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A superação das antinomias como um dever de coerência

A superação das antinomias como um dever de coerência

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A nova hermenêutica constitucional veio reforçar a imprescindibilidade de harmonização das partes que compõem o sistema normativo, ao prever que a Constituição seja interpretada como uma unidade, bem como utilizada como ponto de concentração do ordenamento.

1 INTRODUÇÃO

A interpretação jurídica, entendida como o ato de revelar ou mesmo de atribuir sentido a determinado texto legal, é de indubitável importância para a concretização do Direito. Por mais sábio e criativo que seja o legislador, o resultado do seu trabalho sempre será uma lei enclausurada pelos valores e horizontes de uma determinada época e localidade. Assim, a fim de evitar o engessamento do Direito a uma certa visão política positivada, cabe ao operador jurídico a difícil tarefa de aferir a melhor compreensão de um dispositivo, compreendido como parte integrante de um complexo normativo, perante os anseios sociais.

É dentro desse diálogo existente entre os próprios textos legais que compõem o ordenamento jurídico que surge uma das principais problemáticas a serem solucionadas pelo intérprete, quais sejam as antinomias. Entendidas como o conflito ou a tensão existente entre normas, essa colisão precisa ser resolvida, haja vista não poder o juiz se eximir, por vedação constitucional, de prestar a atividade jurisdicional sob a alegação de que o Poder Legislativo positivou textos jurídicos contraditórios. O direito de ação, previsto no art.5º, inciso XXXV, da Carta Magna de 1988, não garante apenas o acesso à Justiça nos casos de lesão ou ameaça de direitos individuais, difusos ou coletivos, mas também impõe ao Estado o dever de solucionar tais conflitos sempre que lhes forem apresentados por meio da prestação de uma decisão definitiva, evitando a perpetuação dos embates e garantindo a todos o acesso a uma ordem jurídica justa[1].

Todavia, embora seja vedado ao magistrado se eximir de sentenciar ou despachar sob a alegação de existência de lacuna ou obscuridade da lei, por força do art.126 do Código de Processo Civil, igualmente não pode o juiz se substituir ao legislador para formular o direito aplicável, pois o Poder Judiciário retira da aplicação da própria lei democraticamente criada a sua legitimidade.[2] Assim, cabe à hermenêutica, como ciência da interpretação, formular técnicas e métodos capazes de permitir a superação das antinomias pelo operador jurídico, sem permitir que este se afaste dos anseios sociais positivados.

Não há como se olvidar que a coerência do ordenamento jurídico não é questão fácil de ser resolvida, principalmente quando se analisa um sistema composto por diversas leis formuladas nos mais variados momentos históricos, como é caso do sistema normativo brasileiro. Os critérios propostos pela doutrina para a solução das antinomias, além de não ser assunto pacificado dentre os estudiosos do tema, ainda é utilizado de maneira insatisfatória pelos operadores do direito, tornando a temática ainda mais controvertida. Diante disso, versa o presente trabalho sobre as problemáticas envolvendo os critérios de solução e identificação destas antinomias, fazendo-se um estudo doutrinário quanto ao tema, a fim de se aferir se os métodos previstos pela legislação brasileira vigente são capazes de possibilitar que o operador do direito faça justiça.


2 DO ORDENAMENTO JURÍDICO COMO UM SISTEMA NORMATIVO

Antes de adentrar na problemática central abordada neste trabalho, imperioso se faz inicialmente tecer algumas considerações sobre o panorama em que se encontram inseridas as antinomias, justificando os termos que foram utilizados na identificação do objeto em estudo, a fim de evitar os prejuízos que a utilização da linguagem cotidiana pode trazer para a compreensão do que se vem aqui propor. Em uma primeira visão, a palavra "sistema" remonta a ideia de um conjunto organizado e harmonioso de partes divisíveis, que, ao serem combinadas, formam um todo unitário, diverso das porções que o compõe. Todavia, para a doutrina jurídica, quando tal palavra é utilizada para caracterizar o próprio Direito, esta adquire características que merecem ser melhor analisadas.

Para Kelsen, o ordenamento jurídico é um sistema estático quando compreendido como "um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental"{C}[3]. Todavia, o Direito revela-se como um sistema de normas essencialmente dinâmico, pois

O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou - o que significa o mesmo - uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. [...] O princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numa e na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou uma outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais - como o particular do geral - podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica.[4]

Por sua vez, ao dispor sobre a tendência de se entender o Direito como um sistema, haja vista a sua pluralidade de sentidos desse termo, Noberto Bobbio classificou em três os significados mais relevantes para a ciência jurídica, quais sejam: a) sistema dedutivo; b) jurisprudência sistemática e c) sistema de compatibilidade das normas.

O referido autor entende por sistema dedutivo a acepção de que "um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais (ditos 'princípios gerais de Direito'), considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico". Por sua vez, deve-se compreender a jurisprudência sistemática como um sistema indutivo, pois, ao contrário do que fora anteriormente mencionado, parte-se do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais. Por fim, Bobbio ainda apresenta a ideia de sistema de compatibilidade das normas, ao defender que existe um relacionamento de compatibilidade entre as normas, implicando na exclusão das incompatibilidades.[5]­[6]

 Claus Canaris, ao identificar o sistema como uma ordem axiológica ou teleológica, aponta como características essenciais de seu conceito a idéia de adequação valorativa e de unidade interior do Direito. Assevera o mencionado doutrinador que a Ciência Jurídica é um sistema aberto, em face da mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais que a compõe e da incompletude do conhecimento científico, bem como indubitavelmente móvel, pois “está, legislativamente, entre a formação de previsões normativas rígidas, por um lado, e a clausura geral, por outro.”[7] Assim, quando se afirma, neste trabalho, que o ordenamento jurídico brasileiro é um sistema, defende-se a tese de Claus de que o Direito é o resultado, não apenas do preenchimento das lacunas existentes, mas principalmente da superação das contradições valorativas que se apresentam dentro de uma concepção de abertura e mobilidade.


3 DAS ANTINOMIAS

Diante da concepção do ordenamento jurídico como um sistema axiológico ou teleológico, cuja adequação valorativa e unidade interior se apresentam como características essenciais, a manutenção de sua coerência, com a superação das incoerências, é medida que se impõe ao intérprete jurídico. Tércio Sampaio Ferraz Jr assim conceitua o que se deve compreender por antinomias no âmbito do Direito:

Podemos definir, portanto, antinomia jurídica  como  a  oposição  que  ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de  autoridades  competentes  num mesmo  âmbito  normativo,  que  colocam  o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir­lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado.[8]

Assevera Maria Helena Diniz que a existência de uma antinomia jurídica requer a indispensável presença de cinco requisitos, quais sejam: a) ambas as normas devem ser jurídicas; b) ambas devem ser vigentes e pertencentes a um mesmo ordenamento; c) elas devem ser emanadas de autoridades competentes, bem como prescreverem ordens ao mesmo sujeito; d) as duas devem ter operadores opostos (enquanto uma permite, a outra proíbe), sendo os seus conteúdos (atos e omissões) a negação interna um do outro; por fim e) o sujeito a quem as normas se dirigem deve necessariamente tomar uma posição entre elas.[9]

É de se observar, portanto, que a concepção de antinomia aqui abordada não abrange toda e qualquer forma de contradição normativa, limitando-se o objeto desse trabalho ao estudo das contradições existentes dentro de um mesmo sistema normativo, em que o intérprete se vê obrigado a aferir um sentido coerente entre textos contendo disposições conflitantes. Assim, na ausência de qualquer dos critérios acima mencionado, não há que se falar em conflito normativo para as finalidades deste trabalho.

3.1 Das classificações

Haja vista a diversidade de situações em que as antinomias jurídicas podem aparecer para o operador do direito, a doutrina as tem classificado sob os mais diversos critérios. Explicando as inconsistências das normas, Alf Ross as classifica, quanto à extensão das contradições, em total-total, total-parcial e parcial-parcial[10].

A primeira destas, também chamada de inconsistência absoluta, ocorre quando não há qualquer circunstância possível em que ambas as normas possam sem aplicadas sem que entrem em conflito. Mesmo sendo raras de acontecer, Ross utiliza a Constituição Dinamarquesa de 1920 como exemplo, afirmando que essa Carta previa em determinado artigo que seriam no máximo 78 (setenta e oito) os membros da Primeira Câmara, mas as disposições seguintes do mesmo dispositivo, ao estabelecer as regras de eleição e distribuição,  indicava número diverso[11].

O segundo exemplo, compreendido como a inconsistência entre a regra geral e a particular, ocorre quando uma das normas não pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra, enquanto esta possui um campo adicional de aplicação livre de inconsistência. Apesar de a norma geral, por vezes, conter expressa abertura para a positivação de exceções, esta antinomia é de certa forma problemática comum do intérprete jurídico, haja vista ser incontestável a regra específica limitar de alguma forma a geral.

É a sobreposição de regras, como é conhecida esta última classificação de antinomia, que gera os problemas de interpretação de maior complexidade, pois não há como solucioná-la através da interpretação lingüística ou mesmo da construção lógica aferível, devendo a decisão pautar-se em dados alheios ao texto. Lembra Ross que o art.53 da Carta das Nações Unidas determina que não se tomará nenhuma medida de força dentro dos tratados ou pelos organismos regionais, enquanto que o art.51 do mesmo diploma prevê o direito de autodefesa individual ou coletiva em caso de ataque armado. No caso concreto, não há como se olvidar que a solução dessa problemática dependerá de informações relativas às circunstâncias que envolvem o caso.[12]

A classificação das antinomias pode ocorrer também pelo âmbito de sua atuação, quando se apresenta ao operador jurídico uma inconsistência envolvendo normas de direito interno, entre normas de direito internacional ou mesmo entre uma norma do direito pátrio em contraposição com a do direito alienígena. Quanto ao conteúdo, as antinomias são também classificadas na doutrina em próprias, se a inconsistência referir-se a critérios formais, e impróprias, se a inconsistência ocorrer em virtude do conteúdo material nelas composto[13].

A separação das antinomias em reais e aparentes indubitavelmente é a classificação que mais possui divergência entre os estudiosos do tema. Para Tércio Sampaio Ferras Jr.,

A distinção entre antinomias reais e aparentes, fundada  na existência  ou não de critérios normativos positivos para sua solução, pode e deve, pois, ser substituída por outra  em  que  antinomia  real  é  definida  como  aquela  em que a terceira condição é preenchida, ou seja, a posição do sujeito é insustentável  porque  não  há  critérios  para sua solução,  ou  porque  entre  os  critérios  existentes há conflito, e é  aparente em caso contrário. [...] O fato, porém, de que essas antinomias ditas reais sejam solúveis dessa forma não exclui a antinomia, mesmo porque qualquer das soluções, ao nível da decisão judiciária, pode suprimi-la no caso concreto, mas não suprime sua possibilidade no todo do ordenamento, inclusive no caso de edição de nova norma que pode, por pressuposição, eliminar uma antinomia e, ao mesmo tempo, dar origem a outras. O reconhecimento de que há antinomias reais indica, por fim, que  o  direito  não  tem  o  caráter  de sistema  lógico­matemático,  pois  sistema pressupõe consistência, o que a presença da antinomia real exclui.[14]

 Há doutrinadores que defendem as antinomias reais como insolúveis, no sentido de que “o intérprete é abandonado a si mesmo ou pela falta de um critério ou por conflito entre os critérios dados”[15]. Por sua vez, há quem defenda que o operador jurídico não possui qualquer liberdade de escolha, estando de uma forma ou de outra vinculado ao princípio do balanceamento para solucionar as inconsistências ditas reais.[16] Todavia, quando se tenta solucioná-las dentro do próprio texto Constitucional, a temática indubitavelmente exige ainda mais do intérprete.

3.2 Dos critérios de solução

Visando superar as referidas antinomias, Bobbio apresenta três critérios de solução: com base no critério cronológico (lex posterior derogat priori), havendo incompatibilidade entre duas normas a mais recente delas deve prevalecer; com base no critério hierárquico (lex superior derogat inferiori), a norma com fonte de produção jurídica superior deve pravalecer; e com base no critério da especialidade (lex specialis derogat generali), a norma mais específica afasta a aplicação da mais genérica.[17] Os referidos critérios são de tamanha importância que encontram-se positivados no ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente no art.2º do Decreto-Lei n.º4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro).

Ocorre que não são poucos os casos em que os referidos critérios de solução mostram-se insuficientes para solucionar as antinomias enfrentadas pelo operador do direito, as quais podem se apresentar dentro dessas quatro possibilidades: a) conflito entre uma norma hierarquicamente superior geral com uma hierarquicamente inferior específica; b) incompatibilidade entre uma norma hierarquicamente superior e antiga com outra inferior e contemporânea; c) colisão entre uma norma específica antiga com uma geral contemporânea; e d) contradição existentes entre normas contemporâneas, de mesmo nível e hierarquia. Esses são o que a doutrina denomina de antinomias de segundo grau.

É de se observar que a doutrina clássica não estabeleceu um “quarto” critério para a solução das referidas situações, limitando-se alguns a atribuir ao intérprete a liberdade de escolha entre as soluções possíveis. O supramencionado jurista italiano chega a sugerir uma regra deduzida da própria forma das normas como critério de solução, ao aferir força diversa entre as normas imperativas, permissivas e proibitivas, mas logo reconhece que este não possui a mesma legitimidade dos anteriores[18].

A concepção de Direito como um sistema normativo ordenado, como o brasileiro, além de não permitir a presença de conflitos insolucionáveis, igualmente exige que o magistrado retire sua legitimidade material da própria aplicação dos valores democraticamente positivados, razão pela qual não se pode aceitar a tese de que o Poder Judiciário possua plena liberdade de escolha, caso o Legislativo produza textos contraditórios.


4 A INSUFICIÊNCIA DOS CRITÉRIOS CLÁSSICOS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Fazendo uma análise dos critérios clássicos de solução no âmbito da nova hermenêutica constitucional, Luis Roberto Barroso assim conclui:

Em primeiro lugar, e acima de tudo, porque inexiste hierarquia entre normas constitucionais. Embora se possa cogitar de certa hierarquia axiológica, tendo em vista determinados valores que seriam, em tese, mais elevados – como a dignidade da pessoa humana ou o direito à vida – a Constituição contém previsões de privação da liberdade (art.5º, XLVI, a) e até de pena de morte (art.5º, XLVII, a). Não é possível, no entanto, afirmar a inconstitucionalidade dessas disposições, frutos da mesma vontade constituinte originária. Por essa razão, uma norma constitucional não pode ser inconstitucional em face de outra.

O critério cronológico é de valia apenas parcial. É que, naturalmente, as normas integrantes da Constituição originária são todas promulgadas na mesma data. Logo, em relação a elas, o parâmetro temporal é ineficaz. Restam apenas as hipóteses em que emendas constitucionais revoguem dispositivos suscetíveis de ser reformados, por não estarem protegidos por cláusula pétrea. Também o critério da especialização será insuficiente para resolver a maior parte dos conflitos porque, de ordinário, normas constitucionais contêm proposições gerais, e não regras específicas[19].

Primeiramente, apesar de os critérios de solução clássicos serem indubitavelmente insuficientes para solucionar todas as antinomias existentes em um sistema normativo complexo como o brasileiro, é preciso aqui ressaltar que é possível sim se fazer uso do critério da hierarquia perante normas constitucionais, seja para diferenciá-las quanto ao seu plano formal ou mesmo material.

Consoante explana Virgílio Afonso da Silva, se a concepção de superioridade da Carta Magna é oriunda da dificuldade de alteração de seu texto quando comparado à lei ordinária, então a própria existência das cláusulas pétreas são suficientes para comprovar que existem normas constitucionais formalmente superiores. Acrescente-se que aceitar esta tese não importa no acolhimento da idéia de normas constitucionais inconstitucionais. Como todos os textos constitucionais originários retiraram seu fundamento de validade do mesmo poder constituinte, não há que se falar em norma constitucional “nascida” inconstitucional, o que não impede o seu juízo superveniente, durante o processo de mudança. [20]

Ademais, apesar de a proposição de superioridade material de determinas normas constitucionais sobre outras possa trazer uma discussão político-ideológica de difícil consenso quando comparados abstratamente, não há como se olvidar que as disposições constante no art.242, §2º da CF, a qual prevê a manutenção do Colégio Pedro II na órbita federal, e no caput do art.5º do mesmo diploma, o qual prevê o princípio da igualdade, possuem o mesmo nível de importância[21].

Diante do referido panorama, surge a técnica do balanceamento (balancing), contrapeso ou ponderação de interesses, bem e valores constitucionalmente protegidos, que visa não apenas apresentar pesos diversos entre os valores constitucionalmente previstos, mas apresentar soluções de harmonização entre eles, de forma a não importar na completa invalidação de um em detrimento do outro. A doutrina costuma dividi-lo em dois diferentes tipos:

Destarte, por um lado, o balancing pode ser enxergado de forma ampla, quando se dá o emprego dos valores de um modo genérico e abstrato, sendo uma espécie de auto-limitação para o julgador, o que é denominado pelo direito americano de self-restraint. Parte-se do pressuposto de que a formulação de normas derivadas da Constituição não podem vir a congregar fato absoluto, uma vez que dependem do contexto, o que pede uma certa maleabilidade, posto que há de ser considerado que a essência dos princípios da constituição variará em conformidade com as distintas óticas sociais.

Douta faceta, pode-se admitir um aspecto estrito ao balancing, quando o mesmo se referir a cada caso concreto, com a devida observância do que está para ser mensurado. Em tal situação, tão-somente a realidade sobre a qual tem atuação o ato jurídico ou a norma pode fornecer o peso específico de cada um dos interesses, daí a importância da análise da realidade posta, com o que se pode estabelecer o contrapeso pertinente.[22]

O princípio da concordância prática igualmente ganha destaque neste contexto ao determinar que o intérprete apresente uma solução de harmonização entre os valores de forma que estes sejam ao máximo protegidos, haja vista os bens tutelados pela Carta Magna possuírem indubitável diferencial de importância, tornando o sacrifício de qualquer um deles algo indesejado.

Além do balanceamento e da concordância prática, é possível se aferir a existência de três postulados específicos, os quais, ao contrário dos que foram acima mencionados, dependem de determinados elementos e são pautados em certos critérios: o princípio da igualdade “somente é aplicável em situações nas quais haja o relacionamento entre dois ou mais sujeitos em função de um critério discriminador que serve a alguma finalidade”; o princípio da razoabilidade “somente é aplicável em situações em que se manifeste um conflito entre o geral e o individual, entre a norma e a realidade por ela regulada e entre um critério e uma medida”; e o princípio da proporcionalidade “somente é aplicável nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim”[23].

Apesar de a doutrina classificá-los separadamente, existem entre eles um estreita ligação. Para Alexy, o princípio do balanceamento é parte integrante de um outro princípio mais abrangente, qual seja o princípio da proporcionalidade, o qual pode ser dividido em três sub-princípios: a adequação (Geeignetheit), a exigibilidade (Erforderlichkeit) e a proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismäßigkeit i. e. S.).[24] Por sua vez, o princípio da concordância prática igualmente possui estreita ligação com a ideia de proporcionalidade, apesar de um não implicar necessariamente no outro.[25]

O dever de coerência, intrínseco ao princípio da unidade da Carta Magna, obriga o intérprete, diante, não só das antinomias jurídicas no texto constitucional, mas também das hierarquias, formal e materialmente existentes entre seus dispositivos, a fazer uso de outras técnica de solução de conflitos, haja vista a insuficiência dos critérios clássicos previstos. Ainda que seja identificado como um postulado condicionável, o princípio da proporcionalidade ganha destaque na estruturação do ordenamento, chegando Willis Santiago Lima Guerra Filho a chamá-lo de “princípio dos princípios”, tendo em vista a sua importância[26].

Além de preencher as exigências estabelecidas pela nova hermenêutica constitucional, o princípio da proporcionalidade possui subcritérios[27] capazes de diminuir a subjetividade que paira sobre as propostas de solução das antinomias existentes entre normas constitucionais. Todavia, é inegável que o operador do Direito possui um papel crucial na harmonização do sistema normativo, principalmente quando as colisões de valores constitucionalmente tutelados são aferíveis no caso concreto.


5 CONCLUSÃO

Dentro desse relacionamento existente entre as próprias normas jurídicas, imperioso se faz ressaltar a importante tarefa que é imputada ao operador quanto ao dever manter a coerência do ordenamento jurídico como um todo, tanto à nível horizontal (relação entre normas de mesma hierarquia) como vertical (relação entre normas de hierarquia diversa). A nova hermenêutica constitucional veio reforçar ainda mais essa imprescindibilidade de harmonização das partes que compõem o sistema normativo, ao prever que a Constituição seja interpretada como uma unidade, bem como utilizada como ponto de concentração do ordenamento. 

Os critérios clássicos de solução de conflito normativo, apesar de serem de grande importância para a solução das antinomias de primeiro grau, pouco podem servir de auxílio para o interprete quando este se vê obrigado a decidir entre antinomias reais. Acrescente-se ainda que, em face da inexistência de consenso quanto a hierarquização das normas constitucionais, a tarefa do operador jurídico torna-se ainda mais problemática.

Dentro desse panorama, o princípio da proporcionalidade surge como um postulado estruturante de nosso sistema normativo, em perfeita harmonia com as exigências de nossa nova hermenêutica constitucional. Apesar de não ser tão objetivo quanto os critérios clássicos apresentados pela doutrina (cronologia, hierarquia e especialidade), esse postulado tem sua subjetividade diminuída quanto analisado dentre os seus subcritérios (adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito), mostrado-se como uma ferramenta de suma importância para que o operador do direito seja capaz de aferir a solução mais justa no caso concreto.


REFERÊNCIAS

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CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3 ed. Tradução A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

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FURTADO, Emmanuel Teófilo. CAMPOS, Juliana Cristiane Diniz. As antinomias e a Constituição. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI/UFBA, Salvador,2008 .Anais do [Recurso eletrônico] Florianópolis, Fundação Boiteux, 2008.

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ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. São Paulo: EDIPRO, 2000.

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: Interpretação Constitucional. Org. Virgílio Afonso da Silva. 1 ed. São Paulo: 2010.


Notas

[1] Acrescente-se, por oportuno, que a proibição da negativa de resposta pelo Poder Judiciário ao pedido de solução de litígio não é exclusiva do Direito brasileiro, prevendo a Constituição da República Portuguesa, em seu artigo 20, 1, que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos”.

[2] “Apesar de o juiz ter uma legitimidade formal, derivada da constituição, deve buscar uma legitimação material. Essa legitimidade material será tanto mais alcançada quanto houver uma aproximação do Judiciário do processo democrático. O processo democrático, extremamente igualitário, libertário, plural etc, em muitos aspectos, requer exclusividade deliberativa, em alguns assuntos, por representantes eleitos pelo povo. Assim, quando o Judiciário for exercer sua atividade, de modo a percorrer áreas limítrofes à esfera política deve redobrar seus limites, motivações e sempre demonstrar a dimensão/ enforque democrático de sua decisão. A atividade política do Legislativo e do Executivo é bem maior que a do Judiciário e, de certo modo, o Legislativo é o espelho de uma sociedade, havendo, sim, mais legitimidade em suas decisões”. (ALBUQUERQUE, Felipe Braga. DIREITO E POLÍTICA: Pressupostos para a análise de questões políticas pelo judiciário à luz do princípio democrático. Fortaleza: 2011, p.117. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2011.)

[3] HANS, Kelsen. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.137.

[4] Ibidem, p.137-138.

[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p.75-81.

[6] Para Bobbio, o Direito é um sistema de compatibilidade das normas, o qual prevê a necessidade de superação das antinomias, por ventura, existentes. Justifica-se assim a adoção de tal comceituação pelo fato de que, enquanto "num sistema dedutivo, se aparecer uma contradição, todo o sistema ruirá", a adoção do modelo ora pretendido "tem por conseqüência, em caso de incompatibilidade de suas normas, não mais a queda de todo o sistema, mas somente de uma das duas normas ou no máximo das duas". (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p.80.)

[7] “Uma vez determinado o conceito de sistema como referência às idéias de adequação valorativa e unidade interior do Direito, deve-se definir o sistema como <<ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais>>. Também é imaginável uma correspondente ordem de valores, de conceitos teleológicos ou de institutos jurídicos. Esse sistema não é fechado, mas antes aberto. Isto vale tanto para o sistema de proposições doutrinárias ou <<sistema científico>>, como para o próprio sistema da ordem jurídica, o <<sistema objetivo>>. A propósito do primeiro, a abertura significa a incompletude do conhecimento jurídico, e a propósito do último, a mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais. [...] Da problemática da <<abertura>> do sistema deve-se distinguir a sua <<mobilidade>>. [...] O Direito positivo é dominado, fundamentalmente, não por um sistema móvel, mas antes por um imóvel. No entanto, ele compreende partes móveis. O <<sistema móvel>> está, legislativamente entre a formação de previsões normativas rígidas, por um lado, e a clausura geral, por outro. Ele permite confrontar de modo particularmente feliz, a polaridade entre os <<mais altos valores do Direito>> em especial a <<tendência generalizadora>> da justiça e a <<individualizadora>> e constitui, assim, um enriquecimento valioso do instrumento legislativo”. (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3 ed. Tradução A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p.280-282.)

[8] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.208.

[9] DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 1987, p.25-27.

[10] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. São Paulo: EDIPRO, 2000, p.158.

[11] Ibidem, p.159.

[12] Ibidem, p.160.

[13] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.200-2011.

[14] Ibidem, p. 208-209.

[15] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p.92.

[16] FURTADO, Emmanuel Teófilo. CAMPOS, Juliana Cristiane Diniz. As antinomias e a Constituição. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI/UFBA, Salvador, 2008. Anais do [Recurso eletrônico] Florianópolis, Fundação Boiteux, 2008, p.3435.

[17] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p.92-93.

[18] Ibidem, p.100.

[19] BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p.303.

[20] SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: Interpretação Constitucional. Org. Virgílio Afonso da Silva. 1 ed. São Paulo: 2010, p.122-123.

[21] “Além disso – e talvez ainda mais importante -, caso se levasse realmente a sério a tese de que não pode haver diferença de importância entre as normas constitucionais, não haveria como fundamentar a prevalência de uma norma sobre outra nos casos de colisão normativa. Se uma norma prevalece sobre outra, só pode ser porque ela tenha sido considerada mais importante, ainda que somente para aquele caso concreto. Dessa forma, para aqueles que sustentam não poder haver hierarquia material entre as normas constitucionais parece haver apenas uma saída: a rejeição do sopesamento como método de interpretação e aplicação do direito e a conseqüente rejeição da possibilidade de um direito prevalecer sobre outro em alguns casos.” (SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: Interpretação Constitucional. Org. Virgílio Afonso da Silva. 1 ed. São Paulo: 2010, p.125.)

[22] FURTADO, Emmanuel Teófilo. CAMPOS, Juliana Cristiane Diniz. As antinomias e a Constituição. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI/UFBA, Salvador,2008 .Anais do [Recurso eletrônico] Florianópolis, Fundação Boiteux, 2008, p.3438.

[23] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4 ed. São Paulo, 2005, p.94.

[24] “In German constitutional law, balancing is one part of what is required by a more comprehensive principle. This more comprehensive principle is the principle of proportionality (Verhältnismäßigkeitsgrundsatz). The principle of proportionality consists of three sub-principles: the principles of suitability, of necessity, and of proportionality in the narrow sense. All three principles express the idea of optimisation. Constitutional rights as principles are optimisation requirements. As optimisation requirements, principles are norms requiring that something be realized to the greatest extent possible, given the legal and factual possibilities.” (ALEXY, Robert. Constitucional rights, balancing and rationality. Ratio Juris, 2003, v. 16. n. 2, p.135.)

[25] SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: Interpretação Constitucional. Org. Virgílio Afonso da Silva. 1 ed. São Paulo: 2010, p.127-128.

[26] “Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, se preconiza o recurso a um ‘princípio dos princípios’, o princípio da proporcionalidade”. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Da interpretação especificamente constitucional. Brasília, Revista da Informação Legislativa, n.º32,1995, p.257).

[27] Em breves palavras, “pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado; exigível, por causar o menor prejuízo possível; e, finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superem as desvantagens”. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da Proporcionalidade e devido processo legal. In: Interpretação Constitucional. Org. Virgílio Afonso da Silva. 1 ed. São Paulo: 2010, p.162.)


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VASCONCELOS, Fernanda Sousa; CHAVES, Raphael Ayres de Moura. A superação das antinomias como um dever de coerência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4626, 1 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46374. Acesso em: 19 abr. 2024.