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Evolução histórica do pensamento jurídico-ambiental da gestão de recursos hídricos

Evolução histórica do pensamento jurídico-ambiental da gestão de recursos hídricos

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A gestão de recursos hídricos no Brasil, ainda que insuficiente, teve início no Brasil-Colônia, vindo a se tornar o que, hoje, conhecemos como Política Nacional de Recursos Hídricos.

RESUMO: A Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei n. 9.433/97, hoje é uma importante diretriz de eficácia da gestão de recursos hídricos no Brasil, e até a sua consolidação normativa, o pensamento jurídico-ambiental de controle e fiscalização do uso e aproveitamento das águas brasileiras passou por diversas fases ao longo da história. No entanto, essas fases variam segundo alguns pesquisadores em razão dos ínfimos registros históricos, desde o Brasil – Colônia. O referido artigo evidencia a necessidade de expandirmos o conhecimento para bem delinearmos a evolução histórica da gestão e proteção legal dos recursos hídricos no Brasil, culminando ao que hoje chamamos de Política Nacional de Recursos Hídricos.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão de recursos hídricos no Brasil; evolução histórica.


INTRODUÇÃO

A gestão dos recursos hídricos no Brasil não é um fenômeno recente, trazido pelo Código das Águas, em 1934, e consolidado com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Nos idos do Brasil - Colônia, no início do século XVI, com as Ordenações Afonsinas (1480), Manuelinas (1520) e, posteriormente, sob o domínio dos espanhóis, as Filipinas (1606), moldava-se uma espécie de embrião da legislação ambiental.

Esse arcabouço legal, porém, foi implantado, segundo ALMEIDA (2002), sob um viés de caráter econômico e sanitário, não preservacionista. Ou seja, as primeiras preocupações da coroa portuguesa era conservar os recursos naturais disponíveis para viabilizar a exploração econômica então vigente e de modo que compatível com a saúde de seus colonizadores.

A evolução histórica da gestão de recursos hídricos está diretamente relacionada com a história evolutiva da proteção ambiental.

Nessa linha, estudaremos a divisão proposta pelo nobre professor Antônio Herman de Vasconcelos Benjamin, que identifica três fases, indissociáveis e não estanques, da evolução legislativo-ambiental brasileira: a Fase da Exploração Desregrada, a Fragmentária e a Fase Holística.


1. Fase da exploração desregrada

Nesta primeira fase, que vigorou do descobrimento do Brasil, em 1500, até o início da segunda metade do século XX, evidenciam-se poucas normas de proteção ambiental que, nas palavras de BENJAMIN (1999):

“(...) não visavam, na vocação principal, resguardar o meio ambiente como tal. Seus   objetivos eram mais estreitos. Ora almejavam assegurar a sobrevivência de alguns recursos naturais preciosos em acelerado processo de exaurimento (o pau-brasil, p. ex.), ora, em outro plano, colimavam resguardar a saúde, valor fundamental este que ensejou, não só entre nós, algumas das mais antigas manifestações legislativas de tutela indireta da natureza”

Na intenção de conservar para explorar, resguardando indiretamente a saúde de seus colonizadores, a coroa portuguesa seguia conivente com uma exploração ambientalmente não sustentável.

Um aspecto destacado por ALMEIDA (2002) é que nos poucos artigos das Ordenações Afonsinas (1480) e das Manuelinas (1520), relacionados às questões ambientais, não havia legislação específica de proteção aos recursos hídricos, ressaltando, quanto às Ordenações Manuelinas, as primeiras noções de zoneamento ambiental, ao vedar a caça em determinados locais, bem como a noção de reparação do dano ecológico.

As Ordenações Filipinas (1606), por sua vez, previram a primeira ideia de poluição no parágrafo 7º do Título LXXXVIII do Livro V1. Com isso, o dispositivo em tela, se não inaugurou uma espécie de gestão dos recursos hídricos do Brasil – Colônia, foi o seu precursor.

Sob a égide da Constituição de 1824, que embora não tenha normatizado a proteção de recursos hídricos, vigorou o Código Penal de 1890, o qual dispôs em seu artigo 162, in verbis:

Art. 162. Corromper, ou conspurcar, a agua potavel de uso commum ou particular, tornando-a impossivel de beber ou nociva á saude:

Pena de prisão cellular por um a tres annos.[sic]”

A primeira Constituição Republicana de 1891 limitou-se a normatizar a competência privativa do Congresso para legislar sobre águas navegáveis. À luz desta Constituição, foi promulgado o Código Civil dos Estados Unidos do Brasil (Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916).

Nos artigos 563 a 568 desse código, o ordenamento jurídico então vigente se referia à água, basicamente, como bem de valor não econômico e ilimitado, vinculando-o ao direito de propriedade e de vizinhança. É dizer, o usuário poderia utilizar as águas da forma que melhor o aprouvesse, desde que fossem respeitados os direitos de vizinhança (ALMEIDA, 2002).

De maneira inovadora, a Constituição de 1934 estatuiu o embrião do que hoje conhecemos como Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos, ao dispor em seu artigo 119 que o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, bem como das águas e da energia hidráulica, ainda que de propriedade privada, dependia de autorização ou concessão federal, na forma da lei, reconhecendo, pois, o valor econômico das águas.

Na mesma época foi decretado o Código de Águas, o primeiro modelo de gerenciamento de águas até então existente, rompendo com o paradigma da legislação obsoleta que regulou a proteção jurídica das águas desde o descobrimento, em 1500.

Comparativamente, ALMEIDA (2002) destaca que o Código das Águas considera tal recurso hídrico como bem dotado de valor econômico a toda coletividade, enquanto o Código Civil de 1916, além de não reconhecer o valor econômico da água, a sua regulamentação fundava-se no direito de vizinhança.

Tanto a Carta Constitucional de 1937 quanto à de 1946 repetiram a preocupação em estabelecer a competência exclusiva da União para legislar, além da exploração econômica das águas vigente no Código das Águas.

A Ordem Constitucional de 1946, entretanto, quanto ao tema ora desenvolvido, destacou-se em relação à anterior, por incluir as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países dentre os bens de domínio da União (art. 46), bem como estabeleceu que as autorizações ou concessões seriam conferidas exclusivamente a brasileiros ou a sociedades organizadas no país (art. 153, § 1º).

Até esse ponto, verifica-se, ainda, a proteção do direito de preferência no uso das águas ao proprietário do solo sob o manto do direito de vizinhança.

Como observa ALMEIDA (2002):

“(...) não havia qualquer fundamento constitucional que justificasse e legitimasse as intervenções legislativas sobre matérias de cunho estritamente ambiental. Os dispositivos supracitados não tutelavam a proteção do meio ambiente, mas tão somente fixavam a competência da União para legislar a respeito da exploração econômica de alguns bens ambientais de domínio federal.”

Em que pese as caracterizações pontuais de proteção ambiental e, especificamente, aos recursos hídricos, o pensamento que vigorou até meados do século XX ia de encontro à necessidade de conservar para explorar e conquistar novas fronteiras agrícolas, minerárias e da pecuária. A relação homem-natureza, como ensina o nobre jurista BENJAMIN (1999), “Tinha na omissão legislativa seu traço preponderante, relegando-se eventuais conflitos de cunho ambiental quando muito ao sabor do tratamento pulverizado, assistemático e privatístico dos direitos de vizinhança”.


2. Fase fragmentária

Nesta segunda fase de evolução histórica de proteção ao meio ambiente e aos recursos hídricos, juridicamente buscou-se a regulamentação das atividades exploratórias de forma esparsa, reprimindo e tipificando as condutas danosas à natureza.

Influenciado pela Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente2, o Brasil passou a legislar setores ecológicos com vista a proteger os recursos naturais, ainda sem a consciência de que esses recursos fazem parte de um sistema uno e complexo.

Por exemplo, foi estabelecida a preservação de cursos e mananciais de água (artigo 2º, VII da Lei nº 4.132/62). Foi instituída a Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717/65), que permitia ao cidadão acionar o Poder Judiciário em face de atos ou contratos administrativos ilegais ou lesivos ao patrimônio público, inclusive ao meio ambiente.

Em 1965 foi promulgado o Código Florestal (Lei n. 4.771/1965). Estabeleceu, em seu artigo 2º, a proteção das florestas e das matas ciliares situadas ao longo dos cursos d'água, nascentes, lagos, lagoas ou reservatórios.

Após a promulgação da Constituição de 1967 e, posteriormente, a de 1969, ambas sem alteração significativa ao tratamento dado à água pelas cartas políticas anteriores, dois decretos se destacaram quanto à forma de proteger nossos recursos hídricos.

O primeiro, Decreto n. 75.700/75, estabeleceu área de proteção para fontes de água mineral. O segundo, Decreto n. 79.367/77, estabeleceu as normas e o padrão de potabilidade de água.


3. Fase holística

Antes de discorrermos sobre o presente tópico, cumpre-nos elencarmos o significado da palavra “holística”. Foi criada a partir do termo holos que em grego significa “todo” ou “inteiro”.

Nesse sentido, a palavra holística, segundo o dicionário Aurélio3, significa um estudo que defende uma análise global e um entendimento geral dos fenômenos.

A fase holística aqui tratada rompe com o pensamento de proteção isolada de alguns recursos naturais com vista a sua exploração econômica (Fase Fragmentária) e constrói a noção de um verdadeiro sistema de proteção ecológica. Segundo BENJAMIN (1999), resguarda-se a partir de agora todos os recursos naturais, inclusive os hídricos, a partir do todo: o Meio Ambiente ecologicamente equilibrado.

E essa ideia de meio ambiente ecologicamente equilibrado foi insculpida pelo legislador originário no rol dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 2254.

Não obstante, foi a Lei nº 6.938/81, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente, a grande precursora da Fase Holística, onde, nas palavras do professor Antônio Herman V. Benjamin, “o ambiente passa a ser protegido de maneira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado”.

Ressaltou, ainda, o citado autor:

“Só com a Lei n. 6938/81, portanto, é que verdadeiramente começa a proteção ambiental como tal no Brasil, indo o legislador além da tutela dispersa, que caracterizava o modelo fragmentário até então vigente (assegura-se o todo a partir das partes).”

Portanto foi a partir desse novo sistema integrado de proteção ao meio ambiente que nos deparamos com institutos jurídicos garantidores da concepção holística aqui pesquisada. Citamos, por exemplo, a avaliação de impactos ambientais como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente (art. 9º, inciso III), regulamentado pela Resolução nº. 001/1986, do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA.

A citada resolução estabeleceu as definições, as responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impacto Ambiental.

Segundo o entendimento do CONAMA, disposto no artigo 1º da resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam a saúde, a segurança, o bem-estar da população, as atividades sociais e econômicas, a biota, as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente e a qualidade dos recursos ambientais.

Nesse diapasão, em conformidade com a fase atual de proteção jurídica do meio ambiente, onde se busca a preservação de todos os recursos naturais do país por meio de uma política una e complexa de gestão desses recursos, é que incluímos a atual Política Nacional de Recursos Hídricos.


CONCLUSÃO

No Brasil, vigora a Política Nacional de Recursos Hídricos, criada pela Lei nº 9.433/97, a qual estabeleceu princípios e regras essenciais de proteção e controle de nossas águas, tanto quantificativa como qualitativamente.

Não obstante, vimos que esse é o resultado da evolução histórica por que passou o ordenamento jurídico-ambiental brasileiro desde o Brasil-Colônia, e que se relaciona diretamente à evolução da gestão de nossos recurso hídricos.

O embrião do pensamento jurídico-ambiental da gestão de recursos hídricos inaugurou a Fase Desregrada, em que a ordem era conservar para explorar, e não preservar. Aliada a isso, havia a noção de que os recursos hídricos eram infinitos e não dotados de poder econômico, respeitando apenas os limites do direito de propriedade e de vizinhança.

A Fase Fragmentária, segundo momento histórico de evolução da gestação de recursos hídricos no Brasil, promoveu a legislação esparsa do meio ambiente, regulando as atividades exploratórias e tipificando condutas danosas à natureza, incluindo o uso da água, como o Código Florestal de 1965 e a Lei da Ação Popular.

Por fim, chegamos à Fase Holística de proteção de nossos recursos hídricos, a partir da qual o ordenamento jurídico rompe com uma proteção isolada de alguns recursos naturais e estabelece um sistema de proteção ambiental uno e complexo, aliando-se ao mandamento fundamental do meio ambiente ecologicamente equilibrado, insculpido no art. 225 da CRFB/1988.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Caroline Corrêa de. Evolução histórica da proteção jurídica das águas no Brasil. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3421>. Acesso em: 28 set. 2015.

BENJAMIN, Antônio Herman V. Introdução ao direito ambiental brasileiro. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, abril-junho 1999. v. 14. Ano 4.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei n.º 9.433, 8 de janeiro de 1997. Presidência da República: Casa Civil.

BRASIL. Agência Nacional de Águas e Agência Nacional de Energia Elétrica. Introdução ao gerenciamento de recursos hídricos. Brasília, 2001.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.


NOTAS

1 Ordenações Filipinas de 1606. parágrafo 7 do Título LXXXVIII do Livro V : "pessoa alguma lance nos rios e lagoas, em qualquer tempo do anno cocca, cal, nem outro algum material, com que fe o peixe mata" [sic].

2 A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente foi convocada pela ONU em 1972, em Estocolmo (Suécia), diante da crescente preocupação mundial sobre o uso saudável e sustentável do planeta e de seus recursos.

3 Disponível em: <http://dicionariodoaurelio.com/holistico>. Acesso em: 01 de outubro de 2015.

4 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.


Autores

  • Erivaldo Cavalcanti

    Avaliador ad hoc do Ministério da Educação/INEP, Doutor em Desenvolvimento Sustentável (Ciência socioambiental) pela Universidade Federal do Pará, possui Mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e Pós-graduação lato sensu em Ensino de História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Atualmente é pesquisador líder do Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq em Direito de águas, Professor dos Programas de Mestrado em Direito Ambiental e de Segurança Pública da UEA - Universidade do Estado do Amazonas e Membro e avaliador do CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, do Conselho Científico e do banco de especialistas da ABRADE - Associação Brasileira de Direito Educacional e Associado da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Parecerista da Revista de Estudos Jurídicos da Universidade Estadual Paulista - UNESP, do Brazilian Journal of Law, da Revista de Informação Legislativa do Senado Federal e da Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. É editor da Revista de Direito Ambiental da Amazônia "Hiléia".

    Textos publicados pelo autor

  • João Thiago Cavalcante

    Bacharel em Direito, com ênfase em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas desde fevereiro de 2016 e Técnico do Ministério Público Federal no Amazonas.

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