Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/52143
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A transcendência dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade em controle concreto: a teoria da abstrativização do controle difuso

A transcendência dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade em controle concreto: a teoria da abstrativização do controle difuso

Publicado em . Elaborado em .

Defende-se que o artigo 52, inciso X, da Constituição Federal teria efeito de mera publicidade, tendo havido mutação constitucional do mencionado dispositivo. Decidiu o STF que se trata, na realidade, de decisão com força expansiva.

1. Introdução

O presente trabalho, realizado mediante a utilização de pesquisa bibliográfica, tem por objetivo analisar os principais aspectos da recente e polêmica teoria da transcendência dos efeitos do controle concreto de constitucionalidade, também denominada de teoria da abstrativização do controle difuso.

Referida Teoria iniciou-se após decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal que tiveram seus efeitos expandidos a outros órgãos administrativos e judiciais, de modo que alguns doutrinadores passaram a entender que houve uma mutação constitucional do inciso X, do artigo 52, da Constituição Federal.

Para os adeptos da referida mutação constitucional, dentre eles o Ministro Gilmar Mendes, o papel do Senado no atual cenário constitucional é meramente o de dar publicidade às decisões declaratórias de inconstitucionalidades proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade.

Inicialmente, o trabalho desenvolve-se com a conceituação do controle de constitucionalidade, seus aspectos históricos e doutrinários, além das principais espécies de controle.

Em seguida, desenvolve-se a discussão específica do tema, abordando-se os aspectos doutrinários e jurisprudenciais acerca da mencionada Teoria.

Ao final, o presente artigo apresenta uma conclusão final acerca do tema com fulcro nas pesquisas realizadas.


2. Conceito, Fundamento e Origem do Controle de Constitucionalidade.

O controle de constitucionalidade é a verificação da compatibilidade entre uma lei ou um ato normativo com a Constituição Federal, em seus aspectos formais e materiais.

Uma lei ou ato normativo será materialmente inconstitucional quando seu conteúdo for incompatível com a Constituição Federal (inconstitucionalidade nomoestática). Por sua vez, será formalmente inconstitucional quando violado o processo legislativo (inconstitucionalidade nomodinâmica).

Para que haja o controle de constitucionalidade deverá haver o reconhecimento da existência de supremacia entre a Constituição Federal e as demais leis e atos normativos.

Em razão dessa supremacia, verifica-se que o controle da constitucionalidade tem por fundamento o fato de que a Constituição é a norma de maior importância, sendo necessária a sua proteção a fim de garantir a prevalência dos direitos e garantias dela decorrentes.

Nesse diapasão, a supremacia constitucional decorre de seu conteúdo e de seu procedimento especial de elaboração, dos quais se abstrai o princípio da compatibilidade vertical, segundo o qual uma norma inferior somente será válida se for compatível com a Constituição Federal.

O controle de constitucionalidade historicamente surgiu nos EUA, cuja origem é normalmente atribuída à decisão do famoso caso Marbury vs. Madison, em 1803, proferida pelo juiz Marshall, quando o presidente da Suprema Corte norte-americana chegou à conclusão de que todas as leis daquele país deveriam se adequar à Constituição Americana, cuja compatibilização deveria ser analisada pelo Poder Judiciário.

Realmente, as bases teóricas do controle de constitucionalidade foram traçadas nessa paradigmática decisão, comumente citada pela doutrina. Contudo, a rigor, esta não foi a primeira vez em que o controle de constitucionalidade foi exercido nos EUA.

Existem dois precedentes anteriores a esse caso, que são:

  1. Hayburn's Case (1792) - Nesta decisão, que não foi proferida pela Suprema Corte, os ministros das Cortes do Circuito decidiram que uma lei sobre pensão para inválidos era inconstitucional;

  2. Case Hylton vs. United States (1796) – Julgado pela Suprema Corte. Neste caso, foi questionado um ato do Congresso Nacional, mas esse ato foi declarado compatível com a constituição.

No Brasil, a origem do controle de constitucionalidade remonta à Constituição Federal de 1891.

Segundo ressalta Gilmar Ferreira Mendes:

O regime republicano inaugura uma nova concepção. A influência do direito norte-americano sobre personalidades marcantes, como a de Rui Barbosa, parece ter sido decisiva para a consolidação do modelo difuso, cosagrado já na chamada Constituição provisória de 1890 (art. 58, §1º, a e b)1.

Por sua vez, a Constituição de 1934 manteve o sistema de controle difuso, porém estabeleceu a necessidade de observância da cláusula de reserva de plenário, segundo a qual a declaração de inconstitucionalidade somente poderia ser declarada por decisão da maioria absoluta do respectivo Tribunal. Também instituiu a denominada ação direta de inconstitucionalidade interventiva e atribuiu ao Senado Federal a competência para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva.

Como bem destacado por Gilmar Mendes:

Talvez a mais fecunda e inovadora alteração introduzida pelo Texto Magno de 1934 se refira à “declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal”, tal como denominou Bandeira de Mello, isto é, representação interventiva, confiada ao Procurador-Geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no art. 7º, I, a a h, da Constituição. Cuidava-se de forma peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado Federal (art. 41, §3º), à declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, §2º)2.

A Constituição de 1937 é considerada um retrocesso na história do controle de constitucionalidade brasileiro. Denominada de “Polaca”, por ter sido elaborada sob a inspiração da Carta Ditatorial polonesa de 1935, aquela Constituição atribuiu ao Presidente da República a possibilidade de influenciar na decisão do Poder Judiciário que declarasse a inconstitucionalidade de uma determinada lei. Previa que, de forma discricionária, o Chefe do Poder Executivo poderia submeter o julgamento que declarasse uma lei inconstitucional a reexame do Poder Legislativo que, por decisão de 2/3 de ambas as Casas, poderia torná-la sem efeito.

Já a Constituição de 1946 foi fruto da redemocratização instaurada no país e restaurou o sistema tradicional de controle de constitucionalidade. O Poder Executivo passou a ter menor poder de influência nas decisões judiciais, retomando-se o sistema inaugurado pela Constituição de 1934. A grande novidade ocorreu com a EC nº 16, de 26 de novembro de 1965, por meio da qual foi criada uma nova modalidade de ação direta de inconstitucionalidade, de competência do Supremo Tribunal Federal, que tinha por finalidade o julgamento de representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo Federal ou Estadual, de iniciativa exclusiva do Procurador Geral da República. Também foi possibilitado o controle de constitucionalidade originaria perante os Tribunais de Justiça Estaduais.

A Constituição de 1967 e EC nº 1/69 pouco inovou em matéria de controle de constitucionalidade. O controle difuso permaneceu como antes e a ação direta de inconstitucionalidade continuou. Contudo, a Constituição de 1967 deixou de prever o controle de constitucionalidade de lei municipal em face da Constituição Estadual, mantendo somente a hipótese de controle de constitucionalidade em âmbito Estadual quando interposta para fins de intervenção no Município.


3. O Controle de Constitucionalidade na Constituição Federal de 1988

A atual Constituição Federal de 1988 instituiu quatro principais novidades no sistema de controle de constitucionalidade nacional.

A legitimação para a propositura da representação de inconstitucionalidade foi ampliada, deixando de ser atribuição exclusiva do Procurador Geral da República (art. 103).

Introduziu-se a possibilidade do controle de constitucionalidade das omissões legislativas, o que pode ocorrer tanto por via abstrata (ADI por omissão), quanto na via concreta, por meio do controle difuso (mandado de injunção).

Retomou-se o controle de constitucionalidade de leis municipais perante a Constituição Estadual, cuja competência é dos Tribunais dos Estados.

A quarta mudança introduzida pelo constituinte originário de 1988 foi a criação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no artigo 102, de competência do Supremo Tribunal Federal.

Tempos depois, introduziu-se por meio da Emenda Constitucional nº 3/93, a Ação Declaratória de Constitucionalidade de lei ou ato normativo Federal, também de competência originária do Supremo Tribunal Federal.

Por fim, a Emenda Constitucional nº 45/2004, conhecida como Reforma do Judiciário, igualou a legitimidade para o ajuizamento da ação declaratória de constitucionalidade aos legitimados da ação direta de inconstitucionalidade e estendeu o efeito vinculante da primeira para a segunda.

Convém destacar o ensinamento trazido por Pedro Lenza ao fazer citação a José Afonso da Silva:

Por todo o exposto, valendo-se das palavras de José Afonso da Silva, “o Brasil seguiu o sistema norte-americano, evoluindo para um sistema misto e peculiar que combina o critério difuso por via de defesa com o critério concentrado por via de ação direta de inconstitucionalidade, incorporando também, agora timidamente, a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 102, I, a e III 103). A outra novidade está em ter reduzido a competência do Supremo Tribunal Federal à matéria constitucional. Isso não o converte em Corte Constitucional. Primeiro porque não é o único órgão jurisdicional competente para o exercício da jurisdição constitucional, já que o sistema perdura fundado no critério difuso, que autoriza qualquer tribunal e juiz a conhecer da prejudicial de inconstitucionalidade, por via de exceção. Segundo, porque a forma de recrutamento de seus membros denuncia que continuará a ser um Tribunal que examinará a questão constitucional com critério puramente técnico-jurídico, mormente porque, como Tribunal, que ainda será, de recurso extraordinário, o modo de levar a seu conhecimento e julgamento as questões constitucionais nos casos concretos, sua preocupação, como é regra no sistema difuso, será dar primazia à solução do caso e, se possível, sem declarar inconstitucionalidades”.3

Assim, em síntese, conclui-se que a Constituição Federal de 1988 ampliou a legitimação para a propositura da representação de inconstitucionalidade, possibilitou o controle por omissão legislativa, restabeleceu o controle de constitucionalidade em âmbito Estadual e instituiu o sistema de arguição de descumprimento de preceito fundamental. Posteriormente, por meio de emendas, instituiu a ação declaratória de constitucionalidade e igualou os legitimados e efeitos das ações então existentes.


4. Espécies de controle de constitucionalidade

4.1. Em relação ao órgão

Quanto ao órgão, o controle de constitucionalidade pode ocorrer nas modalidades de controle político (não jurisdicional) e controle jurisdicional (judicial).

Haverá controle político de constitucionalidade quando realizado por Corte Constitucional que não integra qualquer dos três Poderes clássicos, como aqueles realizados pela Europa continental. A título de exemplo, pode-se citar o Conselho Constitucional Francês, composto por nove membros, com mandato de nove anos, sendo três deles nomeados pelo Presidente da República, três pelo presidente da Assembleia Nacional e os outros três pelo Presidente do Senado. Essa é a visão restritiva do conceito de controle político, adotada por autores como Alexandre de Moraes, Pedro Lenza e Michel Temer.

Contudo, numa visão extensiva (Mauro Cappelletti e José Afonso da Silva), considera-se político todo controle que não é realizado pelo Poder Judiciário.

No Brasil, em razão da possibilidade de realização desse controle por outros órgãos que não sejam o Poder Judiciário, prevalece a tese extensiva.

Como formas de controle político de constitucionalidade amparadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, temos a fiscalização preventiva realizada pelo Congresso Nacional, no curso do processo legislativo; o veto presidencial por inconstitucionalidade (veto jurídico); e a possibilidade de sustação parlamentar dos atos delegados praticados pelo Poder Executivo quando exorbitem os limites da delegação.

Já o controle jurisdicional é aquele realizado no Brasil normalmente pela modalidade repressiva, por meio da intervenção do Poder Judiciário.

O controle jurisdicional será melhor estudado adiante, em capítulo específico que tratará do controle judicial de constitucionalidade.

4.2. Em relação ao momento da realização

No que se refere ao momento, o controle de constitucionalidade poderá ser preventivo ou repressivo.

Será preventivo quando exercido antes da promulgação da norma, ainda durante o processo legislativo, e tem por objetivo evitar o ingresso de normas inconstitucionais no mundo jurídico.

No sistema brasileiro, há o controle preventivo realizado pelo Poder Legislativo, por intermédio das comissões de constituição e justiça ou pelo plenário de cada uma das casas legislativas. Também é exercido pelo Chefe do Poder Executivo por meio do veto por motivo de inconstitucionalidade (veto jurídico).

Excepcionalmente, o controle preventivo também pode ser exercido por meio do Poder Judiciário. Isso porque o Supremo Tribunal Federal tem aceitado o manejo do mandado de segurança contra projeto de lei impetrado por parlamentar que o repute inconstitucional e que esteja em trâmite perante o Congresso Nacional.

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser cabível a propositura de ação judicial (mandado de segurança) para se realizar o controle prévio dos atos normativos. Entendeu o Pretório Excelso que poderá ser manejado o remédio constitucional somente caso haja proposta de emenda constitucional que seja manifestamente ofensiva a cláusula pétrea ou na hipótese em que o projeto de emenda constitucional ou projeto de lei cuja tramitação esteja correndo com violação às regras constitucionais sobre o processo legislativo4.

O controle repressivo visa à declaração de inconstitucionalidade de ato normativo após a sua promulgação.

Em regra, o controle repressivo é realizado no Brasil por intermédio do Poder Judiciário, mediante o manejo de uma das espécies de ações constitucionais (controle concentrado, abstrato), ou via incidental como causa de pedir de qualquer ação (controle difuso, concreto).

Excepcionalmente, o controle repressivo pode não ser promovido pelo Poder Judiciário.

É a hipótese de sustação parlamentar de ato normativo do Executivo que exorbite do poder que lhe fora delegado (artigo 49, inciso V, da Constituição Federal).

Ainda haverá controle repressivo quando do controle legislativo dos pressupostos constitucionais dos decretos de intervenção federal (art. 36, §1º), do estado de defesa (art. 136, §§4º a 7º) e sustação do estado de sítio (art. 49, IV). Também poderá haver o controle repressivo quando houver rejeição parlamentar de medida provisória expedida pelo Presidente da República (art. 62, §5º).

Por fim, não se pode olvidar o entendimento estampado pela Súmula nº 347, do STF, segundo a qual “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”.


5. Controle Judicial de Constitucionalidade

O controle jurisdicional de constitucionalidade, no Brasil, ocorre de forma mista, ou seja, tanto na modalidade concentrada (abstrata), quanto na forma difusa (concreta).

Com efeito, o controle concentrado está previsto no artigo 102, inciso I, a, da Constituição Federal, cujo dispositivo estatui que caberá ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo Federal ou Estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo Federal. Por sua vez, o artigo 97, da Carta Magna, estabelece que poderão os Tribunais de Justiça declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público mediante o voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial.

5.1 Controle Concentrado (Abstrato)

O controle concentrado, também denominado de abstrato, de via direta, tem por finalidade garantir a supremacia da Constituição.

Em paralelo ao sistema norte-americano que originou o controle difuso, o controle concentrado tem suas bases históricas no sistema austríaco (Kelsen), de base positivista.

É considerado controle concentrado porque a competência para a declaração da inconstitucionalidade é atribuída a um único órgão do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal a nível nacional e aos Tribunais de Justiça dos Estados a nível regional (artigo. 125, §2º, da Constituição Federal).

Referida forma de controle, no Brasil, é realizada pelo manejo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação de Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). As três primeiras são regulamentadas pela Lei nº 9.868/99 e a última pela Lei nº 9.882/99.

Será cabível a ação direta de inconstitucionalidade quando o objeto for a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo Federal, Estadual ou Distrital, editados posteriormente à promulgação da Constituição Federal e que ainda estejam em vigor.

Já a ação declaratória de constitucionalidade, diante do texto expresso da Constituição Federal, somente poderá ser manejada quando o objeto for lei ou ato normativo Federal (art. 102, I, a, da Constituição Federal).

Os legitimados para a interposição da ADI, ADO e ADC são aqueles previstos no artigo 103 da Constituição Federal. Por sua vez, a Lei nº 9.882/99, em seu artigo 2º, prevê que podem propor a arguição de descumprimento de preceito fundamental os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade.

A doutrina classifica os legitimados ativos em universais (genéricos) e temáticos (específicos). Os legitimados universais são aqueles que podem propor a ação sobre qualquer matéria, já os temáticos devem demonstrar que a pretensão por eles deduzidas guarda pertinência temática com os objetivos institucionais. São legitimados temáticos as confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional, a mesa das Assembleias Legislativas ou Câmara Legislativa do Distrito Federal e o governador do Estado ou do Distrito Federal. Os demais legitimados são considerados universais5.

Tanto a ação direta de inconstitucionalidade, quanto a ação declaratória de constitucionalidade possuem natureza dúplice, uma vez que a decisão de mérito abarca ambos os efeitos. Ou seja, julgada improcedente a ADI, haverá a declaração de constitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado, da mesma forma em que ocorre com a ADC, na qual a sua improcedência enseja a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo objeto de discussão.

Na lição de Alexandre de Moraes, referidas ações podem ser denominadas de “ações de sinais trocados”:

Dessa forma, é possível afirmar que as ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade são “ações de sinais trocados”, pois ambas têm natureza dúplice e a procedência de uma equivale – integralmente – à improcedência da outra e vice-versa6.

Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo para fazê-lo em 30 dias (art. 103, §2º, da Constituição Federal).

As decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário (o STF pode revisas suas próprias decisões) e à administração pública direta e indireta, nas esferas Federal, Estadual e Municipal (art. 102, §2º, da Constituição Federal). Por sua vez, o §3º, do art. 10, da Lei nº 9.882/99 prevê que a decisão proferida em arguição de descumprimento de preceito fundamental tem eficácia contra todos e efeito vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental está prevista no §1º, do artigo 102, da Constituição Federal e foi regulamentada pela Lei nº 9.882/99. Seu objeto é evitar (ADPF preventiva) ou reparar (ADPF repressiva) lesão a preceito fundamental decorrente da Constituição Federal resultante de ação ou omissão do Poder Público.

Devem ser entendidos como preceitos fundamentais os princípios constitucionais, os objetivos, direitos e garantias fundamentais, as cláusulas pétreas, os princípios da administração pública e outras disposições constitucionais que se mostrem fundamentais para a preservação dos valores protegidos pela Constituição Federal7.

A ADPF possui caráter subsidiário, uma vez que a lei expressamente veda a possibilidade de arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

Também poderá ser manejada a ADPF quando o objeto for relevante controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo Federal, Estadual ou Municipal, incluídos os anteriores à Constituição vigente à época de sua propositura. A doutrina a denomina de ADPF por equiparação8.

Assim, diante do texto legal que regulamentou a ADPF, é cabível o uso da referida ação mesmo quando o objeto for lei ou ato normativo anterior à ordem constitucional vigente.

Alexandre de Moraes considera inconstitucional a ADPF por equiparação, ao lecionar que:

O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição9.

Contudo, a despeito da divergência acima mencionada, verifica-se que o STF vem aceitando o uso da ADPF mesmo quando o objeto for lei ou ato normativo anterior à Constituição Federal (ADPF nº 54).

Por não ser o objeto específico do presente trabalho e a fim de evitar o alongamento desnecessário do texto, o estudo limitou-se a sintetizar os principais aspectos das ações constitucionais no âmbito do controle abstrato.

5.2. Controle Difuso (concreto, aberto)

O controle difuso, também denominado de controle por via de exceção ou defesa, ou processo constitucional subjetivo, é aquele que surge a partir de um caso concreto e tem como principal finalidade a proteção de direitos subjetivos.

Quanto à origem do controle difuso de constitucionalidade, na linha do que já foi exposto acima, Alexandre de Moraes ensina:

A ideia de controle de constitucionalidade realizado por todos os órgãos do Poder Judiciário nasceu do caso Madison versus Marbury (1803), em que o Juiz Marshall da Suprema Corte Americana afirmou que é próprio da atividade jurisdicional interpretar e aplicar a lei. E ao fazê-lo, em caso de contradição entre a legislação e a Constituição, o tribunal deve aplicar esta última por ser superior a qualquer lei ordinária do Poder Legislativo10.

Mais adiante, prossegue o autor com a citação de um interessante julgado norte-americano proferido após a emblemática decisão acima mencionada:

Após o caso Marbury versus Madison, a Corte somente voltou a declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal em 1857, no caso Dred Scott, quando entendeu incompatível com a Constituição a seção 8ª do Missouri Compromise Act, de 1850, que proibia a escravidão nos territórios. Entendeu o então Chief Justice Taney, relator do caso, que esse dispositivo era contrário à 5ª Emenda (“ninguém poderá ser privado da vida, liberdade ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização”), pois, se fosse aplicado, estaria permitindo que um cidadão (proprietário do escravo), pudesse ser privado de seus bens e de sua propriedade (escravo), sem o devido processo legal. Essa decisão entendeu que os escravos deveriam ser considerados como propriedade e não como cidadãos11.

Referida decisão trouxe grave descrédito à Suprema Corte americana que somente foi suprida com a consolidação da Corte de Marshall, após decisões que controlaram atos governamentais que violavam a legislação.

No Brasil, como mencionado no capítulo referente aos aspectos históricos do controle de constitucionalidade, o controle difuso emergiu no ano de 1891, por inspiração norte-americana.

Atualmente, a legislação permite que qualquer juiz ou Tribunal realize o controle de constitucionalidade de maneira incidental, contudo exige o artigo 97, da Constituição Federal, que a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo estatal somente poderá ser declarada por voto da maioria absoluta da totalidade dos membros do Tribunal ou dos integrantes do respectivo órgão especial. Trata-se da denominada cláusula de reserva de plenário que, segundo doutrina majoritária, deverá ser respeitada até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal (apesar de haver posição minoritária em sentido contrário).

Essa regra, contudo, comporta algumas exceções. A primeira delas diz respeito aos juízes monocráticos e às Turmas Recursais que, por não se tratarem de Tribunais na acepção dada pelo dispositivo constitucional, estão dispensados da cláusula de reserva de plenário.

Outra exceção é a existência de anterior pronunciamento de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Também estará dispensada a exigência quando houver, no âmbito do próprio Tribunal a quo, uma decisão plenária que haja apreciado a controvérsia constitucional. Nestes últimos dois casos, poderá, por exemplo, o relator proferir decisão afastando a constitucionalidade do ato normativo combatido12.

Nos casos em que julgar uma norma inconstitucional por via incidental, deverá o Supremo Tribunal Federal comunicar ao Supremo Tribunal Federal para que este, utilizando-se da competência prevista no artigo 52, X, da Constituição Federal, suspenda, por ato discricionário, mediante resolução, a execução da norma.

Ensinam os autores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior:

Não há mais dúvida de que o Senado Federal exerce poder discricionário, podendo ou não suspender a execução da norma declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. O momento do exercício da competência do artigo 52, X, é ato de política legislativa, ficando, portanto, ao crivo exclusivo do Senado. Não se trata de dar cumprimento à sentença do Supremo Tribunal Federal, que decidiu pela via de exceção. Na verdade, a decisão do Senado Federal é no sentido de estender a sentença do Supremo, pertinente à inconstitucionalidade (não à prestação de fundo do pleito – caso concreto), para todos. Os efeitos da resolução, portanto, são sempre a partir de sua edição, ou seja, ex nunc 13 .

Como bem salientam os autores retromencionados após a citação acima transcrita, os efeitos ex nunc da resolução emitida pelo Senado não são unânimes na doutrina.

Há quem entenda que a mencionada resolução produziria efeitos erga omnes e ex tunc (Gilmar Ferreira Mendes).

Em paralelo à discussão dos efeitos da resolução do Senado, surge entendimento capitaneado por Gilmar Ferreira Mendes e que é o objeto do presente estudo: a abstrativização/objetivação do controle difuso ou transcendência dos efeitos das decisões do STF em matéria de controle incidental de constitucionalidade.

Obviamente, por ser o núcleo central do presente trabalho, o tema será tratado no próximo capítulo.


6. A abstrativização/objetivação do controle difuso

Decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle incidental de constitucionalidade e que supostamente teriam seus efeitos expandidos de forma a possuir eficácia vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública, trouxeram acirradas discussões doutrinárias acerca dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade produzidas em controle difuso.

Um dos maiores expoentes dessa discussão é o E. Ministro Gilmar Mendes, segundo o qual o artigo 52, inciso X, da Constituição Federal teria efeito de mera publicidade da decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso.

Trata-se do que a doutrina passou a denominar de “teoria da abstrativização/objetivação do controle difuso”, também denominada de “transcendência dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria de controle incidental de constitucionalidade”.

Para os defensores da Teoria, se o Plenário do STF decidir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ainda que a decisão seja proferida em controle incidental (difuso/concreto), a decisão terá efeitos erga omnes e vinculante, como ocorre com as decisões proferidas no controle concentrado (abstrato) de constitucionalidade.

Diversos são os argumentos que podem levar à conclusão de que o referido entendimento seria hoje aplicável e estaria em consonância com o atual sistema constitucional, conforme se exporá nos próximos itens.

6.1. Tese da mutação constitucional

O Ministro Gilmar Mendes, em seu livro Curso de Direito Constitucional14, defende que o inciso X, do artigo 52, da Constituição Federal sofreu mutação constitucional e atualmente está restrito somente à concessão de publicidade à decisão definitiva proferida pelo STF.

Diante disso, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que em sede de controle difuso de constitucionalidade, acabam por transcender ao caso concreto e gerar efeitos vinculantes e erga omnes.

O citado autor defende que a Constituição Federal de 1988 reduziu o significado do controle incidental de constitucionalidade ao ampliar a legitimidade para o ingresso das ações abstratas de controle de constitucionalidade (ADI, ADO, ADC e ADPF).

Assim, ao ampliar a legitimidade para propositura das ações declaratórias de inconstitucionalidade em âmbito abstrato, as principais discussões constitucionais estariam abarcadas pelo controle concentrado de constitucionalidade, cujas decisões possuem eficácia erga omnes e vinculante.

Nesse diapasão, a doutrina e jurisprudência brasileiras adotaram a tese da nulidade da lei inconstitucional, de modo que não seria mais concebível se aceitar que a resolução do Senado Federal que suspende a execução da lei ou ato normativo impugnado tenha efeitos ex tunc e seja uma decisão de natureza eminentemente política.

Com efeito, para o autor, o modelo de participação do Senado no controle difuso de constitucionalidade remonta à Constituição de 1934, que possuía concepção de divisão de poderes não mais aceito pela atual ordem constitucional. Esse modelo de intervenção do Senado Federal foi introduzido quando no direito comparado outros países já reconheciam eficácia geral às decisões proferidas em sede de controle abstrato de normas, tais como dispunha a Constituição de Weimar (1919) e o modelo austríaco de 192015.

Diante dessa mudança de roupagem das decisões de controle constitucional, com a introdução do controle concentrado de constitucionalidade e a posterior ampliação da legitimação, houve significativa alteração da relação entre o modelo difuso e o modelo concentrado de constitucionalidade, passando a haver maior prevalência da eficácia geral das decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade16.

Assim, para o brilhante constitucionalista Gilmar Mendes, a eficácia erga omnes e vinculante das decisões proferidas em controle incidental se afigura absolutamente coerente com o fundamento da nulidade da lei inconstitucional. Para ele, a eficácia da resolução do Senado que, na antiga concepção, suspende a execução da lei ou ato normativo inconstitucional, jamais poderia ter eficácia ex nunc, justamente em razão da absoluta nulidade da lei inconstitucional.

Nessa esteira, sendo nula a lei declarada inconstitucional e tendo a resolução do Senado eficácia ex tunc, não seria concebível outra interpretação senão a de que o ato previsto no inciso X, do artigo 52, da Constituição Federal é de mera publicidade da decisão emanada pelo Pretório Excelso.

O retromencionado jurista ainda destaca os ensinamentos de Lúcio Bittencourt:

Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares que, de fato, independem de qualquer dos poderes. O objetivo do art.45, IV da Constituição é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-se ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado “suspende a execução” da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo “inexistente” ou “ineficaz”, não pode ter suspensa a sua execução17.

Lúcio Bittencourt também é citado por Pedro Lenza:

Lúcio Bittencourt, em tese arrojada, muito embora demonstrasse conhecimento da doutrina de Liebman e da distinção entre autoridade da coisa julgada e eficácia natural da sentença, chegou a afirmar, inspirado pela regra do stare decisis norte-americano, que a declaração de inconstitucionalidade no caso concreto e no controle difuso brasileiro (já que inexistente à época de seu estudo o controle concentrado por meio de ADI, enfatize-se), reconhecendo a “ineficácia da lei”, teria eficácia contra todos18.

Percebe-se, assim, que essa interpretação decorre do entendimento do próprio Gilmar Mendes, não prevalente, vale dizer, no sentido de que a eficácia da resolução do Senado Federal possui efeitos ex tunc, pelos mesmos motivos (tese da nulidade) que o autor fundamentou para preconizar o efeito da mutação constitucional dada ao inciso X, do artigo 52, da Constituição Federal.

6.2. Força vinculante das decisões na legislação processual

Antes previsto nos artigos 480 e seguintes do Código de Processo Civil de 1973 e hoje nos artigos 948 a 950 do Novo Código de Processo Civil, o incidente de arguição de inconstitucionalidade prevê uma espécie de vinculação dos órgãos fracionários às decisões proferidas pelo plenário ou órgão especial dos respectivos tribunais, ou do plenário do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, o referido incidente regulamenta a necessidade de observância da cláusula de reserva de plenário quando da arguição de inconstitucionalidade.

Há previsão expressa no parágrafo único do artigo 949 do Novo Código de Processo Civil que os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

Assim, os adeptos da teoria da abstrativização defendem que o legislador ordinário encampou o efeito vinculante das decisões proferidas em sede de controle incidental de constitucionalidade, de modo a permitir que os órgãos fracionários decidam com fulcro em decisões anteriores.

Deve-se destacar, ainda, que o Novo Código de Processo Civil, de fato, criou diversas hipóteses que dão maior realce aos precedentes judiciais, o que abrange, obviamente, decisões propaladas em sede de controle incidental de constitucionalidade.

Em uma análise da literalidade da lei, verifica-se, a título de exemplo, a necessidade de fundamentação da decisão judicial que afasta o enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte (art. 489, §1º, inciso VI do NCPC).

Outro exemplo é a instauração do incidente de demandas repetitivas, cuja decisão final é aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região (art. 985, inciso I, do NCPC). A decisão aplicar-se-á, ainda aos casos futuros que versem idêntica questão de direito (art. 985, inciso II, do NCPC).

Gilmar Mendes cita, ainda, como reforço à adoção da tese pelo legislador ordinário, o previsto no Código de Processo Civil, antes no artigo 557, §1º-A e hoje no artigo 932, incisos V, a, b e c, do NCPC, no sentido de que é autorizado o relator dar provimento ao recurso se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior19.

Pode-se destacar, ainda, na esteira deste último raciocínio de Gilmar Mendes, a recente introdução da repercussão geral, regulamentada pela Lei nº 11.418/2006.

Referido instituto (repercussão geral) foi acrescido por intermédio da Emenda Constitucional 45/2004 que alterou o §3º, do artigo 102, da Constituição Federal. A regra prevê que no recurso ordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos seus membros.

A repercussão geral instituiu verdadeiros mecanismos de transcendência dos efeitos do controle de constitucionalidade realizado pelo STF.

Na linha da doutrina, a repercussão trouxe inovações denominadas de “transcendência fraca” e “transcendência forte (autêntica)”.

Por transcendência fraca, cita-se a possibilidade de o relator do recurso extraordinário admitir a manifestação de terceiros, nos termos do regimento interno do STF (art. 1035, §4º, do NCPC). Também haverá, durante o incidente de demandas repetitivas, o sobrestamento da multiplicidade de recursos extraordinários que versarem sobre idênticas controvérsias, caso em que haverá a seleção de um ou mais recursos representativos da controvérsia (art. 1036, §1º, do NCPC). Há, ainda, a possibilidade, após o julgamento de mérito dos recursos representativos, de o tribunal de origem declarar os recursos prejudicados ou decidi-los de acordo com a tese firmada (art. 1039, caput¸ do NCPC).

Já na transcendência forte ocorre verdadeira transcendência material, havendo a obrigação de serem inadmitidos os recursos cujo conteúdo versarem sobre tema idêntico àquele do recurso que originou a decisão dotada de efeito transcendente. É o caso do previsto no §8º, do artigo 1035 do NCPC, segundo o qual, negada a repercussão geral, o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem e que versem sobre matéria idêntica.

Gilmar Mendes ainda defende que o instituto da súmula vinculante é reflexo da transcendência dos acórdãos proferidos no âmbito do controle concreto de constitucionalidade20.

6.3. Interpretação da abstrativização do controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal

Inicialmente, a Lei nº 8.072/90 previa que os condenados pela prática de crimes hediondos e equiparados deveriam cumprir a pena em regime integralmente fechado, vedada a progressão de regime.

Contudo, em 23 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do §1º, do artigo 2º, da referida Lei, passando a considerar que em tais crimes deveria ser permitida a progressão de regime, vejamos a ementa:

PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.21

No entanto, como se pode notar, a decisão do STF foi proferida em um caso concreto (habeas corpus), de modo que o controle constitucional foi realizado no modo difuso.

Após referida decisão, grande parte dos tribunais passaram a julgar nos moldes do mencionado acórdão.

Desde então, passou-se a discutir se a decisão teria eficácia erga omnes e efeito vinculante e, por consequência, passou-se a questionar se o Supremo Tribunal Federal aderiria ou não à teoria da abstrativização, até que o Pretório Excelso decidiu a Reclamação nº 4335/AC em 201422.

O caso concreto julgado por meio da referida reclamação envolvia uma decisão de um juiz das execuções penais de Rio Branco/AC que indeferiu um pedido de progressão de regime e fundamentou que a Lei nº 8.072/90 proibia a concessão do mencionado benefício e que o julgado do STF que declarou a inconstitucionalidade da referida proibição ocorreu em controle difuso, de modo que somente haveria efeito erga omnes se o Senado Federal tivesse publicado a resolução prevista no inciso X, do artigo 52, da Constituição Federal.

Inrresignada com a decisão, a Defensoria Pública propôs a mencionada reclamação ao Supremo Tribunal Federal sob o argumento de que a decisão no HC 82959 aquela Corte já havia declarado a inconstitucionalidade do dispositivo que vedava a progressão de regime e, por isso, a decisão deveria ser respeitada pelo Poder Judiciário. Em síntese, a Defensoria Pública defendeu a transcendência dos efeitos do mencionado habeas corpus.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que a reclamação era procedente, contudo o fundamento não foi exatamente o proposto pela Defensoria Pública. Isso porque, durante a tramitação da aludida reclamação, superveio a Súmula Vinculante nº 26 que passou a determinar a observação da declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º, da Lei nº 8.072/90, de modo que o pedido da Defensoria Pública somente foi acatado porque a decisão do magistrado local divergia do teor da mencionada Súmula Vinculante.

Porém, o acórdão proferido na mencionada reclamação foi fundamental para dele se abstrair a posição do STF acerca dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em controle difuso.

Os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau votaram no sentido de que as decisões proferidas pelo Plenário do STF possuem eficácia vinculante e efeitos erga omnes e que o papel do Senado atualmente é meramente o de dar publicidade à decisão, uma vez que houve mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal. Os demais Ministros não acataram o entendimento.

Na decisão, Gilmar Mendes argumentou que a doutrina tradicional sustenta que a suspensão do ato pelo Senado Federal é ato discricionário e político, cabendo à referida Casa Legislativa decidir se irá ou não dar à decisão eficácia erga omnes. Contudo, para o Ministro, essa concepção estaria ultrapassada e diverge do atual prisma constitucional. Para ele, a interpretação que deve ser dada ao papel Senado Federal é outra, de modo que hoje a sua função seria meramente o de dar publicidade à decisão preferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Para a maioria dos demais ministros, não há o que se falar de mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.

Para o Ministro Teori Zavascki, por exemplo, algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal gozam de “força expansiva”, o que não se confunde com a eficácia vinculante e efeitos erga omnes das decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Defendeu o Ministro que há uma tendência no direito brasileiro de seguir rumo a um sistema de valorização dos precedentes judiciais dos Tribunais Superiores, de modo que cada vez mais se atribui força expansiva e persuasiva aos demais processos que possuam o mesmo fundamento. Assim, para o Ministro, o Brasil estaria seguindo rumo parecido com o de outros países que adotaram o sistema da civil Law, aproximando-se à cultura do stare decisis. Exemplo disso, seria, dentre outras hipóteses, as atuais alterações advindas no Código de Processo Civil (ainda mais reforçadas no CPC atual) como, por exemplo, a possibilidade de o relator decidir monocraticamente com fulcro em jurisprudência dominante do respectivo tribunal ou dos tribunais superiores.

Decidiu-se que mesmo havendo força expansiva, nem todas as decisões do Supremo Tribunal Federal são passíveis de reclamação, sob pena de transformar a Corte Constitucional em um tribunal de execução. Assim, segundo o STF, somente se possibilita o manejo da reclamação em julgados com previsão legal expressa de efeitos vinculantes, como, por exemplo, ocorre com as súmulas vinculantes.

Assim, sintetizando os fundamentos do julgado, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, apesar de algumas decisões possuírem força expansiva, influenciando decisões análogas do Poder Judiciário, não há o que se falar em mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal e, por conseguinte, em transcendência dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida em controle difuso. Portanto, força expansiva não se confunde com efeitos erga omnes e vinculantes.


7. CONCLUSÃO

Verifica-se que cada vez mais o direito brasileiro vem dando maior importância aos precedentes dos Tribunais Superiores, especialmente após profundas alterações introduzidas na sistemática da própria Constituição Federal e da legislação processual, agora reforçadas pelo Novo Código de Processo Civil.

Hoje, pode-se dizer que a jurisprudência dos Tribunais Superiores, especialmente do Supremo Tribunal Federal, se tornou verdadeira fonte do direito brasileiro, ganhando cada vez mais força expansiva e poder persuasivo aos demais órgãos do Poder Judiciário.

Ocorre que essa força expansiva, ao menos por ora, não é capaz de conferir mutação constitucional ao artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.

Optar pelo efeito transcendente dos Tribunais Superiores significa verdadeira usurpação dos poderes conferidos ao Senado Federal pelo constituinte originário.

Não possui amparo, também, a alegação de que a súmula vinculante seja um dos fundamentos para a adoção da teoria da abstrativização.

Isso porque, caso as decisões do Supremo Tribunal Federal tivessem eficácia erga omnes, não haveria necessidade de modificação da Constituição Federal e a criação da “súmula vinculante” justamente para conferir tal eficácia a entendimentos específicos daquele Tribunal Superior.

Assim, mais acertada é a tese de que algumas decisões dos Tribunais Superiores possuem força expansiva, de modo a persuadir os demais órgãos do Poder Judiciário, o que não se confunde com o efeito vinculante e eficácia erga omnes.

Portanto, somente poderá ser acatada a tese da transcendência dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle difuso caso haja uma reforma da Constituição Federal.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CHIMENTI, Ricardo Cunha et al Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. Ver. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 41, n. 162, p. 149-168, abr./jun. 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.


Notas

1 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1303.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1305.

3 SILVA, José Afonso. Apud LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 159-160.

4 STF. Plenário. MS 32033/DF, rel. orig. Min. Gilmar Mendes, red. p/ o acórdão Min. Teori Zavascki, 20/06/2013.

5 CHIMENTI, Ricardo Cunha et al Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 410.

6 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 762.

7 CHIMENTI, Ricardo Cunha et al, op. cit, p. 426.

8 MORAES, Alexandre de. Op.cit., p. 825.

9 MORAES, Alexandre de. Op.cit., p. 825.

10 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 744.

11 MORAES, Alexandre de. Op.cit., p. 745/746.

12 MORAES, Alexandre de. op.cit.,, p. 748.

13 ARAÚJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 29.

14 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit.

15 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1362.

16 Ibidem, p. 1364.

17 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio apud MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1364.

18 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio apud LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 187.

19 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1365.

20 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit. p. 1368.

21 HC 82959, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006, DJ 01-09-2006 PP-00018 EMENT VOL-02245-03 PP-00510 RTJ VOL-00200-02 PP-00795).

22 Rcl 4335, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 20/03/2014, DJe-208 DIVULG 21-10-2014 PUBLIC 22-10-2014 EMENT VOL-02752-01 PP-00001.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.