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Responsabilidade civil das empresas de ônibus em caso de assaltos

Responsabilidade civil das empresas de ônibus em caso de assaltos

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Introdução

Um dos mais crescentes problemas sociais nos grandes centros urbanos brasileiros é, sem dúvida nenhuma, a Segurança Pública. A Constituição da República Federativa do Brasil nos faz lembrar em seu artigo 144: "a Segurança Publica, dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio..." Isto nos parece bastante claro posto, principalmente, que as entidades policiais responsáveis por manter esta segurança, são todas subordinadas ao Estado. Há se lembrar, no entanto, que ao ressaltar a Segurança Pública, como direito e responsabilidade de todos, a Carta Magna nos remeteu a uma simplória indagação. Até onde, deve, somente o Estado, ser responsabilizado pelas lesões a este princípio?

O fato é que alguns estabelecimentos como, condomínios fechados, bancos, lojas, estão constantemente preocupados com a segurança de seus moradores e clientes. Parece-nos razoável que estes estabelecimentos tenham que cumprir uma norma que também lhes são inerentes, a responsabilidade pela Segurança Pública. Enquanto estes estabelecimentos se preocupam com isto, não parece preocupar-se as empresas de ônibus, quando algum de seus passageiros são assaltados, por exemplo. Isto se deve, na nossa opinião, por causa das decisões, que até então não condenavam as empresas por tais fatos.

O grande crescimento de assalto dentro de ônibus, no entanto, tem feito alguns Juízes e Desembargadores, pensarem de forma diferente. Outrora, a Jurisprudência, inclinava-se somente de não serem as empresas responsáveis pelos assaltos, alegando ser o fato, ora força maior, ora fato de terceiro estranho ao contrato de transporte. No dia 22 de Outubro de 2003, no entanto, a empresa "Rubanil", que faz transporte coletivo na cidade do Rio de Janeiro foi, finalmente, condenada a pagar indenização a um passageiro assaltado dentro de um de seus ônibus.

Será esta decisão, objeto de nosso estudo.


1. ASSALTO DENTRO DE ÔNIBUS ESTRANHOS AO CONTRATO DE TRANSPORTES.

Em Agosto de 2001, Cledvaldo Jorge Fernandes de Souza era transportado pela linha 350 (Irajá-Passeio) da empresa "Rubanil", no bairro de Manguinhos, situado na cidade do Rio de Janeiro quando, segundo ele, algumas pessoas entraram pela porta traseira do ônibus e, com a conivência do trocador, passaram por baixo da roleta, eximindo-se assim de pagar passagem. Cledvaldo fora assaltado por essas pessoas tendo subtraído de si, todos os documentos, (Cento e cinqüenta reais) R$ 150,00 em espécie e (Cento e sessenta reais) R$ 160,00 em tíquetes alimentação. Esta história seria apenas mais um número nas estatísticas da violência do Rio de Janeiro não fosse, na nossa opinião, a acertada condenação da empresa a pagar indenização a Cledvaldo.

No dia 22 de Outubro de 2003, a 11ª Câmara do Egrégio Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, condenou a empresa "Rubanil" a pagar 100 (Cem) salários mínimos a Cledvaldo Jorge Fernando de Souza pelo fato já narrado anteriormente.

Polêmica a questão, posto que quase todas as decisões até então se inclinavam no sentido de que assaltos dentro de ônibus não eram fatos de terceiro inerentes ao transporte. Isto quer dizer que, quando um fato de terceiro causar prejuízos aos transportados e/ou suas bagagens, este fato de terceiro provocador do dano, deve ter relação com o transporte. Exemplo célebre é o de um automóvel que avança o sinal fechado e colide com um ônibus coletivo, provocando-lhe danos aos passageiros. Neste caso, o próprio Código Civil se direciona no sentido de ser, a empresa de ônibus, obrigada a indenizar, resguardando-a o direito de regresso contra o culpado (art. 735). Já sumulara desta forma o Supremo Tribunal Federal: "a responsabilidade do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva"(Súmula 187 do STF).

Como mencionamos anteriormente, a Jurisprudência não vinha aceitando os assaltos dentro de ônibus, como inerentes ao contrato de transporte.Neste sentido, inclusive, já julgara a 10ª Câmara Cível da cidade de São Paulo. Acidente de Transporte – Indenização – Direito comum – Roubo à mão armada ocorrido no interior de ônibus – Responsabilidade objetiva alegada – Fator excludente de responsabilidade da empresa (2º TACSP – Apelação Cível com Revisão 546 – 760).

O voto contrário na decisão do dia 22 de outubro preocupou-se em fundamentar, com outro argumento. O desembargador Maurílio de Passos da Silva Braga em entrevista concedida ao site do referido tribunal disse que "segurança é um dever do estado e que as empresas de ônibus não podem exercer o poder de polícia". Um ponto importante a que se pode aludir, todavia, é o fato de as empresas de ônibus responsabilizarem seus trocadores, quando a lesão decorrente de assalto recair sobre o patrimônio dela. Se a quantia subtraída for superior à permitida nos regulamentos internos das empresas serão os trocadores obrigados arcar com os eventuais prejuízos. Observa-se aqui, que são usados dois pesos e duas medidas, ou seja, quando a responsabilidade, por roubo a passageiro, vai recair sobre as empresas, alegam tratar de força maior ou de se tratar de fatos estranhos ao contrato de transporte; quando o dano recair sobre o patrimônio da empresa, não restará a seu funcionário funcionários outra possibilidade senão a de arcar com os prejuízos.


2. PROTEÇÃO DA PARTE MAIS FRACA

A decisão da 11ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro se baseou, no entanto, na responsabilidade objetiva constante da lei 8078/90. Segundo o Desembargador Cláudio de Mello Tavares "a indenização por dano moral tem caráter compensatório e punitivo". Não se pretende aqui, proteger um bem juridicamente tutelado, que é, inclusive da essência do Direito Penal, mas, sobretudo, acompanhar uma tendência que tornaria as indenizações mais intimidativas. O projeto de lei 6960/02 em trâmite no congresso contém alterações com estas tendências [2]. Segundo Sílvio de Salvo Venosa, as indenizações têm caráter compensatório somado a um processo punitivo [3]. O ilustre Desembargador afirmou ainda que "atualmente é mais fácil uma pessoa ser assaltada dentro de um ônibus do que ser vítima de um acidente decorrente do próprio transporte e, por isso, as empresas têm que tomar medidas para proteger os cidadãos, que é a parte mais fraca desta relação". Esta declaração do Desembargador nos deixou dois pontos passíveis de reflexão.

Na primeira parte desta afirmação o Desembargador Cláudio Mello Tavares comentou a facilidade que os assaltos acontecem no interior de ônibus. Ao fazer uma comparação com os acidentes inerentes ao transporte, quis o Desembargador, inserir os assaltos como fatos de terceiro desta espécie não nos parece acertada. As decisões até então se fundamentavam, inclusive, contrárias a isto, estando até pacificado que o assalto dentro de ônibus são fato de terceiro estranhos ao transporte. Outros argumentos se direcionavam no sentido de que tais

fatos tratavam-se de força maior. "Transporte Rodoviário – Morte do passageiro decorrente de roubo ocorrido dentro de ônibus – Força maior – Exclusão da responsabilidade do transportador de indenizar – Precedentes – Recurso acolhido – Improcedência do pedido" (STJ-A: Resp. 118.123/SP-4ºT. – Rel. Ministro Salvo de Figueiredo Teixeira – 25/06-98). Faz-se importante lembrar que força maior é aquele fato imprevisível e insuperável contra o qual não se pode fazer nada para evitar. Que o assalto em qualquer lugar que ocorrer deve ser tratado como força maior, parece não haver dúvida. Admitir, entretanto, ser ele um fato contra o qual nada se pode fazer, parece-nos um absurdo. O próprio Código Civil, quando trata dos contratos de transportes é incisivo ao descrever a força maior como causa de exclusão de responsabilidade dos transportadores (ART. 734). O artigo 393, ainda do Código Civil, alude que "não se responde por prejuízos resultantes de força maior, salvo se houver responsabilidade expressa". As decisões buscavam ainda afirmar que a responsabilidade, nestes casos, era subjetiva ou extracontratual, "Aquiliana", ou seja, aquela decorrente de culpa. Para Sílvio de Salvo Venosa, esta afirmação é verdadeira. "Não se pode esperar que os transportadores transformem seus veículos em tanques á prova de bala com seguranças armados [4]". Carlos Roberto Gonçalves prefere afirmar que "o fato de terceiro só exonera o transportador quando efetivamente constitui causa estranha ao transporte". (Sinopses Jurídicas – Direito das Obrigações Tomo I, Editora Saraiva, p. 137). Observa-se, portanto que os dois ilustres juristas posicionam-se contrários à decisão do dia 22 de outubro.


3. OS ASSALTOS E A LEI 8078/90.

Com o advento da lei 8078/90, no entanto, as relações de consumo receberam um enorme enfoque jurídico. Buscou-se proteger o considerado "mais fraco ou hipossuficiente" destas relações, que é o consumidor. Refletindo ainda acerca do que declarou o Desembargador Cláudio de Mello Tavares, que dissera que "se deveria tomar medidas para proteger os cidadãos que é a parte mais fraca nessa relação", não nos restou dúvida de que sua decisão fora arrazoada no Código de Defesa do Consumidor. Preferimos nos direcionar no sentido de que a relação transportador/passageiro é uma relação consumerista. O art. 14 da referida lei alude que:

"o fornecedor de serviços responde, independente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços, bem como, por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e risco".

O Código de Defesa do Consumidor, por reger relações de consumo de pessoas de todos os níveis culturais é, inclusive auto interpretativo. Diz o código, em seu 2º artigo que "consumidor é toda pessoa jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Fazendo uma rápida pesquisa, encontramos algumas definições que muito se aproxima do que diz o Código. Para Waldírio Bulgarelli (1983):

"Consumidor é aquele que se encontra numa situação de usar ou consumir, estabelecendo-se, por isso, uma relação atual ou potencial, fática em dúvidas, porém que se deve dar uma valoração jurídica a fim de protege-lo quer evitando quer reparando os danos sofridos (1)".

Fábio Konder Comparato (1974) fora mais simplório ao definir o "consumidor como aquele que não dispõe de controle sobre bens de produção e, por conseguinte, deve-se submeter ao poder dos titulares destes" (A proteção do consumidor – Revista de Direito Mercantil, p. 15 e 16 – São Paulo, 1974). Para nós, é mais perfeita a definição de José Geraldo Brito Filomeno. Para ele, "consumidor é qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem a aquisição de bens, bem como, a prestação de serviços" (Manual de Direito do Consumidor – Editora Atlas – p. 37 – São Paulo, 2003). Quanto à definição de fornecedor, reservamo-nos somente o que diz o Código de Defesa do Consumidor dado seu caráter auto-interpretativo. Diz o Código que:

"fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição, ou comercialização de produtos ou prestação de serviços" (art. 3º).

Se, portanto, consumidor é aquele que utiliza serviço e fornecedor aquele que comercializa a prestação de serviços, não nos resta dúvidas de que a relação transportador/passageiro é uma relação de consumo, devendo, pois, ser regida pela lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor) onde a responsabilidade é objetiva, não sendo razoável mencionar como excludente de responsabilidade civil, a força maior e/ou o caso fortuito.

Outro ponto interessante a ser analisado é o fato de os assaltos acontecerem dentro do espaço físico da empresa. Lembra-se que em lojas, shoppings ou bancos, onde a relação de consumo é explícita, quaisquer danos ocorridos aos consumidores, independente de culpa, inclusive os decorrentes de assaltos, são de responsabilidade objetiva e exclusiva dos proprietários destes estabelecimentos. Não raro se vê em alguns destes estabelecimentos, seguranças, muitas vezes desarmados ou detectores de metal que visam, não a repressão que acreditamos ser um dever do estado, mas a inibição de condutas consideradas lesivas tanto aos estabelecimentos comerciais quanto a seus clientes.

Resta-nos, portanto, acreditar ter sido acertada a decisão do dia 22 de outubro. Os fatores que levaram o Desembargador Cláudio Mello Tavares a decidir favorável à condenação são, seguramente, confiáveis. O próprio Projeto de Lei 6960/02 que pretende aumentar os valores de indenizações para deixa-las com caráter cada vez mais inibidoras, serviu-lhe de suporte. Se aprovado, o Projeto dará um novo parágrafo ao art. 944 do Código Civil. Este novo parágrafo visa conceder às indenizações um caráter, inclusive, punitivo, alegando que "a reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante". Lembrando-se, no entanto, do que disse o Desembargador Maurílio Passos da Silva Braga, que "a segurança é dever do estado e este dever não pode ser repassado às empresas de ônibus" acreditamos que, apesar de certo o exímio Desembargador, deve-lhe ter caído no esquecimento que o mesmo art. 144, da Constituição da República Federativa do Brasil, "declara ser a segurança pública dever do estado". Complementa ainda, que a esta mesma segurança pública é também responsabilidade de todos, não podendo, na nossa opinião, exigir que a parte mais fraca da relação arque com os prejuízos decorrentes da falha na acepção deste preceito constitucional, posto principalmente ser o "consumidor o elo mais fraco da economia e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco" (Henry Ford).


CONCLUSÃO

Deste modo, resta-nos acreditar que as empresas devem sim ser responsabilizadas, não por serem culpadas pela falha da Segurança Pública,que é inclusive dever do Estado, mas para que seja feito algo para proteger, como disse Henry Ford, "o elo mais fraco da economia". Não há dúvida de que isto seja necessário. Como dissemos, não se pode pretender do Direito Civil a proteção ao bem juridicamente tutelado, essência do Direito Penal, mas se torna visível que se as condenações ocorrerem no sentido de inibir estes fatos, não resta dúvida de que este elo mais fraco da economia, estará sendo protegido. Buscou-se portanto, isolar os diversos argumentos favoráveis e contrários a estas condenações. Preferimos como foi exposto, nos afirmar favoravelmente.


BIBLIOGRAFIA

Bulgarelli, Waldírio. Tutela do consumidor na jurisprudência e "lege ferenda". P. 49. Revista de Direito Mercantil, 1983.

Comparato, Fábio Konder. A proteção do consumidor. Ps. 15 e 16. Revista de Direito Mercantil, 1974.

Filomeno, José Geraldo Brito. Manual de Direito do Consumidor. P 37. São Paulo. Editora Atlas, 2003.

Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. P. 109. São Paulo. Editora Atlas, 2002.

Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. P. 207. São Paulo. Editora Atlas, 2003


NOTAS

01. Projeto de Lei 6960/2002 dá nova redação ao artigo 944 do Código Civil.

02. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil,. P. 207, edição 3, São Paulo Editora Atlas, 2003.

03. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Responsabilidade Civil, p. 109, edição 2, São Paulo, Editora Atlas, 2002.

04. Bulgarelli, Waldírio. Tutela do Consumidor na Jurisprudência e lege ferenda, p. 49. Revista do Direito Mercantil. São Paulo, 1983.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Wagner Cordeiro. Responsabilidade civil das empresas de ônibus em caso de assaltos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 221, 13 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4814. Acesso em: 18 abr. 2024.