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O ininteligível julgamento do Senado no impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff

O ininteligível julgamento do Senado no impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff

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Texto baseado no Mandado de Segurança por mim impetrado em face da inconstitucional divisão do julgamento, no impeachment da Presidente Dilma Roussef.

Conforme amplamente divulgado na mídia nacional e internacional, no dia 02.12.2015, a Presidência da Câmara dos Deputados recebeu e autuou a Denúncia por Crime de Responsabilidade (DCR) n° 1, de 2015, oferecida por Miguel Reale Júnior, Hélio Pereira Bicudo e Janaína Conceição Paschoal, subscrita pelo Advogado Flávio Henrique Costa Pereira contra a Excelentíssima Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, atribuindo-lhe a prática, em tese, dos crimes de responsabilidade tipificados no art. 85, V, VI e VII, da Constituição Federal, e art. 4, V e VI, art. 9, itens 3 e 7, art. 10, itens 6 a 9 e art. 11, item 3, todos da Lei 1.079/1950.

Nos meses que se seguiram, o feito transcorreu de forma regular, dentro dos parâmetros legais e constitucionais, até a ocorrência de atos notoriamente paralelos à realidade constitucional brasileira.

 Durante a fase de julgamento, iniciada em 25.08.16, foram realizados os debates orais entre as partes, bem como a discussão da matéria pelas Senhoras e pelos Senhores Senadores, oportunidade em que 63 (sessenta e três) parlamentares fizeram uso da Tribuna, seguido de uma constitucionalmente inexplicável bipartição do julgamento em 2 (dois) atos, numa clara intenção de amenizar a pena da Ré, e rasgar o texto constitucional.

                                    Tal excrecência jurídica teve origem com o pleito, no início da sessão, do Partido dos Trabalhadores, representado pelo Senador Humberto Costa, que formulou requerimento ao Presidente pedindo que o julgamento fosse dividido em duas partes: uma sobre a perda do cargo, e a segunda sobre a inabilitação para o exercício das funções públicas por oito anos, tendo tal pleito sido deferido, violando o texto expresso da Constituição Federal de 1988:

“Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

(...)

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”

Importa esclarecer, de forma inicial, que o parágrafo único do dispositivo supracitado é dotado de claridade hermenêutica ao aduzir que, no caso de crime de responsabilidade praticado pelo Presidente da República, a condenação imposta será "à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública".

A expressão "perda do cargo, com inabilitação" transmite a clara ideia de cumulação (e não de independência). Admitir interpretação em contrário, no sentido da independência entre as penas de perda do cargo e de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos, é evidentemente inconstitucional.

Ademais, no art. 52, parágrafo único, initio é, também, aduzido que: “limitando-se a condenação, que somente será proferida...”. Sem embargo, não há menção a mais de uma votação. Em suma, a condenação decorre de uma única votação e as sanções dela decorrentes não são, por força constitucional, independentes.

                  Nessa toada, cumpre, como argumento de reforço, esclarecer que caso a intenção do constituinte originário fosse admitir a dispensa da segunda sanção (inabilitação para o exercício de função pública por oito anos), teria ele utilizado a seguinte locução: " perda do cargo, com ou sem inabilitação ". Essa é a locução prevista, por exemplo, no art. 5º, LXVI.

“Art. 5º, LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;"

                  A intepretação do dispositivo constitucional acima apresentada não é, por evidente, isolada. A doutrina constitucionalista é quase uníssona ao afirmar que as penas são cumulativas e não independentes. 

"A Constituição prevê em seu art. 52, parágrafo único, as duas sanções autônomas e cumulativas a serem aplicadas na hipótese de condenação por crime de responsabilidade: perda do cargo e inabilitação, por oito  anos, para o exercício de função pública." (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32ª ed., São Paulo: Atlas, 2016, p. 768).

                Essa, inclusive, foi a posição do eminente Ministro Carlos Veloso, quando do julgamento do MS 21.689:

“(...) No sistema do direito anterior a Lei 1.079, de 1950, isto é, no sistema das Leis n.s 27 e 30, de 1892, era possível a aplicação tão somente da pena de perda do cargo, podendo esta ser agravada com a pena de inabilitação para exercer qualquer outro cargo (Constituição Federal de 1891, art. 33, par. 3.; Lei n. 30, de 1892, art. 2.), emprestando-se a pena de inabilitação o caráter de pena acessória (Lei n. 27, de 1892, artigos 23 e 24). No sistema atual, da Lei 1.079, de 1950, não é possível a aplicação da pena de perda do cargo, apenas, nem a pena de inabilitação assume caráter de acessoriedade (C.F., 1934, art. 58, par. 7.; C.F., 1946, art. 62, par. 3. C.F., 1967, art. 44, parag. único; EC n. 1/69, art. 42, parag.único; C.F., 1988, art. 52, parag. único. Lei n. 1.079, de 1950, artigos 2., 31, 33 e 34). (...) STF. Plenário. MS 21689, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 16/12/1993.”

Sem embargo, admitir que as penas são autônomas não significa, por via reflexa, atestar que são decomponíveis.

Insta destacar, ainda, que quando, também, do julgamento do MS 21.689, o notável Ministro Celso de Mello esclareceu que a unidade constitucional da sanção torna-a indecomponível e incindível.

"Na interpretação do art. 52, parágrafo único, da Carta Política - cuja aplicabilidade só se justifica estando ainda o Presidente da República no desempenho de seu mandato -, não vislumbro a existência de sanções político-jurídicas de caráter autônomo. Entendo que, ao contrário, há uma única sanção constitucionalmente estabelecida: a de desqualificação funcional, que compreende, na abrangência do seu conteúdo, a destituição do cargo com inabilitação temporária. A unidade constitucional da sanção prevista torna-a indecomponível, incindível, impedindo, dessa forma, que se dispense tratamento jurídico autônomo às projeções punitivas que diamanam da condenação senatorial. De qualquer maneira, e ainda que se vislumbrasse no preceito em causa uma dualidade de sanções, tenho para mim que, entre elas, haveria clara relação de dependência ou de acessoriedade: de um lado, a sanção destitutória, que se reveste de caráter principal e condicionante, e, de outro, a pena de inabilitação temporária, que constitui mera decorrência secundária da decretação da perda do mandato."  (trechos do voto do Min. Celso de Mello no MS 21689, julgado em 16/12/1993).

Importa ainda mencionar que o Regimento Interno do Senado Federal e a Lei 1.079/50 foram os argumentos utilizados pelos Ministro Ricardo Lewandowski para admitir a divisão do julgamento, o destaque para a votação em separado (“DVS”), que culminou não apenas com a divisão da votação da proposição, mas com um atalhamento do próprio texto constitucional, in verbis:

“RISF - Art. 312. O destaque de partes de qualquer proposição, bem como de emenda do grupo a que pertencer, pode ser concedido, mediante deliberação do Plenário, a requerimento de qualquer Senador, para:

I - constituir projeto autônomo, salvo quando a disposição a destacar seja de projeto da Câmara;

II - votação em separado;

III - aprovação ou rejeição.

Parágrafo único. Independerá de aprovação do Plenário o requerimento de destaque apresentado por bancada de partido, observada a seguinte proporcionalidade: (Incluído pela Resolução no 8, de 2016)

(...)

Art. 377. Compete privativamente ao Senado Federal (Const., art. 52, I e II):

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República, nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União, nos crimes de responsabilidade.

Parágrafo único. Nos casos previstos neste artigo, o Senado funcionará sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal (Const., art. 52, parágrafo único).

Art. 378. Em qualquer hipótese, a sentença condenatória só poderá ser proferida pelo voto de dois terços dos membros do Senado, e a condenação limitar-se-á à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das sanções judiciais cabíveis (Const., art. 52, parágrafo único).

Art. 379. Em todos os trâmites do processo e julgamento serão observadas as normas prescritas na lei reguladora da espécie.”

“Lei 1.079/50 - Art. 33. No caso de condenação, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública; e no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o Presidente o deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado.”

Contudo, o Ministro Ricardo Lewandowski não observou questão de suma relevância, qual seja o fato do julgamento pelo Senado, no processo de impeachment, tratar-se de função atípica deste órgão legislativo, não cabendo a aplicação destas normas na sua função atípica judicante. Neste mesmo sentido, merece lembrança ainda o artigo 379 do RISF, que remete às normas da Lei 1.079/50, lei esta que em momento algum autoriza a realização de destaques em julgamentos de crimes de responsabilidade.

Ressalte-se ainda que o Ministro o fez mesmo sabendo que a Constituição se sobrepõe à legislação infraconstitucional, seja uma lei ordinária, como a Lei 1.079/50, seja o Regimento Interno do Senado Federal, devendo ser aplicado ao caso a norma superior hierarquicamente, qual seja a Constituição, nos exatos termos do parágrafo único do artigo 52, devendo haver unidade no julgamento e na condenação:

“CRFB/88 - Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

(...)

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à PERDA DO CARGO, COM INABILITAÇÃO, POR OITO ANOS, PARA O EXERCÍCIO DE FUNÇÃO PÚBLICA, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”

Apesar do exposto, não foi este entendimento aceito pelos senadores presentes, nem mesmo pelo Ministro Ricardo Lewandowski, transcorrendo a votação da seguinte forma:

Na primeira votação, os senadores decidiram, por 61 (sessenta e um) votos a 20 (vinte), afastar Dilma definitivamente.

Na segunda votação, os parlamentares decidiram que a SRA. DILMA ROUSSEF não deveria cumprir a pena de inabilitação para o exercício de funções públicas, por 42 (quarenta e dois) votos a 36 (trinta e seis), contando ainda com 3 (três abstenções), sendo que o quorum de dois terços deveria ter sido alcançado para a aplicação da pena de inabilitação, mantendo o Senado Federal, de forma teratológica, a vigência de seus direitos políticos, conforme exposição do dispositivo da sentença prolatada:

“O Senado Federal entendeu que a Senhora Presidente da República. DILMA VANA ROUSSEFF cometeu os crimes de responsabilidade consistentes em contratar operações de crédito com instituição financeira controlada pela União e editar decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso Nacional previstos nos art. 85, inciso VI, e art. 167, inciso V, da Constituição Federal, bem como no art. 10, itens 4, 6 e 7, e art. 11, itens 2 e 3, da Lei n° 1.079, de 10 de abril de 1950, por 61 votos, havendo sido registrados 20 votos contrários e nenhuma abstenção, ficando assim a acusada condenada à perda do cargo de Presidente da República Federativa do Brasil.

EM VOTAÇÃO SUBSEQUENTE, O SENADO FEDERAL DECIDIU AFASTAR A PENA DE INABILITAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE CARGO PÚBLICO, EM VIRTUDE DE NÃO SE HAVER OBTIDO NESTA VOTAÇÃO 2/3 DOS VOTOS CONSTITUCIONALMENTE PREVISTOS, TENDO-SE VERIFICADO 42 VOTOS FAVORÁVEIS À APLICAÇÃO DA PENA, 36 CONTRÁRIOS E TRÊS ABSTENÇÕES.

Esta sentença, lavrada nos autos do processo, constará de resolução do Senado Federal, será assinada por mim e pelos Senadores que funcionaram como juízes, transcrita na Ata da sessão e, dentro desta, publicada no Diário Oficial da União, no Diário do Congresso Nacional (art. 35 da Lei n° 1.079/50) e no Diário do Senado Federal.

Tal decisão encerra formalmente o processo de impeachment instaurado contra a Presidente da República no Senado Federal no dia 12 de maio de 2016.

Façam-se as comunicações ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República em exercício, aos Excelentíssimos Senhores Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e à Excelentíssima Senhora Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal.”

Resta claro que o destaque foi inconstitucional, pois a Constituição Federal coloca como decorrência da cassação do mandato a perda dos direitos políticos. Frise-se ainda que a Constituição não permite interpretação quanto à dissociação da perda do cargo em relação a inabilitação por oito anos para o exercício da função pública.

Impeachment e a inabilitação são consequências indissociáveis, no processo de impeachment.



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