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Sobre o tempo de tolerância

Sobre o tempo de tolerância

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1. Histórico

A alteração promovida pela Lei 10.243/2001 que acrescentou o § 1º ao artigo 58 da CLT apresenta mais problemas do que, efetivamente, soluções para a questão das relações de trabalho. Vamos tratar de detalhar melhor esta afirmativa.

A alteração legislativa modificou a CLT que agora vem redigida como segue:

Art. 58. A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de oito horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.

§ 1º Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 10.243, de 19.06.2001, DOU 20.06.2001)

Até a publicação desta Lei, havia alguma discussão sobre o cabimento ou não dos minutos de tolerância. O TST acabou por firmar posição sobre o assunto com a Orientação Jurisprudencial 23 da SDI-1. [1] No caso, a fixação dos limites de tolerância, por parte do TST, ensejava a prevalência de determinada hermenêutica em detrimento da prescrição legal.

A hermenêutica adotada pelo TST decorre, em parte, da influência da legislação espanhola que também não computa, para efeito de jornada, o tempo dedicado aos preparativos para o trabalho. Após a publicação da Lei 10.243, já não sobra espaço para a OJ 23. Agora, os limites de tolerância estão insertos no corpo da lei federal do trabalho.


2. Os objetivos perseguidos

Afinal de contas, qual o objetivo pretendido pela alteração legislativa que ora comentamos?

Certamente, acabar com a discussão em torno do tempo de preparo para as atividades laborais. Ou seja, entende-se que o tempo utilizado para a higiene pessoal, troca de roupa, tempo de espera para a batida do ponto e outros afazeres pessoais não são tempo de trabalho estrito senso.

Em tese, tal interpretação do Direito, cristalizada no texto da lei, deveria acabar com a discussão em torno do assunto. Mas, o término da discussão somente pode ocorrer se os pressupostos de legem locuta, causa finita. [2]

Como não entendo que tais pressupostos devam ser admitidos cegamente por qualquer operador sério do Direito, é bom questionar a significância da alteração legislativa.


3. Os limites de tolerância

Os limites de tolerância podem ser analisados sob diferentes óticas. A positividade em relação à alteração legislativa pode ser encontrada nos textos que justificaram a OJ 23 e na discussão do legislativo em torno do assunto. Deixamos de lado os aspectos positivos porque nosso interesse é diverso.

Queremos ressaltar a impropriedade e insignificância das alterações promovidas pela Lei 10.243. Passado algum tempo desde a edição legislativa, já é possível analisar as alterações sob a ótica dos resultados.

3.1 – Irrelevância econômica

Para exemplificar o problema, vamos admitir uma remuneração salarial mensal de R$ 3.000,00 (aproximadamente US$ 1.000). Admitamos, também, que o divisor mensal seja 220 e o adicional de horas extras, 50%.

Se tomamos 25 dias úteis no mês, temos que os limites de tolerância podem conceder, no máximo, um abono de 250 minutos mensais. Isso equivale a pouco mais de 4,16 horas extras. Podemos admitir 4,5 horas extras mensais para efeito de demonstrativo de cálculo. Como cada hora extra equivale R$ 13,63, temos que as horas extras mensais implicam remuneração adicional próxima de de R$ 90,00.

Considerando os reflexos em 13º salário e férias, temos que os R$ 90,00 perfazem, no máximo, R$ 100,00 (cem reais). [3] Ou seja, para um cidadão que percebe R$ 3.000,00 (três mil reais) mensais, a alteração da legislação celetária suprimiu-lhe a possibilidade de auferir R$ 100,00 com os poucos minutos que antecedem a jornada regular de trabalho.

Mas, se adequamos a remuneração a médias mais adequadas à realidade brasileira e tomamos um salário de R$ 300,00 (trezentos reais) mensais, temos que os minutos de tolerância podem retirar do trabalhador que já ganha um salário miserável, até R$ 10,00 (dez reais) mensais.

Então, alguém poderia objetar que o valor é irrisório e que, de fato, não prejudica o trabalhador. Mas, respondo que, de fato, o valor é irrisório. Então, por que gasta-se tempo e dinheiro (muito dinheiro, saliente-se) em discutir e aprovar uma legislação que se preocupa com o irrisório? Acaso não terá, o Congresso Nacional, coisas mais importantes para fazer do que ficar ocupado com ninharias?

Ocorre, todavia, que as ninharias das quais ora falamos, são recursos dos quais dependem os trabalhadores para sobreviver. Os dez reais podem não fazer falta para os senhores Deputados e Senadores da República. Mas, com certeza, fazem falta para os trabalhadores.

A lógica legislativa, portanto, está invertida; premia-se a irrelevância.

3.2 - Abandono da tradição jurídica

Ademais, outro ponto importante que deve ser tomado em alta consideração é o abandono da tradição jurídica nacional. Afinal de contas, como se mede a jornada de trabalho? Seria esta mensurada pelo tempo de trabalho efetivo ou, não contemplaria, também, o tempo à disposição do empregador?

Se o trabalhador deve iniciar a jornada às 8:00h da manhã, o fato de estar presente no local de trabalho às 7:55h não é motivo ensejador de remuneração? A contagem do tempo não deve se dar desde o momento em que o trabalhador adentrou o espaço de trabalho da empresa e picou o seu cartão ponto?

Não importa, dentro da tradição jurídica nacional, se o trabalho efetivo já começou a ser realizado. Remunera-se o tempo à disposição do trabalhador. Então, o tempo de tolerância é o problema. Por qual razão este tempo de tolerância está isento de remuneração? Qual é o seu fundamento lógico?

A pretensão da isenção remuneratória em torno do tempo de tolerância para o trabalho viola a idéia de que o trabalhador está no local para o trabalho e que todo o tempo em que persiste esta situação deve ser remunerado.

De outro lado, a tolerância, no caso da funesta legislação aprovada, refere-se à tolerância que deve o empregado conceder ao seu empregador. Não se trata de tolerância do empregador, mas tolerância do empregado. É este quem deve ser tolerante com o seu patrão e deixar de contabilizar o tempo em que está na empresa preparando-se para o trabalho.

Este tempo é dedicado para o trabalho e, pelo trabalho deve ser remunerado. Esta é a matriz tradicional do Direito trabalhista brasileiro. Neste caso específico, a mistura de conceitos jurídicos diversos põe em risco a sobriedade dos conceitos sobre os quais repouso o Direito trabalhista.

3.3 – Violação a preceito constitucional

Mas, há outro elemento que também precisa ser observado. Refere-se à intrínseca inconstitucionalidade da Lei 10.243. De fato, a constituição federal prevê que a jornada máxima de trabalho diária é de 8 horas diárias.

Temos, assim, o caso de uma lei federal infraconstitucional que permite o labor diário além do limite constitucional máximo sem que haja qualquer conseqüência.

A alegação que poderia ser feita, em contrapartida, é que a CLT excluiu os limites de tolerância do cômputo da jornada. Por isso, para todos os efeitos, a jornada máxima diária não estaria sendo violada.

O uso de tais artifícios jurídicos pode ser interessante para os operadores do Direito. Certamente não é interessante para a população que não pode ser coagida a compreender minúcias e firúlas da ciência jurídica. O fato é que, a legislação celetária admite labor que ultrapassa o limite máximo fixado constitucionalmente sem que as conseqüências previstas na constituição (pagamento de sobrejornada) sejam aplicadas. [4]

3.4 – Rigidez na jornada contratual

Mas, engana-se quem pensa ter sido a Lei 10.243 editada para atender apenas interesses patronais. Na verdade, é até difícil de entender quais os interesses atendidos pela alteração celetária.

De fato, quando a legislação fixa os limites de tolerãncia, presume que a jornada normal de trabalho esteja sempre bem delimitada. Mas, a realidade fática mostra que os limites da jornada normal de trabalho nem sempre estão bem delimitados.

O problema é que o texto legal estabeleceu contra-mão em relação ao movimento pretendido pelo próprio empresariado. Os minutos de tolerância somente fazem sentido quando são contrapostos a um limite que determina o momento em que a jornada tem início e quando a jornada tem fim. Em assim sendo, é preciso que a jornada esteja perfeitamente determinada.

Se o horário normal de trabalho contiver elementos de variação (jornada flexível), já não é possível aplicar o tempo de tolerância. Isto porque o tempo de tolerância estabelece-se em relação a algo que é definido como jornada horária normal de trabalho. Não se trata, pois, de horas extras excedentes a determinado limite temporal, mas, de elucubração de outros critérios para o cômputo da jornada de trabalho e, em decorrência, do que seja a hora extra.

É importante compreender bem o argumento. Os limites de tolerância não se baseiam no tempo de trabalho, baseiam-se nos limites da jornada normal. Ou seja, a tolerância é exercida para o labor que deveria iniciar-se, por exemplo, às 8:00h da manhã. A tolerância requer que o início do labor esteja definido, sem o que, nem existe possibilidade de haver tolerância. Ou seja, o cômputo das horas extras decorre de previsão temporal anterior e não da jornada efetiva de trabalho.

A contra-mão legislativa decorre da forte tendência à flexibilização do trabalho moderno. Observe que as preocupações empresariais do capitalismo moderno já nem estão vinculadas à manutenção do rigorismo do relógio, mas, muito antes, à crescente produtividade sobre o trabalho. Produtividade do trabalho neste contexto, indica coisa bem diversa da rigidez de horário.

Disso já se pode concluir que a legislação alterada em 2001 já nasce anacrônica. Essa situação deve preocupar o operador do Direito porque a anacronia legislativa é recorrente. Pode ser sentida em muitos momentos, a exemplo da aprovação do Novo Código Civil que conseguiu ser, em muitos aspectos, próprio para a Idade da Pedra. [5]

3.5 – Premiação do desvalor

Além da mais completa falta de bom-senso, a alteração celetária acabou premiando o desvalor ao regulamentar a mesquinharia. Ora, se o empregado chega 10 minutos antes e sai 5 minutos depois, deve ser recompensado pela paga da sobrejornada que remunera, com o adicional de horas extras, o labor efetuado além daquilo que é legítimo esperar por parte do empregador em relaçao ao empregado.

Aliás, a coisa mais importante para a empresa produtiva é a pontualidade. Aquele que chega antes do horário previsto para o labor diário deve ter reconhecido e valorizado o seu esforço pessoal. A desconsideração dos minutos que antecedem o horário contratual de trabalho significa desconsiderar uma parte do tempo que pertence ao empregado. É, em todo caso, uma disciplina que não atende a modernidade e os mais altos indicativos de valorização do trabalho.


CONCLUSÃO

Do todo exposto, é possível concluir que a edição da Lei 10.243/01 é um exemplo típico de como as coisas não devem ser feitas. A coisa mais estapafúrdia de toda esta história é que o tempo de tolerância é dado pelo empregado ao seu empregador. [6] É o empregador quem recebe tolerância no cômputo da jornada; é o empregador quem pode desconsiderar tal tempo do labor do seu empregado por benece da legislação que veio em seu socorro.

É muito melhor, por uma questão de dignidade e previdência para o empregador, pagar o tempo de labor, minuto a minuto, desconsiderando totalmente a previsão celetária no particular. Em nada será prejudicado e, pelo contrário, pode contar com a oportuna ajudazinha do legislativo e do judiciário para descontar a tolerância em caso de ação trabalhista.


NOTAS

01. Cartão de Ponto. Registro. Não é Devido o Pagamento de Horas Extras Relativamente aos Dias em que o Excesso de Jornada Não Ultrapassa de Cinco Minutos Antes e/ou Após a Duração Normal do Trabalho. (Se Ultrapassado o Referido Limite, Como Extra Será Considerada a Totalidade do Tempo que Exceder a Jornada Normal). OJ 23 SDI-1 do TST.

02. Em paráfrase ao bordão Roma locuta, causa finita. A idéia de que a lei seja o centro do Direito depende, em grande parte, dos esforços de Hans KELSEN e a idéia de um Direito Puro. Não vamos entrar nesta discussão. Apenas vamos indicar que, de nossa parte, é muito menos danoso pensar, sempre, num Direito Impuro.

03. Não estamos contando, aqui, os custos judiciais sobre este valor (juros de mora, honorários de advogado, etc). Os custos que apresentamos são os custos regulares da folha.

04. Lamentável nesta ótica é que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, não apenas neste caso mas em diversos outros, acabou por atender outros interesses além da defesa das prerrogativas da Constituição.

05. Miguel Reale tentou, bravamente, defender o Novo Código Civil, mesmo porque, participou das discussões e de sua elaboração. Mas, não faltam vozes críticas às quais é preciso dar razão. Cf. Antônio Junqueira de AZEVEDO, Retrocesso no Direito de Família, In: Instituto dos Magistrados do Brasil, nº 15 http://www.emap.com.br/doutrina_Art.Diversos33.htm [internet]; Jonas Figueirêdo ALVES, A Reforma do Código Civil: apreciação das Emendas do Senado Federal ao Projeto, In: Jus Navigandi, n. 37. [Internet]. O caso do Direito de Família é um exemplo bem ilustrativo da anacronia legislativa.

06. A Agência Câmara (In: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias.asp?pk=23081) entende que "a preocupação da Câmara com os trabalhadores nos últimos dois anos pode ser atestada pelas muitas propostas a respeito que foram aprovadas pela Casa e passaram a integrar o ordenamento jurídico brasileiro." A respeito das alterações da Lei 10.243, chega a dizer que a legislação aprovada "proíbe o desconto do ponto em caso de atraso de até cinco minutos", coisa que dista do texto legal aprovado.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRUSE, Marcos. Sobre o tempo de tolerância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 195, 17 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4755. Acesso em: 16 abr. 2024.