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O condicionamento da liberdade provisória à realização do interrogatório.

Uma invenção judicial inconstitucional

O condicionamento da liberdade provisória à realização do interrogatório. Uma invenção judicial inconstitucional

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O presente texto opta por uma linguagem um tanto quanto coloquial, até mesmo jocosa, em detrimento de outra mais rebuscada e farta em expressões técnicas e doutrinárias. O motivo: a ineficácia de textos anteriores que, embora possuíssem os mesmos móveis, não alcançaram seus objetivos pela prolixidade das citações literárias. Contudo, categoricamente, afirma-se que em nenhum momento se teve a intenção de desrespeitar àqueles que possam se sentir ofendidos. Mas, com a promulgação da lei 10.792/2003, torna-se, no mínimo, conveniente retomar o assunto. E por uma linguagem ainda não utilizada, para não cansar ao leitor, embora, como se verá, trata-se de tarefa inpraticável.

Desde a promulgação da constituição de 1988 que o direito ao silêncio do acusado não admite mais controvérsias...será?

O (caduco) Código de Processo Penal preconiza em seu artigo 186 que, em caso de silêncio, o Réu deveria ser avisado sobre as considerações em seu prejuízo. Enfatizando: embora não estivesse obrigado a responder as perguntas que lhe fossem feitas, tal comportamento poderia ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Resquício covarde e totalitário dos sistemas inquisitoriais, não teve a nobre comissão encarregada do projeto do Código a coragem de eliminá-lo do nosso ordenamento. Através de um fatigante trabalho, ainda que o artigo continuasse com tal redação, numerosos e infalíveis são os entendimentos jurisprudenciais que vêm sistematicamente negando a recepção do citado dispositivo, perante o artigo 5º, LXIII do texto maior que garante o "direito de permanecer calado". Em, uma transcrição anglo–americana, lê-se o dispositivo como o Direito ou Princípio da não auto-acusação, a cinematográfica 5ª emenda da Constituição Norteamericana [1]. No brocardo latino: nemo tenetur se detegere.

Assim falam os Tribunais:

"Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que delimitam, nitidamente, o círculo de atuação das instituições estatais, salientou que qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios, verbis: "...tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal". (Ministro Celso de Mello - RHC nº 71.421-8/RS de maio de 1994, transcrita na RTJ 141/512)

EMENTA: Informação do direito ao silêncio (Const., art. 5º, LXIII): relevância, momento de exigibilidade, conseqüências da omissão: elisão, no caso, pelo comportamento processual do acusado. I. O direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional, porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a auto- incriminação que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa perder atualidade. II. Em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas. III. Mas, em matéria de direito ao silêncio e à informação oportuna dele, a apuração do gravame há de fazer-se a partir do comportamento do réu e da orientação de sua defesa no processo: o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer calado visa a assegurar ao acusado a livre opção entre o silêncio - que faz recair sobre a acusação todo o ônus da prova do crime e de sua responsabilidade - e a intervenção ativa, quando oferece versão dos fatos e se propõe a prová-la: a opção pela intervenção ativa implica abdicação do direito a manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito. (HC 78708 / SP, Min. SEPULVEDA PERTENCE, 09/03/1999 )

INTERROGATÓRIO - ACUSADO - SILÊNCIO. A parte final do artigo 186 do Código de Processo Penal, no sentido de o silêncio do acusado poder se mostrar contrário aos respectivos interesses, não foi recepcionada pela Carta de 1988, que, mediante o preceito do inciso LVIII do artigo 5º, dispõe sobre o direito de os acusados, em geral, permanecerem calados. Mostra-se discrepante da ordem jurídica constitucional, revelando apego demasiado à forma, decisão que implique a declaração de nulidade do julgamento procedido pelo Tribunal do Júri à mercê de remissão, pelo Acusado, do depoimento prestado no primeiro Júri, declarando nada mais ter a acrescentar. Dispensável é a feitura, em si, das perguntas, sendo suficiente a leitura do depoimento outrora colhido. (RE 199570 / MS, Min. MARCO AURELIO, 16/12/1997.

EMENTA: Recurso em Sentido Estrito - Auto de Prisão em flagrante - Advertência da parte final do artigo 186 do Código de Processo Penal - Nulidade decretada - Relaxamento de flagrante concedido - A parte final do artigo 186 do Código de Processo Penal não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, ante o princípio da não culpabilidade - Se tal advertência constar do Auto de Prisão em flagrante, este deverá ser anulado e, conseqüentemente, expedido alvará de soltura em face dos autuados – Negado provimento. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 000.269.165-7/00 - COMARCA DE ARAÇUAÍ - RECORRENTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS, PJ 1 V COM. ARAÇUAÍ - RECORRIDO(S): HELIANE FERREIRA - RELATORA: EXMA. SRª. DESª. JANE SILVA. (grifou-se)

Estamos, portanto, tranqüilos pois nossa Constituição, lei maior de nosso país, deverá ser respeitada. Será?

Todos os dias, pessoas comuns ou nobres, pobres ou ricas, jovens ou idosas, trabalhadoras o desempregadas, famosas ou incógnitas, são atuadas em flagrante. Surpreendidas no momento do cometimento do crime, são levadas a um Distrito Policial e, após serem devidamente orientadas acerca de seus direitos constitucionalmente garantidos, dentre eles o de permanecer calado, respondem: "desejo permanecer calado". Será?

Não seria possível que, somente algumas poucas vezes, por preguiça ou comodidade, esta "vontade" de permanecer calado não seria incentivada pelo assoberbado servidor, mal pago e sem o reconhecimento profissional? "Se não falar, acaba mais rápido!", pensa o servidor; "se ele for falar, vai demorar muito mais!". Indiscutivelmente, uma verdade.

Mas a maioria dos servidores, exemplares e cumpridores de seus deveres orientam corretamente, explicando exaustivamente ao acusado sobre o seu DIREITO de permanecer calado. Mas chega o seu defensor. Alguns minutos (três ou quatro) e, pronto! "Meu cliente vai falar doutor!" O Delegado de Polícia, preocupado com a possibilidade do comprometimento de uma posterior defesa, que certamente seria redigida cautelosamente e elaborada com dias de antecedência, reitera sobre a temeridade de se falar algo que, sendo verdade ou não, foi confabulado em poucos minutos. Vem a resposta: "mas se meu cliente não falar agora, não conseguirá liberdade provisória antes de seu interrogatório judicial". Será verdade isto? Pensariam assim, os tribunais?

Pois, que falem os Tribunais:

HABEAS CORPUS/MT - CLASSE I - 09 - Nº 5.464/01 - RONDONÓPOLIS

RELATORA - EXMA. SRA. DRA. MARIA EROTIDES KNEIP MACÊDO

IMPETRANTE - DRA. FABIANE ELENSILZIE DE OLIVEIRA

PACIENTE - VANDERLAINE FERREIRA DIAS

(...) O cabimento da liberdade provisória é matéria que não pode ser analisada, nesta oportunidade, no âmbito estreito do writ, e isto porque certo será feito pelo Meritíssimo Juiz de Direito, após interrogatório do paciente.(...). grifou-se.

HABEAS CORPUS/MT - CLASSE I - 09 - Nº 5.721/01 - CÁCERES

RELATORA - EXMA. SRA. DRA. MARIA EROTIDES KNEIP MACÊDO

IMPETRANTE - DR. FRANSÉRGIO ROJAS PIOVESAN. PACIENTE - ANTONIO GOMES DOS SANTOS. (...)As informações prestadas pelo ilustre Magistrado que responde pela Vara Criminal da Comarca de Cáceres, foram no sentido de que o pedido de liberdade provisória foi reiterado, tendo o mesmo aguardado até o interrogatório para apreciá-lo, o que ocorreu no dia 23 de outubro último, tendo decidido por manter a prisão do paciente, estando marcada para o dia 31-10-01 audiência para inquirição de testemunhas.

Em qual dispositivo legal se fundamenta uma decisão desta natureza? Nenhuma. E para que tal medida se o acusado poderá permanecer calado? Nada. Para que terá ele que deslocar-se até a presença do Magistrado? Não se sabe. Culturalmente, resíduos de um período inquisitório.

Mas alguém, então, não deveria avisá-los, pois não estariam atentos aos novos preceitos constitucionais, ditados há apenas 15 anos? Tal medida, em tese, não seria necessária, diante de decisões como esta:

TJ-MT - SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL. HABEAS CORPUS - CLASSE I - 09 - Nº 5.744/01 – CAPITAL. RELATOR - EXMO. SR. DES. DONATO FORTUNATO OJEDA. IMPETRANTE - DR. UEBER R. DE CARVALHO. PACIENTE - GILMAR DA SILVA. Decisão unânime pela concessão do writ.

O SR. DES. DONATO FORTUNATO OJEDA

(...)A indigitada autoridade coatora informa, às fls. 45/56, que o paciente foi denunciado como incurso nas penas do art. 10, caput, da Lei nº 9.437/97 – porte ilegal de arma - por ter sido preso em flagrante delito, em 20 de outubro de 2001, por Agentes da Delegacia Especializada de Roubos e Furtos de Veículos Automotores de Cuiabá, portando duas armas de fogo, descritas no Auto de Apreensão de fls. 14. Recebida a denúncia em 08-11-2001, foi designada audiência de apresentação da proposta de suspensão processual e/ou interrogatório do acusado, para o dia 26-11-2001, data na qual poderá ser ou não concedida a liberdade provisória do mesmo (grifou-se). (...) a ilustre Magistrada a quo manteve a prisão em flagrante, postergando sua decisão acerca da liberdade do acusado para a ocasião da realização da audiência de interrogatório, em manifesta contrariedade ao mandamento constitucional inserto no inciso LXVI, da CF/88, que assim determina, verbis: "Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança".(grifou-se).

Ipso facto, jura novit curia.

Diga-se que é tarefa extremamente penosa encontrar decisões proferidas pelos tribunais acerca desta situação, porquanto, normalmente, o trâmite do Habeas Corpus em segunda instância demora mais tempo para ser concluído do que o prazo marcado para o interrogatório. Resultado: ao se pedir as informações ao juiz do feito - a autoridade coatora – este, simplesmente, comunica que, após o interrogatório, foi concedida a liberdade provisória, o que transforma o legítimo pedido inicial em algo "prejudicado".

No verbo dos Tribunais:

HABEAS CORPUS/MT - CLASSE I - 09 - Nº 5.228/00 – CAPITAL. RELATOR - EXMO. SR. DES. FLÁVIO JOSÉ BERTIN. IMPETRANTE - DR. WESLEY DOS SANTOS PEREIRA. PACIENTE - LUÍS CÉSAR DIAS DE SOUZA. R E L A T Ó R I O. O SR. DES. FLÁVIO JOSÉ BERTIN

Eminentes Pares:

O causídico Dr. Wesley dos Santos Pereira impetrou ordem de habeas corpus com pedido de liminar em favor de Luís César Dias de Souza contra ato emanado do juízo da 15ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá, apontado como autoridade coatora, que lhe indeferiu o pedido de liberdade provisória mediante o arbitramento e pagamento de fiança, constituindo a decisão constrangimento ilegal. Indeferida a liminar, foram requisitadas informações à indigitada autoridade coatora, a qual, por sua vez, esclareceu ter concedido ao acusado, na ocasião de seu interrogatório, o benefício da liberdade provisória, colacionando a fls. 33 usque 35.

Apenas à guisa de exemplo, existem outros julgados do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, HC 4997/2000, HC 5434/2001, HC 5228/2000, dentre outros tantos, que foram impetrados pela negativa da liberdade provisória antes do interrogatório, e que veio a ser concedida pelo próprio juiz do feito após aquele ato [2]. Este não é um fenômeno exclusivo daquele Estado, ao contrário, é comungado por tantos outros.

Mais uma vez: o DIREITO do réu ou acusado é o de permanecer calado. Isto é incondicional, ou seja, permanecerá calado durante a fase policial, durante a ação penal e até durante a Revisão Criminal ou Habeas Corpus. É seu DIREITO não falar nada, nem mesmo ao juiz. Se não desejar declinar deste direito, permanecendo calado, diz a Constituição e a jurisprudência que não poderá ter sua conduta apreciada em seu prejuízo. Ora, não ser agraciado com a liberdade provisória, garantida igualmente pela Constituição Federal, somente porque o magistrado deseja interrogá-lo é exatamente considerar o silêncio em prejuízo do réu, pois, caso tivesse falado, qualquer coisa durante o Auto de Prisão em Flagrante, ainda que estruturada em poucos minutos, não haveria tal argumento por parte do judiciário para mantê-lo preso. Este é o sistema penal brasileiro. Vincular sua liberdade ao seu depoimento é o mesmo que coagi-lo a falar, coagi-lo a abrir mão de seu DIREITO.

Lembra-se que a única justificativa LEGAL para a prisão processual é a evidência dos requisitos que autorizariam a prisão preventiva, quais sejam: garantia da ordem pública ou econômica, aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal.

E o falam os Tribunais:

HABEAS CORPUS. PRISAO EM FLAGRANTE. PARAGRAFO UNICO DO ARTIGO 310 DO C.P.P. - ALEGACAO DE EXCESSO DE PRAZO, QUE NAO SE APRECIA, POR NAO TER SIDO ELA SUBMETIDA AO TRIBUNAL "A QUO". - O PARAGRAFO UNICO DO ARTIGO 310 DO C.P.P. NAO IMPOE AO JUIZ O DEVER DE, "EX OFFICIO", FUNDAMENAR A MANUTENCAO DA PRISAO EM FLAGRANTE; A FUNDAMENTACAO SÓ E NECESSARIA SE ELE NEGA A CONCESSAO DE LIBERDADE PROVISORIA QUE LHE E REQUERIDA. PRECEDENTE DO S.T.F. - CORRETO, PORTANTO, O ACORDAO RECORRIDO QUE ANULOU O DESPACHO DENEGATORIO NAO FUNDAMENTADO, DETERMINANDO QUE OUTRO FOSSE PROLATADO. RECURSO ORDINARIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (RHC 62166 / SP, RECURSO EM H.C., Min. MOREIRA ALVES, 31/08/1984)

EMENTA: "HABEAS CORPUS" - PEDIDO DE REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA - HOMICÍDIO QUALIFICADO - LIMINAR INDEFERIDA - AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 312 DO CPP - PRIMARIEDADE E BONS ANTECEDENTES - DESNECESSIDADE DA CUSTÓDIA CAUTELAR - ORDEM CONCEDIDA. HABEAS CORPUS (C. CRIMINAIS ISOLADAS) Nº 1.0000.03.401232-8/000 - COMARCA DE UBERLÂNDIA - PACIENTE(S): WILSON ANTÔNIO SILVA - COATOR(ES): JD 2 V CR COMARCA UBERLÂNDIA - RELATOR: EXMO. SR. DES. EDELBERTO SANTIAGO.

Um "argumento" do magistrado cauteloso: "se soltá-lo antes do interrogatório, talvez fuja, e não mais terei a minha convicção pessoal quanto à sua pessoa". Outra vez, desculpem-me, cansado leitor: o DIREITO do réu é o de permanecer calado. Ainda que o Meritíssimo juiz tenha uma profunda curiosidade quanto ao réu, a diligência de interrogatório será absolutamente inócua, pois poderá permanecer calado. Será conduzido à sua presença, podendo permanecer imóvel e calado. Em resumo: Teve sua liberdade constrangida, fora dos casos que autorizariam a prisão preventiva, e dentro das hipóteses em que a Constituição Federal admite a liberdade provisória com ou sem fiança, e para que? Nada, absolutamente nada pois, permanecendo calado, em momento algum deverá influenciar na convicção do juiz.

Outro argumento: "mas se não falar nada é porque é culpado!" Aqui fazemos uso de outro preceito, também esquecido: a presunção de inocência. É o Estado o encarregado, o que tem o encargo, o que tem o ônus, de comprovar sua alegação. Se mediante seu órgão oficial resolve processar o suposto autor de um crime, deverá demonstrá-lo culpado, por todos os meios de provas admissíveis pelo Direito.

Pois assim, falam os Tribunais:

(...)2. A quem acusa cabe o ônus da prova (CPP, art. 156), devendo o Ministério Público requerer o exame de corpo de delito quando se tratar de infração que deixa vestígios, o qual não pode ser suprido, sequer, pela confissão (CPP, art. 158), sob pena de nulidade (CPP, art. 564, III, b). (...)(HC 76420-SP, Min. MAURÍCIO CORREA, 16/06/1998.

"À acusação é que cumpre produzir a prova de culpabilidade lato sensu do acusado". (TJ-SP - JTJ 709/313)

Ouve-se, ainda, um terceiro argumento: "todo inocente se inflama contra a injustiça e a arbitrariedade!" Novamente, corro o risco de ser cansativo: qual o DIREITO do réu? Respondo: permanecer calado. Não é o Direito de insuflar-se, espernear-se, nevralgicamente manifestar-se. Apenas, permanecer calado. Sendo um DIREITO seu não poderá, por previsão constitucional, ser considerado em seu prejuízo. Pensando assim, é exatamente o que faz o juiz: considerar o silêncio daquele que não tem a menor obrigação de provar sua inocência em seu próprio prejuízo. Não se faz preciso, acredito, nova menção à presunção de inocência.

Poderia alegar ainda, o magistrado, um quarto argumento: "somente estou cumprindo a lei". Pergunta-se: qual o dispositivo legal ou constitucional que vincula a concessão da liberdade provisória ao interrogatório? Nenhum. Mas, aproveitando o ensejo, destacamos um dispositivo, constitucional, que obriga a exatamente o inverso: artigo 5º, inciso LXVI: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança".

Até mesmo no Tribunal do Júri, em caso de crime inafiançável (homicídio qualificado – art. 121, § 2º II e IV) já decidiu o STJ sobre a possibilidade do julgamento à revelia do Réu e exatamente por entender que, perante o preceito constitucional da presunção de inocência e do DIREITO ao silêncio, não faria qualquer falta à convicção dos jurados.

Falam os Tribunais:

PROCESSUAL PENAL - JURI - REU - PRESENÇA - A CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA DE 1988 CONSAGRA SER DIREITO DO REU SILENCIAR. EM DECORRENCIA , NÃO O DESEJANDO, EMBORA DEVIDAMENTE INTIMADO, NÃO PRECISA COMPARECER A SESSÃO DO TRIBUNAL DO JURI. ESTE, POR ISSO, PODE FUNCIONAR NORMALMENTE. CONCLUSÃO QUE SE AMOLDA AOS PRINCIPIOS

DA VERDADE REAL E NÃO COMPACTUA COM A MALICIA DO ACUSADO DE EVITAR O JULGAMENTO.( RHC 2967 / GO ; RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 1993/0021051-3. Rel. Min Vicente Cernicchiaro).

Mas o precavido legislador vem, em tempo, socorrer ao jurista. Promulga-se, há poucos dias, a alteração do Código de Processo Penal. "Surpreendentemente", eis a nova redação do artigo 186, § único: "O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa". Agora, em uma coerência sistemática solicitada por qualquer ordenamento jurídico, Constituição e Legislação Federal marcham em um mesmo compasso, regidas pela já fortalecida batuta da jurisprudência dos tribunais.

A novel legislação somente veio a adequar o texto infraconstitucional ao direito fundamental previsto, expressamente, há quinze anos na Carta Política brasileira. Nada mais. Não é a partir deste momento que o silêncio deve ser respeitado, mas quem sabe será a partir deste momento que alguns operadores do direito se atentarão a este fato.

O flagrante desrespeito destes dois preceitos acarreta o desprezo a mais um terceiro: ampla defesa e todos os recursos inerentes a ela. É evidente que o acusado, prestes a ser preso, diante da possibilidade de permanecer o mínimo possível dentro de uma prisão, optará por manifestar-se, diante da possibilidade de uma liberdade provisória célere. Obrigando, indiretamente, ao acusado a declarar um mínimo que seja de sua versão dos fatos durante seu interrogatório policial, prejudica-se diretamente o labor do defensor durante a ação penal, pois, para não se tornar contraditório, deverá fundamentar o alegado de inopino durante a lavratrura do Auto de Prisão. E caso resolva por apresentar outra versão, corre o sério risco de postar-se inverossímil já que, se o silêncio não poderá ser interpretado em seu prejuízo, o mesmo não pode ser afirmado quanto à(s) versão(ões) declarada(s).

Eis aqui a oportunidade para outra contestação: a de que a disparidade entre o interrogatório policial e a nova versão prestada em juízo não terá valor algum, pois o Inquérito Policial é mera peça informativa administrativa, devendo as provas serem corroboradas ou confirmadas em juízo, obedecendo-se os ditames do contraditório, para que possam influenciar o juiz.

Falam, contrariamente, os Tribunais:

STF. HC 74751 / RJ - Relator(a): Min. SEPULVEDA PERTENCE

EMENTA: I. Habeas-corpus: cabimento na pendência de indulto condicional (D. 1.860/96). II. Princípio do contraditório e provas irrepetíveis. O dogma derivado do princípio constitucional do contraditório de que a força dos elementos informativos colhidos no inquérito policial se esgota com a formulação da denúncia tem exceções inafastáveis nas provas - a começar do exame de corpo de delito, quando efêmero o seu objeto, que, produzidas no curso do inquérito, são irrepetíveis na instrução do processo: porque assim verdadeiramente definitivas, a produção de tais provas, no inquérito policial, há de observar com rigor as formalidades legais tendentes a emprestar-lhe maior segurança, sob pena de completa desqualificação de sua idoneidade probatória. (...)

STF.RHC 82.245-2 PB

V O T O

O SENHOR MINTSTRO MOREIRA ALVES - (Relator):

l. Além . de o recurso ordinário não haver atacado a fundamentação do acórdão recorrido, que é o prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, o certo é que este demonstra que a condenação do ora recorrente não se deu exclusivamente em razão das confissões extrajudiciais que foram retratadas na fase judicial, "mas por meio do cotejo das provas produzidas em juízo, em especial com a inquirição das testemunhas de acusação, e tendo em vista a total disparidade das novas versões produzidas em juízo em contraste com as versões anteriormente produzidas, eis que as mesmas eram uniformes, precisas e coerentes, não havendo fato algum superveniente que corroborasse o teor das novas versões", sendo de notar-se, como observa o parecer da Subprocuradoria-Geral da República, transcrito no aresto recorrido, que "ao paciente foi imputada a autoria intelectual do delito, fato que autoriza, com maior relevo, a adoção da prova indiciária produzida, quer na fase policial, como na judicial, para embasar um decreto condenatório", sem que se possa alegar, por isso, cerceamento de defesa.2. Em face do exposto, e acolhendo o parecer da ProcuradoriaGeral da República, nego provimento ao presente recurso. (grifou-se)

Fica, então, sob o seguinte dilema: ficar preso agora, por não falar nada ou ser preso depois, por falar?

Não é preciso inventar. Nossa legislação pode ser considerada uma das mais modernas. Nossos magistrados, dentre os mais preparados. Jura novit curia. A este conhecimento do Direito serve de fiel a interpretação do juiz. Mas sempre deve se interpretar o Direito positivado em busca do que é, realmente, o "Direito". A função jurisdicional exige um profissionalismo acima do comum, um preparo racional e intelectual que não pode ser olvidado pois é sua busca incessante, a Justiça. Considerar o exercício regular de um DIREITO constitucional em prejuízo de quem o exerce é o mesmo que negar-lhe tal direito.


NOTAS

01. Amendment V:

No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a grand jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the militia, when in actual service in time of war or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation. (grifou-se).

02. Voto proferido no HC 5434/01-MT, e repetido em tantos outros: "Eminentes Pares:

Consoante se depreende das informações complementares juntadas pelo douto Juízo da 4ª Vara Criminal da Capital por onde tramitam os autos, o paciente não se encontra mais segregado, visto que, após o seu interrogatório, foi beneficiado com o instituto da liberdade provisória. Dessa forma o presente habeas corpus está prejudicado. É como voto. D E C I S Ã O: como consta da ata e das notas taquigráficas, a decisão foi a

seguinte:

À UNANIMIDADE, JULGARAM PREJUDICADO O PEDIDO.

A DECISÃO É COM O PARECER ORAL.

Cuiabá, 22 de maio de 2001."


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Alexis Augusto Couto de. O condicionamento da liberdade provisória à realização do interrogatório. Uma invenção judicial inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 228, 21 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4860. Acesso em: 26 abr. 2024.