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Do crime das rádios clandestinas

Do crime das rádios clandestinas

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I. INTRODUÇÃO

Para uma rádio ser considerada comunitária é imprescindível o preenchimento de requisitos: a autorização de funcionamento, pressuposto constitucional de existência, ante a exegese do art. 21, XII, alínea "a", da Carta Magna, bem como o perfeito ajuste às disposições previstas na Lei 9.612/98.

Sucede que a imposição dos mencionados requisitos não vem sendo eficaz. Com efeito, a grande maioria das "rádios comunitárias" são, em verdade, rádios clandestinas acobertadas por fundações ou associações de fachada, que funcionam como reais instrumentos do poder político, para a difusão de propaganda eleitoral. E, dessa ausência de controle, surge a possibilidade de afetação à ordem pública, porquanto, sendo o espectro de radiofreqüências um recurso limitado, somente podem funcionar um determinado número de emissoras de radiodifusão, sob o risco de haver interferências prejudiciais ao funcionamento de outros serviços de radiodifusão e telecomunicações.

Daí, por conseguinte, há a previsão de crime para a conduta de desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação. Todavia, os tribunais pátrios vêm enquadrando de forma diversa a mencionada conduta. O problema reside na convivência de três diferentes normas no ordenamento jurídico brasileiro: a citada lei 9.612/98, a lei 9.472/97, que dispõe sobre os serviços de telecomunicações, e, por fim, a 4.117/62, antigo Código Brasileiro de Telecomunicações. Surge, pois, um aparente conflito de normas, sanável mediante um estudo sistemático, jurisprudencial e teórico, objetivo do presente trabalho.


II. DAS RÁDIOS COMUNITÁRIAS

Antes de analisar, profundamente, qualquer tema, deve o intérprete vislumbrar a gramática de suas palavras fundamentais. Realmente, constituem tais verdadeiros meios, pontes que comunicam duas esferas científicas diversas, quais sejam, a ciência portuguesa e a jurídica.

Assim, no caso ora em pauta, almejando-se fazer emergir um significado plausível e lógico, inserto do ordenamento jurídico, para o vocábulo "rádios comunitárias", convém examinar seu significado por completo.

Nesse sentido, ninguém mais eficiente que Aurélio Buarque de Holanda para dizer que:

"comunitário. Adj. Respeitante à comunidade, considerada quer como estrutura fundamental da sociedade, quer como tipo ou forma específica de agrupamento." (Dicionário Aurélio Básico, pág. 165)

Observa-se, pois, que "rádio comunitária" significa, como a lógica portuguesa indica, rádio da comunidade. Persistindo nas explanações, a comunidade, nas palavras do Professor Paulo Bonavides, é:

"dotada de caráter irracional, primitivo, munida e fortalecida de solidariedade inconsciente, feita de afetos, simpatias, emoções, confiança, laços de dependência mútua do ‘individual’ e do ‘social’"(Ciência Política, 10a ed., pág. 59)

Deveras, um grupo comunitário está fortalecido com uma união que transcende o aspecto físico (território), na medida em que seus membros estão relacionados, reciprocamente, aos mesmos objetivos, bem como têm consciência das necessidades dos indivíduos dentro e fora do seu grupo imediato.

Destarte, vislumbrando a capacidade potencial de engrandecimento cultural, social e econômico das comunidades equipadas com serviços de radiodifusão, o legislador nacional fez emergir, em 19 de Fevereiro de 1998, no ordenamento jurídico pátrio, a Lei no 9.612/98, que "Institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária e dá outras providências", visando, essencialmente, a:

1o) difundir idéias, elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade (art. 3º, I);

2º) oferecer mecanismos à formação e integração da comunidade, estimulando o lazer, a cultura e o convívio social, dentro da comunidade (art. 3º, II);

3º) prestar serviços de utilidade pública à comunidade (art. 3º, III);

4º) permitir a capacitação dos cidadãos de determinada comunidade, no exercício do direito de expressão (art. 3º, V)

Todavia, limites deve haver para que a ordem e a paz pública não sejam violadas, prejudicando, desse modo, o caráter de unidade dos grupos comunitários. Por isso, a lei resguardou o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 4o, III), bem como vedou que as rádios comunitárias exercessem, em sua programação, proselitismo de qualquer natureza (art. 4o, § 1o) e quaisquer espécies de discriminação (art. 4o, IV), para que não criem ou estimulem divisões dentro do grupo comunitário, cujos interesses de bem-estar e de desenvolvimento cultural, moral e material, devem sobrepor-se às divergências de ordem político-partidária.

Daí que, ainda com o intuito de resguarda à comunidade, foi estabelecido que a radiodifusão comunitária somente poderá ser outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, e com sede na localidade de prestação de serviços (art. 1º, caput) e que suas programações opinativas e informativas deverão respeitar os princípios da pluralidade de opinião e de versão simultânea em matérias polêmicas, divulgando sempre as diferentes interpretações relativas aos fatos noticiados (art. 4º, § 2º).

Ademais, em face do eterno binômio "necessidade-utilidade", o poder legislativo federal condicionou o funcionamento das rádios em baixa potência, limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros (art. 1º, § 1o), e cobertura restrita, destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila (art. 1o, § 2o ).

Por consectário, convém repetir a lição do eminente Procurador Regional da República José Gerim Mendes Cavalcante, que afirmou ser o conceito de rádio comunitária composto por dois elementos fundamentais, a saber:

Natureza comunitária dos serviços;

Área de recepção desses serviços limitada a um bairro e/ou vila, com as ressalvas do devido respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família e das impossibilidades de alcance a áreas territoriais situadas fora dos limites dessa mesma comunidade e do exercício de quaisquer discriminações ou prosetilismo.

Com efeito, uma rádio que vise a satisfazer tão-somente sua comunidade, não terá porque ultrapassar, através de suas transmissões, os limites físicos do seu agrupamento comunitário. Nesse rumo, há, inclusive, o risco de interferências prejudiciais ao funcionamento de outros serviços de radiodifusão e telecomunicações, de segurança e saúde pública, como os bombeiros, ambulâncias, polícia e até aeronaves, porquanto, sendo o espectro de radiofreqüências limitado, somente pode funcionar um número determinado de emissoras de radiodifusão.


III. DO CRIME DAS RÁDIOS E DA COEXISTÊNCIA DAS LEIS

Do risco de interferências, portanto, há, concretamente, a possibilidade de prejuízos à ordem, e, exatamente, por esse motivo, o legislador pátrio considerou imprescindível a existência da figura típica incriminando a instalação ou utilização de telecomunicações sem autorização do órgão competente, atualmente a ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações (Lei 4.117/62, com as alterações do Decreto-Lei 236/67).

Diz o art. 70 do mencionado diploma legal que:

"Constitui crime punível com a pena de detenção de 1(um) a 2(dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos".

Sucede que as citadas espécies normativas, Lei 4.117/62 e Decreto-Lei 236/67, vêm sendo alvo de discussões no mundo jurídico pátrio.

Isso porque há os que argúem sua inconstitucionalidade em face da criação de um tipo penal por decreto-lei, supostamente, pois, afrontando com o princípio da reserva legal, insculpido na Lei Maior no inciso XXXIX do art. 5º.

Todavia, tal questão já foi pacificada pela Suprema Corte, quando, com fundamento nos Atos Institucionais, afirmou serem válidos os Decretos-leis expedidos entre 24 de Janeiro e 15 de Março de 1967 (Súmula 496), ainda que definidores de crimes, como sucedeu com o Decreto-Lei 201/67, que definiu os crimes de responsabilidade de prefeitos e vereadores.

Há, ainda, quem entenda haver sido o art. 70 da Lei 4.117/62 revogado pelo art. 183 da Lei 9.472/97.

Não se deve, porém seguir esse entendimento. Após a Emenda Constitucional no 8, de 15 de agosto de 1995, a exploração dos serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens passaram a ser tratados distintamente.

Antes da Emenda Constitucional no 8, estava posto na Lei Maior:

"Art. 21. Compete à União:

(...)

XI. explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado, através da rede pública de telecomunicações explorada pela União;

XII. explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens e demais serviços de telecomunicações." (Grifos nossos)

A partir da Emenda, a Constituição passou a dizer:

"Art. 21. Compete à União:

(...)

XI. explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

XII. explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a)os serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens."

Assim, foram introduzidas as seguintes alterações:

1) A autonomia dos serviços de radiodifusão frente aos serviços de telecomunicações;

2) Possibilidade de os serviços de telecomunicações (em que não mais estão inclusos os de radiodifusão) serem explorados por empresas privadas.

Daí, diante da sistematicidade e completude do ordenamento jurídico, emergiu a necessidade de ser votada a Lei 9.472/97, que dispôs "sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional no 8, de 15 de agosto de 1995", visando a permitir a implementação da privatização desses serviços.

Excluídos, pois, estão os serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens, que permanecem sendo regidos pela Lei 4.117/62, conforme mesmo diz o art. 215, I da Lei 9.472/97, verbis:

"Art. 215. Ficam revogados:

I – a Lei no 4.117, de 27 de agosto de 1962, salvo quanto a matéria penal não tratada nesta Lei e quanto aos preceitos relativos à radiodifusão;"

Note-se que essa lei menciona, em três dispositivos (arts. 158, III; 162, caput § 1º e 211, parágrafo único), os serviços de radiodifusão, mas o faz tão-somente para que a ANATEL possa também fiscalizar as emissoras de radiodifusão, na medida em que tanto os serviços de telecomunicações como os de radiodifusão são explorados dentro de um mesmo e limitado espectro de radiofreqüência, ainda que através de procedimentos técnicos diversos.

Desse modo, com relação às sanções penais previstas no art. 183 da Lei no 9.472/97, essas aplicam-se apenas à exploração clandestina de serviços de telecomunicações, como está posto, verbis:

“Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação:

Pena - detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime."

Por sua vez, no tocante às sanções penais pela exploração clandestina de serviços de radiodifusão, essas permanecem disciplinadas pelo art. 70 da Lei 4.117/62, vigente até a presente data.


IV. DO DANO

Um outro aspecto bastante divergente nessa matéria diz respeito à ausência ou não de crime quando a freqüência da rádio é incapaz de perturbar a paz pública ou de pôr em perigo as comunicações.

Ocorre que o crime descrito no art. 70 da Lei 4.117/62 é de mera conduta, como diz Júlio Frabbini Mirabete, verbis:

"Nos crimes de mera conduta (ou de simples atividade) a lei não exige qualquer resultado naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente. Não sendo relevante o resultado material, há uma ofensa (de dano ou de perigo) presumida pela lei diante da prática da conduta." (Manual de Direito Penal, 13a edição, p. 130)

Com efeito, o dano efetivo, no crime em comento, aparece apenas como causa de aumento, como se vê, verbis:

"Constitui crime punível com a pena de detenção de 1(um) a 2(dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos".

Assim, pratica o crime previsto no retromencionado dispositivo quem instala ou utiliza serviço de radiodifusão clandestinamente, ou quem, ainda que autorizado, venha-o utilizando com condições técnicas alteradas, sem o conhecimento da ANATEL, fato que, mui amiúde, ocorre quando se ultrapassa limites impostos na Lei no 9.612/98 e no comando normativo insculpido no art. 157 da Lei 9.472/97 , verbis:

Lei 9.612/98

Art.1o

(...)

§1o Entende-se por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado a comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros.

Lei 9.472/97

Art. 157. O espectro de radiofreqüências é um recurso limitado, constituindo-se em bem público, administrado pela Agência.


V. DA NATUREZA DO SERVIÇO

Com relação à natureza dos serviços prestados (caso políticos-partidários, filantrópicos ou, ainda, comerciais), outra polêmica emerge: há o crime quando a rádio presta-se, exclusivamente, a serviços de filantropia, culturais, religiosos?

Clandestinidade, no dizer de Iêdo Batista Neves, é:

"CLANDESTINIDADE, s.f. – Diz-se da ocultação ilegal. Diz-se, também, do vício que se reveste o ato ou fato, por falta de notoriedade ou de publicidade prescrita em lei."

Destarte, não há que confundir o conceito de clandestinidade com a natureza dos serviços prestados, porquanto tal vocábulo refere-se apenas à ausência de autorização ou funcionamento irregular da rádio.

Portanto, antes de vislumbrar o jurista a natureza dos serviços prestados, deve-se analisar a clandestinidade da rádio. Tratam-se, em verdade, de condutas diversas com sanções diversas: a) clandestinidade da rádio, sanção penal; b) desvio de finalidade, sanção administrativa ou pecuniária (advertência, multa e cancelamento da autorização).


VI. UMA NOVA PROPOSTA

Difícil, todavia, é, para um juiz, engolir o Direito para ter que agarrar à legalidade. Afinal, enquadrando-se a conduta de alguém no tipo penal, haverá o crime. Portanto, surge uma indagação:

Deverá o juiz condenar à prisão um indivíduo faça surgir uma rádio, cujos recursos tecnológicos estejam longe de representar quaisquer riscos aos demais serviços de telecomunicações, bem como somente preste serviços de real utilidade à comunidade?

A estrita legalidade penal, no mencionado caso, não estaria sendo nociva à sociedade?

Por consectário, como proposta, o juiz, sempre deve sopesar os princípios, desgarrando-se da eterna legalidade. Com efeito, na situação fática posta, não houve lesão a qualquer bem jurídico.

Destarte, a sentença condenatória deve ser substituída por uma simples orientação e auxílio, para, futuramente, aquele mesmo indivíduo, respeite a lei penal.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITÃO, André Studart. Do crime das rádios clandestinas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/505. Acesso em: 16 abr. 2024.