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O aspecto valorativo do ICMS e a cidadania fiscal

O aspecto valorativo do ICMS e a cidadania fiscal

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A cidadania é um processo em constante desenvolvimento em uma sociedade, e se aperfeiçoa à medida que o seu povo vai sendo educado e aprende a conhecer e exercitar direitos e obrigações. A cidadania não se esgota no exercício do direito do voto. Esta perspectiva não satisfaz se não for possível exercer certo controle sobre a prática política, as promessas de campanha e o condicionamento do voto à determinada ideologia.

No Estado moderno já não se concebe mais a relação de poder sob a perspectiva do soberano para com um súdito. Esta foi substituída por um enfoque Estado/cidadão. A publicidade dos atos estatais ou dos atos da administração são uma preocupação no Estado de Direito. É a transparência e a publicidade que legitimam e dão conhecimento ao ato administrativo e o torna passível de ser submetido a mecanismos de controle por parte dos cidadãos, inclusive o controle da legalidade.

A palavra secretaria tem a mesma raiz de segredo ou secreto, do latim secretu, ‘separado’. Tal origem levou a Administração Pública a um comportamento, por parte das autoridades, que é o de procurar separar para si, e tornar sigilosos os atos que devem ser públicos.

A tributação foi a causa direta ou indireta de grandes revoluções ou grandes transformações sociais, como a Revolução Francesa e a Independência das Colônias Americanas. Entre nós, a Inconfidência Mineira foi motivada principalmente pela sangria econômica provocada por Portugal com o aumento da derrama. Derrama, palavra originária do árabe que quer dizer garama (tributo, imposto), foi a causa imediata da Inconfidência Mineira, de 1789, e era o tributo de que lançava mão a Coroa Portuguesa para, na região das minas, cobrar de uma só vez os quintos (20% do ouro extraído) em atraso. Foi a mais politizada das manifestações cívicas e teve como inspiração o ideário iluminista do século XVIII e a independência das colônias da América do Norte.

Um sistema tributário expressará sempre a correlação de forças presentes em uma sociedade. Os detentores do poder, da riqueza e do conhecimento no Brasil têm sido extremamente habilidosos na manutenção de situação vantajosa, começando pelo manejo do Legislativo na elaboração das leis e no desempenho de deslocar o ônus do financiamento do Estado para os ombros dos setores menos favorecidos, e que até desconhecem a carga tributária desmedida que sofrem.

A grande maioria da população desconhece o tributo que é pago, embutido no preço das mercadorias e na aquisição de serviços, e, muitas vezes, se ilude achando que são os grandes empresários e prestadores de serviços os que arcam com a onerosa carga tributária.

Os contribuintes de direito - comerciantes, banqueiros, industriais, profissionais liberais - na realidade repassam o ônus tributário ao contribuinte-consumidor final da mercadoria ou serviço, desonerando-se do tributo. É o que se chama de repercussão ou translação do tributo. São esses contribuintes de direito, repassadores da carga tributária, os maiores queixosos do gravame que é descarregado sobre a sua clientela.

O imposto a ser pago não pode sofrer qualquer acréscimo em seu cálculo, além do aspecto material do valor da operação, ou seja, do serviço efetivamente prestado. Este valor não pode ser alvo de subterfúgios legais ou mágicas contábeis.

A Lei Complementar n.º 87/96, que dispõe sobre o ICMS, pode, em sua redação, afastar alguma falta de clareza ou obscuridade eventual do texto constitucional, mas não pode, em qualquer hipótese, alterar o seu conteúdo, uma vez que somente irradiará os seus efeitos se estiver em total conformidade com a Lei Maior, que lhe dá validade.

No Estado do Rio de Janeiro, vigora a Lei 2.657, de 26.12.96 que especifica em seu artigo 5º quais valores integram a base de cálculo do imposto. Entre eles e primeiramente (inciso I) "o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle".

A tradução é a seguinte: o montante do próprio imposto integra sua base de cálculo, significando que o preço da operação (constante de documento fiscal) inclui o valor tributário que dele (preço) não se dissocia, para efeito de cobrança, e nem se pode diminuir o ICMS, pois se considera, nesse preço, o valor da mercadoria mais o tributo.

O maior imposto sobre vendas, o ICMS, tem um sistema de cobrança em que o tributo não vem destacado por fora do preço na nota fiscal, mas está incluído no valor das mercadorias vendidas e na prestação de serviços. Com isto, a sonegação tende a aumentar e o prejuízo é de todos.

O aspecto quantitativo do imposto fica aviltado pelo fato de o cálculo do imposto estar embutido, desvirtuando o tributo. Base de cálculo e alíquota são elementos de quantificação da dívida tributária. A alíquota incide sobre a base de cálculo e ambas são definidas em lei.

Tomemos, como proposição, o seguinte problema aritmético:

Qual seria a base de cálculo para que, incidindo sobre ela a alíquota de 25% (de conhecimento do consumidor), o total da conta (valor final da mercadoria, exibido na nota fiscal) alcançasse a importância de R$ 100,00?

Raciocínio:

BC + 25% BC = 100

X + 25X : 100 = 100

100X + 25X = 100 x 100

125X = 10.000

X = 10.000 : 125

Base de cálculo = 80

Concluímos que, considerada uma base de cálculo com valor de R$ 80,00, incidindo a alíquota de 25%, que corresponde a R$ 20,00, atingimos o total de R$ 100,00. ICMS de R$ 20,00.

Desta forma, para que o total da operação seja de R$ 100,00, na hipótese de base de cálculo de R$ 75,00, só temos dois caminhos a seguir, obrigatoriamente:

1º - majorar a base de cálculo de R$ 75,00 para R$ 80,00; ou

2º- majorar a alíquota de 25% para 33,33%, dentro da hipótese indicada.

Se for adotada a primeira hipótese: majorada a base de cálculo, conclui-se que o consumidor/contribuinte estará sendo lesado em R$ 5,00 na prestação de serviço ou no fornecimento de mercadoria. Se for adotada uma alíquota maior, segunda hipótese, o consumidor/contribuinte estará sofrendo o acréscimo da alíquota do imposto, sem a devida proteção legal, através de um artifício estranho, como se fosse um adicional de imposto.

Duas alíquotas aparecem: a nominal, expressa na lei, e a real, que é a efetivamente aplicada, diferente da nominal e legal.

A equação legalmente correta para uma base de cálculo (valor da operação) de R$ 80,00, com alíquota de 25% seria:

ICMS = BC 80 X 25/100, logo: ICMS = 20

Na nota fiscal apareceria: BC = 80

ICMS = 20

TOTAL = 100

O Princípio da Publicidade na Administração Pública defende a mais ampla divulgação possível dos atos administrativos perante o administrado, isto com o fim de proporcionar a este último a possibilidade de controlar a legitimidade da conduta dos agentes administrativos.

Se assim defende a Administração Pública, nada pode justificar que o tributo pago seja desconhecido pelo cidadão. O cálculo do imposto "por fora", transparente e conhecido, é que proporciona ao contribuinte uma saudável forma de controle e indignação. Quando o legislador menciona que o destaque do valor do tributo é "mera indicação para fins de controle", o que exatamente pretende o legislador? Esconder o tributo pago? Dificultar ou facilitar o controle por parte do órgão arrecadador e do contribuinte? Legitimar ou não o imposto pago? São perguntas que não podem calar.

Publicidade e transparência são palavras que se relacionam com outras tantas, tais como: visibilidade, diafaneidade, limpidez, clareza e correção, e se afastam de obscuridade e imposto embutido ou "por dentro", à medida que se perseguem os princípios constitucionais da Administração Pública acima transcritos.

A falta de publicidade, transparência e demonstração de boa-fé por parte do órgão público, quando deixa de legislar de modo a que o cidadão seja informado do tributo incidente sobre mercadorias e serviços, representa um entrave burocrático ao exercício de uma cidadania ativa e ao mesmo tempo cerceia a defesa do consumidor, uma vez que este não tem conhecimento pleno do quantum a que se opõe.

O ICMS representa hoje 23,41% da receita geral do país. Houve um aumento vertiginoso na política adotada pelos Estados, que majoraram suas alíquotas em produtos e serviços essenciais ao consumo, tais como combustível, telecomunicação e energia elétrica.

O ICMS é regido por 27 leis e possui regras próprias em cada unidade da federação. A complexidade da regulamentação provoca guerra fiscal entre os Estados e estimula a sonegação. Sua importância é grande no Sistema Tributário Brasileiro e a legislação exige simplificação que beneficiará a Fazenda Estadual, o comerciante e o contribuinte.

As obrigações acessórias ou instrumentais são muitas no caso do ICMS do Rio de Janeiro: são sete livros de escrituração fiscal que devem também ser autenticados, expedição de notas fiscais diferenciadas, elaboração de guias, apresentação de declarações e formulários a serem preenchidos. Não resta dúvida que mais uma vez o tempo do contribuinte é tomado no cumprimento de tais obrigações, que carecem de simplificação.

Entre os tributos, o que causa maior dano no orçamento doméstico de uma família de classe média é o imposto indireto, como o ICMS. A situação do cidadão/contribuinte é de total vulnerabilidade, uma vez que não pode questionar a base de cálculo, por desconhecê-la ou por não poder separá-la do imposto nela embutido, não pode pagar a conta sem recolher o tributo, não sabe quanto de tributo paga e não pode cobrar dos órgãos administrativos o conhecimento de que é privado, e a participação justa no "bolo" arrecadado.

O desconhecimento e a desinformação geram minorações na capacidade social e democrática levando a uma cidadania de segunda, mitigada, minimizada. Os direitos não são reclamados ou o são parcialmente. Por parte dos órgãos da Administração Pública há uma truculência que coloca o cidadão em posição de pedinte de um favor.

Na ótica do contribuinte desinformado e assustado com o "leão" que o ameaça, o Estado é visto como "todo-poderoso, na pior hipótese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalista de empregos e favores", assim nos ensinou José Murilo de Carvalho em seu livro Cidadania no Brasil.

Quando o Estado institui um imposto que tem o seu cálculo inserido na base de cálculo do próprio imposto, exerce o papel de fomentar o desconhecimento para minorar a capacidade do cidadão em exercer plenamente a cidadania. Pedagogicamente, o Brasil será outro quando seu povo, sua gente, conhecer o tributo que paga.

O momento político pelo qual passa o nosso país, com as discussões sobre a Reforma Tributária em andamento, exige uma ampla discussão com entidades representativas da sociedade brasileira, tributaristas, economistas, membros dos três Poderes, que tenham a disposição de estudar prudentemente o Sistema Tributário Nacional e as relações entre fisco e o contribuinte.

O direito à informação é garantia de conhecimento e se viabiliza no aperfeiçoamento da legislação. O sujeito passivo da relação jurídico-tributária não deve ser o elo fraco, despersonalizado e apenas sujeito de obrigações tributárias. Ele deve ser reconhecido e ter instrumentos de defesa em seu favor que o identifiquem como pessoa com necessidades, desejos, ideais e merecedor do respeito que o Direito pode e deve assegurar. Só assim se pode falar em cidadania ativa.

Em uma sociedade democrática precisamos de cidadãos-contribuintes que paguem tributos, a fim de que se possa manter uma reserva pública que garanta bens e serviços àqueles cidadãos que necessitam do mínimo existencial e gozam da não-tributação deste mínimo.

A cidadania fiscal envolve também uma drástica redução das renúncias fiscais. Os países em desenvolvimento, com suas políticas de incentivos fiscais e concessão de subsídios e facilidades às empresas, penalizam o cidadão-contribuinte, que sofre o aumento da carga tributária e não tem o retorno social em moradia, saúde, educação e segurança para si e na infra-estrutura dos bairros mais pobres.

A falta de conscientização e de acesso ao conhecimento e às informações está diretamente vinculada às práticas de um Estado fraco e incapaz de coibir a violação dos direitos humanos e de garantir direitos sociais e políticos. Uma política de desenvolvimento e valorização da pessoa humana deve ser urgentemente colocada em prática para que ocorra a esperada transformação social, e que esta promova o incremento da participação do homem na sociedade.

Todos os direitos humanos - os direitos civis, políticos, sociais, incluindo a educação e a cultura do cidadão/contribuinte, devem ser devidamente conjugados, a fim de que se alcance a cidadania fiscal ativa e participativa. Ao Estado, como um todo, compete garantir os direitos e desenvolver políticas que incluam aqueles que hoje estão excluídos. É o cidadão que em sua marcha tem poderes e deveres, e a tarefa de aprender a defendê-los.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Alice Mouzinho. O aspecto valorativo do ICMS e a cidadania fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 136, 19 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4503. Acesso em: 23 abr. 2024.