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O lado perverso do pragmatismo

O lado perverso do pragmatismo

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Fazendo uma referência à filosofia pragmática, pode-se apreender que essa doutrina rompe com as amarras do método que representa um entrave para se chegar à verdade. No entanto, esta teoria dá brechas para abusos e injustiças às questões do Direito.

Resumo

            Buscando uma definição para a palavra “pragmatismo” encontramos uma pequena variedade significações. Dentre elas: doutrina que consiste na consideração de coisas a partir de um ponto de vista prático ou; lida com questões tendo em vista consequências práticas.  Aqui se entende por prático algo visto como positivo, como forma de vencer obstáculos rapidamente e eficazmente. Fazendo uma referência à filosofia pragmática, pode-se apreender que essa doutrina rompe com as amarras do método que é visto como algo limitante, que representa um entrave para se chegar à verdade.  Num primeiro momento o essa filosofia chega como uma solução para os problemas relacionados à verdade. No entanto, apesar de se mostrar um tanto revolucionária e ainda apresentar uma solução viável, a teoria pragmática dá brechas para sua utilização indevida, principalmente no que se refere às questões ligadas ao Direito, dando margem para abusos e injustiças. Este ensaio tem como objetivo, portanto, lidar com este problema que essa teoria traz, de cegar-nos em um primeiro contato escondendo certa perversidade, que não é o que seus idealizadores buscam difundir, mas que, para uma mente insana, serve de discurso ideológico para suas perversões e atrocidades.        

Palavras - chave: Pragmatismo. Utilitarismo. Verdade

1.  Filosofia Pragmática

O Pragmatismo tem sua origem filosófica nos Estados-Unidos da segunda metade do séc. XIX, com Charles Peirce e William James. Pouco mais tarde aparece, neste cenário, a figura de John Dewey. A Pierce atribui somente a sua contribuição quanto ao nome da nova filosofia e o impulso ao seu estudo. É a partir de James e Dewey que o pragmatismo ganha corpo e força, com um enfoque reacionário à filosofia kantiana sobre a questão da verdade e os métodos para se chegar até ela.  Segundo James,

“todos nós temos um conjunto de idéias formadas e adquiridas pela vivência e, a cada nova experiência, inicia-se um processo de adaptação da nova realidade ao conjunto das antigas idéias. A etapa final desse processo consiste na concepção da idéia nova como uma verdade para o indivíduo que a vivencia. Daí o entendimento sustentado pelo autor de um processo de alargamento da verdade produzido em razão da experiência em contraposição aos sistemas fechados, formados de verdades absolutas e inquestionáveis.” (MAIA, 2007)

Ainda para James “a verdade de uma idéia não é uma propriedade estagnada que lhe seja inerente. A verdade acontece a uma idéia. Torna-se verdadeira; é feita verdadeira pelos acontecimentos” ¹.

Ao se referir a sistemas fechados, James faz referência a utilização de método. Mais do que uma simples referência, ele é contrário a concepção de que, para se chegar a ao conhecimento, à verdade, o homem precisa sistematizar uma forma válida, um caminho para se chegar a esse conhecimento de forma plena. Essa validade é alcançada quando o método empregado é reconhecido como adequado, como correto.

Ao longo da história, começando por Aristóteles, o homem tem necessidade de descobrir a verdade. Antes disso, chegar a um consenso sobre o que é verdade, qual seu sentido uma vez que ela é palavra-chave em toda a história da Filosofia.  Essa “verdade” se refere também a conhecimento e, as teorias que se desenvolveram, giram em torno de

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¹ JAMES, William. A concepção de verdade do pragmatismo. O Pragmatismo: um nome novo para algumas formas antigas de pensar. Trad. Fernando Silva Martinho. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997, p.102.

criar métodos para atingir esse conhecimento. O que James, Dewey, o pragmatismo propõe é um rompimento com todo um trabalho filosófico desenvolvido até o momento.

Na sua obra Lógica – a teoria da investigação Dewey afirma que os homens erram ao utilizar métodos de investigação que, devido à árdua tarefa de filósofos em definir um método válido ou mais adequado, demonstrou serem frágeis, inconsistentes para resolver casos presentes. Daí a razão da forte crítica trazida por James e Dewey ao racionalismo e suas verdades primeiras, tomadas como absolutas. Para James, a verdade decorre da adequação prática de uma coisa ao caso concreto, não podendo, assim, ser concebida anteriormente. Surge então, como fator determinante à produção da verdade, o critério da utilidade da coisa, através da adequação do valor nela embutido à situação concreta.

A concepção de verdade, para o pragmatismo é bem definida por James:

O “verdadeiro” (...) é somente o expediente no processo de nosso pensamento. (...) O “absolutamente” verdadeiro, significando o que nenhuma experiência posterior jamais alterará, é aquêle ponto difuso ideal para o qual imaginamos que tôdas as nossas verdades temporárias algum dia convergirão (...). Nesse meio tempo, temos de viver hoje com a verdade que podemos ter hoje, e estarmos prontos amanhã para tachá-la de falsidade. ² 

Essa definição demonstra uma semelhança com o empirismo, ao admitir que só as evidências práticas podem comprovar uma teoria. 

Como um complemento a concepção de verdade para os pragmatistas uma crença deve ser julgada verdadeira na medida em que as consequências práticas da adoção dessa crença sejam boas. Nessa premissa, os pragmáticos em muito se assemelham aos utilitaristas, podendo quase ser confundidos como tal. Aqui se faz necessário um breve comentário sobre essa corrente.

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² JAMES, William. Concepção da verdade no Pragmatismo. Pragmatismo e outros ensaios. Trad. Jorge Caetano da Silva. Rio de Janeiro: Lidador, 1967, p.127.

2. O Utilitarismo de Jeremy Bentham

            O entendimento da teoria proferida por Bentham e sustentada por seus seguidores era de que qualificação dos efeitos, as conseqüências da adoção de determinada crença teria como base a utilidade, sendo o bom aquilo que traz prazer e mau, o que causa dor. O bom, justo, o correto é tudo aquilo que tende a aumentar a felicidade geral. Para ele, esse é o mais elevado objetivo da moral.

             Retomando o que já foi dito, as duas teorias se fundem nesse aspecto de utilidade, de resultados ou conseqüências boas. Enquanto as “verdades” trazem essa máxima felicidade sem infringir outros direitos, o pragmatismo/utilitarismo seriam teorias adequadas para se chegar ao conhecimento, para tomar decisões. O problema surge quando direitos individuais, inerentes ao homem, os direitos naturais e o ideal de justiça a que Aristóteles fazia referência são violados em nome desta “felicidade geral”.

            No livro Justiça – O que é a coisa certa a fazer? de Michael Sandel, esta temática é aprofundada, sendo elevado a níveis extremos a discussão sobre o que é certo, sobre qual “verdade” devemos buscar. Em capitulo específico sobre a teoria utilitarista, o texto apresenta ao leitor diversos exemplos de utilização dessa teoria e em seguida, apresenta as infrações ou objeções a ela. 

            A primeira delas é a respeito dos Direitos Humanos.  A grande fragilidade do utilitarismo é justamente a sua dificuldade em respeitar esses direitos. Para ele, o individuo só tem importância se estiver inserido dentro de um coletivo. E as preferências, as decisões, as crenças só são consideradas se refletirem a vontade da maioria.  Essa lógica permite violação ao respeito da dignidade humana. Como exemplo, Sandel narra o caso dos cristãos jogados aos leões na Roma Antiga, que proporcionavam prazer, êxtase dos expectadores no Coliseu.  O sofrimento do cristão na arena seria desconsiderado em razão do bem coletivo proporcionado. Só uma pessoa sofre, as demais estão felizes, então essa é a coisa certa a fazer, seguindo essa lógica.

            A segunda objeção faz referência a valores morais serem transformado em moeda comum.  Seguindo essa ideia, a lógica utilitarista é por vezes aplicada em analises de custo beneficio. A gravidade dessa aplicação se dá de tal forma que a vida humana tem uma fixação de preço e a partir daí são feitas comparações para se determinar o que é mais lucrativo. Os exemplos são muitos, dentre eles, a análise dos custos do tratamento de um fumante em que, segundo Sandel:

“O estudo descobriu que o governo efetivamente lucra mais do que perde com o consumo de cigarros pela população. O motivo: embora os fumantes, em vida, imponham altos custos médicos ao orçamento, eles morrem cedo e, assim, poupam o governo de consideráveis somas em tratamentos de saúde, pensões e abrigo para idosos. De acordo com o estudo, uma vez levados em conta os ‘efeitos positivos’ do tabagismo (...) o lucro líquido paro o tesouro é de 147milhões de dólares por ano” ³       

            Essas objeções mostram a fragilidade do utilitarismo associado ao pragmatismo, em um contexto onde os direitos humanos são amplamente discutidos e levados a seu máximo.

3. A ilusão criada por Richard Rorty

            O pragmatismo se impôs nos EUA como corrente dominante antes da Segunda Guerra Mundial, sofrendo posteriormente um longo eclipse, dada a predominância da filosofia analítica. Seu ressurgimento deveu-se sobretudo à Rorty. Ele, como todo bom crente, defende com unhas e dentes suas crenças.

            Em seu livro Consequência dos Paradigmas, trabalha muito bem com a doutrina pragmática, chegando a convencer um leitor mais desatento de que essa teoria é uma boa saída para os problemas a cerca da verdade.

            Em um de seus ensaios Pragmatismo, Relativismo e Irracionalidade, Rorty elenca três características do pragmatismo que ele considera centrais na doutrina de James e Dewey. A primeira delas é sobre a aversão a essência das coisas, aplicados a verdade, conhecimento por exemplo. O conhecimento de tais essências serviria como meio para a crítica de perspectivas que fossem consideradas falsas como também para apontar a direção do progresso para a descoberta de mais verdades. Para os pragmáticos

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³ SANDEL, Michael J. Justiça – o que é a coisa certa a fazer? . Tradução de Heloísa Matias e Maria Máximo. 9ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2012, p.56.

 “é o vocabulário da prática mais do que o da teoria, da acção mais do que da contemplação, aquele em que podemos dizer alguma coisa útil sobre as palavras” 4.              

A segunda se refere a que, para os pragmatistas, o padrão de toda a investigação é a deliberação a respeito dos atrativos relativos de várias alternativas concretas. Em outras palavras, eles renegam o método como investigação e é utilizá-los em função da especulação é tomar “desejos por realidades”. Eles se referem ao mito de que a racionalidade consiste em ser coagida pela regra, a mecanização das pessoas, a não liberdade. Afirmam que estamos presos a um modelo que mais restringe do que abre possibilidades.

Na terceira, o pragmatismo

“é a doutrina de que não existem constrangimentos à investigação salvo os conversacionais – nenhumas restrições gerais derivadas da natureza dos objectos, ou da mente, ou da linguagem, mas apenas restrições particulares fornecidas pelas observações dos nossos companheiros investigadores.” 5

Para eles, não existe método para saber quando alcançamos a verdade, ou quando estamos mais perto dela.

            Rorty conclui que no fundo o que importa para os pragmatistas é a lealdade com outros seres humanos que se ancoram uns aos outros contra as “trevas” e não nossa esperança de compreender bem as coisas.

            Olhando essas três características, não encontramos, a priori, problemas na adoção dessa doutrina. Contudo, após uma reflexão acerca de seus princípios, das falhas e mais ainda da repercussão dessas falhas, percebemos o quão perigoso caminho essa teoria pode trilhar. Não podemos nos ludibriar com uma aparente praticidade e utilidade mascarada, escondendo possíveis infrações, má usos, e uma perversidade com requinte

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4 RORTY, Richard. Consequências do pragmatismo. Tradução de João Duarte. 1ª edição. Coleção: Pensamento e Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget,1982. P.234

5  RORTY, Richard. Consequências do pragmatismo. Tradução de João Duarte. 1ª edição. Coleção: Pensamento e Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget,1982. P.236

de crueldade.  Num contexto onde os direitos fundamentais são colocados em evidência, não podemos deixar brechas e nem tolerar qualquer violação desses direitos. 


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