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Comentários ao projeto de lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito

Título XII

Comentários ao projeto de lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito: Título XII

Publicado em . Elaborado em .

 "O Direito Penal está diretamente relacionado com a organização política do Estado"

Heleno Cláudio Fragoso

"Um decreto oficial fora ditado: ‘os homens da força pública ficam livres para castigar pelas armas...’ e depois não houve necessidade de baixar nenhum decreto para apagar a matança da memória oficial do país".

Gabriel García Marqez


Sumário: 1. Preâmbulo 2. Considerações gerais sobre o tema 3. Direito Constitucional e Direito Penal 4. Análise dos valores 5. Evolução dos direitos 6. A fragmentariedade 7. A inflação legislativa 8. Descodificação 9. O princípio da legalidade 10. A legalidade e os crimes políticos 11. A legalidade no Projeto de Lei 12. Panorama mundial 13. Conclusões


1. Preâmbulo

O objetivo deste trabalho é comentar o Projeto de Lei de Crimes contra o Estado Democrático de Direito, em fase de tramitação no Congresso Nacional. Este projeto visa a introduzir um Título XII no Código Penal, revogando, assim, a Lei de Segurança Nacional – Lei 7170/83. Quando aprovado, o novo título representará um avanço na tentativa de alcançar o modelo penal garantista, que também será abordado neste artigo, por ser o modelo de sistema penal em consonância com a Constituição Federal.


2. Considerações gerais sobre o tema

"Tudo ao mesmo tempo agora". Esta máxima é o reflexo da sociedade moderna, esta sociedade tão dinâmica, tão vivificante, tão tecnológica, dentre outros adjetivos.

O direito, fenômeno que há muito se insere nesta modernidade, não acompanha fielmente este ritmo infrene em que as mudanças operam-se na sociedade. E nem poderia! O direito surge post-factum, isto é, a posteriori da ocorrência do fato na vida social. As regras são criadas a partir da análise empírica das condutas humanas. Não se olvide o tridimensionalismo concreto, dinâmico e dialético que o direito assume, em função da atração polar existente entre seus elementos – fato, valor e norma – segundo lição do grande jurista Miguel Reale, lição esta, que, a nenhum pretenso jurista cabe desconhecer.

Esporadicamente, portanto, faz-se mister modificar as regras, de forma que melhor regulem o modus vivendi dos indivíduos de determinada comunidade. Isto quer dizer que, embora não tão célere, o direito deve estar adequado aos pensamentos e anseios de uma sociedade, pena de não ter eficácia e ser considerado "letra morta".

O Direito Penal brasileiro apresenta, atualmente, na parte especial de seu Código, várias "letras mortas". O diploma penal, datado de 1940, sofreu uma reforma significante em 1984 na sua parte geral, é verdade. Há de se mencionar, inclusive, que a exposição de motivos sobre esta parte, fulcrou-se nas modificações sociais, em sentido amplo, como a evolução do modelo clássico de Direito Penal garantista – modelo a que almeja o ordenamento jurídico pátrio. A parte especial do referido Código, infelizmente, teve sua reformulação postergada. Perduram vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, por conseguinte, condutas típicas que não mais se verificam na sociedade, ou, esta as encara de forma a não mais ferir seus valores.

Na Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do CP, a comissão que elaborou o projeto de reforma de 1984, afirma, em seu item 7: "deliberamos remeter a fase posterior a reforma da Parte Especial no Código, quando serão debatidas questões polêmicas, algumas de natureza moral e religiosa. Muitas das concepções que modelaram o lenço de delitos modificaram-se ao longo do tempo, alterando padrões de conduta, o que importará em possível descriminalização. Por outro lado, o avanço científico e tecnológico impõe a inserção, na esfera punitiva, de condutas lesivas ao interesse social, como versões novas da atividade econômica e financeira ou de atividades predatórias da natureza."

Sem perder tempo lamentando a má técnica redacional acima empregada, é necessário saber, por agora, que as todas as inovações influem na realidade do direito, e, principalmente, no ramo penal, já que goza de inevitável proximidade com o direito Constitucional, tratando dos bens mais importantes na sociedade.

Desde já, ressalte-se a importância do sistema geral do garantismo, vez que ele se confunde com a construção das colunas mestras do Estado de Direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder, particularmente odioso no direito penal. Daí que os 48 anos que separam a Constituição cidadã do Código Penal tornam maior a ansiedade para se alterar a vetusta parte especial.

A teoria do garantismo penal possui vertentes assaz complexas, e, embora sejam todas dignas do conhecimento de todos, neste modesto artigo, não importa outra coisa, senão estudá-las, na proporção de sua afinidade com o tema principal, o que faz com que, ainda assim, ela esteja várias vezes em evidência.

Durante este estudo, será preciso fazer-se uso da epistéme – do grego, ciência – ou melhor, da epistemologia, "estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objetivo delas" – na definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira – com o fito de explicar as razões que inspiraram os legisladores a criar o Projeto de Lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito e para explicar a conexão dos novos desvios penais, com o sistema penal garantista, já acolhido por boa parte das legislações alienígenas.

O modelo de garantismo penal e o Estado de Direito têm como sustentáculo as liberdades do indivíduo, conforme explicitado, e, assim, podem e devem ser consideradas estas, as engrenagens da ligação entre os dois ramos do direito público.


3. Direito Constitucional e Direito Penal

Inegável, pois, é a intimidade idílica existente entre o Direito Penal e o Direito Constitucional, mais especificamente, entre a Constituição Federal e o Código Penal. Enquanto a primeira dá as diretrizes básicas de um ordenamento devedor de respeito aos bens de maior valor, prevendo direitos e garantias fundamentais, o segundo, de forma mais detalhada, trabalhará as condutas que ousarem violar, ou que efetivamente violarem tais bens jurídicos. Ainda que forte seja o liame entre o Direito Penal e a norma fundamental pressuposta, – no dizer de Kelsen – aquele é hierarquicamente inferior a esta, pois ela é a fonte suprema do ordenamento jurídico, situando-se no ápice da pirâmide legislativa.

Em decorrência do referido idílio, então, o diploma penal vem a ser um reflexo da Constituição, não só porque ambos pertencem ao ramo do direito público, antes porque perseguem, em última instância, a mesma finalidade. Isto fica claro, quando se toma como exemplo o art. 5° caput da CF em vigor, que garante a inviolabilidade à vida, e o capítulo 1° do Código Penal, parte especial, que dispensará sua proteção, exatamente, ao mesmo bem jurídico, estabelecendo penas para o homicídio, aborto, infanticídio, etc. Brilhantemente, ensina o professor Cezar Roberto Bitencourt que "poderíamos chamar de princípios reguladores do controle penal princípios constitucionais fundamentais de garantia do cidadão, ou simplesmente de Princípios Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito. Todos esses princípios são de garantias do cidadão perante o poder punitivo estatal e estão amparados pelo novo texto constitucional de 1988".

Acrescente-se que estas garantias são as que fundamentam o direito penal garantista, que visa a limitar o poder estatal em detrimento da dignidade humana.

O primeiro mérito do Projeto de Lei que inserirá o Título XII no Código Penal é, justamente, a sua obediência à Constituição Federal. Esta Carta Magna, em seu artigo 1°, inscreve uma decisão política fundamental, qual seja, "Estado Democrático de Direito", e, logo depois, elenca seus fundamentos, dentre eles, a soberania, a dignidade humana e o pluralismo político.

Na Exposição de Motivos n° 00109 – inspiradora do referido Projeto de Lei – o doutor Miguel Reale explicou ao Exmo. Senhor Presidente da República que "para melhor elucidar as razões pelas quais oferece a presente propositura, optou por reproduzir parte do Relatório circunstanciado da referida Comissão, que procurou interpretar o sentimento da sociedade civil brasileira, ciosa da importância da liberdade duramente conquistada e da necessidade do respeito ao pluralismo político e às instituições democráticas."

Efetivamente, o Projeto de Lei veio tratar no capítulo 1°, dos crimes contra a soberania nacional, e no capítulo II, dos crimes contra as instituições democráticas, e assim segue protegendo bens jurídicos de dignidade constitucional, até o capítulo V, que dispõe sobre os crimes contra a cidadania, uma importante inovação na legislação penal brasileira, que visa a coibir o abuso de poder por parte do Estado e o abuso de direito por parte de particulares. Isto é traduzido no artigo 378 do Projeto de Lei, sob a denominação de "atentado a direito de manifestação".

Nesta mesma Exposição de Motivos, também se sustenta que no Projeto de Lei "estão contidas a previsão dos crimes de terrorismo e ação de grupos armados, ambos expressamente referidos no texto constitucional (art.5°, XLIII e XLIV)", dando mais veracidade à indissolubilidade do laço intermediador dos ramos Penal e Constitucional.

Sabendo-se que o Estado Democrático de Direito é um bem-meio, isto é, um instrumento para se chegar aos bens-fins – os direitos fundamentais – vale a pena traçar uma análise sobre os valores, destacando o modo como são eles aferidos aos bens jurídicos, para se entender as motivações do mencionado "sentimento da sociedade civil brasileira".


4. Análise dos valores

Analisando-se, pois, os valores atribuídos aos bens jurídicos, entende-se que eles só se concebem em função de algo existente, ou seja, das coisas valiosas, e não admitem qualquer possibilidade de quantificação ou mensuração. Pode-se até se atribuir um preço a determinado valor; tal quantia, entretanto, será baseada na utilidade, atribuído por processos empíricos e pragmáticos. A um valor sempre se contrapõe um desvalor, daí ser aquele bipolar, por essência. "A dinâmica do direito resulta, aliás, desta polaridade estimativa, por ser o direito concretização de elementos axiológicos", explica o professor Miguel Reale.

Os atos negativos de valores, por exemplo, podem coincidir estritamente com uma norma incriminadora do Direito Penal, pois, como a própria denominação sugere, os tipos penais descrevem, justamente, as condutas criminosas. A constatação de antijuridicidade, elemento constitutivo do conceito clássico de delito, elaborado por Von Liszt e Beling, implica um juízo de desvalor, uma valoração negativa da ação, segundo o professor Cezar Bitencourt.

O caput do artigo 121 do Código Penal brasileiro prega: "Matar alguém", e, em seguida define a pena. Quem realiza a conduta descrita neste tipo, pratica um ato valorado negativamente, ou seja, criminoso, digno de ser sancionado. E tanto isto é verdade, que, as qualificadoras e majorantes dos delitos – não só as de homicídio –, em sua maioria, justificam-se pelo "maior desvalor da ação", de acordo com a doutrina dominante. Aclara-se tal idéia, quando se compreende o fenômeno da transgressão à norma, como conduta contrária ao seu dever ser. A vida jurídica é marcada por uma luta incessante contra a transgressão legal e o delito, para salvaguarda de bens e de valores.

Os bens jurídicos, objeto da tutela penal, foram conceituados por Binding como estados valorados pelo legislador. Deveras, esta concepção, ainda que pareça suficiente, trata superficialmente do assunto, e fica superada quando Von Liszt, pouco mais tarde, define o bem jurídico como o interesse juridicamente protegido, deslocando para o centro do conceito, elemento da estrutura do delito. Bitencourt leciona que o bem jurídico "é todo valor da vida humana protegido pelo direito".

O homem é, sem sombra de dúvida, o valor fonte de todos os outros valores, já que estes só existem face à estimativa que o ser humano faz das coisas. Destarte, é correto afirmar que o homem é o único ente capaz de valorar, e, sendo assim, ele cria o mundo axiológico de acordo com suas finalidades, variando de tempos em tempos por causa de experiências, da cultura, sem mencionar sua inexaurível capacidade inventiva. O dever ser no direito, portanto, também sofre modificações, mormente nestes últimos séculos, em que a evolução já ultrapassou a velocidade do som.


5. Evolução dos direitos

Basta retroceder ao momento em que estes valores do homem, da vida e da dignidade humana, receberam, pela primeira vez na história, a atenção devida. Foi a Revolução Francesa, o movimento propulsor da declaração de direitos do homem de 1789, que consignava em seu artigo 16, o conceito moderno de Constituição, a saber, "tout la société dans laquelle la déclaration de droits n’est pás assurée, ni la séparation des pouvoirs determinée, n’a point de Constituition". Daí que só haveria Constituição, se estivessem consignadas a declaração de direitos fundamentais e a determinação da separação de poderes, segundo aquela Carta.

Este momento do "liberté, égalité, fraternité" retrata o nascimento dos direitos denominados direitos de primeira geração, de onde o direito à vida e à dignidade humana foram os mais preconizados. O grande movimento que foi a Revolução Francesa nada mais fez do que lutar por liberdades individuais, a fim de se conterem as arbitrariedades do monarca do "ancien régime". Este foi, portanto, o objetivo axiológico do período das luzes.

E a história vai se traduzindo, a partir das mudanças no ponto de vista dos valores. Por isso é que Hegel, no século XIX, descreve a história, demonstrando sua finalidade. E em assim sendo, pregara o filósofo, a história da liberdade, superando a doutrina teológica de finalidade salvífica. A história da liberdade, pois, deixa os seus vestígios mais visíveis, através das revoluções, geralmente marcadas por pugnas violentas contra a contenção da natural evolução; isto é, os agentes do poder continham a evolução natural da sociedade, seja em seus pensamentos, seja nas suas aspirações, para se manterem onde estavam. As leis eram usadas indiscriminadamente, como garantia do poder dos monaracas. E faziam uso, muitas vezes, através da vis corporalis, até o ponto em que a sociedade oprimida e fechada numa panela de pressão, explodia, na luta pela liberdade.

Desse modo, na Revolução Francesa, sob a égide do pensamento iluminista, lutou-se pelos direitos individuais, surgindo o constitucionalismo moderno e o Estado de Direito, aquele Estado, cuja certidão de nascimento, é, precisamente, a Constituição. A partir do século XIX, as filosofias positivistas e cientificistas começaram a dar sua contribuição no pensamento da coletividade, chamando a atenção desta para os direitos sociais. O mundo axiológico, de acordo com as necessidades do homem, começava a centrar sua atenção em lugares outros. A multiplicação das indústrias e o crescente desenvolvimento do trabalho também foram fatores contundentes para, neste mesmo século, consolidarem-se valores concernentes à sociedade e ao trabalho. Foi o momento histórico em que se lutou, portanto, pelos direitos sociais, ou vulgarmente denominados, direitos de terceira geração.

"A primeira seria a dos direitos de liberdade; a segunda seria a dos direitos democráticos de participação; a terceira seria a dos direitos sociais e dos trabalhadores; a quarta seria a dos direitos dos povos", ensina o professor português J. J. Gomes Canotilho. Os direitos dos povos contemplam o direito ao meio-ambiente, o direito à paz, o direito ao patrimônio comum da humanidade, dentre outros.

A Constituição de 1988 foi perfeita na contemplação de todos os direitos que duramente foram conquistados através da história, e alguns outros que estão por se sedimentar. Então, hoje, ainda que as revoluções, possam parecer distantes da realidade, as lutas continuam. A CF/88, diante que está, dos direitos de quarta geração, fica submetida à dimensão que for delineada para estes – na legislação infraconstitucional –, exatamente em função do surgimento, a todo o tempo, de novos direitos que quebram fronteiras e aproximam as civilizações.

Após esta rápida passagem no histórico dos valores constitucionais, cabe transportar-se para a seara penal, com vistas a estudar a absorção axiológica do legislador infraconstitucional.


6. A fragmentariedade

Não cabe ao legislador penal ocupar-se de todo e qualquer interesse jurídico. Ao se pensar no princípio da fragmentariedade, ínsito ao direito penal, deve-se ter em mente, que somente fragmentos dos interesses jurídicos, ou seja, os mais relevantes, merecem a tutela deste ramo de direito público. Como resultado do desenvolvimento do direito penal pátrio, numa análise superficial, tem-se a tutela de forma quase perfeita de tudo quanto devia ser protegido; isto é, os bens mais valiosos, salvaguardados dentro do Código, e os valores que constantemente emergiam e se consideravam valiosos o bastante, na legislação extrapenal. A síntese disso, agora numa análise crua e real como deve ser, é expresso na metáfora a seguir.

O quadro atual da legislação penal mostra uma pintura tétrica de um corpo, cujo esqueleto, além de desgastado, possui ossos que não mais desempenham sua função, e cuja derme encontra-se deformada pela enorme quantidade de tecido adiposo. Em legenda: o corpo é a parte especial do Código Penal, e a derme é a legislação extravagante. Refere-se, apenas, à parte especial do CP, pois já foi visto, supra n.1, que esta teve sua reformulação postergada.


7. A inflação legislativa

O Código Penal Brasileiro, em vigor, foi fruto do trabalho de Alcântara Machado, posteriormente revisado por uma comissão de penalistas de renome. Entrou em vigor em 1° de janeiro de 1942, carregando em seu bojo influências do Código Penal Italiano ou Código Rocco de 1930, e do Código Penal Suíço de 1937. Desde então, sofreu inúmeras reformas, seja para ampliá-lo, reduzi-lo, ou simplesmente, para alterá-lo. Da mesma forma, o legislador, hábil em modificar algumas partes do Código, pecou pela omissão em outras. Deixou vigentes no ordenamento, delitos que perderam a eficácia, como os crimes contra a Organização do Trabalho, e crimes contra o costume.

Na moda das reformas, na ilusão de que a criminalização era solução para criminalidade, leis e mais leis foram aprovadas, sem observação ao fundamento necessidade, ou seja, sem atender à máxima leges non sunt multiplicandae sine necessitate. Hobbes já dizia que "uma boa lei é aquela que seja necessária para o bem do povo". Ocorre que, diante de mais de 40 (quarenta) leis adjetivas ao Código, o caráter de complementariedade da legislação especial perdeu o sentido.

O fenômeno ‘inflação legislativa’ instaurou-se na legislação penal brasileira, e, ironia que seja, praticando um "estelionato legislativo", haja vista que se fazia passar por benéfico ao criminalizar novas condutas, quando, em verdade, obtinha para si, cada vez mais tipos penais para compor o seu conceito.

Quanto mais nascem novos direitos, pelo dinamismo e complexidade da vida moderna, mais parece aumentar a fome dos legisladores de crivarem novas ações delituosas, a fim de proteger estes recém-nacidos interesses. Nas palavras do douto professor Cezar Bittencourt, "os legisladores contemporâneos – tanto de primeiro como de terceiro mundo – têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princício da ultima ratio, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos ordenamentos positivos".

Visualize-se, verbi gratia, a Lei 9437/97, que trata dos crimes praticados com porte de arma de fogo, constante da legislação penal extravagante. Esta lei, quando aplicada junto a uma qualificadora ou majorante pelo porte de arma de fogo representa o terrível BIS IN IDEM, proibido pelo ordenamento jurídico. Por exemplo, o roubo majorado do art.157, §1° inc.I, cujo maior desvalor da ação se dá em virtude do uso de arma de fogo, não pode ser aplicado em conjunto com a referida Lei – que no art.10 prevê o crime praticado com arma de fogo –, o que a deixa sem eficácia, neste aspecto. Sem contar com o abuso nas modificações que a Lei já sofreu e está por sofrer (o polêmico Estatuto do desarmamento). No rol das outras numerosas leis que compõem o Direito Penal vigente, podem-se identificar outras, simplesmente, inúteis, que não desempenham nenhuma função, e ficam sendo modificadas de forma esporádica, até que, por sorte, "peguem".

O outro ponto positivo do Projeto de Lei de crimes contra o Estado é, então, a conseqüente revogação da Lei de Segurança Nacional – que é mais um corpo errante no mundo das leis extrapenais – quando da aprovação do Título XII. Além disso, será importante a mudança nas terminologias referentes à segurança pública. A respeito disso, na mencionada EM nº00109, o professor Miguel Reale Júnior acrescenta: "abandona-se, assim, em definitivo, a referência à segurança nacional, empregando-se a terminologia, consagrada pelo próprio texto constitucional".


8. Descodificação

Ainda em afinidade com o fenômeno da inflação legislativa, outro problema que afeta os cidadãos, é o fato de que as novas normas que entram no ordenamento jurídico, elas fazem parte, frise-se, de uma legislação extravagante, como se obedecessem a um princípio implícito de descodificação. São poucas as que obedecem ao princípio da reserva do Código. O grau de racionalidade e confiabilidade na ordem jurídica, portanto, termina por seguir em sentido oposto aos princípios garantistas, ou ainda, à segurança jurídica. As leis novas ficam sendo instrumentos de governo, ao invés de tutela de bens. Relega-se o CP à categoria de mero apêndice da legislação extrapenal. Antes, trancassem-se os tipos penais numa caixa de Pandora!

Os crimes contra o Estado, como já é possível intuir, entrarão em vigor obedientes à confiabilidade jurídica, fazendo parte do "em parte" ultrapassado Código Penal Brasileiro. O professor italiano Ferrando Mantovani, expondo as linhas mestras do Schema di delega legislativa per um nuovo Códice Penal, assenta o entendimento de que a recuperação à centralização do Código Penal é uma expressão da racionalidade garantista. E continua explicando o desejado modelo italiano, como corpo de normas ordenado a tutelar os valores fundamentais de uma vida civilizada em sociedade, com a complementariedade marginal da legislação especial, que só se justifica se circunscrita a setores marginais, como as matérias de caráter eminentemente técnico, ou como as normas penais meramente sancionadoras de preceitos jurídico-administrativos, ou como a regulamentação excepcional de caráter temporal, a exemplo da legislação de emergência.

É óbvio que o legislador penal brasileiro ainda vai suar muito até alcançar um modelo efetivamente garantista, porém, o Projeto de Lei, objeto deste trabalho, com sua aprovação determinada pelo Congresso Nacional, pode ser um indício de que bons ventos estarão por vir.


9. O princípio da legalidade

Outra realidade da qual o jurista não pode se esquivar é a de que, tanto nos tipos previstos no Código Penal, quanto nos que residem na legislação extrapenal, é perceptível falta de clareza e objetividade. Isto atenta ferozmente contra o princípio da legalidade e contra o garantismo penal. Aliás, não é de forma alguma despiciendo explicar que sistema garantista, cognitivo ou de legalidade estrita querem exprimir a mesma idéia.

Dá ampla margem à discricionariedade, o uso dos conceitos indeterminados, elásticos nos textos legais, onde o mais célebre deles, no ordenamento brasileiro, é o de "mulher honesta", presente na redação do artigo 215 CP – posse sexual mediante fraude. Este conceito faz parte de uma "norma constitutiva", pois cria uma categoria distinta de indivíduos, porquanto se refere a diferenças pessoais e sociais. Poder-se-ia argumentar que este conceito de mulher honesta facilmente encontra limites na utilização do costume como método de interpretação. O tipo penal do art. 215, inserido que está no capítulo de crimes contra os costumes, contudo, não é o único a carregar este teor indefinido; ele é cercado de alguns outros da mesma espécie, além de o costume não ser um parâmetro objetivo suficiente para qualificar um desvio penal.

A racionalização do Direito Penal, hodiernamente, tem como pressuposto técnico o retorno à codificação, à recuperação da centralização do Código Penal. Parece o legislador caminhar em sentido contrário, ou seja, para a irracionalidade do Direito Penal, no momento em que o preenche com leis de formulação indeterminada, leis vazias, simbólicas, mágicas, que tão-somente se destinam a colocar em cena a diligência na luta contra certas formas de criminalidade.

Para se ter uma idéia da importância da Legalidade, antes de adentrar propriamente no modus operandi da violação ao princípio, é lícito tecer comentários sobre ele, já que é o alicerce de todo o sistema constitucional. Ele teve sua semente na Inglaterra do século XIII, no art.39 da Magna Carta, quando os súditos do rei João Sem Terra visando à contenção da discricionariedade do monarca, conseguiram inscrever o princípio da legalidade – ainda que diferente dos moldes em que se concebe atualmente – na Carta supra citada. Só em 1789, no artigo 5° da famosa Declaração de Direitos é que o princípio foi elaborado nos contornos de hoje, exaltando o nexo existente entre liberdade e legalidade. E, desde a Constituição Brasileira de 1824, o princípio encontra abrigo.

Um princípio como este, de dignidade constitucional, inserto numa cláusula pétrea (art. 5° inc.II CF/88), e repetido no artigo primeiro do Código penal, na conhecida expressão latina "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege", não pode ceder espaços para que o legislador infraconstitucional ou qualquer outro operador do direito pratique atos contra ele. O princípio da legalidade fundamenta o Estado democrático de Direito, onde vige a regra da liberdade. Ele tem que se fazer prevalecer, diante de qualquer ação que ouse ferí-lo, para garantir a segurança jurídica. É do princípio da legalidade que todos os outros princípios vão haurir sua razão de ser; ao ferir o princípio da legalidade, portanto, estar-se-á negando todo o Estado de Direito.

Na célebre obra Direito e Razão, Ferrajoli leciona que há diferença entre o que se chama de ‘mera legalidade’ ou reserva legal e ‘legalidade estrita’. O primeiro é fruto do pensamento dos romanos e é dirigida aos juízes, enquanto que o segundo é expressão criada pelos iluministas e dirigida ao legislador. O juiz, para obedecer ao princípio, deve se ater à análise da subsunção do caso à hipótese legal. O legislador, por sua vez, para respeitar a estrita legalidade, precisa utilizar uma linguagem o mais cristalina possível para a definição das condutas contrárias ao dever ser.

Conforme palestra proferida no II Congresso de Direito Penal e Democracia, o professor Miguel Reale Júnior questionou se se estribar na lei seria suficiente para a certeza do direito. Ao responder negativamente, conclui que o direito trabalha com um instrumental incerto que são as palavras, e será o caso concreto que induzirá o juiz a uma determinada interpretação.

Infelizmente, parcela dos juízes brasileiros ainda não possui a consciência de que o princípio da legalidade deve ser aplicado sempre pró-libertatis, e não pró-punitionis, como se faz na realidade, a exemplo do beijo que condenou um cidadão a uma pena de seis anos por prática de ato libidinoso. Note-se que não só se fere a legalidade, como também a proporcionalidade, razoabilidade, e, é claro, a dignidade humana.

Daí se conclui que a violação ao princípio da legalidade, em suas duas acepções, representa um forte instrumento de governo, para se utilizar um eufemismo para a arbitrariedade. Os tipos genéricos, conforme já explicitado, são os que comprometem o entendimento do delito, permitindo várias interpretações, e, por conseguinte, tornando difícil a determinação do conteúdo exato da conduta delituosa. O tipo se ajustará, portanto, sempre de forma perfeita àquela ação praticada que se deseja punir, quando da análise da subsunção do fato à norma de teor indeterminado. Os indivíduos ficam expostos, dessa forma, à pessoa que detém o poder, pois será ela quem dará a interpretação que melhor lhe aprouver. E mais, se ela entender que a conduta praticada por Fulano ou Beltrano enquadra-se na hipótese normativa em análise...

Onde estará o princípio da reserva legal quando Fulano ou Beltrano forem condenados? Qual a lei específica que definiu o ato praticado como delituoso? Provavelmente, as respostas para estas indagações serão bastante lógicas: a primeira, na letra da lei, e a segunda, naquele que tinha legitimidade para dizer o direito. Esta segunda resposta é o âmago do problema suscitado desde antes, tendo em vista que é nela que se assenta a infeliz insegurança jurídica. Mas não se cometa o erro de dizer que a raiz do problema reside somente aí, tendo em vista a existência, também, da violação à legalidade estrita.


10. A legalidade e os crimes políticos

É mais freqüente a incidência dos tipos genéricos nos crimes políticos, – e aqui se entendem estes como os que atentam contra o Estado, contra a democracia, crimes de guerra, etc. – conforme a lição do saudoso professor Heleno Cláudio Fragoso.

Em breve análise comparada, vê-se no artigo 78 do Código Penal Francês, de 1810, o seguinte crime político de conteúdo vago: "quiconque aura pratique des machinations ou entretenu des intelligences avec les puissances étrangères ou leurs agents, pour les engager à commetre des hostilités ou à entreprendre la guerre contre la France ou pour leur en procurer les moyens, etc." As expressões maquinações, entendimentos, hostilidade têm, nessa norma, alcance indefinido. Quais os limites destes conceitos?

As leis nazistas, por sua vez, infladas pelo espírito da guerra, falavam em "rompimento da força defensiva do Estado, ou ainda, "o comportamento danoso ao povo", para estar consoantes ao regime totalitário. Aliás, foi como uma luva nas mãos do governo nazista as leis de conteúdo indeterminado, uma vez que ele podia dar legitimidade à sua arbitrariedade. A Constituição da República Federativa da Alemanha, em seu artigo 103, expressamente estatuiu a proibição do legislador penal do estabelecimento de "leis penais imprecisas, cuja descrição típica seja de tal forma indeterminada, que possa dar lugar a dúvidas intoleráveis sobre o que seja ou não permitido ou proibido". Note-se que esta Constituição poderia contemplar os legisladores de todos os ramos do direito; não o fez, todavia. Depreende-se, conseqüentemente, que somente ao legislador penal foi instituída esta proibição, por ser este ramo, o que trata dos bens jurídicos mais relevantes e valiosos, e, em assim sendo, o que, diante de uma violação ao artigo supra citado, mais prejuízos pode acarretar aos indivíduos tutelados por este ordenamento jurídico.

Do Brasil, também há de se mencionar normas desta espécie. É justamente na Lei de Segurança Nacional – Lei 7170 de 14 de dezembro de 1983 – que se encontrará o exemplo. A Lei 7170/83 é precisamente aquela que será revogada, assim que se aprove o Projeto de Lei que cuida do Título XII no CP, objeto do presente trabalho. Enfim, o art. 20 da Lei 7170/83 estabelece penas para quem "praticar atos de terrorismo...". É evidente que, no mínimo, os atos de terrorismo de 1983 não são os mesmos de 2003, e, paira no ar a pergunta que não quer calar: e qual o conteúdo do termo em exame? Ou, mais especificamente, quais os atos de terrorismo?


11. A legalidade no Projeto de Lei

É esta, exatamente, uma das grandes vitórias do Projeto de Lei de que se trata, qual seja, a circunscrição, especificação, a taxatividade precisa dos conceitos em branco dos crimes políticos, – na definição do professor Fragoso – em franca atenção ao garantismo penal e ao princípio da estrita legalidade. O novo artigo 371, que dispõe acerca do terrorismo, por exemplo, enumera de forma nítida quais as condutas que constituem este delito. A conseqüência disto é a aproximação da legislação penal pátria do modelo garantista, já que este visa a diminuir, o máximo possível, a margem de arbitrariedade nos textos legais.

Quando expõe os motivos dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas e dos serviços essenciais, na EM n° 00109, o também advogado Doutor Miguel Reale Júnior assevera que "institui-se, também, em substituição à previsão genérica da legislação em vigor, relativa à tentativa de impedir o livre exercício dos Poderes da União ou dos Estados, o crime de coação contra autoridade legítima, consistente em constranger, mediante violência ou grave ameaça, por motivo de facciosismo político, autoridade política a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda, no exercício de suas atribuições".

Os crimes contra a Soberania Nacional, os crimes contra as Instituições Democráticas, previstos nos capítulos I e II do Projeto de Lei, além de terem a legalidade sempre em vista, vão tutelar os denominados bens-meios. Estes são instrumentos dos quais se utiliza o Estado Democrático de Direito para garantir as liberdades e os direitos fundamentais. Note-se, pelo que foi visto supra n. 4, o quão lento, custoso, árduo, etc. foi o processo de luta, consecução e consolidação destas garantias, direitos e liberdades. Um Estado forte e protegido nas suas decisões políticas fundamentais é essencial para o exercício da democracia pelos cidadãos.

Não são novidades os delitos que atentam contra o Estado Democrático de Direito, em relação às legislações de outros ordenamentos jurídicos.


12. Panorama mundial

Faz-se presente em quase toda a legislação penal alienígena, título que trata dos crimes contra o Estado. Melhor elucidando, em quase todos os Códigos Penais estrangeiros, estão inscritas condutas que atentam contra o Estado. O bem jurídico tutelado aí não é só o Estado, mas também a forma de governo, a independência, a segurança, etc.

Analisando-se a legislação dos outros países, vêem-se Estados que ainda guardam resquícios totalitários, a exemplo da Alemanha, do Chile, e da Venezuela. Esta afirmação é baseada no fato de que ambas as legislações alemã e chilena começam sua Parte Especial do Código Penal, não a proteger o valor fonte de todos os outros, mas sim, inauguram os delitos em espécie com os crimes atentatórios contra o Estado.

A Seção I do Código Penal Alemão vai se ater aos crimes de traição à paz, alta traição e exposição a perigo do Estado Democrático de Direito – numa tentativa de tradução fiel – de onde a preparação de uma guerra é delito com pena perpétua de privação de liberdade ou privação de liberdade não inferior a 10 anos (§ 80). Já o Código Penal Chileno, na mesma linha autoritária, faz o lançamento da sua Parte Especial no "Libro II, Título I: crimenes y simples delitos contra la seguridad exterior y soberania del Estado". E, haja vista este título tratar de "simples delitos", do artigo 106 a 110, é prevista a prisão perpétua do indivíduo. O Código Penal da Venezuela também protege a independência e a segurança da nação ao iniciar o rol dos delitos previstos no "Libro Segundo", ainda que as penas estabelecidas sejam mais suaves que as dos dois outros países.

Alguns dos países da América Latina adotaram, como o Brasil, a proteção à vida humana como preceito inicial da Parte Especial do Código, demonstrando a preocupação com o indivíduo, antes mesmo do Estado. Entre eles podem-se citar os Diplomas Penais da Argentina, o da Costa Rica, e o de El Salvador.

Na Europa, tem-se a França, fazendo jus à sua fama humanitária, discorrendo no "chapitre premier" da parte especial do Código, sobre o genocídio, crime que atenta contra a humanidade, e que pode acarretar a perpetuidade da reclusão penal. Portugal e Espanha colocam no centro da proteção, a vida, seguindo o Brasil; ou melhor, o Brasil, mais uma vez, inspirou-se nas legislações ibéricas, para variar um pouco.

O "Schema de delega legislativa por um nuovo Códice Penal", anteriormente citado, é um sistema a que almejam implantar Itália, França e Espanha, e conforme exposto, atende aos ensinamentos garantistas. Portanto, propugna-se o repúdio a todo e qualquer Código Penal da Opressão e Código Penal do Privilégio, demonstrando favorecimento incondicional a um Código Penal Personalíssimo.

O Schema terá como alicerce, um Código Penal Humanista, estabelecedor de hierarquias entre bens jurídicos, segundo a tríplice diretriz personalíssima que o fundamenta: 1) o caráter central do ser humano, que constitui o bem primário; 2) a conseqüente distinção entre bens-fins, direitos fundamentais da pessoa humana, e bens-meios, quais sejam, bens patrimoniais e bens supraindividuais (a família, a comunidade, o estado-administração, o estado unidade e suas instituições democráticas), que são instrumentos para a conservação, dignidade e pleno desenvolvimento da pessoa humana, em sua dimensão individual e social; 3) a conseguinte centralização dos direitos da pessoa humana, que por sua prioridade, devem ser incluídos topograficamente no início da Parte Especial do Código, seguidos depois pelos delitos-meios – em franca contraposição com os Códigos totalitários e autoritários, pela elevação dos bens público-coletivos a bens primários, relegando os bens do ser humano a bens-meios, intrumentais aos primeiros e protegidos no limite de sua própria instrumentalização.

O Projeto de Lei de crimes contra o Estado Democrático de Direito, no momento em que ocupar seu lugar no Código Penal representará uma maturidade na tentativa de alcançar os ideais garantistas expressos acima. Apesar de não organizado, o Código Penal passará a contemplar um modelo semelhante ao Schema italiano, o que, por derradeiro, ensejará as últimas exposições sobre o assunto.


13. Conclusões

De todo o trabalho, pôde-se perceber que alguns pontos sempre estiveram presentes, seja de forma latente ou evidente. São eles as pedras de toque do Estado Democrático de Direito, isto é, os pilares que o sustenta, a exemplo dos direitos fundamentais e do direito penal garantista, com todas as imbricações decorrentes deles.

Via de conseqüência, demonstrou-se como o Projeto de Lei aspirante a inserir o Título XII no Código Penal, respeitou e refletiu a Constituição Federal. Mais uma prova disso é o art.380 do Projeto, que louva a Carta Magna – assegurando, outra vez, o idílio entre o Direito Penal e o Constitucional –, protegendo bens jurídicos essenciais ao Estado de Direito. O mencionado artigo vai dispor sobre a discriminação racial ou atentatória aos direitos fundamentais, delineando várias condutas criminosas, antes inexistentes na legislação penal pátria, como a discriminação ou preconceito de orientação sexual, condição física ou social. É verdade que a Lei 7716/1989 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor; e que com a redação dada pela Lei 9459/97, também contempla em seu art.20, disposição semelhante à do Projeto de Lei. No entanto, o art.380 revogará tacitamente este art.20, uma vez que aquele inclui maior número de elementos do tipo.

Outra grande vantagem do Título XII que merece destaque nestas conclusões é a observância ao princípio da reserva do Código proposto por Ferrajoli. De acordo com o que foi exposto, os artigos deste Projeto, quando publicado, entrarão diretamente no bojo do diploma criminal, facilitando, assim, não só o seu conhecimento pelos cidadãos deste Estado, como também, possibilitando sua maior eficácia. Os crimes contra o Estado Democrático de Direito, portanto, ao revogar a ultrapassada Lei de Segurança Nacional, tira de vigência parte – ainda que ínfima – da adiposidade da legislação penal, lipoaspirando sua gordura, atentando aos padrões da deusa Iustitia.

Quanto ao princípio da Legalidade e quanto ao direito comparado, vale a pena a explicação do professor Fragoso: "a legislação da América Latina, fortemente repressiva, reflete a crise generalizada com que hoje se defronta o Direito Penal e a inadequação às realidades nacionais. O fenômeno da criminalidade, nesta parte do mundo, está intimamente relacionada com as condições de uma estrutura social opressiva, profundamente injusta e desigual. O legislador ingenuamente pretende resolver com o instrumental punitivo, problemas sociais, como se pode exemplificar tão bem com as leis de vagos y maleantes introduzidas, com resultados desastrosos, em vários países, por inspiração da lei espanhola de 1933".

A legislação repressiva citada acima, ainda reside em países como o Chile, a Venezuela e a Bolívia. No Brasil, no entanto, os valores da pessoa humana são os mais festejados – não se falando, neste caso, da diferença entre teoria e prática, nem das penas. As leis vagas e indeterminadas estão com seus dias contados, se a técnica legislativa continuar seguindo o exemplo do Título XII do Código Penal. Viu-se que o Projeto Lei respeitou o princípio da Legalidade de forma inexorável, do que se depreendeu de sua redação.

Agora, é hora de rezar para que, a curto prazo, seja aprovado o Projeto de Lei, e, que, a longo prazo, seja reformulada a anacrônica parte especial do Código Penal. E neste ponto, quando da reforma dos crimes em espécie, é imprescindível a consciência do legislador pátrio da obediência ao modelo garantista, o único apto a realizar os anseios de um Estado Democrático de Direito.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR SOBRINHO, Suian. Comentários ao projeto de lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito: Título XII. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 159, 12 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4585. Acesso em: 24 abr. 2024.