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A necessidade de prévia participação do Poder Legislativo na denúncia de tratados internacionais

A necessidade de prévia participação do Poder Legislativo na denúncia de tratados internacionais

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Independentemente de sua posição hierárquica, um tratado internacional só deve ser denunciado por ato complexo, envolvendo dois poderes constituídos do Estado (Executivo e Legislativo), o que não ocorre na prática.

INTRODUÇÃO

No Brasil, a aplicação das normas de um tratado internacional depende de duas vontades, as dos Poderes Executivo e Legislativo. É seguido um procedimento bifásico de aprovação e incorporação do tratado ao direito interno.

Primeiro, o Poder Executivo negocia e assina o texto do tratado, depois submete esse texto a apreciação do Poder Legislativo que o aprova via decreto legislativo ou o rejeita, dando ciência via mensagem ao Presidente da República. A promulgação do decreto legislativo pelo Presidente do Senado autoriza o Poder Executivo a ratificar o tratado perante os demais Estados co-pactuantes. Após a ratificação, o Presidente da República promulga um decreto dando validade ao tratado no ordenamento jurídico interno.

A remessa de todo tratado ao Congresso Nacional para que o examine e, se assim julgar conveniente, aprove, faz-se por mensagem do Presidente da República, acompanhada do inteiro teor do projetado compromisso e da exposição de motivos que a ele, Presidente, terá endereçado o Ministro das Relações Exteriores. (REZEK, 2008, p. 65).

 Esse procedimento é explicitamente estabelecido na Constituição Federal, combinando-se o art. 49, I com o art. 84, VIII. O primeiro trata da competência do Congresso Nacional para resolver definitivamente sobre tratados internacionais. O segundo dispositivo versa sobre a competência do Presidente da República de assinar o tratado, podendo essa atividade ser delegada a um ministro de estado ou a outro servidor.

Assim, temos que para o Brasil ser signatário de determinado tratado, há a participação das vontades de ambos os Poderes. Não há como um tratado ser incorporado ao direito interno sem o referendo do Congresso Nacional, porque só este órgão legislativo pode resolver definitivamente sobre atos compromissivos do Estado.

Nesse contexto, não existem dúvidas sobre a obrigatoriedade da participação do Poder Legislativo na aprovação e incorporação de normas internacionais ao direito interno. Porém, quando nos referimos à denúncia de tratado, que é o ato pelo qual o Estado sai do compromisso internacional, não há na prática brasileira a participação do Congresso Nacional.

Assim, no presente trabalho defende-se a necessidade de participação do Legislativo na denúncia de tratados internacionais, explicando-se de que formas deve ser essa interferência. 


1 A POSIÇÃO HIERÁRQUICA OCUPADA PELOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Para melhor desenvolvimento do tema, importante se faz uma divisão dos tratados em duas classes distintas: a) tratados em matéria de direitos humanos e; b) tratados que versam sobre variadas temáticas.

Os tratados que versam sobre direitos humanos podem adentrar na esfera interna por procedimento equivalente ao de uma lei ordinária ou pelo procedimento especial que confere posição de emendas à Constituição. Já os demais tratados entrarão sempre com status de lei ordinária.     

Como vimos, o Executivo ao assinar o tratado com a intenção de nele se obrigar, necessariamente o submete ao Poder Legislativo. Assim, após aprovação com quorum mínimo da maioria simples de ambas as Casas do Congresso Nacional, o presidente do Senado Federal publica um decreto legislativo que autoriza o Presidente da República à ratificação do tratado. Após a ratificação, o Presidente da República edita um decreto executivo que será publicado no Diário Oficial da União, para fazer valer o tratado também na ordem interna. Nesse caso os tratados ingressam no direito interno com status ordinário. Pode esse tratado versar sobre direitos humanos ou não.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 45 de dezembro de 2004, surgiu a possibilidade de tratados que versem sobre direitos humanos ingressarem na ordem interna no mesmo patamar das emendas constitucionais, desde que aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, conforme §3º do artigo 5º da Lei Maior.

Observa Moraes (2007, p. 683) que “a opção de incorporação de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, nos termos do art. 49, I ou do §3º, do art. 5º, será discricionária do Congresso Nacional”.

Contrariando o pensamento de Moraes, ensina Rezek (2008, p. 102):

Não é de crer que o Congresso vá doravante bifurcar a metodologia de aprovação dos tratados sobre direitos humanos. Pode haver dúvida preliminar sobre a questão de saber se determinado tratado configura realmente essa hipótese temática, mas se tal for o caso o Congresso seguramente adotará o rito previsto no terceiro parágrafo, de modo que, se aprovado, o tratado se qualifique para ter estatura constitucional desde sua promulgação [...].

Claro está que, após o advento do referido dispositivo, somente os tratados sobre direitos humanos aprovados pelo procedimento especial terão hierarquia constitucional. Todavia, tal dispositivo silenciou sobre qual posicionamento hierárquico seria dispensado aos tratados sobre direitos humanos concluídos pelo Brasil antes da referida emenda, pelo que surgiram mais controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais.

Antes da EC nº 45/2004, embora pela interpretação dos artigos 4º, II e 5º, §2º da Constituição fosse possível a recepção dos tratados de direitos humanos sem a necessidade de qualquer procedimento interno de incorporação, o Supremo Tribunal Federal - STF considerava que todos os tratados, independentemente de versarem sobre assuntos materialmente constitucionais, como é o caso de tratados sobre direitos humanos, entravam na ordem jurídica interna com paridade de leis ordinárias.

[...] mesmo em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais, preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis ordinárias – RHC 79.785, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29-3-00, DJ de 22-11-02. (BRASIL, 2002, p. 57).

Com efeito, é pacífico na jurisprudência desta Corte que os tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico tão somente com força de lei ordinária (o que ficou ainda mais evidente em face de o artigo 105, III, da Constituição que capitula, como caso de recurso especial a ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça como ocorre com relação à lei infraconstitucional, a negativa de vigência de tratado ou a contrariedade a ele), não se lhes aplicando, quando tendo eles integrado nossa ordem jurídica posteriormente à Constituição de 1988, o disposto no artigo 5º, § 2º, pela singela razão de que não se admite emenda constitucional realizada por meio de ratificação de tratado – HC 72.131, voto do Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves, julgamento em 23-11-95, DJ de 1º-8- 03. (BRASIL, 2003, p. 103).

Com o advento do §3º no art. 5º, por via da referida Emenda, hoje se discute qual a posição hierárquica dos tratados em matéria de direitos humanos adotados anteriormente. Encontramos diferentes posicionamentos na doutrina e na jurisprudência. Rezek (2008, p. 103) supõe que tais tratados adquiriram nível constitucional independentemente de passarem pelo procedimento especial do §3º do art. 5º da Constituição:

[...] é sensato crer que ao promulgar esse parágrafo na Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional.

Para autores como Flávia Piovesan (2002, p. 77-78) e Valério de Oliveira Mazzuoli (2000, p.91), após a emenda constitucional nº 45, os tratados de direitos humanos se dividiram em duas categorias: os tratados em matéria de direitos humanos incorporados ao direito interno antes da referida EC seriam materialmente constitucionais por força do art. 5º, §2º da Constituição e, apesar de não ser parte do texto constitucional seriam equiparados a este. Já os materialmente e formalmente constitucionais seriam os aprovados pelo procedimento do art. 5º, §3ª da Carta Constitucional e fariam parte do texto constitucional.

Entretanto, esse não é o entendimento atual do STF. A Corte Constitucional discutiu sobre o problema da hierarquia dos tratados sobre direitos humanos vigentes no ordenamento sem que tenham sido ainda submetidos ao procedimento especial. Por conseguinte, surgiram teorias para explicar a hierarquia de todos os tratados. Na discussão dos ministros a respeito da temática, surgiram as teses de tratados com status: a)supraconstitucional; b)constitucional; c)supralegal e; d)legal.

A supraconstitucionalidade seria atribuída a tratados que versam sobre direitos humanos, tendo em vista tratarem de matéria universal, que não se sujeita à ordem de nenhum país.

A hipótese da supraconstitucionalidade foi afastada pelo STF por ser incompatível ao Princípio da Supremacia da Constituição, que no caso anularia a própria possibilidade de controle de constitucionalidade dos diplomas internacionais[1].

Os tratados com status constitucional seriam aqueles integrados pelo procedimento especial conforme dispõe o §3º do art. 5º da Constituição, introduzido pela EC 45/2004, in verbis:

Art. 5.º [...]

§3.º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Veja-se que o dispositivo se refere a tratados sobre direitos humanos sem qualquer ressalva, por isso, nada impede que os tratados sobre tal matéria, concluídos anteriormente ao advento da referida emenda, sejam submetidos à nova votação pelo Congresso Nacional atendendo os requisitos do dispositivo supracitado, conferindo-lhes status de emendas constitucionais. Para o STF, sem a satisfação dessas exigências, os aludidos tratados seriam supralegais, ou seja, estariam abaixo da Constituição e acima das demais leis[2]. Essa concepção considera tais tratados infraconstitucionais, contudo diante do caráter especial dessas normas em relação às demais leis infraconstitucionais, pois cuidam da proteção da pessoa humana, igualmente seriam dotadas de supralegalidade. 

Os tratados que versam sobre os demais assuntos só podem ser incorporados através do procedimento ordinário, portanto são os que teriam hierarquia legal. Como foi comentado, antes da EC 45/2004, o STF conferia hierarquia de lei ordinária aos tratados sobre direitos humanos, porém, atualmente, esse posicionamento foi abandonado.


2 A DENÚNCIA DE TRATADOS INTERNACIONAIS PELO BRASIL

 A vontade unilateral, também chamada de denúncia, ocorre quando um Estado decide sair do compromisso internacional. O texto convencional pode admitir expressamente a denúncia ou não, neste último caso a denúncia será possível dependendo da natureza do tratado. Vejamos o que diz a Convenção de Viena a respeito da denúncia:

Artigo 56.º- Denúncia ou retirada no caso de um tratado não conter disposições relativas à cessação da vigência, à denúncia ou à retirada 1 - Um tratado que não contenha disposições relativas à cessação da sua vigência e não preveja que as Partes possam denunciá-lo ou dele retirar-se não pode ser objeto de denúncia ou de retirada, salvo: a) Se estiver estabelecido que as Partes admitiram a possibilidade de denúncia ou de retirada; ou b) Se o direito de denúncia ou de retirada puder ser deduzido da natureza do tratado. 2 - Uma Parte deve notificar, pelo menos com 12 meses de antecedência, a sua intenção de proceder à denúncia ou à retirada de um tratado, nos termos previstos no n.º 1. (BRASIL, 1969, on line).

Mello (2004, p.259), citando Accioly (1993), conceitua a denúncia como sendo o “ato pelo qual uma das partes contratantes comunica à outra ou outras partes a sua intenção de dar por findo esse tratado ou de se retirar do mesmo”.

A denúncia é ato unilateral exteriorizado pelo Poder Executivo e se materializa por documento escrito destinado ao governo do Estado copactuante, no caso de tratados bilaterais, ou ao depositário, no caso de tratados multilaterais. Neste último caso as sucessivas denúncias de partes de um tratado não o extinguem se permanecerem nele pelo menos dois Estados.

Cabe salientar que existem tratados que não podem ser denunciados, como aqueles com prazo determinado, que naturalmente se extinguem com o termo ou por consentimento mútuo, e os de vigência estática que versam sobre linhas divisórias e cessão territorial onerosa (REZEK, 2008, p. 107).

 2.1 O procedimento atual adotado para a prática da denúncia

A doutrina internacionalista defende que a denúncia é de competência exclusiva do Poder Executivo, porque só este tem voz externa, ou seja, representa o Estado perante a sociedade internacional. Assim, se o Presidente da República decide sair do compromisso, basta somente denunciá-lo, sem a necessidade de referendo do Congresso.  Rezek (2008, p. 111-112), ao se pronunciar a respeito do assunto afirma esse posicionamento:

Tenho como certo que o chefe do governo pode, por sua singular autoridade, denunciar tratados internacionais – como de resto vem fazendo, com franco desembaraço, desde 1926. [...] Tudo quanto importa é que o tratado seja validamente denunciável: se não o é, por sua natureza, ou por impedimento cronológico convencionado, não há cogitar de denúncia lícita, e, pois, de quem seria competente, segundo o direito interno de uma das partes, para decidir a respeito.

Ora, a denúncia é sim um ato internacional de competência exclusiva do Executivo, mas a ratificação, que também tem essa mesma natureza, não pode ser praticada sem autorização do Legislativo. Entretanto, apesar da união de vontades dos dois Poderes para que o Estado se comprometa perante a sociedade internacional, não há a junção dessas mesmas vontades na iminência de uma denúncia. 

Quando o Poder Executivo resolve por si só que o Estado deve sair de um compromisso internacional, simplesmente faz a denúncia, comunicando aos demais Estados signatários que não pretende mais fazer parte do tratado. Em seguida, o Presidente da República promulga um decreto para que o tratado denunciado deixe de valer no âmbito interno.

A prática da denúncia por vontade unilateral do Executivo tem como fundamento um parecer emitido por Clóvis Beviláqua na função de consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, datado de 5 de julho de 1926, quando o Brasil pretendia denunciar o Pacto da Sociedade das Nações (CANÇADO TRINDADE, 1984, p. 91-93). O jurista foi favorável à denúncia do referido tratado por decisão unilateral do Executivo sob os seguintes argumentos: a) quando há no tratado a cláusula da denúncia, o Executivo apenas exerce o direito de extingui-lo, declarado no texto aprovado pelo Congresso; b) a cláusula de denúncia é uma condição resolutiva, assim como ocorre com leis cuja vigência termina quando ocorre a condição resolutiva; c) É atribuição do Executivo denunciar tratados porque é ele quem os celebra, pois a Constituição atribui a esse Poder a representação do País perante as demais nações.

Após o parecer de Beviláqua, até hoje o Executivo tem praticado reiteradamente denúncias sem o referendo do Congresso Nacional. A exemplo de tratado denunciado por vontade unilateral do Executivo, podemos citar o Decreto nº 2.100/96 que deu publicidade à denúncia da Convenção n° 158 da Organização Mundial do Trabalho.

Após o ato de denúncia praticado pelo Executivo, o Presidente da República promulga um simples decreto para revogar o tratado também no âmbito interno. Todavia, essa prática de denúncia sem consulta ao órgão legislativo e com a simples promulgação de decreto executivo para revogação de tratado não se coaduna com a lógica e os mandamentos constitucionais, conforme veremos nos próximos tópicos.  

2.2 Princípios violados

 A imprescindibilidade de participação do Parlamento previamente a denúncia de tratados internacionais fica evidente quando confrontamos a pratica brasileira atual de denunciar tratados com algumas teorias e princípios presentes em nosso ordenamento jurídico.

No Brasil impera o Princípio do Estado Democrático de Direito, segundo o qual é a vontade do povo que predomina, e esta é exercida mediante representantes eleitos. Dessa forma, os atos do Congresso Nacional é a expressão da vontade popular.

Nesse contexto, quando há aprovação do texto de um tratado, seja qual for o procedimento legislativo adotado, o que está por trás do ato de aprovação é o princípio da soberania popular, que legitimou tal ato.

Assim, não faz sentido um tratado já incorporado ao direito interno, sacramentado pela vontade popular, ser retirado do ordenamento jurídico sem o consentimento do povo através de seus representantes.

Além disso, o Art. 49, inciso X da Constituição Federal trata da competência exclusiva do Congresso Nacional de controlar e fiscalizar os atos do Poder Executivo. A Carta Magna traz um rol de dispositivos que determinam o controle dos atos do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo em conformidade com o sistema de freios e contrapesos, oriundo do Princípio da Separação dos Poderes. Segundo esse princípio cada poder constituído exerce sua função de forma autônoma e independente, no entanto, um poder complementa o outro, ou seja, o exercício dessa função é controlado pelos outros Poderes. Dessa forma, cumpre-se o art. 2º da Constituição Federal que dispõe serem os poderes independentes e harmônicos entre si. A violação ocorre quando não há um controle por parte do órgão legislativo sobre o ato de denunciar tratados.   

O decreto executivo que declara a vigência de determinado tratado tem como base o decreto legislativo de aprovação e o texto desse mesmo tratado. Portanto, apenas regulamenta a execução de ato normativo do Poder Legislativo, dando execução à norma internacional no âmbito jurídico interno. Nesse contexto, o decreto regulamentar não tem o condão de criar ou extinguir direitos e obrigações, mas apenas de dar aplicabilidade à norma aprovada pelo Congresso, atendendo assim ao Princípio da Legalidade, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF).

Porém, quando se trata de denúncia de tratado, esse decreto executivo passa a ser um decreto autônomo, eis que não regulamenta ato normativo oriundo do Poder Legislativo. Trata-se de um ato primário por meio do qual o Poder Executivo ao decretar a perda da vigência de um tratado, na verdade está inovando de forma inicial a ordem jurídica, criando ou extinguindo direitos e obrigações.

Na verdade, a única possibilidade de edição de decreto autônomo capaz de inovar na ordem jurídica é aquela admitida pela Constituição Federal, que autoriza o Poder Executivo disciplinar, através de decreto, acerca da organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos, bem como a extinção e funções ou cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI), de modo que, a prática reiterada de denúncias de tratados por meio dessa espécie normativa, não se coaduna com o ordenamento jurídico pátrio.

2.3 Acerca da (im)possibilidade de denúncia de tratados sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil

Em relação aos tratados sobre direitos humanos, parte da doutrina não considera denunciáveis os tratados material e formalmente constitucionais, ou seja, aqueles aprovados pelo procedimento de emendas constitucionais. Segundo ensina Flávia Piovesan (2005, p.75):

Já os tratados materialmente e formalmente constitucionais não podem ser objeto de denuncia. Isto porque os direitos neles enunciados receberam assento no texto constitucional, não apenas pela matéria que veiculam, mas pelo grau de legitimidade popular contemplado pelo especial e dificultoso processo de sua aprovação, concernente à maioria de três quintos dos votos dos membros, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação.

Quanto aos tratados de direito humanos incorporados ao direito interno pelo procedimento ordinário, Flávia Piovesan os considera apenas materialmente constitucionais, eis que por força do art. 5º, §2º da Constituição, complementam o catálogo de direitos fundamentais previstos no texto constitucional:

A Constituição assume expressamente o conteúdo constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que esses direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Carta lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo texto constitucional.(PIOVESAN, 2013, p. 75).  

Segundo o entendimento da autora supracitada, os tratados materialmente constitucionais são alcançados pelo art. 60, §4º, IV da Constituição da República, não sendo passíveis de revogação ou modificação no âmbito interno, nem mesmo via emenda constitucional, mas são suscetíveis à denúncia:

     (...) embora os direitos internacionais sejam alcançados pelo art. 60, § 4°, e não possam ser eliminados via emenda constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos materialmente constitucionais são  suscetíveis à denuncia por parte do estado signatário. (PIOVESAN, 2002, p. 75).  

Sendo assim, conclui-se que para a autora supramencionada somente os tratados com status de lei ordinária e aqueles considerados pela jurisprudência como supralegais são passíveis de denúncia, embora somente os primeiros possam perder sua vigência no âmbito interno.

Ocorre que no nosso entender, denunciar tratado internacional é exatamente desobrigar-se de cumprir suas regras. Não faz sentido denunciar um tratado se o mesmo permanecerá com todos os seus efeitos na ordem interna. Então, considerando o princípio esculpido no art. 60, §4º, IV da Constituição da República, o melhor entendimento seria considerar que um tratado de direitos humanos em nenhuma hipótese poderia ser denunciado.

A respeito da possibilidade ou não da denúncia de tratados de direitos humanos ainda não há uma posição pacificada, sendo certo que é possível ocorrer denúncias, independentemente da posição hierárquica do tratado. Diante dessa possibilidade, adiante especularemos os modos de participação legislativa para cada caso de denúncia, inclusive dos tratados sobre direito humanos.

2.4 Os modos de participação legislativa ante o ato internacional da denúncia

   Segundo o art. 49, inciso I, da Constituição Federal, é o Legislativo quem resolve definitivamente sobre os compromissos internacionais do Estado. O termo resolver constante no dispositivo constitucional significa que há a obrigatoriedade de deliberação congrecional. E esse ato não está restrito somente no que diz respeito à entrada do Estado em um compromisso internacional. O dispositivo citado não determina que o momento de sua participação seja apenas o de aprovação do texto convencionado.  

Só quando o Legislativo delibera é que o Estado pode ratificar determinado compromisso internacional. Então, como aceitar que o Executivo, por sua vontade singular, denuncie um tratado, sem consultar o órgão que lhe deu autorização para ratificá-lo? Pois um tratado em tramitação no Congresso é analisado por várias comissões, que aprovam o texto quando verificam que o acordo é bom para o País e que atende aos seus interesses.

 A participação do Congresso Nacional no ato de denúncia seria variável em relação a cada tipo de tratado, conforme veremos adiante. Entretanto, convém antes explanarmos os casos em que o próprio texto do tratado se refere ao ato de denúncia.

Conforme vimos, a tese de Beviláqua sobre tratados referendados pelo Congresso que trazem em seu texto a cláusula da denúncia, pode ser resumida na seguinte afirmativa: se o Legislativo já se manifestou a respeito da cláusula da denúncia, não há razão de um novo referendo para a prática desse ato internacional. Ou seja, a cláusula da denúncia deve ser considerada como as demais cláusulas do tratado e assim colocada em prática sem a necessidade de uma nova manifestação congressional.

Porém, é forçoso admitirmos que os argumentos do jurista não se sustentam, pois a aprovação pelo Congresso da cláusula que prevê a possibilidade e procedimento da denúncia de determinado tratado não implica na análise da conveniência e do momento de efetivamente denunciá-lo. Isso quer dizer que, politicamente e economicamente falando, o momento em que o Executivo decide pela denúncia de determinado tratado é diferente daquele em que houve a aprovação e a ratificação, podendo tal denúncia ser necessária ou prejudicial ao Estado.

A atribuição Congressional de decidir definitivamente sobre um compromisso internacional é justamente para evitar danos gravosos ao Estado. Nesse sentido, o referendo de aprovação para a ratificação não tem o condão de evitar prejuízos no caso de saída do mesmo compromisso, prescindindo de uma nova manifestação do órgão legislativo, agora no que se refere à denúncia.

   Comungamos com a doutrina majoritária que também a vontade executiva de sair de um compromisso internacional seja referendada pelo órgão legislativo, pois a atribuição constitucional do Executivo para celebrar tratados não o exime da obrigatoriedade de submeter ao crivo do Poder Legislativo sua pretensão de obrigar e desobrigar o Estado às normas convencionadas. Nesse sentido, Cançado Trindade (2000-2004, p 421) afirma que:

Pessoalmente, sou pela redução da discricionariedade do Executivo na execução ou implementação especificamente dos tratados humanitários, incluídas aqui as Convenções internacionais do trabalho, que, de lege refereda, deveriam, a meu ver, ter sua denuncia igualmente sujeita, em nosso direito, à previa autorização parlamentar. 

Conforme vimos, no ordenamento jurídico brasileiro os tratados internacionais podem ocupar diferentes posições hierárquicas, dependendo da matéria que versa e da forma como ele é aprovado. Assim, para a denúncia o certo seria seguir o mesmo procedimento legislativo de aprovação, ou seja, com a participação do Poder Legislativo previamente ao ato de denuncia. Sobre esse entendimento temos como referencia Flávia Piovesan (2002,p.99), que aduz:

Cabe considerar, todavia, que seria mais coerente aplicar ao ato da denúncia o mesmo processo aplicável ao ato de ratificação. Isto é, se para a ratificação é necessário um ato complexo, fruto da conjunção de vontades do Executivo e Legislativo, para o ato da denúncia também deveria ser o mesmo procedimento.   

Assim, os tratados em matéria de direitos humanos incorporados ao sistema jurídico pelo procedimento especial, ou seja, aquele disposto no §3.º do artigo 5.º da CF/88, logicamente só poderão ser denunciados com a comunhão de vontades. Isso porque não se pode cogitar que normas de nível constitucional possam ser excluídas do texto sem que a Constituição seja emendada.

Portanto, para que o Executivo renegocie ou até mesmo denuncie um tratado desse nível dependerá da aprovação congrecional atendendo-se o mesmo procedimento legislativo dispensado às emendas constitucionais.

No caso dos tratados de nível supralegal, ou seja, tratados sobre direitos humanos mas que foram incorporado pelo procedimento ordinário, também cogitamos da necessidade de referendo do Congresso Nacional, haja vista que além da existência da conjunção de vontades no processo de aprovação e incorporação, há também um caráter especial da norma, porque trata de direitos humanos, não podendo ser denunciado por livre arbítrio do Poder Executivo.

Assim, a denúncia de tratados com status de supralegalidade não pode ser autorizada por meio de decreto executivo. Nesse contexto, tratando-se de tratados que estão acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição, um decreto legislativo também não teria força para revogar tais normas.

Porém, a despeito de serem tratados supralegais, o mais coerente é que a denúncia seja autorizada pelo mesmo procedimento legislativo de incorporação; porque também não seria lógico a utilização do procedimento especial contido no §3.º do artigo 5.º da CF/88, uma vez que na pirâmide hierárquica das normas, eles se encontram um patamar abaixo da Constituição, não lhes foi atribuído status constitucional. Assim, somente após promulgação do Decreto Legislativo, caberá ao Presidente da República denunciar o tratado, em seguida regulando-a por meio de decreto.

Quanto ao tratado de nível ordinário, o Executivo deve ouvir o Órgão Legislativo, já que também foi desse a decisão que possibilitou o ingresso da norma no direito interno. Nesse caso bastaria também a promulgação de um decreto legislativo autorizando a denúncia por parte do Executivo. Neste último caso, após a denúncia, o Presidente da República edita um decreto informando a revogação do tratado, como normalmente vem fazendo.

Cabe ressaltar que a participação do Legislativo não retira a prerrogativa do Executivo de iniciativa do processo legislativo visando a denúncia. Assim como ocorre para a ratificação, se o Poder Executivo tem interesse em denunciar determinado tratado, bastaria submeter sua intenção a apreciação do Congresso Nacional, por meio de mensagem e exposição de motivos. O Congresso verificaria em qual posição o tratado a ser denunciado se encontra no ordenamento jurídico pátrio, para determinar qual o procedimento legislativo deve ser seguido. Em caso de rejeição da intenção de denúncia, o Congresso apenas envia mensagem ao Presidente da República informando-o da decisão.

A necessidade de participação congrecional previamente ao ato de denúncia é tão evidente que existe a possibilidade do Legislativo, por sua vontade singular provocar a denúncia. Se somente ele desaprova um tratado já com vigência, tal fato há de determinar a denúncia.

A respeito, Rezek (2008, p. 111-112) tem o posicionamento de que o Congresso poderá determinar ao Governo, por via de lei ordinária, que denuncie o tratado. Caso a lei seja vetada pelo Presidente da República, por este não concordar com a denúncia, o veto poderá ser derrubado pelo Congresso se, em sessão conjunta, for atingido o quorum de maioria absoluta dos membros de cada casa congressional. Esse procedimento legislativo está disciplinado na Constituição Federal.           

Art. 64. [...]

§4º. O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto.

§5º. Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República. (BRASIL, 1988, on line).

Essa é a única forma hábil para o Congresso provocar a denúncia do tratado, mesmo contra a vontade do Presidente da República. Após a promulgação da lei ordinária, o tratado não terá mais eficácia no âmbito interno, não poderá ser invocado nos tribunais já que no Brasil vigora o princípio de que lex posterior derogat priori e, por essa razão, não fará mais sentido para o País manter-se obrigado perante a ordem jurídica internacional. Além disso, manter-se obrigado na ordem jurídica externa sem cumprir o tratado no âmbito interno seria um ilícito internacional capaz de gerar prejuízos ao Estado.

Ressalte-se que este último procedimento se refere apenas aqueles tratados incorporados pelo procedimento legislativo ordinário, não se aplicando aos tratados de direitos humanos.     


3 A DISCUSSÃO DO ATO INTERNACIONAL DA DENÚNCIA EM SEDE DE CONTROLE DIRETO DE CONSTITUCIONALIDADE

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 foram aprovados pelo Congresso Nacional com status de emendas constitucionais, ou seja, de acordo com o §3.º do artigo 5.º da CF/88.

O decreto executivo que regulamentou tais tratados no âmbito interno, dispõe que qualquer modificação a respeito desse tratado, só será possível via referendo do Congresso Nacional. Essa assertiva foi reconhecida no próprio texto do decreto executivo nº 6.949 de 25 de agosto de 2009, que deu publicidade ao texto dos referidos documentos:

Art. 2o  São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão dos referidos diplomas internacionais ou que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, nos termos do art. 49, inciso I, da Constituição. 

Podemos considerar que o caso supramencionado demonstra uma mudança de entendimento com relação à denúncia de tratados internacionais. Mas, tal entendimento é recente, além do mais se refere a um tratado de direitos humanos. De fato, o que sempre ocorreu foram denúncias realizadas pela exclusiva vontade do Poder Executivo.

 Por exemplo, está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a denúncia da Convenção nº 158 da OIT, que o Presidente da República tornou pública por meio do Decreto nº 2.100/96. Foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1625 em face da referida denúncia por ter sido ela unilateral, ou seja, sem o referendo do Congresso Nacional. Esta Adin levou ao STF a discussão em torno da qual se questiona a vontade unilateral do Executivo em se desligar de um tratado internacional, já que para este ter validade precisa também da vontade positiva do Legislativo.   

Iniciado o julgamento da referida Adin, alguns Ministros do Supremo, entre eles o Relator Ministro Maurício Corrêa, votaram pela procedência em parte, reconhecendo a necessidade de referendo do Congresso Nacional para denunciar tratados, embora dando interpretação conforme a Constituição ao Decreto nº 2.100/96.[3]

Porém, o Ministro Nelson Jobim pediu vistas ao processo e, em pauta posterior, divergiu do voto do relator por entender que englobou, no ato de aprovação do Congresso, a aceitação tácita da possibilidade de o Poder Executivo por si só denunciar, tendo em vista que o art. 17 da própria Convenção expressamente previu o ato. Além disso, entendeu que a função do Congresso é de evitar a aplicação interna das normas convencionadas e não de negociá-las, assiná-las ou denunciá-las.[4]

Pelo visto, o Ministro Nelson Jobim repetiu a tese de Clóvis Beviláqua que hoje vem sendo rechaçada pela doutrina majoritária, no que diz respeito a simples execução da cláusula de denúncia

Na ocasião do voto do Ministro Nelson Jobim, o Ministro Joaquim Barbosa pediu vista ao processo e em sessão posterior rebateu todos os votos já proferidos.[5]

   Em relação ao Ministro Joaquim Barbosa, seu voto abordou importantíssimos aspectos relacionados aos efeitos de uma possível declaração de inconstitucionalidade. Em voto-vista julgou a Adin totalmente procedente por entender não ser possível o Presidente da República, por ato unilateral, denunciar o tratado, principalmente quando a matéria versar sobre direitos humanos como a Convenção questionada. Segundo ele, a Constituição não prevê a participação do Congresso no ato de denúncia, mas também não o exclui. A função do Parlamento em aprovar ou reprovar um tratado decorre de um ato de vontade.

Acrescentou que pela interpretação do art. 1º do Decreto Legislativo nº 68/92, que aprovou a Convenção 158 da OIT, ficou prevista a intervenção do Congresso Nacional no caso de denúncia e que, além disso, um tratado de status supralegal não poderia ser denunciado por vontade exclusiva do Executivo, pois assim estaria reduzindo arbitrariamente a proteção da pessoa humana.

O Ministro Joaquim Barbosa também julgou inadequada a interpretação conforme a Constituição do decreto impugnado, segundo votara o Ministro Relator, porque a interpretação deve ser aplicada por violação material e não formal.

Cabe salientar que a denúncia, uma vez proferida no plano internacional, não poderá ser declarada inconstitucional, pois a declaração não causaria qualquer efeito nas relações internacionais. O que poderá ser declarado inconstitucional é o decreto que deu publicidade interna à denúncia. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade que eventualmente seja proferida no julgamento final da Adin também foram abordados no voto do Ministro Joaquim Barbosa, tendo em vista que no plano internacional o Brasil não tem mais obrigação de cumprir o tratado:

1) a declaração de inconstitucionalidade somente teria o efeito de tornar o ato de denúncia não-obrigatório no Brasil, por falta de publicidade. Como conseqüência, o Decreto que internalizou a Convenção 158 da OIT continuaria em vigor. Caso o Presidente da República desejasse que a denúncia produzisse efeitos também internamente, teria de pedir a autorização do Congresso Nacional e, somente então, promulgar novo decreto dando publicidade da denúncia já efetuada no plano internacional; 2) a declaração de inconstitucionalidade somente atingiria o Decreto que deu a conhecer a denúncia, nada impedindo que o Presidente da República ratificasse novamente a Convenção 158 da OIT – Informativo nº 549 do STF de 12/06/2009. (BRASIL, 2009, on line).

A matéria até o momento não foi pacificada. Após o voto do Ministro Joaquim Barbosa, a Ministra Ellen Gracie também pediu vista dos autos e a demanda estava parada desde 2009.

Somente em 11/11/2015 o STF retomou o julgamento, ocasião em que a Ministra Rosa Weber, sucessora da Ministra Ellen Gracie (aposentada), apresentou seu voto na sessão, julgando pela inconstitucionalidade formal do decreto executivo que deu publicidade à denúncia da Convenção.

O voto da Ministra Rosa Weber, partiu da premissa de que leis ordinárias não podem ser revogadas por decretos executivos, eis que a Convenção nº 158 da OIT é aprovada por meio de decreto legislativo e, portanto, possuindo status de lei ordinária, não pode deixar de valer na esfera interna sem que outra lei a revogue.

Segundo a Ministra:

“A derrogação de norma incorporadora de tratado pela vontade exclusiva do presidente da República, a meu juízo, é incompatível com o equilíbrio necessário à preservação da independência e da harmonia entre os Poderes (artigo 2º da Constituição da República), bem como com a exigência do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV)”,              

Após o voto da Ministra Rosa Weber, o Ministro Teori Zavascki pediu vista.    

Conforme já exposto, todo decreto executivo deve regulamentar lei pré-existente, com exceção do art. 84, VI da CF. Assim, não poderia ser diferente quando nos referimos ao decreto que publica determinada denúncia de tratado internacional, pois sem o referendo do Congresso Nacional é na verdade um regulamento autônomo, ou seja, decreto que não tem o condão de regulamentar uma lei, visando a sua aplicabilidade, pois tão somente inova na ordem jurídica na medida em que cria ou extingue direitos e obrigações.

Há na jurisprudência do STF o entendimento de que quando o decreto regulamentar não precede lei, ou seja, quando ele inova na ordem jurídica, poderá ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade, conforme se verifica no acórdão proferido, in verbis:                       

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de liminar. Decreto n. 409, de 30.12.91. - Esta Corte, excepcionalmente, tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo, o que da margem a que seja ele examinado em face diretamente da Constituição no que diz respeito ao princípio da reserva legal. [...]. (ADI 708 / DF, DJ 07-08-1992 PP-11778).

Podemos concluir que o Decreto nº 2.100/96, que deu publicidade a denúncia da convenção nº 158 da OIT é um regulamento autônomo, e isso se confirma pelo fato de ele ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade.

Por fim, o que for decidido pelo STF não terá o condão de restabelecer o acordo no plano internacional, a decisão final somente terá efeitos internamente, eis que uma vez denunciado o tratado, o Brasil não tem mais obrigação em relação aos co-pactuantes. Entretanto, com a invalidação do decreto executivo que deu publicidade à denúncia, a força normativa do tratado será restabelecida no plano interno, eis que

Nada impede que o Presidente da República inicie o processo legislativo para que, com a aprovação do Congresso Nacional, a denúncia seja efetivada na esfera interna. Ou, como disse o Ministro Joaquim Barbosa, a Convenção poderá ainda ser novamente ratificada.


CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Embora a denúncia seja um ato praticado de acordo com as regras do Direito Internacional que, por definição, compete ao Chefe de Estado, que no caso do Brasil é o Presidente da República, a Constituição Federal determina que o Congresso Nacional é competente para resolver definitivamente sobre tratados internacionais, sem referência a qual momento deve ocorrer a interferência do Poder Legislativo.

Na ordem jurídica brasileira, o Executivo negocia, assina e submete o texto do tratado ao Congresso Nacional, para somente após sua aprovação poder ratificar ou aderir o texto negociado junto aos demais estados co-pactuantes. Assim, os tratados internacionais só podem fazer parte do ordenamento jurídico interno através de um ato complexo, que envolve os dois Poderes.

Entretanto, o mesmo não acontece quando nos referimos à saída do compromisso internacional. Na pratica brasileira, o ato de denúncia ocorre pela exclusiva vontade do Poder Executivo.

A falta de referendo do Congresso Nacional para aprovação ou não do ato de denúncia por parte do Executivo atinge vários princípios jurídicos basilares presentes no direito brasileiro, entre eles, o Princípio Democrático e o Princípio da Separação dos Poderes.

Além desses princípios, a prática também não coaduna com o princípio adotado pelo ordenamento de que lei posterior revoga lei anterior, haja vista que os tratados deixam de valer na ordem jurídica interna por simples decreto executivo.

Também verificamos que o Legislativo, ao apreciar um tratado com vistas à sua aprovação, na realidade, está exercendo um controle sobre os atos praticados pelo Executivo. Mas ocorre a falta desse controle na hora da retirada do País do compromisso internacional, porque o Poder Legislativo fica totalmente alheio ao ato de denúncia de tratados por ele aprovados.

O procedimento legislativo interno para a aprovação da denúncia deveria corresponder àquele pelo qual houve a aprovação para a ratificação ou adesão, inclusive para os tratados supralegais, pois embora se posicionem acima das leis ordinárias, foram aprovados pelo procedimento ordinário. Assim, com o referendo do Congresso Nacional, o decreto executivo serviria tão somente para regulamentar a aprovação legislativa do ato de denúncia.

Diante de tais conclusões, afirmamos que é imprescindível a atuação do Congresso Nacional previamente ao ato de denúncia de tratados internacionais que estejam integrados no ordenamento jurídico pátrio. 


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Notas

[1] A tese de supraconstitucionalidade foi esboçada pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do HC 79.785. O Ministro   Gilmar Mendes rechaçou tal hipótese com base no princípio da supremacia da Constituição.

[2] No julgamento do RE 466.343/SP o Min. Gilmar Mendes defendeu a supralegalidade do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº. 27 de 26-05-1992, e promulgada pelo Decreto nº. 678, de 06-11-1992) .

[3] Matéria publicada no Informativo nº 323 do STF em 31/10/2003, com o título Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral.

[4] Matéria publicada no Informativo nº 421 do STF em 29/03/2006, com o título Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral-2.

[5] Matéria publicada no Informativo nº 549 do STF em 12/06/2009, com os títulos Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral-3, Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral-4, Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral-5, Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral-6 e Convenção 158 da OIT e Denúncia Unilateral-7.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Diana. A necessidade de prévia participação do Poder Legislativo na denúncia de tratados internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4797, 19 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51411. Acesso em: 23 abr. 2024.