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O art. 2º da Lei nº 10.259/2001 x o art. 61 da Lei nº 9.099/95

análise crítica à luz do princípio da isonomia

O art. 2º da Lei nº 10.259/2001 x o art. 61 da Lei nº 9.099/95: análise crítica à luz do princípio da isonomia

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Sumário: 1. Introdução; 2. A Lei nº 9.099/95; 3. A instituição dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal; 4. O Princípio Constitucional da Isonomia; 5. Ampliação ou não do conceito de infração de menor potencial ofensivo; 6. Discussões doutrinárias e jurisprudenciais; 7. Conclusão; 8. Referências bibliográficas.


1. Introdução

O tema Juizados Especiais vem adquirindo notório relevo no ordenamento pátrio. Não é sobejo frisar que a sociedade como um todo, sobremaneira as classes economicamente desestimadas, persiste em padecer de mecanismos legais que ofereçam, simultaneamente, justiça, segurança e agilidade no desate de litígios juridicamente relevantes.

Mesmo nos países ditos de primeiro mundo, a busca por novas formas de composição das lides sempre foi uma constante, o que, por exemplo, resultou na consolidação de institutos como a mediação e a arbitragem. Fernando da Costa Tourinho Filho [1], certa vez, já chegou a afirmar que nossas inovações são modestas quando comparadas às oriundas de países como Portugal, França, Espanha, Itália, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Para efeito de ilustração, válido citar algumas, quais sejam: a remissione de la querela, a médiation pénale, o classement sans suíte, o Vorläufiges absehen von Klage e Absprache, o plea bargaining e, por fim, o guilty plea. No Brasil, das alternativas ensaiadas, a que, sem dúvida, obteve os melhores resultados, foi a criação dos chamados "Juizados de Pequenas Causas", com a Lei nº 7.244 de 1984.

Tal fato impulsionou o Constituinte de 1988 a dar a esses Juizados, agora com a denominação de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, o status de norma constitucional. Assim, o art. 98, I, da Constituição Federal previu que a União e os Estados estariam aptos a criarem Juizados Especiais, providos por juízes togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo.

A previsão constitucional reclamava, no entanto, regulamentação ordinária, o que findou por originar a avançada Lei nº 9.099/95, instituindo os Juizados no âmbito da Justiça Estadual. Inobstante as dificuldades na sua implantação, não pairam suspeitas quanto ao resultado prático oferecido. Não por outra razão, o art. 2º da referida lei consagra como princípios norteadores do procedimento sumaríssimo os da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, bem como o da busca incessante da conciliação e da transação.

Como se percebe, a iniciativa foi produto do próprio divórcio havido entre a Justiça e o povo. No momento de sua implantação, o Juizado Especial Estadual representou a única porta de aproximação efetiva entre o Judiciário e os jurisdicionados. A esse respeito, aliás, o desembargador e ex-presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho inferiu, com saber, que aproximadamente 60% dos processos que chegam à Justiça Brasileira podem ser absorvidos pelos Juizados Especiais. [2]

Ora, se sabido é que a Justiça Comum tem arrimo em duas grandes pilastras, quais sejam, a Justiça Estadual e a Justiça Federal, indisfarçável, pois, o desejo do constituinte derivado de levar para o campo de ação da Justiça Comum Federal, através da Emenda Constitucional nº 22, a experiência bem sucedida dos Juizados Especiais Estaduais.

Com esse permissivo, o legislador ordinário, mais uma vez, sponte propria, não hesitou em editar a Lei nº 10.259/01, redundando na criação dos Juizados, agora, no âmbito da Justiça Federal.

Chegamos, dessarte, ao ponto culminante dessa pesquisa. Sem a intenção de esgotar a matéria, se buscou enfatizar um ponto controverso entre os dois textos legais.

Enfoca, como sugere o tema, a celeuma criada a respeito da ampliação ou não, de 1 (um) para 2 (dois) anos, do conceito de infração de menor potencial ofensivo. Correntes doutrinárias e jurisprudenciais se dividem quanto a uma possível derrogação do art. 61 da Lei nº 9.099/95 pelo art. 2º da Lei nº 10.259/01, já que, segundo o brocardo jurídico, lex posterior derogat anteriorem.

Imperioso assinalar que a abordagem desenvolve-se sob o manto do Princípio Constitucional da Isonomia. Afinal de contas, nos termos do aforismo grego, popularizado por Rui Barbosa, "igualdade é tratar desigualmente os desiguais".


2. A Lei nº 9.099/95

Para os efeitos desta Lei, nos termos exatos do seu art. 61, consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

Escassas não são as inovações, trazidas no seu bojo, para o campo criminal. Introduziu, só para citar: a possibilidade da denúncia oral; a dispensa da prisão em flagrante e da fiança; a inexistência do inquérito policial, bastando, para tal, a lavratura de um mero termo circunstancial de ocorrência; a desnecessidade do exame de corpo de delito; a coexistência de juízes leigos ao lado dos togados; a representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa, além de outras três merecedoras de maior reparo.

São elas:

(a) - O instituto da Suspensão Condicional do Processo: alberga aproximadamente 76,05% dos tipos penais abrangidos no nosso Código Penal. É admitido em toda infração cuja pena cominada no seu grau mínimo não supere 1(um) ano e desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena. O juiz, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, após proposição do Ministério Público, por dois a quatro anos, submetendo o acusado a período de prova, sob certas condições. "E o que temos visto são rebeliões e mais rebeliões, em face da superpopulação, os condenados jogados nos cárceres como verdadeiros farrapos humanos, muitas vezes estupidamente violentados, castrados até à esperança. Por isso, na impossibilidade de se fazer coisa melhor, a suspensão condicional do processo constitui um grande avanço para a humanização do nosso sistema repressivo". [3]

(b) – A composição dos danos civis: consiste na busca prioritária da composição dos danos civis, em uma audiência preliminar. Impende notar que este instituto realça a valorização da vítima, outrora figura sem relevância na instrução do processo penal. Tem, a mesma, possibilidade de ser indenizada, provocando a extinção da punibilidade anteriormente à denúncia, nas ações penais públicas condicionadas à representação, e à queixa, nas ações privadas. O acordo, oriundo da composição dos danos civis, tem força de título executivo judicial e representa uma renúncia tácita ao direito de queixa ou representação. "O duplo efeito penal e civil da composição dos danos civis tem provocado um repensar na tradicional política criminal do Estado, mostrando outro caminho para solução de litígios, com vantagens para todos. A interdisciplinariedade é a ordem do dia e é nesse somatório que se encontrarão soluções às angustiantes pendências jurídicas da humanidade". [4]

(c) – A Transação Penal: resume-se na proposta, feita pelo Órgão Ministerial, de aplicação imediata da pena restritiva de direitos ou da multa, a fim de se evitar a aplicação da pena privativa de liberdade. Ocorre quando o caso não foi encerrado pelo acordo civil extintivo da punibilidade, oferecendo, como se abstrai, economia processual, redução do custo delito, além de se evitar um processo demoroso. Há de se observar que a proposta, necessariamente, precisa ser submetida ao juiz para homologação, vez que cabe ao poder jurisdicional a fiscalização do direito de defesa e o exame da conveniência do acordo para a sociedade. Não oferece, ainda, periculosidade à comunidade, visto que, como é cediço, nas infrações de menor potencial ofensivo, a possibilidade de imposição da pena privativa de liberdade é diminuta. Outrossim, a sentença não gera condenação, reincidência, lançamento do nome do autor no rol dos culpados, efeitos civis e maus antecedentes.

Subsistem, contudo, opiniões no fito de que a Lei nº 9.099/95 promoveu um incipiente processo de privatização do direito público, já que fez penetrar nos contornos do direito penal, institutos tipicamente da seara cível. Outros vão mais além, ao tal ponto de sinalizarem quanto a uma possível "invasão" da esfera pública pela esfera privada.

Um estudo aprofundado e racional evidencia, no entanto, que chamar de invasão, por si só, configura uma maneira demasiadamente pejorativa de se identificar inovações tão propositivas e virtuosas no plano objetivo. Os efeitos pragmáticos prestados engrandecem o direito naquilo que seja sua função precípua, qual seja, a promoção da pacificação social.


3. A Instituição dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal

A história da Justiça Federal tem se pautado pela busca do aprimoramento na prestação jurisdicional, tornando-a melhor e mais célere. Isto se verifica, desde os primórdios, a partir do nascimento da República, passando pela década de 60, período em que se processou o reordenamento da jurisdição de primeiro grau, tudo sob o pálio da Lei nº 5.010 de maio de 1966, até o advento da Constituição de 1988.

É cediço, contudo, que a Justiça Federal tem peculiaridades na sua estrutura as quais dificultam, com ênfase, o seu funcionamento. A maior delas, indubitavelmente, é o número excessivo de processos. Basta apenas um dado estatístico para se comprovar o entulho jurídico que desafia o aplicador da lei: dois milhões e seiscentos mil processos assoberbando a primeira instância, onde atuam 831 juízes e um milhão e cem mil feitos para 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça e 139 desembargadores federais dos cinco Tribunais Regionais Federais.

Pois bem, a partir de 14 de janeiro de 2002, entrou em vigor a Lei nº 10.259/01, no afã de minimizar e costurar os percalços enfrentados pelos que militam na órbita da Justiça Federal.

De pronto, foi criada, por parte dos operadores do direito, uma perspectiva otimista em torno da mudança. Preambularmente, porque o principal devedor – a Fazenda Pública – não terá mais o privilégio dos prazos em quádruplo ou em dobro, e, quando vencida, não terá mais a remessa obrigatória, maneira de provocar o reexame da matéria pela instância superior.

Por outro giro, evitar-se-á a instrumentalização dos precatórios, vez que, conforme prevê a Lei, o pagamento será realizado por ordem do juiz, através de requisição, no prazo de 60 dias. Quanto ao direito de recorrer, a parte que não concordar com a decisão vai até às instâncias recursais integradas por juízes de 1º grau, desafogando as instâncias superiores.

No campo criminal, dos crimes previstos no Código Penal, da competência da Justiça Federal, seriam, de forma exemplificativa, da competência dos Juizados Especiais: certidão ou atestado ideologicamente falso (art. 301), falsidade material de atestado ou certidão (art. 301, § 1º), falsidade de atestado médico (art. 302), falsa identidade (art. 303), peculato culposo (art. 312, § 2º), emprego irregular de verbas ou rendas públicas (art. 315), corrupção passiva, tipo privilegiado (art. 317, § 2º), prevaricação (art. 319), resistência (art. 329), desobediência (art. 330), desacato (art. 331) e exercício arbitrário ou abuso de poder (art. 350).

Sem embargo, a maior novidade contemplada nessa lei, tendo em vista a perspectiva criminal, diz respeito ao novo conceito de infração de menor potencial ofensivo, o qual abrange crimes punidos com pena de prisão até dois anos ou multa (art. 2º, parágrafo único).


4. O Princípio Constitucional da Isonomia

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". [5]

O excerto magno é nítido quando consagra como um dos seus princípios basilares a Isonomia. Isonomia, conforme a própria etimologia sugere (Iso, prefixo grego que se usa para indicar igualdade), expressa o estado daqueles que são governados pelas mesmas leis, uniforme para todos.

Imbuído da concepção de que os homens nascem efetivamente iguais, Montesquieu atribui à lei o ofício de manter a igualdade entre os homens incólume: "Os homens nascem verdadeiramente iguais, mas não podem permanecer como tal. A sociedade faz com que eles percam a igualdade e não voltem a ser iguais senão em face das leis". [6]

Acrescentando, Fábio Konder Comparato ensina que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. [7]

Em se tratando de um princípio constitucional, cumpre-nos trazer à baila o pensamento da doutrina constitucional moderna, na lição do jovem constitucionalista Alexandre de Morais: "Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos". [8]

Neste sentido, é o juízo do emérito administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, direção interpretativa, aliás, adotada pelo Supremo Tribunal Federal: "Os tratamentos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado". [9]

Para o presente, interessa-nos um olhar atento, ante os efeitos da isonomia, face à questão do tratamento penal isonômico em paridade de situações e em situações juridicamente diversas.


5. Ampliação ou não do conceito de infração de menor potencial ofensivo

Reza o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 10.259/01:

"Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os feitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos".

Da leitura do art. 61 da Lei nº 9.099/95, acende-se, de pronto, uma dissensão jurídica a despeito de ser o dispositivo em evidência aplicável apenas aos Juizados Especiais Criminais Federais ou, também, aos Juizados Especiais Criminais Estaduais.

Em toda discussão de cunho interpretativo, há de se sobrelevar, ab initio, os pontos controversos de maior relevância e repercussão. O exercício hermenêutico, independente de qual seja a modalidade interpretativa adotada, demanda uma abordagem ontologicamente livre, dissociada de premissas vinculadas, as quais acabam por ofertar, no mundo do pragmatismo, certas condutas condicionantes de atitudes.

Urge-nos, pois, ponderarmos para o fato de que, no nosso ordenamento jurídico, nunca existiram, concomitantemente, dois conceitos de infração de menor potencial ofensivo.

Isso se deve, sobretudo, ao pouco ou quase nenhum conhecimento jurídico do nosso legislador. A falta de uma visão sistemática acarreta, por vezes, verdadeiros disparates jurídicos, como, a título elucidativo, se deu na transformação da contravenção penal de porte de armas em crime (Lei nº 9.437/97), a fim de coibir a posse e o uso de armas, para, quatro anos depois, promover-se a conversão deste mesmo crime em infração de menor potencial ofensivo.

Observe-se, outrossim, que a fonte legislativa dos Juizados é a mesma, ou seja, tanto uma, quanto outra, são leis ordinárias federais. Resta saber se a Constituição da República faz distinção de Juizados no seu texto e, assim sendo, o porquê da novel Lei não considerar, expressamente, os delitos de competência exclusiva da Justiça Federal.

De outra sorte, ficou explicitamente consignado no art. 20 da Lei nº 10.259/2001:

"Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei nº 9.099/95, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual" (grifei).

Ora, ao mesmo tempo em que este dispositivo veda a aplicação da Lei no juízo estadual, o art. 1º, da mesma, autoriza a utilização subsidiária da Lei nº 9.099/95 - vedando-a, tão somente, quando com ela pudesse haver algum tipo de conflito -, não se podendo aferir, ao certo, se a recíproca é verdadeira.

No Direito Penal moderno, vigem duas correntes políticas opostas: a do Movimento Lei e Ordem e a do Direito Penal Mínimo. Enquanto a primeira se caracteriza pelo aumento da criminalização, carcerização e penalizações (Lei de Crimes Hediondos, por exemplo), a segunda tem como marca profunda a política de descriminalização e despenalização (Lei nº 9.099/95, Lei nº 9.714/98, Penas Alternativas, e, agora, Lei nº 10.259/01).

Cabe-nos, integrantes da comunidade jurídica, interpretar a lei diante do caso concreto, devendo sempre nos manter em uma posição eqüidistante aos dois extremos ideológicos existentes; ocorre que, como norte orientador, revela-se impreterível NUNCA nos afastar dos princípios basilares, que informam o Direito Penal e o Direito Processual Penal, consagrados em nossa Constituição Federal.


6. Discussões doutrinárias e jurisprudenciais

Nossos Tribunais já sinalizam com as primeiras posições da jurisprudência. O fato é que não há entendimento uniforme a respeito, o que demandará, sem tergiversação, o pronunciamento das mais altas cortes de justiça do país.

Sumariamente, a doutrina mais autorizada divide-se ao longo de três correntes de entendimento.

A primeira delas é no intento de que, após a entrada em vigor da Lei nº 10.259/01, passamos a contar no Brasil com dois conceitos de infração de menor potencial ofensivo, um federal e outro estadual, não havendo a derrogação do art. 61 da Lei nº 9.099/95.

Parte da premissa de que este diploma foi criado no afã de desafogar a Justiça Federal, exclusivamente, até então acoimada pelo número excessivo de processos (vide item 3). Alega que o art. 1º autorizou a aplicação subsidiária da Lei nº 9.099/95 (proibindo-a, tão somente, quando com ela houvesse algum tipo de conflito), donde faz presumir que a recíproca não é verdadeira, ou seja, a aplicação permitida é da Lei nº 9.099/95 à Lei nº 10.259/01 e, não, vice-versa.

Neste propósito, traz à tona o art. 20 da Lei nº 10.259/01, o qual veda a aplicação desta Lei no juízo estadual.

No que concerne à intenção do Poder Constituinte, compreende que cada pessoa da federação teria que criar o seu próprio Juizado e, ainda, que esse Juizado seria dotado de uma lei adequada, ao firmar o artigo 98, caput, da CF, que tanto a União, como o Distrito Federal e os Estados criariam os seus próprios Juizados Especiais.

O juiz de Direito no Mato Grosso, Paulo Martini [10], defende que a interpretação de uma norma deve ser autêntica posterior e gramatical. Segundo ele, uma vez obtida a resposta procurada, não há que se eleger outras formas subsidiárias de interpretação, tais como doutrinária, judicial, lógica, etc. A par disso, frisa que os princípios da igualdade e da proporcionalidade fazem parte dos chamados princípios gerais do direito, os quais apenas devem ser invocados, nos termos do art. 4º, da Lei de Introdução do Código Civil, quando a lei for omissa.

In casu, assevera que a norma não é omissa, pelo contrário, é manifesta em vedar a sua aplicação no juízo estadual, donde conclui que essa ressalva é o bastante para provar a não ocorrência da aludida derrogação, vez que a lei posterior revoga a lei anterior, tão somente, quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (art. 2º, § 1º, da LICC), não sendo nenhuma dessas a hipótese.

Os filiados a esse posicionamento certificam, ainda, que responder perante o Juizado não é, necessariamente, mais benéfico ao infrator, ou seja, que o sistema consensuado não é mais favorável ao acusado. Objeta-se, a saber, que malgrado nos Juizados não haja a possibilidade da prisão em flagrante, no juízo comum existe o instituto da fiança. Por outro giro, enquanto nos Juizados faculta-se a ocorrência da Transação Penal (vide item 2), no juízo comum tem-se a possibilidade da aplicação das chamadas penas alternativas, dentre outros casos.

Por fim, sustentam que advogar a aludida derrogação criaria um outro percalço, qual seja, os crimes com procedimento especial, bem como aqueles cominados com a pena de multa, doravante seriam processados perante os Juizados Especiais, uma vez que o art. 61 da Lei nº 9.099/95 excetua os casos em que a lei preveja procedimento especial e o art. 2º da Lei 10.259/01 contempla crimes com pena máxima não superior a dois anos, ou multa (grifei). As contravenções penais ou "crime-anão", por sua vez, previstas no art. 61, deixariam de ser da competência dos Juizados, passando a ser competência do juízo comum.

Em sentido diametralmente oposto, encabeçada por nomes como Damásio E. de Jesus, Luis Flávio Gomes, Fernando da Costa Tourinho Filho, Alberto Silva Franco, dentre outros, insurge-se a segunda corrente doutrinária, no fito de que, com o advento da Lei nº 10.259/01, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo foi ampliado, devendo o art. 2º, parágrafo único, da referida Lei, ser estendido à esfera estadual, face os princípios constitucionais da proporcionalidade e da isonomia.

Vejamos o que diz o Professor Luis Flávio Gomes: "Ao jurista do terceiro milênio cabe transcender o ensino jurídico do milênio passado, todo ele fundado no legalismo formalista ou positivismo legalista (que nasceu no final do século XVIII e começo do século XIX). Temos dois olhos exatamente para mirar a lei com um deles e a Constituição com o outro. No caso de conflito, aplica-se a Lei Maior (evidentemente). Os que ainda estão presos aos esquemas lógicos do positivismo legalista não conseguem (nem conseguirão) nunca entender como a Lei nº 10.259/01 derrogou o art. 61 da Lei 9.0099/95. Trabalham com os clássicos paradigmas de interpretação (a lei não tem lacuna, o legislador ordinário disse que o novo diploma legal só vale para os Juizados Federais, etc.)". [11]

Nota-se, pois, que os associados desse juízo têm como marca sagaz o prisma constitucional, afinal de contas, consoante os mesmos, as leis editadas pelo legislador ordinário (muitas vezes desconexas e incompreensíveis) têm que guardar coerência com a Constituição. Inferem a inaceitabilidade de se conceber situações de duplo (e completamente díspar) tratamento jurídico, sob pena de ferir-se de morte o princípio constitucional da isonomia (vide item 4). Chegar-se-ia, nesse passo, à absurda hipótese na qual caso uma autoridade federal fosse desacatada (CP art. 331), o crime seria de menor potencial ofensivo (iria para o Juizado com todas as suas benesses: Transação Penal, rito sumaríssimo, composição dos danos cíveis, termo circunstancial de ocorrência, etc, vide item 2), ao passo que se uma autoridade estadual é desacatada, o crime não é de menor potencial ofensivo e, por conseguinte, não vai para os Juizados, submetendo-se ao juízo comum de rito ordinário.

Argumentam, ainda, que a Carta Magna, absolutamente, não faz distinções no seu texto, bem como a novel Lei não consignou, expressamente, os crimes de competência exclusiva da Justiça Federal (crimes previdenciários, por exemplo). Ademais, nos termos do artigo 2º, § 1º, da LICC, o art. 61 da Lei nº 9.099/95 encontra-se derrogado, uma vez que a Lei nº 10.259/01 foi promulgada e publicada posteriormente, ostentando em seu texto, dispositivo incompatível e regulador da matéria de forma diferente.

No que tange aos crimes de procedimento especial, o entendimento predominante é no sentido de que o procedimento, por si só, não pode constituir obstáculo para que um delito seja ou não da competência do Juizado, restando, pois, derrogada a ressalva contida no artigo 61 da Lei nº 9.099/95.

A Jurisprudência parece inclinar-se a esses argumentos. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mantendo seu pioneirismo e sua posição de vanguarda, já se posicionou acerca do tema, verbis:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. PORTE E DISPARO DE ARMA DE FOGO. COMPETÊNCIA. ISONOMIA. DERROGAÇÃO DO ARTIGO 61 DA LEI 9.099/95. RETROATIVIDADE DA LEI 10.259/01.

- Com o advento da Lei 10.259/01, restou ampliado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, por exigência da isonomia constitucional (grifei); (...)

- Recurso provido, em parte, por unanimidade.

(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 5ª Câmara, Recurso em Sentido Estrito 70003736428, Rel. Amílton Bueno de Carvalho).

Outros Tribunais do país, na esteira do que deliberou o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Aviso nº 15/2002 – Comissão Estadual dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do TJ-RJ, de 25/03/02, DOERJ – parte III – seção I – pp. 01 e 02 – 26-03-02), estão admitindo, amplamente, a incidência da Lei nº 10.259/01 no âmbito estadual.

Nesse sentido: Tribunais de Justiça do Mato Grosso do Sul, de Minas Gerais e do Pará.

O Parquet, por intermédio do Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, arquivou representação formulada pelo Procurador Geral de Justiça do Rio de Janeiro, proclamando a incidência da Lei nº 10.259/01 ao campo de ação dos Juizados Especiais Estaduais (Processo PGR nº 100.000.000.801/2002-90, de 18/02/02 – Parecer).

Por derradeiro, numa posição intermediária, temos uma terceira corrente de, no entanto, pouco eco na doutrina.

Em suma, esta teoria afirma que em se tratando de co-existência de leis especiais, não parece lógico falar-se em revogação ou derrogação do disposto no art. 61, da Lei nº 9.099/95, até em razão de que, constitucionalmente, a Emenda nº 22 não autorizou a lei que viesse a instituir os Juizados Especiais na Justiça Federal a redefinir, para a Justiça Estadual, o conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo.

Funda-se no mandamento de que o Princípio da Isonomia deve ser aplicado em casos de situações iguais, paritárias ou equivalentes e, não, em situações distintas.

Em outras palavras, vai depender-se do bem jurídico tutelado. No caso do crime de desacato (CP, art. 331), o bem jurídico tutelado é único, quer seja praticado contra autoridade federal ou estadual, ensejando, assim, o tratamento isonômico e a conseqüente dilação de 1 (um) para 2 (dois) anos do conceito de infração de menor potencial ofensivo. Se, por ventura, se der a hipótese do artigo 245 do Código Penal (Entrega de filho menor a pessoa inidônea), onde inexiste possibilidade de julgamento perante a Justiça Federal, não há, segundo este entendimento, razoabilidade para se sustentar a aplicação do Princípio da Isonomia, devendo ser mantidos os termos originais do art. 61, da Lei nº 9.099/95. "O juiz não pode atuar como legislador positivo, ampliando os efeitos da norma para outras hipóteses não contempladas". [12]


7. Conclusão

Do quanto tudo aqui foi exposto, enxergamos, com mais limpidez, a imprescindibilidade dos Juizados Especiais ao mundo moderno. O processo de agilização da máquina judiciária está na ordem do dia, e é através da sensibilidade social, a qual todo operador do direito deve tratar como um imperativo, que se atingem as mudanças perseguidas e os resultados práticos para todos, sem, no entanto, provocar a dissociação e o afastamento do Poder Judiciário de conceitos inerentes à justiça social e à eficácia da prestação jurispositiva.

O sistema consensuado no Direito Penal veio para ficar. No nosso ordenamento, em virtude da lentidão e das formalidades burocratizantes, evita-se a jurisdição penal por nem sempre oferecer resposta em face dos conflitos. Não há como se omitir as benesses do sistema consensuado em um país que, segundo o último censo penitenciário, comporta uma população carcerária de mais de 130 mil presos e mais de 250 mil mandados de prisão a serem cumpridos. Sustentar, como fazem alguns, que, dependendo do delito, o juízo comum é mais benéfico ao infrator, vez que, pelo elevado acúmulo de processos que tramitam nos milhares de fóruns do país, pode ser ele beneficiado pela ocorrência da prescrição do jus puniendi, soa-me como uma excrescência. Representa nada mais do que, senão, um remar na contra-mão da história.

Em vias de conclusão, este trabalho filia-se, em parte, à segunda corrente de entendimento doutrinário acima exposta. Em parte, porquanto discorda quanto à derrogação da ressalva do art. 61, pertinente aos procedimentos especiais e, por conseguinte, às contravenções penais e à multa de que trata o art. 2º da Lei 10.259/01. O próprio art. 1º da Lei nº 10.259/01 admite, de forma expressa, que se aplique, aos Juizados Federais, a Lei nº 9.099/95, naquilo que não houver incompatibilidade. Ademais, não precisa ir muito longe para se compreender que o rito especial, por sua própria natureza complexa e peculiar, não comporta a tramitação do feito junto ao Juizado Especial. Assim entendeu o Enunciado 46, extraído do X Encontro do Fórum Permanente de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil, em Rondônia, de 21 a 24/11/2001:

"A Lei nº 10.259/2001 ampliou a competência dos Juizados Especiais Criminais do Estados e Distrito Federal para o julgamento de crimes com pena máxima cominada até dois anos, excetuados aqueles sujeitos a procedimento especial" (grifei).

No mais, segue in totum a orientação mencionada. Sobremaneira, porque a Carta Magna não faz distinções em seu texto, o que nos força a concluir que o artigo 20 da Lei nº 10.259/01 é de flagrante inconstitucionalidade. Ora, se é permitida a inserção da Lei nº 9.099/95, com todas os benefícios do sistema consensuado, no plano federal, por qual razão a recíproca não é verdadeira?

Trilhar caminhos com dois pesos e duas medidas, parece-me, no mínimo, uma quimera em um Estado, dito, Democrático de Direito. Instituir dois conceitos de infração de menor potencial ofensivo, sem considerar-se, expressamente, um critério objetivo, significa, ao arrepio da Constituição, um desregramento jurídico. O novo conceito de infração de menor ofensivo deve ser, pois, de 2 (dois) anos, para qualquer esfera, mutatis mutantes, cometer um crime contra a União, ou contra quem quer que seja, não dá ensejo a uma reprimenda mais amena.

A Constituição Federal, com ênfase no seu princípio da isonomia, é o que há de fundamental, é o que serve de base, de alicerce. O legislador ordinário não está autorizado a afrontá-la.

Aristóteles, de uma forma singela, foi quem melhor definiu: "o injusto é o desigual e o justo é o igual". [13]


8. Referências bibliográficas

1. FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva, 2002.

2. JESUS, Damásio de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São Paulo: Saraiva, 1995.

3. GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

4. LIMA, Flávio Augusto Fontes de. Composição dos danos civis nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Civilização do Direito Penal? Revista da ESMAPE. Recife: vol. 3, n. 8, p. 121/149, jul./dez. 1998.

5. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

6. COMPARATO, Fábio Konder. Direito Público: estudos e pareceres. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

7. MARTINI, Paulo. A não aplicação da Lei nº 10.259/01 no âmbito estadual. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

8. GOMES, Luis Flávio. Juizados Especiais e conceito de menor potencial ofensivo: primeiras posições da jurisprudência. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

9. FONTANA, Milton. A Lei 10.259/01 e a competência dos Juizados Especiais criminais estaduais. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

10. BOMFIM, B. Calheiros. Pensamentos Selecionados. 2. ed. Rio de Janeiro: Destaque, 1993.

11. NETO, Fernando da Costa Tourinho. Juizados Especiais Federais. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

12. OUREM, Hélio. Da igualdade. Revista da Esmape. Recife: vol. 2, n. 5, p. 269/314, jul/set., apud, ARISTÓTELES. Etique à Nicomaque. 2. ed. Paris: L. Philosophique Vrin, 1967, p. 213.

13. MOREIRA, Rômulo de Andrade. Os novos Juizados Especiais Federais Criminais: considerações gerais sobre a Lei nº 10.259/01. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

14. BORGES, José Souto Maior. Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988. Revista da Esmape. Recife: vol. 2, n. 3, p. 311/324, 1997.


9.Notas

01. FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Comentário à Lei dos Juizados Especiais Criminais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

02. GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

03. FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Op. cit., p. 163.

04. LIMA, Flávio Augusto Fontes de. Composição dos danos civis nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Civilização do Direito Penal? Revista da ESMAPE. Recife: vol. 3, n. 8, p. 147, jul./dez. 1998.

05. Artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

06. BOMFIM, B. Calheiros. Pensamentos Selecionados. 2. ed. Rio de Janeiro: Destaque, 1993, p. 139.

07. COMPARATO, Fábio Konder. Direito Público: estudos e pareceres. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 59.

08. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 65.

09. MORAES, Alexandre de. Op. cit., apud, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Princípio da Isonomia: desequiparações proibidas e permitidas. Revista Trimestral de Direito Público, nº 8, p. 79.

10. MARTINI, Paulo. A não aplicação da Lei nº 10.259/01 no âmbito estadual. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

11. GOMES, Luis Flávio. Juizados Especiais e conceito de menor potencial ofensivo: primeiras posições da jurisprudência. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

12. FONTANA, Milton. A Lei 10.259/01 e a competência dos Juizados Especiais criminais estaduais. Disponível na internet: http: //www.jusnavigandi.com.br.

13. OUREM, Hélio. Da igualdade. Revista da Esmape. Recife: vol. 2, n. 5, p. 269/314, jul/set., apud, ARISTÓTELES. Etique à Nicomaque. 2. ed. Paris: L. Philosophique Vrin, 1967, p. 213.


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SOARES, José da Costa. O art. 2º da Lei nº 10.259/2001 x o art. 61 da Lei nº 9.099/95: análise crítica à luz do princípio da isonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 140, 23 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4526. Acesso em: 25 abr. 2024.