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Divórcio, dignidade humana e isonomia

Divórcio, dignidade humana e isonomia

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Com a demora da chegada do "espetáculo do crescimento" anunciada pelo governo federal, a cada dia aumenta o número daqueles que sonham com a vida no exterior. Notícias de que o entregador de pizza ganha mais do que nossos recém-formados, que empregada doméstica recebe por hora trabalhada, eletricista e encanador são considerados especialistas, esperar pelo aumento do mínimo ou pela correção da tabela do Imposto de Renda, além de ser um ato de extrema fé é masoquismo.

Assim, João (casado com Maria), desempregado, com o casamento desgastado, sem interesse na reconquista, tendo a oportunidade de imigrar para os Estados Unidos, Europa, Japão,. .., via "coiotes" ou não, não pensa duas vezes e, deixando o duvidoso, parte para o certo. Maria, agora sem marido, porque é mãe dois filhos, tem que se contentar com seu salário de doméstica.

Passados alguns meses, João, brasileiro, dá um jeitinho de continuar no exterior, agora legalizado: o casamento com uma americana. E Maria?

Na última carta João manda – embrulhado nos dólares para a pensão alimentícia dos filhos – a foto do enlace numa capela de Las Vegas. E Maria?

Maria, casada, mãe de dois filhos, doméstica. Em que pese a sorte não ser tão bondosa com ela como foi com João, conhece Antonio, solteiro, metalúrgico. União estável não é do interesse de ambos, querem o casamento.

A Las Vegas de João é longe, cara e não resolverá o problema dos apaixonados. A solução deverá ser encontrada na legislação brasileira, baseada em nossa realidade.

"Doutor, quero me casar com Antonio, mas sou casada com João, que – por sua vez – casou-se com Alice." Ressalvadas as semelhanças com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, o nobre causídico dispara um tiro contra os corações enamorados: "Casar até que podem, mas levará algum tempo e dependerá do divórcio de Maria."

Maria, casada, mãe de dois filhos, doméstica, apaixonada, condenada. Certo, errado, justo, injusto?

Divórcio consensual, através de procuração com poderes especiais outorgada por João – eis a idéia que poderia salvar o romance dos pombinhos. Mas, encontraria esta solução amparo legal?

Sem temer a censura, a resposta deve ser afirmativa e isto, fundando-se num princípio geral de direito e noutros dois constitucionais, quais sejam, o de que ninguém está obrigado ao impossível, o da dignidade da pessoa humana e o da isonomia.

Ao Judiciário brasileiro não decretar o divórcio das Marias (exigindo-se a presença do cônjuge que reside no exterior), desobedece os princípios acima elencados, condenando-as a um estado civil de casadas até que optem pelo divórcio litigioso (mais burocrático e demorado).

Enquanto que João vence no exterior, ganhando dólares e conquistando a legalidade de sua permanência, muitas vezes com o casamento, Maria, casada, mãe de dois filhos, doméstica, apaixonada, é obrigada a esperar longos meses para então se casar com Antonio. Isto viola a dignidade da pessoa humana, discriminando Maria.

A dignidade da pessoa humana constante do artigo 1º, Constituição Federal, que a elenca como um dos fundamentos do Estado brasileiro, é definida pelo festejado constitucionalista José Afonso da Silva da seguinte forma:

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. [1]

Quanto ao princípio da isonomia, presente no artigo 5º, da Carta Magna, e – especialmente – no inciso I, este reza que homens e mulheres são iguais perante a lei. Não se trata de exigir igualdade material entre os sexos, mas, no caso concreto, o que se espera é a garantia de que as "Marias" terão direito à felicidade ou na busca desta em um novo amor, assim como os "Joãos" alcançaram.

Considerando que os princípios fundamentais contidos na Constituição Federal devem informar, reger todo o funcionamento do Estado, o Poder Judiciário – em razão de sua atividade principal – deve ser o primeiro a reconhece-los, aplica-los, resguardá-los.

Aceitar o divórcio consensual por procuração com poderes especiais outorgada por cônjuge residente no exterior é conceder o direito à igualdade com aquele que alcançou uma nova oportunidade. Exigir o contrário, a propositura do divórcio litigioso, é retirar o precioso tempo daquele que permaneceu no país, o que atenta contra sua dignidade.

No que tange ao princípio geral de direito, este é claro ao afirmar que ninguém está obrigado ao impossível. João não podendo comparecer à audiência designada de ratificação deve contar com o bom senso do julgador. Exigir sua presença é obrigá-lo ao impossível, em virtude da distância em que se encontra da terra natal.

Oportunas são as citações jurisprudenciais:

Divórcio. Cônjuge varão estrangeiro. Não compareceu o cônjuge varão à audiência de conciliação, mas supriu tal ausência por procuração. Embora a lei exija o comparecimento pessoal, a lei manda aplicar ao divórcio consensual o procedimento dos arts. 1120 a 1124 do Código de Processo Civil, que regem o processo de jurisdição voluntária. À luz deste processo pode o juiz adotar critério que não o da legalidade escrita, podendo adotar a solução que refutar mais conveniente, no caso a decretação do divórcio. [2]

Civil – Família – Separação judicial consensual – Dificuldade extraordinária e inexigível do comparecimento pessoal de um dos cônjuges à audiência de ratificação do pedido, por encontrar-se residindo e trabalhando no exterior – Representação por meio de mandatário constituído especialmente para o fim – Admissibilidade – Orientação principiológica – Petição inicial indeferida – Condições de procedibilidade presentes – Recurso provido para anular a sentença. A circunstância de um dos cônjuges encontrar-se residindo e trabalhando no exterior caracteriza dificuldade extraordinária e inexigível de seu comparecimento pessoal à audiência de ratificação do pedido de separação judicial consensual. Nestes casos, à luz dos princípios gerais de direito, mormente o de que ninguém está obrigado ao impossível (ad impossibilia nemo tenetur), a petição inicial deve ser subscrita diretamente por ambos os cônjuges, com as firmas reconhecidas por quem de direito, e o separando ausente far-se-á representar por mandatário, com poderes especialíssimos para atuar em todos os atos e termos do procedimento de separação por mútuo consentimento. Daí ser nula a sentença indeferitória da exordial e extintiva do processo, à mingua da possibilidade jurídica do pedido. [3]

Por fim, a tese ora defendida também encontra amparo nos artigos 1125 e 1135, Código Civil. Enquanto que o primeiro prevê que o processo de habilitação de casamento poderá ser feito mediante procuração, o segundo prescreve que a celebração do casamento se dê com o instrumento outorgado com poderes especiais. Assim, não sendo o casamento um ato personalíssimo por que o divórcio seria? O bom senso – que deve sempre nortear os aplicadores do direito – não encontra razões consistentes para tratamentos desiguais. Vale a máxima: quem pode o mais (casar-se), pode o menos (divorciar-se). Este, inclusive, foi o fundamento da recente decisão proferida pela ilustre Juíza da 7ª Vara de Família da Comarca de Goiânia, Dra. Sandra Regina Teodoro Reis, ao decretar o divórcio direto consensual por procuração com poderes especiais de cônjuge residente no Japão.

Concluindo: João, brasileiro, entregador de pizza, casado com Alice, americana, agora encontra-se divorciado de Maria, brasileira, doméstica, apaixonada e feliz, completa, pois em Antonio reconstruiu sua vida afetiva e isto porque um juiz, em alguma comarca deste país aceitou que um tal de Juarez comparecesse à audiência com uma procuração outorgada por João. Eis um final coerente e feliz.


Notas

1 Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª ed., Malheiros, São Paulo, 1998

2Apelação Cível no. 593090210, 8ª Cam. Cível, TJRS, Rel. Dês. Antõnio Carlos Stangler Pereira.

3 Apelação Cível no. 2002.010996-2, TJSC, Rel. Dês. Luiz Carlos Freyesleben.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Glauber Rocha. Divórcio, dignidade humana e isonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 368, 10 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5425. Acesso em: 19 abr. 2024.