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O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) é norma geral de Direito Urbanístico ou diretriz geral da política urbana?

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) é norma geral de Direito Urbanístico ou diretriz geral da política urbana?

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I - INTRODUÇÃO

No âmbito do projeto de pesquisa, intitulado "O princípio da proporcionalidade no direito urbanístico e a realidade amazônica", vinculado ao Programa de Iniciação Científica e Tecnológica da Universidade Luterana do Brasil em Santarém, realizamos um levantamento do estado da arte do direito urbanístico no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) que para nós significa uma redefinição dos marcos conceituais no direito, tendo em vista a consolidação tardia do direito urbanístico em nosso país. Este ramo do direito supera a insuficiente abordagem teórica, tanto do direito civil como do direito administrativo, para os problemas da propriedade urbana. Superada esta etapa, procedemos com uma investigação sobre o caráter do Estatuto da Cidade, tendo em vista o regramento constitucional dado à matéria, tal problematização não possui só o condão de debater um problema de ordem técnica, mas sim de buscar um correto fundamento constitucional, pois acreditamos que o interesse na aplicação de qualquer instrumento normativo deve estar subordinado ao limites constitucionais. As conclusões sobre esse tema ainda são preliminares uma vez a doutrina dominante entende que "o estatuto da cidade é uma diretriz geral com status de norma geral de direito urbanístico", o que não é o nosso entendimento, pela nossa análise, alicerçado nos pressuposto de uma teoria da constituição, concluímos que o Estatuto da Cidade é uma diretriz geral da política urbana ou desenvolvimento urbano e não possuindo status de norma geral de direito urbanístico, este fato possui conseqüências práticas relevantes. O trabalho, portanto, revisa os conceitos correntes de norma geral, valendo-se das contribuições dos tributaristas sobre a questão, bem como a percepção dos urbanistas, confrontaremos a síntese dessas idéias com os dispositivos constitucionais que formam da ordem urbanística para ao fim delimitarmos o nosso entendimento sobre o tema proposto.


II – O PROBLEMA

A pergunta formulada como título deste trabalho pode parecer para alguns como desnecessária, pois implica acatar uma visão de certa forma normativista do direito, ainda mais em se tratando de direito urbanístico, pois o Estatuto da Cidade está envolto em uma áurea de esperança para a transformação da realidade urbana em nosso país. Por outro lado não podemos nos escusar de analisar a técnica legislativa utilizada na formatação do Estatuto da Cidade, a despeito do alerta de Edésio Fernandes de que "identificar problemas jurídicos e acusar inconstitucionalidade é fácil no Estatuto da Cidade" (FERNADES, 2002, p 11). Entretanto não conseguimos evitar a tentação de tentar entrar em zona perigosa, tal fato debitamos a um certo zelo pela manutenção da vontade de constituição nos marcos da tradição iniciada por Konrad Hesse em seu pequeno grande livro "A Força Normativa da Constituição", Hesse afirma que "devemos sacrificar nossos interesses em favor da preservação de um princípio constitucional e essa postura fortalece o respeito à Constituição e garante um bem de vida indispensável à essência do Estado, mormente o Estado Democrático" (HESSE, 1991, p 22), Estado Democrático este que no Brasil por tanto tempo lutamos e muitos tombaram, portanto, reputamos que o direito urbanístico possui sim uma moldura constitucional bem definida e que esta moldura define os limites interpretativos da nossa ordem jurídica urbanística brasileira.

Podemos iniciar afirmando que o dispositivo constitucional que regula a produção de normas gerais de direito urbanístico (art. 24, I, § 1º CF/88) é distinto do traçado para a produção das diretrizes gerais do desenvolvimento urbano (art. 21, XX). Portanto de um lado temos regras e princípios de direito urbanístico e de outro regras e princípios da política de desenvolvimento urbano. Nesse sentido entendemos que o Estatuto da cidade atendeu ao formato proposto para as diretrizes gerais de desenvolvimento urbano quando também regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição, não sendo, portanto, formalmente, norma geral de direito urbanístico.

Autores nacionais consagrados como Nelson Saule Júnior e Carlos Ari Sundfeld, com uma diferença ou outra de entendimento são unânimes em afirmar que o Estatuto da Cidade é uma diretriz geral da política urbana com status de norma geral de direito urbanístico. (JÚNIOR, 2002. p 85) e (SUNDFELD, 2002, p 53)


III - DIREITO URBANÍSTICO OU DIREIT0 DO ORDENAMENTO TERRITORIAL ?

Passemos, então, a enfocar a questão sob o ponto de vista normativo. Como já indicamos acima, no âmbito da distribuição de competências constitucionais em matéria urbanística, a união pode instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX) dispositivo este que possui como corolário o art. 182, onde a "política urbana, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes". Depreende-se da interpretação desses dispositivos que eles estão integrados e em conformidade com corpo do texto do estatuto da cidade, vide a sua ementa "Lei 10.257, de 10 de julho de 2001 – regulamenta os arts 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências". Como se pode observar o Estatuto da Cidade não foi modelado para ser uma norma geral de direito urbanístico, a despeito que materialmente possa assim ser entendido, entretanto, não podemos interpretar a norma jurídica de forma unilateral e sim conjugando os dois aspectos, o material e o formal, não é outra a lição de Norberto Bobbio em sua teoria do ordenamento jurídico.

REVISANDO O CONCEITO DE NORMA GERAL

Devemos aclarar para efeito dessa análise o que entendemos por norma geral e diretriz geral. Sabemos que o conceito de norma geral surge no direito brasileiro com a Constituição de 1946, sendo Rubem Gomes de Souza que nos informa o que motivou o então deputado Aliomar Baleeiro a utilizar a expressão "normas gerais" no texto constitucional de 1946, referindo-se a uma confissão feita pelo mesmo deputado, "algo existe naquele livrinho ‘Andaimes da Constituição’, em que ele confessa que sua primeira idéia, primeira e última, era atribuir à União competência para legislar sobre direito tributário, amplamente e sem a limitação contida no conceito de normas gerais, desde que esta legislação tivesse a feição de uma lei nacional, de preceitos endereçados ao legislador ordinário dos três poderes tributantes: União, Estados e Municípios" (SOUZA, 1985, p 4-5).

Como definição de normas gerais compartilhamos da opinião de Eros Roberto Grau que em brilhante ensaio sobre a interpretação da Lei leciona: "Norma geral então – termo que designa outro conceito, diverso daquele com trânsito no campo, da teoria geral do direito -, é, disse-o, norma que supõe a determinação de parâmetros, em um nível maior de generalidade, a serem sentidos na normatividade subseqüente à sua definição. O que confiriria às normas gerais só o caráter de direito sobre direito, conforme, de modo inadequado – no meu sentir, -, se tem referido".

Mas isso não diz muito. Seria necessário dizermos, Ademais, que as normas gerais (normas nacionais) (i) consubstanciam regras que conferem concreções a princípios jurídicos fundamentais recepcionados expressa ou implicitamente na Constituição, e a princípios que Canotilho denomina políticos constitucionalmente conformadores – inobstante as normas gerais também vinculem princípios e princípios que sejam também vinculados por normas que não se pode qualificar como normas gerais (ii) consubstanciam a ordenação de condutas uniformes, visando a prevenir conflitos entre as entidades da federação e/ou entre os que nelas estejam situados (iii) suprem lacunas constitucionais; e (iv) no Brasil, respeitam ás matérias enunciadas no art. 22 da constituição de 1988. todas elas são, no Brasil normas nacionais/normas gerais" (GRAU, 1995, p 12).

Victor Carvalho Pinto em trabalho intitulado "A distribuição Constitucional de Competências em Matéria Urbanística" apresentado durante o curso de direito de direito urbanístico, preparatório para o I Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico realizado em Belo Horizonte em dezembro de 2000, elucida a distinção entre as Competências Concorrentes da União e dos Estados para legislar sobre direito urbanístico e a competência da União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, quando afirma que a primeira competência consiste na concretização pelos municípios das normas e princípios criados pela legislação federal e estadual e a segunda competência não é de ordem legislativa e sim administrativa.cristalizada na faculdade da união editar regulamentos para a política de desenvolvimento urbano, como exemplo, teríamos as resoluções do CONAMA.(Conselho Nacional de Meio Ambiente).

Destarte, qual é a nossa posição ? Acreditamos que as normas gerais de direito urbanístico são normas nacionais que viabilizam a concretização do princípio constitucional da função social da propriedade, que na ordem federativa deve possuir vinculatividade aos entes políticos servido como referência normativa, delimitando o conteúdo das demais normas que hierarquicamente lhe são inferiores, nesse sentido, as normas gerais distinguem-se das diretrizes gerais pois essas não vinculam a ação dos legisladores mas sim a ação do poder executivo na execução da política de desenvolvimento urbano a fim de garantir a fruição ao direito às funções sociais da cidade, instituindo princípios e diretrizes.que deverão ser atendidos em todo o território nacional. Desse Conceito por nós formulado, ousamos afirmar que em nosso direito tal como na Espanha e Portugal, podemos falar da existência de um direito urbanístico e de um direito do ordenamento territorial, sendo que o primeiro seria regido pelo princípio da função social ambiental da propriedade e o segundo pelo princípio da função social da cidade, sendo evidente a interdependência dos dois princípios que por vezes podem inclusive colidir no âmbito de suas respectivas proteções.

E que conseqüências se tem quando não existem normas gerais de direito urbanístico em vigor dentro do ordenamento jurídico vigente? Admitindo-se que o Estatuto da Cidade não possui fundamento constitucional para configurar-se uma norma geral de direito urbanístico, teremos como conseqüência uma limitação da eficácia formal e material do Estatuto da cidade, não podendo o estatuto da Cidade servir como orientação vinculante da atividade legislativa pelos municípios a quem foi conferida a grande responsabilidade pela implementação do Estatuto da Cidade. Não há como negar que os instrumentos da política urbana previstos no estatuto da cidade e já existentes no texto constitucional (art. 182 § 4 – parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo, desapropriação com pagamento em títulos, usucapião de imóvel urbano e a vetada concessão de uso especial para fins de moradia) são institutos de direito urbanístico por outro lado, o Plano Diretor e os instrumentosde controle do uso e ocupação do solo urbano são instrumento de ordenamento territorial


IV - ESBOÇANDO CONCLUSÕES

Nosso intuito não é esgotar as questões aqui levantadas, a despeito que em regra quem formula um pergunta já possui em grande medida a resposta, e a resposta pela qual optamos é a de que o Estatuto da Cidade é a diretriz geral da política de desenvolvimento urbano não sendo formalmente a norma geral de direito urbanístico, contudo sob o aspecto teleológico devemos superar essa visão tecnicista e fazer esforços para que o direito urbanístico seja amplamente divulgado em nosso cotidiano jurídico para que possamos atacar os graves problemas urbanos-ambientais que as cidades brasileiras atravessam, sendo que o Estatuto da Cidade é sem dúvida um marco legal importante para a construção de cidades sustentáveis.


BIBLIOGRAFIA

BOBBIO. Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico (tradução Cláudio de Cicco e Maria Celeste C.j Santos). São Paulo: Polis; Editora Universidade de Brasília. 1989.

GRAU. Eros Roberto. Licitação e Contrato Administrativo (estudo sobre a interpretação da Lei). São Paulo: Malheiros, 1995

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição (tradução de Gilmar Ferreira Mendes). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

JÚNIOR. Nelson Saule. O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor In. (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras (Letícia Marques.Òsorio –Org.) Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor. 2002. p 77 a 120

LEAL DIAS. Maurício. Por uma fundamentação do direito urbanístico In Revista Logos Veritas,- Revista do Curso de Direito do Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarém. Santarém: ILES/ULBRA/Curso de Direito, nº 4, 2000. p 107-115

PINTO. Victor Carvalho. A distribuição constitucional de competências em matéria urbanística. Belo Horizonte. Curso de Direito Urbanístico – 11 e 12 de dezembro de 2000 (mimeo)

SILVA. José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2º ed. São Paulo: Malheiros. 1995.

SOUZA. Rubem Gomes de. Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho. Comentários ao Código Tributário Nacional. Coleção textos de Direito tributário. 2º Ed., São Paulo: Revista dos tribunais, 1985.

SUNDFELD. Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais In Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/20010) Dallari. Edílson Abreu e Ferraz, Sérgio – Organizadores. São Paulo: Malheiros. 2002.p 45-60


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Maurício Leal; RIBEIRO, Taíse Spotto Lima. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) é norma geral de Direito Urbanístico ou diretriz geral da política urbana?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 312, 15 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5193. Acesso em: 18 abr. 2024.