédio do hábeas corpus ou da revisão criminal". [6]

Outrossim, impende colacionar os seguintes arestos do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Alçada do Paraná, respectivamente:

"Processual Penal. Recurso Especial. Duplo atentado violento ao pudor ficto. Apenado foragido. Deserção. Absolvição. Reformatio in melius – Observada a fuga do preso depois de interposta a apelação ocorre a deserção (art. 595 do CPP). Contudo, in casu, não é de se declarar a nulidade pois houve recurso exclusivo do Ministério Público, este dotado de efeito devolutivo amplo, donde se conclui que mesmo ante o não conhecimento do apelo defensivo, seria possível ao e. Tribunal a quo proceder a reforma da sentença condenatória para absolver o réu (Precedentes do STJ). Recurso desprovido". [7]

"O recurso de apelação do Ministério Público devolve ao Tribunal o exame de mérito e da prova. Nessa circunstância, se o Tribunal verifica que houve erro na condenação ou na dosimetria da pena, não está impedido de corrigi-lo, em favor do réu, ante o que dispõe art. 617 do CPP, que somente veda a reformatio in peius, e não a reformatio in melius. Argumenttos de lógica formal não devem ser utilizados na Justiça Criminal, para homologar erros e excessos. E não é razoável remeter-se na hipótese, o interessado para uma revisão criminal de desfecho provavelmente tardio, após cumprida a pena, com prejuízos para o indivíduo e para o Estado; àquele pela perda da liberdade, a este pela obrigação de reparar o dano (art. 630 do CPP)". [8]

"Apelação criminal. Julgamento em 2ª instância. Recurso exclusivo do Ministério Público. Reformatio in melius. Possibilidade. Vedação do art. 617 do CPP se refere somente a reformatio in pejus – Se o Ministério Público não representa, com exclusividade, a acusação, mas sim o interesse superior da justiça, o tribunal não está de corrigir, em favor do réu, o erro da sentença condenatória, dado que o art. 617 do CPP veda somente reformatio in pejus, e não a reformatio in melius". [9]

Ante o expendido, filiamo-nos a corrente doutrinária e jurisprudencial que admite a reformatio in melius para beneficiar o réu em recurso exclusivo do Parquet, haja vista que este devolve ao Tribunal ad quem o conhecimento integral do thema decidedum, notadamente porque, no processo penal, os primados do favor rei, da liberdade e da verdade real devem ser, impreterivelmente, observados quando da aplicação da lei no caso concreto, não sendo aceitável que, nesse tipo de circunstância, por ausência de dispositivo normativo expresso, o condenado tenha que recorrer a procedimentos menos céleres, como a revisão criminal, em prol dos seus direitos, ou mesmo, da sua liberdade.


Notas

01. MIRABETE, Julio Fabrini. Código de Processo Penal Interpretado, 9. ed. Atlas: São Paulo, 2002, p. 1591.

02. In. RT 612/439.

03. In. RExt. 95.801-1-SP, 1ª Turma, v. un., em 08-06-82, rel. Min. Rafael Mayer, RT 567/402.

04. In. RExtr. 104.980-4-SP, 2ª T., un., em 26-03-85, Rel. Min. Francisco Resek, p. 6335.

05. FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 3.ed. Saraiva: São Paulo, 2001, p. 680.

06. In. Recursos no Processo Penal, 3. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001, p. 46.

07. In. RExtr. 241777-BA, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer – DJU 08.10.2001 – STJ - p. 237.

08. In. JSTJ 17/217-8, RSTJ 17/415 e RT 659/335.

09. In. ApCr 128.439.100 – 3ª C.Crim. – rel. Juiz Leonardo Lustosa – DJPR 06.08.1999).


Autor


Informações sobre o texto

Texto também publicado na Revista "InConsulex" Editora Consulex, nº 153, abril de 2004.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Cláudia Carvalho. Admissibilidade da "reformatio in melius". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 127, 10 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4477. Acesso em: 23 abr. 2024.