Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/5584
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O instituto da remessa necessária e a Súmula 45 do Superior Tribunal de Justiça

O instituto da remessa necessária e a Súmula 45 do Superior Tribunal de Justiça

Publicado em . Elaborado em .

Com o supedâneo em uma parte da doutrina – se bem que minoritária, mas não menos abalizada – buscou-se fazer uma análise acerca da remessa necessária e aplicação do princípio da proibição da "reformatio in pejus".

Resumo: Com o supedâneo em uma parte da doutrina – se bem que minoritária, mas não menos abalizada – buscou-se fazer uma análise acerca da remessa necessária e aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus. Analisando minuciosamente os vários aspectos do reexame obrigatório, constatou-se que esse instituto processual é uma medida excepcional e sem correspondência nas legislações européias, sendo uma manifestação lógica e intrínseca do princípio inquisitivo. A remessa necessária não é uma espécie recursal, e sim uma condição sem a qual a sentença não produzirá seus efeitos, porquanto lhe faltam requisitos e características para tanto. Em face dessas considerações, denota-se a ocorrência do efeito translativo na figura jurídica da remessa – transferência integral da matéria – e não a incidência do efeito devolutivo recursal. Desta feita, tem o tribunal ampla liberdade de atuação, não se aplicando, portanto, o princípio da proibição da reformatio in pejus. Nesse viés, o equívoco, com a devida venia, da súmula 45 do STJ, consiste, basicamente, em emprestar à remessa necessária o efeito devolutivo que se evidencia nas espécies recursais. Ainda, foi constatado que o duplo grau obrigatório, por si só, não é inconstitucional, pois, ao salvaguardar o interesse público que se caracteriza nas ações envolvendo a fazenda pública, assegura a igualdade substancial preconizada pelo princício da isonomia. Contudo, vislumbra-se a inconstitucionalidade, data venia, da súmula 45 do STJ, porquanto a finalidade para a qual foi criada a remessa necessária consiste em salvaguardar o interesse público, estabelecendo, como critério de segurança, a confirmação da sentença desfavorável à fazenda pública pelo tribunal ad quem, e não tutelar a fazenda pública, medida essa de todo incompatível com a ordem constitucional, mormente com o princípio constitucional da igualdade.

Palavras–chave: Reexame obrigatório. Princípio inquisitivo. Efeito translativo.

Sumário: INTRODUÇÃO; 1. Considerações preliminares acerca da remessa necessária, 1.1 Evolução histórica, 1.2 Análise constitucional; 2. Da remessa necessária, 2.1 Natureza jurídica, 2.2 Hipóteses legais, 2.3 Exceções, 2.4 Efeitos; 3. Do princípio da proibição da reformatio in pejus, 3.1 Elementos propedêuticos, 3.2 Da aplicabilidade em relação à remessa necessária, 3.3 Análise constitucional da súmula 45 do STJ; CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como finalidade a apresentação de monografia para a conclusão de curso de Bacharelado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, com o escopo, ainda, de somar, academicamente, a doutrina neste estudo utilizada.

É cediço que o Direito não é um ciência estanque, é produto do meio social. Dessa forma, a ciência jurídica usa da interpretação como instrumento necessário para as devidas adaptações ao meio social.

Destarte, divergências doutrinárias existem e coexistem sobre diversos institutos jurídicos.

Na sistemática processual civil brasileira, várias prerrogativas processuais têm sido conferidas à fazenda pública, dentre as quais se cita a necessidade de tribunais confirmarem a sentença desfavorável ao poder público, necessidade essa consubstanciada no instituto processual denominado de remessa necessária, também conhecida como devolução oficial, reexame obrigatório, duplo grau obrigatório, entre outras denominações.

Nesse diapasão, o presente trabalho tem como fim precípuo a análise da figura jurídica da remessa necessária – a qual é controvertida em seara doutrinária – e aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus em relação a tal instituto processual.

Para tanto, será realizada uma pesquisa bibliográfica no que tange aos autores que se reportam ao reexame obrigatório, analisando não apenas essa figura processual em seus vários aspectos tais como: evolução histórica, constitucionalidade, natureza jurídica, hipóteses legais, exceções e efeitos; e também sobre a possibilidade da aplicação ou não do princípio da proibição da reformatio in pejus, por meio da confrontação entre o entendimento de uma parte da doutrina engajada pelos eminentes juristas Nelson Nery Junior e Cândido Rangel Dinamarco e o posicionamento jurisprudencial, o qual adota a tese preconizada na súmula 45 do colendo STJ, fazendo-se, outrossim, uma abordagem técnica e uma breve análise constitucional da aludida súmula.


1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

1.1. Evolução histórica da remessa necessária

Antes de analisar a evolução histórica da remessa obrigatória propriamente dita, necessário se faz tecer breves comentários acerca da relação entre o direito pátrio e o direito lusitano, fazendo-se para tanto um estudo conciso atinente ao desenvolvimento histórico do sistema jurídico português.

Urge acentuar, portanto, que, quando o Brasil foi "descoberto" pelos portugueses, esses estavam sob a égide das Ordenações Afonsinas as quais foram editadas no ano de 1446, com o fito de compilar a legislação desde Afonso II a Afonso V, daí a razão da denominação Ordenações Afonsinas. Tal legislação versava, de uma forma geral, sobre matérias atinentes à administração pública.

Sobre o assunto, disserta José da Silva Pacheco 1, segundo o qual: "Embora de conteúdo heterogêneo e sem uniformidade, foram tais Ordenações, como já salientamos, a primeira tentativa, se não de codificação, pelo menos de compilação coordenada, na época moderna."

Nesse diapasão, sob o governo de D. Manoel, por volta de 1505, esse entendeu ser necessária a elaboração de um nova legislação cuja vigência se deve no ano de 1521, notadamente, no dia 11 de março daquele ano. Essa legislação veio a ser denominada de Ordenações Manuelinas, a qual fortaleceu ainda mais o poder do rei, atendendo-se, desta forma, mais aos interesses desse do que a de qualquer outro segmento.

Por oportuno, traz-se à baila o ensinamento daquele mesmo autor, vale dizer, José da Silva Pacheco 2:

Em seguida foi editado como título de Ordenações, em nome de Afonso V, entre 1446 e 1447, antes de Dom Pedro deixar a regência, embora não se saiba, exatamente, quando entraram em vigor, não só por não existir ainda a imprensa em Portugal, mas também inexistir modo de torná-la pública e obrigatória, além da própria assinatura do Rei e registro pelo chanceler-mor.

Contudo, tem-se como vigente após a sua edição até 1521, quando ocorreu a publicação das Ordenações Manuelinas, principalmente tendo em vista que constituía, em sua maior parte, mera compilação do direito existente, que já vigorava.

É imperioso frisar, ainda, que, com o advento da União Ibérica, houve uma série de reformulações significativas no direito lusitano, dentre as quais se pode destacar a promulgação das Ordenações Filipinas, no ano de 1603, sob o reinado de Filipe III.

No particular, merece menção as lições do já citado autor José da Silva Pacheco 3:

Por alvará de 5 de junho de 1595, considerando quão necessária é, em todo tempo, a justiça, assim na paz como na guerra, a qual convém como virtude principal, e sobre todas as outras mais excelente, e considerando que havia muitas leis extravagantes de modo que os julgadores não tinham delas notícias, do que se erguia às partes grande prejuízo, e em algumas havia diversos entendimentos, e por outras não era provido a muitos casos que ocorriam, determinou nova compilação.

Destarte, passa-se a examinar a evolução histórica do instituto do duplo grau de jurisdição obrigatório propriamente dito, também conhecido pela doutrina como remessa necessária, devolução oficial, entre outros.

Compulsando minuciosamente os livros que se reportam à figura processual em comento, pode-se constatar que a devolução obrigatória é um fenômeno peculiar no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo observado nas legislações européias. Nesse mesmo sentido, descreve o renomado jurista Nelson Nery Junior 4: "Tal medida é tradicional no direito brasileiro, oriunda do sistema medieval e sem correspondente no direito comparado, antigamente conhecida como ‘apelação ex officio’ ".

Ainda, nesse viés, leciona Nelson Nery Junior 5, ao discorrer sobre o aspecto histórico do reexame oficial:

A justificação histórica do aparecimento da remessa obrigatória se encontra nos amplos poderes que tinha o magistrado no direito intermédio, quando da vigência do processo inquisitório. O direito lusitano criou, então, a ‘apelação ex officio’, para atuar como sistema de freio àqueles poderes quase onipotentes do juiz inquisitorial. Essa criação veio com a Lei de 12.03.1355, cujo texto foi depois incorporado às Ordenações Afonsinas, Livro V, Título LIX, 11, subsistindo nas codificações portuguesas posteriores (Ordenações Manuelinas, V, XLII, 3; Ordenações Filipinas, V, CXXII).

No direito brasileiro, a primeira notícia que se tem da ‘apelação ex officio’ parece haver surgido com a Lei 04.10.1831, art. 90, que determinava ao juiz a remessa necessária ao tribunal superior de sua sentença proferida contra a Fazenda Nacional. O CPC de 1939 manteve o instituto no art. 822.

Nesse particular, não se poderia deixar de se fazer alusão ao entendimento do jurista Cândido Rangel Dinamarco 6, segundo o qual:

O vigente Código de Processo Civil herdou do estatuto precedente certos marcos autoritários da ditadura getuliana, de visíveis moldes fascistas porque obsessivamente voltados à tutela do Estado, entre os quais a imposição do duplo grau obrigatório em relação às sentenças desfavoráveis à Fazenda Pública.

Com efeito, assevera José da Silva Pacheco 7:

Inicialmente, as causas da Fazenda Pública eram decididas pelo Conselho da Fazenda.

Entretanto, por lei de outubro de 1831, suprimiu-se esse Conselho, remetendo-se as causas fazendárias para o foro comum, com audiência do procurador fiscal e com obrigatória apelação ‘ex officio’ para a Relação do distrito, sob pena de nulidade.

Com a lei de 29 de novembro de 1841, restabeleceu-se o foro privativo da Fazenda, na primeira instância, mas, por outro lado, manteve-se para os processos fazendários a ordem do processo estabelecida para a Justiça civil.

Em cada um desses juízos, haveria um procurador e dois oficiais de justiça.

Nos juízos de segunda instância, seriam as causas da Fazenda Nacional promovidas e defendidas pelos procuradores que servissem nas Relações, um vez que, sempre que a sentença de primeira instância fosse contra a União, haveria recurso ex officio, de valor excedente a 100 mil-réis, não abrangendo a proferida em causas de particulares, a que os procuradores houvessem assistido.

Sobre o assunto, tem-se, outrossim, o entendimento de Jefferson Carús Guedes 8:

Esse instituto do reexame necessário tem origem nas leis criminais de Portugal do século XIV, normas de inspiração inquisitorial que influenciaram as Ordenações Manuelinas (em 1521) e depois as Ordenações Filipinas (em 1603). De instituto processual criminal português foi incorporado às leis brasileiras, com o objetivo de defesa diante das ameaças e "descalabros contra o erário".

O diploma processual civil de 1939, em sua redação primitiva, não preconizava o duplo grau obrigatório, contudo esse instituto, por meio do decreto-lei n.º 4565/42, foi inserido no corpo daquele diploma legal, sendo acrescido, portanto, o parágrafo único ao artigo 822, o qual se transcreve:

Art. 822. A apelação necessária ou ex officio será interposta pelo juiz mediante declaração na própria sentença.

§ único. Haverá apelação necessária:

I - das sentenças que declaram a nulidade de casamento;

II - das sentenças que homologam o desquite amigável;

III – das proferidas contra a União, o Estado ou o Município.

Em que pese o CPC de 1973 ter mantido em seu artigo 475 a figura da devolução oficial, denota-se de sua mera leitura que não foi utilizada aquela denominação, qual seja, "apelação necessária ou ex officio". Ressalte-se, ainda, que, com as reformas processuais ocorridas na década de 90, destacam-se as alterações na redação do citado dispositivo legal, com o espeque não só de limitar as hipóteses que autorizam a incidência do reexame necessário, mas também de simples aperfeiçoamento terminológico naquela redação. Tais alterações serão melhores examinadas quando do estudo minucioso da remessa necessária propriamente dita, nos capítulos vindouros.

Diante desses ensinamentos, infere-se, pois, que a aparição da devolução obrigatória na sistemática processual brasileira está correlatada com o próprio processo histórico de "colonização-subordinação" que Portugal exerceu sobre o Brasil. Eis por que essa devolução estava contida no bojo do sistema jurídico penal lusitano, sendo reflexo do processo penal inquisitório. Sublinhe-se que, posteriormente, tal instituto jurídico foi incorporado ao processo civil brasileiro.

Torna-se imperioso, mais uma vez, fazer referência às lições de José da Silva Pacheco 9:

(...) a vida de nosso direito, como a de nosso povo, está ligada à vida do direito e do povo português, e a de ambos, à vida dos povos do Ocidente. Antes de sermos, Portugal já era e, não obstante a sua legislação processual só tenha tido início no reinado de Afonso III, a sua vida jurídica, incipiente embora, manifestara-se, anteriormente, sob o impulso de outras normas (...).

Logo, denota-se, por derradeiro, que a essência tanto do direito brasileiro, quanto do direito lusitano, remonta ao sistema jurídico do mundo ocidental.

1.2. Análise constitucional da remessa necessária

Ainda em sede das considerações propedêuticas, é curial apreciar a questão da constitucionalidade da remessa necessária.

Na doutrina, há divergências em relação à dita constitucionalidade. Há autores que entendem que o instituto do duplo grau obrigatório está maculado de inconstitucionalidade, contudo existem doutrinadores que se posicionam em sentido diametralmente oposto a esse da inconstitucionalidade.

Com efeito, entre os defensores daquele primeiro entendimento, tem-se Oreste Nestor de Souza Laspro 10:

Embora a sua utilidade seja contestada, não se pode concluir, genericamente, pela sua inconstitucionalidade. De fato, a necessidade de reexame, sempre que se tratar de um critério bilateral, ou seja, qualquer resultado de primeira instância obriga o regulamento em segunda instância, não pode ser considerado ofensivo à igualdade das partes.

Ocorre que essa bilateralidade é absolutamente excepcional, sendo que a regra geral é do reexame necessário ser aplicado não em razão material, mas sim do resultado da demanda. Esse casuísmo se mostra incompatível com o princípio da igualdade exposto no inc. I do art. 5º da CF, quer deve ser estendido como identidade de situações jurídicas.

É interessante, outrossim, transcrever o posicionamento desse mesmo autor, vale dizer, Oreste Nestor de Souza Laspro 11 quando da conclusão de seu entendimento:

Na verdade, somente há um caso no direito positivo brasileiro em que se impõe o reexame necessário e não padece de inconstitucionalidade: é o art. 6º, da Lei n. 5145, de 20 de outubro de 1969, que alterou o § 3º do art. 4º da Lei n. 818, de 18 de dezembro de 1949, que trata das causas de especificação da nacionalidade brasileira. Neste caso, o reexame, nascendo da matéria envolvida e não do resultado, embora criticável a manutenção do sistema, não se pode concluir pela inconstitucionalidade.

Por derradeiro, não se deveria olvidar as lições de Cândido Rangel Dinamarco 12:

A par da marca do Estado autoritário em que foi gerada, essa linha peca pelo confronto com a garantia constitucional da isonomia, ao erigir o Estado em uma superparte (a) com maiores oportunidades de vitória que seus adversários na causa e (b) com maiores oportunidades nos processos em geral, do que outros entes igualmente ligados ao interesse público, posto que não estatais (pequenas fundações, sociedades beneficentes, Santas Casa de Misericórdia etc.).

Frise-se que, muito embora não se concorde com a manutenção e utilidade da figura processual sob comento no ordenamento jurídico brasileiro, não se deve vislumbrar a alegada inconstitucionalidade da remessa oficial, porquanto sendo, segundo será demonstrado, pormenorizadamente, no momento oportuno, uma condição sem a qual a tutela jurisdicional não irá produzir efeitos, esse instituto está fundamentado na necessidade de salvaguardar o interesse público, que se evidencia nas ações judiciais envolvendo a fazenda pública.

Tal prerrogativa processual é uma conseqüência do regime jurídico administrativo na qual está inserida a administração pública, haja vista a supremacia do interesse público perante o particular e a indisponibilidade do interesse público.

Nessa esteira, é esclarecedor o magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro 13:

A Administração Pública, quando é parte em ação judicial, usufrui de determinados privilégios não reconhecidos aos particulares; é uma das peculiaridades que caracterizam o regime jurídico administrativo, desnivelando as partes nas relações jurídicas.

No que tange à ofensa ao princípio da isonomia, Celso Antônio Bandeira de Mello 14 estabelece os seguintes critérios de identificação:

(...) tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é dotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impede analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles.

Destarte, utilizando tais critérios como parâmetros, tem-se que não há ofensa ao princípio constitucional da igualdade, eis que, conforme foi dito, a fazenda pública, quando em juízo, representa interesses da coletividade, diferente, portanto, do particular que com ela litiga. Logo, a igualdade substancial daquele princípio apenas será alcançada na medida em que forem tratados igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na proporção da sua desigualação. É esse o sentido substancial do princípio constitucional da isonomia, o qual autoriza tratamentos desiguais desde que haja uma finalidade na exata proporcionalidade com fim devidamente almejado.

Ainda, nesse ínterim, é de precisão singular o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello 15:

(...) a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria direfençada.

Por todos os juristas que entendem pela constitucionalidade do duplo grau de jurisdição obrigatório, transcreve-se o posicionamento de Nelson Nery Junior 16:

A remessa necessária não é inconstitucional. Condição de eficácia da sentença, é manifestação do efeito translativo no processo civil: transfere-se o conhecimento integral da causa ao tribunal superior, com a finalidade de estabelecer controle sobre a correção da sentença de primeiro grau.

Do todo o exposto, e sem embargo aos entendimentos dos defensores da inconstitucionalidade da remessa necessária, os quais são merecedores de destaque e reconhecimento, o presente trabalho será construído e sedimentado no sentido da constitucionalidade do duplo reexame obrigatório, muito embora não se concorde com a manutenção dessa figura processual no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista que o dito instituto processual, por si só, não ofende o princípio constitucional da igualdade, mas o que padece de inconstitucionalidade é a interpretação dada pelos tribunais brasileiros quando da aplicação da remessa necessária, bem como o comportamento processual da fazenda pública, utilizando-se de prerrogativas processuais com finalidades outras pelas quais foram instituídas.


2. REMESSA NECESSÁRIA

2.1. Natureza jurídica

Saliente-se, inicialmente, que o presente estudo vai reportar-se à expressão fazenda pública no sentido empregado por Nelson Nery Junior 17, abrangendo também as fundações de direito público:

Embora tecnicamente a locução Fazenda Pública devesse indicar apenas e tão-somente ao Estado em juízo com seu perfil, na verdade se tem denominado dessa forma, tradicionalmente, a administração pública por qualquer das suas entidades da administração direta (União, Estado e Município) e autárquicas, irrelevante o tipo de demanda em que a entidade se vê envolvida.

Aliás, esse entendimento no sentido de enquadrar as autarquias e as fundações públicas no conceito de fazenda pública apenas se perfaz para fins de benefício de prerrogativas processuais, vem sendo adotado pela jurisprudência pátria.

Acentue-se que, muito embora o diploma processual civil não tenha mais se utilizado da expressão "apelação ex officio" para se referir à figura da remessa necessária, há, ainda, uma parte da doutrina pátria, se bem que minoritária, defendendo que tal fato, por si só, não tem o condão de descaracterizar a natureza jurídica recursal de que o reexame obrigatório se reveste.

Ao discorrer, Cláudia A. Simordi 18, sobre essa questão, aventa:

Para outros poucos doutrinadores, dentre eles Sérgio Bermudes, Carvalho Netto e José Estáquio Cardoso, a alteração introduzida pelo Código de Processo Civil de 1973 não foi suficiente para descaracterizar a obrigatoriedade de reexame como apelação ex officio, e, portanto, como uma espécie de recurso.

Sem embargos aos posicionamentos dos aludidos autores e, levando em consideração o entendimento da doutrina dominante, torna-se necessário acentuar que a figura do duplo grau obrigatório não deve ser considerada como uma espécie de recurso, pois lhe faltam características e requisitos inerentes a tal.

Não se poderia olvidar de fazer, neste momento, alusão aos ensinamentos do eminente processualista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda 19, mesmo que com tais ensinamentos não se concorde:

No parágrafo único, acrescenta-se que, em tais espécies, o juiz há de ordenar ‘a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida’. Portanto, há apelação de ofício, porque se fez implícita a referência, uma vez que se adjetivou a outra espécie de apelação (apelação voluntária). Se há apelação voluntária, há necessária ou de ofício.

Ressalte-se que tal entendimento foi aventado quando da vigência da redação anterior do artigo 475, do diploma processual civil.

Em que pese tais posicionamentos, constata-se que recurso e remessa necessária são institutos processuais distintos e que não se confundem, haja vista que aquele primeiro é um meio de irresignação voluntária em face de um pronunciamento judicial que, segundo as palavras de José Carlos Barbosa Moreira 20, "(...) o remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou integração de decisão judicial que se impugna."

Enquanto para o outro instituto, vale dizer, reexame necessário é uma obrigação legal, tratando-se, na verdade, de uma condição sem a qual a sentença não produzirá seus devidos efeitos.

No particular, é lapidar o posicionamento de Nelson Nery Junior 21: "A doutrina dominante entende como nós, no sentido de não atribuir à remessa obrigatória a qualidade de recurso. Em nosso sentir tem natureza jurídica de condição de eficácia da sentença". Logo, ausente está o requisito da voluntariedade recursal.

Dissertando, ainda, José Carlos Barbosa Moreira 22, sobre a figura em questão, tem-se: "Nas hipóteses de que tratam o art. 475. do Código de Processo Civil e de numerosas disposições de leis extravagantes, também se chega ao reexame, mas por via que não se identifica nem se confunde com a recursal".

Sublinhe-se que não se observa na devolução oficial outra característica recursal que não aquela relacionada à voluntariedade, qual seja, a dialeticidade, eis que no instituto em apreço, os autos são remetidos de ofício pelo magistrado ao tribunal ao qual ele é subordinado, independentemente da observância de arrazoamento e contraditório. Frise-se, ainda, que na míngua de remessa dos autos por parte do juiz, o presidente do tribunal deverá, de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, avocá-los.

Urge salientar, outrossim, que, além das ausências daquelas supracitadas características, constata-se que no duplo grau obrigatório não há o juízo de admissibilidade, o qual é inerente a todo e qualquer recurso, estando, portanto, relacionado à análise de alguns requisitos específicos, os quais não se fazem presentes no reexame necessário, a saber: o cabimento, já que a sistemática processual civil brasileira apenas considera como recurso as espécies impugnativas, taxativamente, preconizadas tanto pelo CPC, quanto por legislação extravagante; a legitimação para recorrer, haja vista que o juiz, sendo imparcial, não é parte legítima para recorrer, salvo nos casos do acórdão acolher exceção de impedimento ou suspeição; o interesse para recorrer, pois não sendo sucumbente o magistrado, esse apenas remete os autos por conseqüência legal que lhe é imposta; a tempestividade, na medida em que não ocorre o trânsito em julgado da sentença, enquanto não for referendada pelo tribunal, logo, não há observância a prazos; e, por último, o preparo.

Na mesma linha de entendimento, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 23:

Trata-se de condição de eficácia da sentença, que embora existente e válida, somente produzirá efeitos depois de confirmada pelo Tribunal.

Não é recurso por lhe faltar: tipicidade, voluntariedade, tempestividade, legitimidade, interesse em recorrer e preparo, características próprias dos recursos. Enquanto não reexaminada a sentença pelo tribunal, não haverá trânsito em julgado e conseqüentemente, será ela ineficaz (...).

Por oportuno, trazem-se os ensinamentos de Cláudia A. Simardi 24:

Diante da ausência das citadas características, pode-se concluir que a remessa obrigatória não tem natureza jurídica de recurso, nada obstante seu procedimento no tribunal ser idêntico ao da apelação, inclusive quanto à possibilidade de ocorrer a substituição da sentença pelo julgamento da instância superior.

Nesse viés, assevera José Cretella Neto 25:

O duplo grau obrigatório, que leva ao denominado reexame necessário, constante do referido art. 475, foi incorporado ao CPC durante a tramitação legislativa, em que pesem as críticas dirigidas ao instituto pelo próprio Prof. Alfredo Buzaid, organizador desse diploma processual e Ministro da Justiça quando de sua promulgação.

Substitui a ‘apelação necessária’ ou ‘apelação ex officio’ do CPC de 1939 (art. 822), que já era objeto de crítica de doutrina, que negava fosse a apelação necessária verdadeiro recurso. Fácil é verificar que não se trata de recurso, na verdadeira acepção que lhe confere nosso sistema processual, pois é interposto mediante simples ordem de remessa dos autos ao tribunal competente, ou por avocação do tribunal, sem formalidades especiais; além disso, não está sujeito a preparo; não tem prazo designado para ser interposto (exceto para parte); não comporta razões das partes; não cabe recurso adesivo à apelação voluntária.

Destarte, a outro entendimento não se deve chegar, senão ao de que, realmente, a devolução obrigatória é uma condição sem a qual a sentença não irá produzir seus efeitos, sendo, portanto, esse instituto jurídico uma decorrência lógica de uma imposição legal.

2.2. Hipóteses legais

Não deve pairar mais a mínima dúvida, data venia, de que a devolução oficial é uma condição de eficácia da sentença e, sendo assim, necessária se faz, por ora, a análise das hipóteses legais em relação ao instituto processual sob comento.

Segundo foi dito anteriormente, na década de 90, houve uma série de reformas processuais, dentre as quais, destacam-se as alterações preconizadas pela lei n.º 10.352, de 26.12.2001, em relação ao artigo 475, do CPC, a qual não só limitou as hipóteses de incidência da remessa necessária, mas também operou algumas mudanças naquele dispositivo no sentido de aprimorar a sua redação.

Desse modo, torna-se forçoso, por ora, apenas transcrever o caput e incisos do artigo 475, do diploma processual civil:

Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).

(...).

Da mera leitura desse artigo e de seus respectivos incisos, constata-se que aquela lei afastou da incidência do duplo grau obrigatório as sentenças que declararem nulo o casamento, tendo em vista que não haveria mais razão alguma de manter o reexame necessário – o qual é um instituto excepcional e que está fundamentado no interesse público – em um ordenamento jurídico que passou a adotar a figura do divórcio.

Nesse diapasão, têm-se as lições de Cândido Rangel Dinamarco 26:

As primeiras das alterações trazidas pela Reforma da Reforma ao art. 475, portador da regra da devolução oficial e hipóteses de sua incidência, consistiu em excluir seu inc. I, alusivo às sentenças que julgassem procedentes as demandas de anulação de casamento, ‘pois nelas o reexame necessário não mais apresenta qualquer sentido, em sistema jurídico que passou admitir o divórcio a vínculo’ (palavras da justificativa do projeto que se transformou na lei n. 10.352, de 26.12.2001).

No que tange ao inciso I, do aludido dispositivo, observa-se que, embora se tenha mantido o corpo do texto revogado, houve uma inclusão na novel redação, o Distrito Federal e as pessoas jurídicas da administração indireta, quais sejam, as autarquias e as fundações públicas. Saliente-se, ainda, que antes mesmo da supracitada lei prever a hipótese de aplicação da devolução necessária sobre aquelas pessoas jurídicas, esse instituto já incidia sobre tais integrantes da administração indireta, por força do artigo 10, da lei n.º 9.469, de 10 de julho de 1997, o qual se transcreve: "Art. 10. Aplica-se às autarquias e fundações públicas o disposto nos arts. 188. e 475, caput, e no seu inciso II, do Código de Processo Civil".

Sobre tal assunto, não se pode esquecer os ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco 27:

A síntese da enumeração contida no novo inc. I do art. 475. é: sentenças proferidas contra a Fazenda Pública. Esta é uma locução que abrange todas as pessoas jurídicas de direito público, sem abranger as de direito privado, ainda que paraestatais (sociedades de economia mista e empresas públicas). A jurisprudência já era propensa a dar ao antigo inc. II essa dimensão, quando foi promulgada a lei 9.469, de 10 de julho de 1997, mandando aplicar-se às autarquias e às fundações de direito público o que está nesse inciso e no caput do art. 475. Faltava só incluir o Distrito Federal (administração central, autarquias e fundações de direito público), o que agora foi feito pela Reforma da Reforma.

Registre-se, ainda, que é uníssono, tanto em sítio jurisprudencial, quanto em sede doutrinária, o posicionamento no sentido de que o duplo grau de jurisdição obrigatório não se aplica às empresas públicas e às sociedades de economia mista.

Sublinhe-se que há uma certa celeuma em seara doutrinária no que tange à incidência da devolução obrigatória sobre a sentença terminativa. Existem autores que entendem que tal incidência não acontece, dentre eles, citem-se Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 28, segundo os quais:

A razão de ser da proteção do CPC 475 pelo reexame necessário encontra-se na necessidade de dar-se às referidas sentenças julgamento com maior segurança, reexame esse que pode não ser necessariamente melhor do que o julgamento de primeiro grau. A sentença dita processual (CPC 267) caracteriza hipótese de extinção anormal do processo, cuja conseqüência para a Fazenda Pública será, tão-somente, a imposição de obrigação no pagamento de honorários advocatícios à parte contrária (CPC 20). O que interessa, para que incida a proteção, é que o julgamento do mérito seja desfavorável à Fazenda. É óbvio, e ninguém dúvida disso, que, extinto processo sem julgamento de mérito nas causas em que a Fazenda Pública for autora, o juiz deve impor-lhe o pagamento de honorários advocatícios. Essa sucumbência não é quanto ao pedido, mera decorrência do princípio da causalidade, vale dizer, de parte secundária da demanda, providência essa que o juiz tem de tomar ex officio, constitui-se em verdadeiro non sense entender-se que deva subordinar essa sentença meramente formal à remessa ex officio. Figura de exceção no direito processual civil, a norma que a regula tem de ser interpretada restritivamente, vedada a interpretação extensiva, conforme regra básica de hermenêutica (...). Em sentido contrário, pela submissão dessa sentença ao duplo grau necessário, interpretando extensivamente a norma de exceção: Barbosa Moreira, Juízo de retratação e reexame obrigatório em segundo grau, in temas, pp. 88/97.

Diante da autoridade dessas considerações, não se deve entender o contrário, porque, como foi analisado, o instituto jurídico do duplo grau obrigatório é uma figura excepcionalíssima, sem precedentes no direito comparado e, sendo assim, não comporta interpretações extensivas. Logo, ao se fazer uma interpretação extensiva a uma norma restritiva, importa, sem dúvida alguma, em contrariar a sistemática processual civil.

Ademais, é cediço que na extinção do processo sem apreciação do mérito não há coisa julgada material, salvo nos casos do inciso V, artigo 267, do CPC. Deste modo, nada obsta que haja, posteriormente, outro ajuizamento da mesma ação, não ocorrendo, assim, nenhum efetivo prejuízo à fazenda pública quando for autora da demanda capaz de ensejar a remessa necessária. Por razões óbvias não se irão tecer comentários acerca dessa divergência doutrinária quando a fazenda pública figurar no pólo passivo, porquanto ela não será sucumbente.

Discorrendo sobre o assunto, Nelson Nery Junior assevera o seguinte 29:

Quando a sentença for de extinção do processo sem julgamento do mérito, não se pode dizer que foi proferida "contra" a fazenda pública ou autarquia, já que haveria apenas o reconhecimento judicial de que não se pode examinar a questão de fundo, motivo pelo qual essa sentença não é passível de remessa obrigatória.

Urge acentuar o posicionamento dos doutrinadores que entendem de maneira diferente, mesmo que com ele não se comunge, dentre os quais, destaca-se Cândido Rangel Dinamarco 30:

(...) basta que haja uma sentença desfavorável a uma dessas pessoas jurídicas de direito público, para que incida o inc. II e seja obrigatório o duplo grau de jurisdição, a saber: a) se ela for ré, uma sentença que julgue procedente a ação; b) se for autora, toda sentença que julgue a ação improcedente ou extinga o processo sem julgamento do mérito.

É curial salientar que esse comentário de Cândido Rangel Dinamarco está relacionado à redação anterior do artigo 475, do diploma processual civil, vale dizer, antes das alterações preconizadas pela lei n.º 10.352/2001, razão pela qual aquele inciso II a que o autor se reporta não corresponde ao atual inciso II, mas ao inciso I, do aludido dispositivo.

É forçoso analisar, outrossim, o que está disposto no inciso II, do artigo 475, do diploma processual civil em vigor. Esse dispositivo determina que será caso de imposição da remessa necessária em face da sentença que julgar procedente, ainda que, parcialmente, o pedido aduzido nos embargos à execução de dívida ativa da fazenda pública.

Verifica-se, então, que a devolução oficial irá incidir tão-somente se o pedido ventilado nos embargos opostos à execução de dívida ativa da fazenda pública forem julgados procedentes, mesmo que essa procedência seja apenas parcial. Logo, necessário se faz que tal pronunciamento judicial meritório seja proferido em relação aos embargos opostos à execução de dívida ativa, em não estando relacionado à execução fiscal, não se observará, portanto, a imposição legal do duplo grau de jurisdição obrigatório.

Na mesma linha de raciocínio, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 31:

Quando a execução se funda em título judicial, nem a sentença que indefere liminarmente ou que rejeita os embargos opostos pela Fazenda, nem a que acolhe os embargos opostos contra a Fazenda Pública estão sujeitas ao reexame necessário, pois a norma alude apenas à sentença que acolhe embargos opostos à execução de dívida ativa, ou seja, execução fiscal (...).

Constata-se, que a reforma trazida pela lei n.º 10.352/2001 no que se refere à hipótese da incidência do reexame necessário preconizada no caso do inciso II, do artigo 475, do CPC, não trouxe nenhuma mudança substancial, apenas modificando o aludido inciso no sentido de empregar um melhor aprimoramento técnico na redação deste, porquanto o inciso revogado continha uma impropriedade, ao expressar "sentença que julga improcedente a execução de dívida ativa", quando, na verdade, almejava-se referir à decisão judicial meritória dos embargos opostos àquela execução.

Acentue-se, que, afora os casos de devolução oficial estabelecidos pelos incisos I e II, do artigo 475, do vigente diploma processual civil, existem outras hipóteses de incidência daquela figura jurídica, segundo se observa na obra de Oreste Nestor de Souza Laspro 32:

As leis extravagantes impõem o reexame obrigatório, segundo Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci: ‘a) nas causas relativas ao abuso do poder econômico, quando acolhidos os embargos opostos à sentença que decretar a intervenção (cf. art. 10, modificando a redação do art. 19. da Lei 4.717, de 29 de junho de 1962); na ação popular, quando declarada a carência da ação ou a improcedência do pedido formulado pelo autor (cf. art. 17, modificando a redação do art. 19. da Lei 4.717, de 29 de junho de 1965); e c) nas causas relativas à especificação da nacionalidade brasileira (cf. art. 6º, modificando a redação do § 3º do art. 4º da Lei n. 818, de 18 de setembro 1949, alterada pela Lei n. 5.145, de 20 de outubro de 1966). Em idêntico senso, outrossim fê-lo a Lei n. 6.071, de 3 de julho de 1974, com a modificação, no art. 1º, da redação do parágrafo único do art. 12. da Lei n. 1.533, de 31 de dezembro de 1951, com relação à sentença concessiva de mandado de segurança.

Por derradeiro, sublinhe-se que a devolução obrigatória incide ainda nas ações de desapropriação, quando a fazenda pública é condenada pelo dobro do valor ofertado na peça vestibular (artigo 28, § 1º, do decreto-lei n.º 3.365/41), nas ações anulatórias de retificação de registro feito pela pessoa jurídica de direito público, quando o pedido for julgado procedente (artigo 213, da lei n.º 6.739/79); nas ações de desapropriação para fins de reforma agrária, quando a condenação imposta à fazenda pública for no sentido de majorar o valor ofertado na exordial em 50% (artigo 13, § 1º, da lei complementar 76/93) e nas ações civis públicas, quando as sentenças condenatórias forem desfavoráveis à fazenda pública.

2.3. Exceções

O instituto jurídico da remessa necessária tem sido relativizado nos últimos anos, notadamente com o advento da lei n.º 10.352, de 26 de dezembro de 2001, de forma que, em algumas situações legais, não haverá a incidência daquele instituto.

Com efeito, denota-se que a intenção do legislador foi limitar a aplicação da figura excepcionalíssima do duplo grau de jurisdição obrigatório em algumas hipóteses cuja incidência não se justificaria, quer seja pela quantia da condenação imposta à fazenda pública, quer seja pela valorização que se tem dado à jurisprudência nos últimos anos. Tais exceções estão estabelecidas nos parágrafos 2º e 3º, do artigo 475, do diploma processual civil em vigor, segundo os quais:

§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência aos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.

§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.

Da leitura do § 1º, do aludido dispositivo, constata-se que a sentença prolatada nos casos das hipóteses preconizadas nos incisos I e II, do mesmo artigo, não se submeterão ao reexame obrigatório, quando a procedência dos embargos opostos à execução de dívida ativa, a condenação ou o direito controvertido posto em juízo, for de quantia não superior a 60 (sessenta) salários mínimos. Saliente-se, ainda, que esse valor está em consonância com a lei n.º 10.259/2001, vale dizer, lei dos juizados especiais federais a qual estabelece em seu artigo 13: "Nas causas de que trata esta Lei, não haverá reexame necessário". Ora, essas causas de que se refere tal artigo são as de valor até 60 (sessenta) salários mínimos, segundo se evidencia do caput, do artigo 3º, da citada lei, o qual se transcreve: "Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças".

Logo, infere-se que a exceção em comento reveste-se de caráter pragmático, tendo em vista que foi estabelecida uma quantia exata, qual seja, valor não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos.

No que tange ao § 2º, do supracitado artigo, denota-se que ficarão afastadas da devolução oficial as sentenças prolatadas nas hipóteses dos incisos I e II, daquele dispositivo, quando tais decisões estiverem embasadas em jurisprudência do plenário do egrégio STF, ou ainda, em súmula desse tribunal ou de tribunal superior competente. Por tribunal superior, entende-se STJ, STM, TSE e TST, conforme sistemática constitucional.

Acentue-se que, em seara de processo civil, cuja matéria é objeto do presente estudo, tribunal superior é o colendo STJ.

Com efeito, justifica-se essa exclusão da figura da remessa necessária, levando em consideração a tendência que paira no ordenamento jurídico brasileiro no sentido da valorização da construção jurisprudencial. Assim, as sentenças que estiverem albergadas em jurisprudência do plenário do STF, em súmula desse tribunal ou do STJ, ainda que o valor exceda a 60 (sessenta) salários mínimos, não haverá a incidência do instituto processual em apreço.

Por oportuno, têm-se as lições de Cândido Rangel Dinamarco 33:

Não são cumulativas as exigências dos § 2º e 3º do art. 475. Não haverá a remessa oficial quando a causa for de valor menor, independentemente de qualquer confronto entre a sentença e a jurisprudência dominante. Ela também não será cabível quando a sentença estiver conforme a jurisprudência dominante, não importando valor.

Sublinhe-se, outrossim, que nessa esteira de tendência de valorização jurisprudencial, constata-se que, muito embora não seja um caso de exceção à incidência da remessa necessária, as situações preconizados no caput do artigo 557, do CPC, autorizam o relator a negar seguimento à dita figura processual. Nesse viés, torna-se forçoso transcrever o aludido dispositivo:

Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

Tal situação encontra-se consubstanciada na súmula 253 34, do STJ, segundo a qual: "O art. 557. do CPC, que autoriza o relator a decidir o recurso, alcança o reexame necessário".

Sobre essa súmula, são importantes os ensinamentos de Roberto Rosas 35:

O art. 557 do CPC defere ao Relator, por decisão monocrática, negar seguimento a recurso, se manifestamente improcedente ou contrária à súmula do tribunal. A remessa necessária não é recurso, mas condição de validade da sentença. O objetivo do legislador desse dispositivo processual foi permitir o exame imediato pelo relator, e, assim, o reexame necessário devolve ao tribunal a causa, para manter ou reformar a sentença.

Urge ressaltar que há, ainda, outra exceção à remessa necessária, segundo se depreende dos ilustres ensinamentos de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 36:

O art. 12. da MedProv 2180-35, de 24.8.2001 (DOU 27.8.2001) dispensa do reexame necessário as decisões que enumera: ‘Art. 12. Não estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição obrigatório as sentenças proferidas contra a União, suas autarquias e fundações públicas, quando a respeito da controvérsia o Advogado-Geral da União ou outro órgão administrativo competente houver editado súmula ou instrução normativa determinando a não-interposição de recurso voluntário.

Ora, se a fazenda pública federal não demonstra interesse em manejar o recurso de apelação em determinadas hipóteses que o advogado-geral da União ou outro órgão administrativo assim entender, com maior razão não deve haver a incidência do instituto excepcional do duplo exame necessário.

2.4. Efeitos

É de se notar, segundo foi dito anteriormente, que o duplo grau de jurisdição obrigatório é um instituto processual excepcionalíssimo e que visa, tão-somente, resguardar o interesse público, sendo uma decorrência lógica do princípio inquisitorial, contrapondo-se ao princípio dispositivo.

Logo, nesse ínterim, torna-se forçoso fazer uma breve distinção entre o princípio dispositivo e inquisitório.

Sobre tal matéria, disserta José Cretella Neto 37:

O princípio dispositivo é aquele segundo o qual o juiz deve decidir levando em consideração exclusivamente as alegações das partes e as provas por elas produzidas no curso do processo, para fundamentar a sentença. Em outras palavras consiste em deixar-se às partes a tarefa ou função de delimitar o âmbito da res in iudicium deducta e de estimular a atividade do juiz no processo.

Ao princípio dispositivo (também denominado princípio da controvérsia) contrapõe-se o princípio inquisitivo, em que ao juiz é conferida total liberdade, tanto na instauração da relação processual como no seu desenvolvimento; por todos os meios a seu alcance, procura o julgador descobrir a verdade real, independentemente da iniciativa ou elaboração das partes.

Modernamente, nenhum dos dois princípios, em sua pureza clássica, domina completamente o processo civil, já que as legislações processuais são mistas, apresentando preceitos tanto de um quanto de outro princípio. A razão da limitação ao princípio dispositivo é que o processo civil é uma encruzilhada onde, freqüentemente se defrontam o Direito Público e o Direito Privado. No iudicium vigoram as normas publicísticas, já que a pretensão é apreciada por um órgão do Estado; na res in iudicium deducta, ao contrário, em grande das lides, o conflito é resolvido com fundamento em regras que regulam relações jurídicas privadas, de direito material disponível (...)

No Brasil, a iniciativa para a propositura da ação é da parte, mas o impulso oficial cabe ao Poder Judiciário, por intermédio do juiz (art. 262), que dá continuidade ao feito até decisão final, independentemente da provocação dos interessados.

Nesse sentido, disserta Humberto Theodoro Júnior 38:

Caracteriza-se o princípio inquisitivo pela liberdade da iniciativa conferida ao juiz, tanto na instauração da relação processual como no seu desenvolvimento. Por todos os meios a seu alcance, o julgador procura descobrir a verdade real, independentemente de iniciativa ou a colaboração das partes. Já o princípio dispositivo atribui às partes toda a iniciativa, seja na instauração do processo, seja no seu impulso. As provas só podem, portanto, ser produzidas pelas próprias partes, limitando-se o juiz à função de mero espectador.

Modernamente, nenhum dos dois princípios merece mais a consagração dos Códigos, em sua pureza clássica. Hoje as legislações processuais são mistas e apresentam preceitos tanto de ordem inquisitiva como dispositiva.

Destarte, infere-se que, em face do caráter publicístico do processo, o magistrado deixou de ser tão-somente um espectador da relação processual, para tornar-se um ser protagonista que, muito embora seja eqüidistante das partes, impulsiona a marcha processual ao seu desfecho.

Logo, constata-se, hodiernamente, que as legislações processuais não adotam mais o princípio dispositivo em toda a sua essência, mas, ao revés, são mistas, porquanto acabam por mitigar o princípio dispositivo, adotando tanto esse, quanto o princípio inquisitivo.

Nessa esteira, pode-se frisar a legislação processual civil brasileira, na qual se encontram as manifestações não só do princípio dispositivo (artigo 265, inciso II, artigo 267, inciso VIII, do CPC, entre outros), mas também do princípio inquisitivo (artigo 130, artigo 14, parágrafo único, artigo 475, do CPC, etc.).

Superada essa questão, necessária se faz a análise dos efeitos da figura jurídica sob comento.

Com efeito, é imperioso sublinhar-se que, sem embargo dos entendimentos em contrário, foi constatado que a devolução obrigatória, muito embora tenha o mesmo procedimento da apelação, não tem natureza jurídica de recurso, sendo, portanto, considerada pela doutrina dominante como uma condição sem a qual a sentença não produzirá seus devidos efeitos. Saliente-se, outrossim, que, segundo foi analisado, aquele instituto é uma decorrência do princípio inquisitório.

Diante de tais argumentos, verifica-se que não há de se cogitar em emprestar à remessa necessária o efeito devolutivo o qual está correlatado ao princípio dispositivo, sendo esse efeito inerente aos meios impugnativos recursais.

Nesse sentido, constata-se que com o manejo do recurso há apenas a devolução ao tribunal ad quem da matéria impugnada, não podendo esse órgão jurisdicional julgar além das razões do inconformismo (tantum devolutum quantum appelatum). Esse é o efeito devolutivo.

Malgrado, há casos em que se observa outro efeito que não o devolutivo, vale dizer, nas situações relacionadas às matérias de ordem pública as quais são conhecíveis de ofício (artigos 267, § 3º e 301, § 4º, ambos do CPC), às questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro e quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento, tendo o juiz acolhido apenas um deles (artigo 515, § 1º e § 2º, do diploma processual civil). Logo, tal efeito é denominado de translativo.

Ademais, após essas considerações preliminares, denota-se que, no duplo grau de jurisdição obrigatório, há a ocorrência também do efeito translativo, haja vista a transferência integral de toda a matéria aduzida aos autos. Eis por que, em não sendo recurso a aludida figura processual, não existirão, conseqüentemente, as razões do inconformismo, as quais limitam o âmbito de julgamento do tribunal à matéria impugnada e, estando relacionada ao princípio inquisitorial, justifica-se a aplicação do denominado efeito translativo pleno.

Leciona, sobre o particular, Nelson Nery Junior 39:

A conseqüência análoga à provocada pelo efeito translativo do recurso ocorre com reexame pelo tribunal, das sentenças sujeitas ao duplo grau obrigatório (art. 475, CPC). Também aqui não se pode falar em efeito devolutivo da remessa necessária, porque se está diante de manifestação do princípio inquisitório. O que existe, na verdade, é que a eficácia plena da sentença, nos casos do art. 475, do CPC, fica condicionada ao seu reexame pelo tribunal ad quem. A sentença como um todo é que fica submetida ao reexame, de sorte que é lícito ao tribunal modificar a sentença, reformando-a ou anulando-a, total ou parcialmente.

Por oportuno, têm-se os ensinamentos de Cláudia A. Simardi 40:

(...) não consideramos a remessa obrigatória como espécie de recursal, mas como procedimento condicionante à eficácia da sentença. Nesse diapasão, não há ocorrência de efeito devolutivo propriamente dito, pois inexiste atuação voluntária do vencido em ter reexaminada a sentença que lhe foi desfavorável, para tanto praticando atos que visem à reforma total ou parcial do procedimento.

Na remessa obrigatória ocorre o reexame completo da sentença, por força de disposição legal, sem o qual não se forma a coisa julgada. O tribunal deve cumprir o requisito de reanálise das matérias julgadas em grau inferior de jurisdição, sem que fiquem estas estremadas por ato da parte vencida, de levar à revisão do juízo superior o que pretende ter reformado. Na ausência de provocação da parte interessada, e de respectivos fundamentos de rejulgamento, impõe-se que o tribunal reveja todas as matérias que foram apreciadas pelo órgão sentenciante.

Apenas com o intuito de fidelidade para com os doutrinadores que entendem o contrário, transcreve-se o posicionamento de João Carlos Souto 41:

O reexame necessário não enseja maiores controvérsias. Enquanto o tribunal ad quem não se manifestar sobre a sentença ela não produzirá efeitos, de sorte que a remessa obrigatória implica suspender a eficácia da decisão proferida pelo juiz de primeiro grau (efeito suspensivo) e devolver ao tribunal o conhecimento de toda a matéria já decidida - efeito devolutivo.

Ademais, constata-se que além do efeito translativo, existem outros dois efeitos que ocorrem na devolução oficial, quais sejam: o substitutivo, na medida em que o julgamento do órgão superior de jurisdição substitui na íntegra a decisão monocrática, desde que aquele julgamento seja meritório, tanto negando provimento, quanto provendo; e o suspensivo, já que a sentença não produzirá seus efeitos enquanto não for referendada pelo tribunal, logo, suspende-se a própria eficácia daquele pronunciamento judicial. Não apresentam maiores questionamentos em sede doutrinária, esses dois supracitados efeitos.

Torna-se curial frisar as lições de Cândido Rangel Dinamarco 42:

Na realidade, as sentenças indicadas nos incisos desse artigo, não produzem jamais eficácia alguma, porque é cediça em direito processual a regra de que o julgamento feito pelo tribunal substitui sempre aquele que foi objeto do recurso, quer se negue, quer dê provimento a este. O confirmar a sentença não é outorgar-lhe eficácia ou talvez definitividade, mas emitir novo julgamento conforme. É o Poder Judiciário decidindo novamente a causa, agora pela voz de um órgão mais elevado, mas sempre mediante um ato deste, da responsabilidade deste - e tal é a interpretação pacífica da substituição do inferior pelo superior, positivida no art. 512. do Código de Processo Civil. Por isso é que, proferida a sentença contra a Fazenda Pública, a causa sobe ao tribunal e as partes só sentirão os efeitos de um julgamento sobre sua vida fora do processo, por força do acórdão que este proferir, não mais da sentença. Não se trata de somente negar a autoridade de coisa julgada às sentenças nas hipóteses indicadas em lei, mas de excluir-lhes por completo qualquer eficácia – porque a devolução oficial tem ‘efeito suspensivo’, não permitindo sequer a execução provisória das sentenças sujeitas ao regime do art. 475.

Urge, outrossim, fazer alusão à súmula de n.º 423 43, do colendo STF, segundo a qual: "Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege".


3. DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO REFORMATIO IN PEJUS

3.1. Elementos propedêuticos

Inicialmente, é de suma importância trazer à baila as lições de José Carlos Barbosa Moreira 44 no que tange à aparição da proibição da reformatio in pejus no ordenamento jurídico brasileiro:

A tradição jurídica luso-brasileira, até certa fase, jungida ao princípio da communio remedii, era favorável à possibilidade da reformatio in peius. Ainda sob o Código de 1939 – cujo texto, com o do atual, era omisso a respeito – opinião muito autorizada considerava-a lícita, em certa medida, no julgamento da apelação. Prevaleceu, no entanto, a tese contrária, com apoio em argumentos de ordem exegética e de ordem sistemática.

Ainda, sobre esse enfoque, disserta José Cretella Neto 45:

A proibição à reformatio in peius é realmente recente em nosso direito. A tradição jurídica brasileira pauta-se, até certa época, pelo princípio da communio remedii, que permitia a piora na situação do recorrente. Ainda sob o regime do CPC de 1939 a tese era defendida por parte da doutrina, embora se tenha consolidado a tese contrária, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

Embora o Código de 1973 não seja explícito a respeito, a vedação à reformatio in peius fica evidente da inteligência do caput do art. 515: uma vez que a impugnação somente atinge parte da sentença, excluída estará a competência do órgão ad quem para as outras partes ou a outra parte da sentença (vigora a regra tantum appelatum quantum devolutum); (...)

Não se deveria esquecer, neste momento, do magistério singular de Nelson Nery Junior 46:

Em nosso direito positivo não há regra explícita a respeito da proibição da reformatio in pejus. Essa proibição, que entre nós efetivamente existe, é extraída do sistema, mais precisamente da conjugação do princípio dispositivo, da sucumbência como requisito de admissibilidade e, finalmente, do efeito devolutivo do recurso.

Assim, é que a idéia preconizada no princípio da proibição reformatio in pejus paira no sentido no sentido de não ser possível e lícito ao tribunal ad quem, quando do julgamento do recurso, agravar a situação do recorrente quanto à matéria que não foi objeto do recurso, vale dizer, não impugnada. Logo, trata-se de uma limitação ao âmbito de atuação do tribunal.

Nessa esteira, têm-se os ensinamentos de Nelson Nery Junior 47:

Também chamado de "princípio do efeito devolutivo" de "princípio de defesa da coisa julgada parcial", a proibição da reformatio in pejus tem por objetivo evitar que o tribunal destinatário do recurso possa decidir de modo a piorar a situação do recorrente, ou porque extrapole o âmbito de devolutividade fixado com a interposição do recurso, ou, ainda, em virtude de não haver recurso da parte contrária.

Denota, pois, que essa proibição da reformatio in pejus é uma decorrência lógica e necessária do princípio dispositivo e, conseqüentemente, do efeito devolutivo que se aplica às espécies recursais.

Nesse sentido, discorre Cândido Rangel Dinamarco 48:

(...) assim como não pode o juiz julgar extra vel ultra petita, nem impor ao autor uma solução não demandada pela parte contrária nem por ele próprio, também não pode o tribunal exceder os limites da matéria impugnada, ou voltar-se contra quem lhe demandara o reexame de uma decisão desfavorável (reformatio in pejus).

Assim sendo, infere-se que, havendo recurso de ambas as partes – na hipótese de sucumbência recíproca – tanto em sua forma independente, quanto na sua modalidade adesiva, é perfeitamente possível ao tribunal destinatário do recurso agravar a situação de qualquer um dos recorrentes, porquanto encontrará respaldo nos argumentos no recurso manejado pela parte contrária.

Bastante salutares, por ora, são os ensinamentos de José Carlos Barbosa Moreira 49 a título de elucidação:

Caio pediu 100 e obteve 80. Se apela sozinho, insistindo nos outros 20, pode o órgão ad quem, conhecendo da apelação, negar-lhe provimento, para confirmar a decisão de primeiro grau, ou provê-la, para conceder a Caio os 20 (provimento total) ou alguma importância inferior a 20 (provimento parcial). Não pode modificar a sentença apelada no tocante aos 80 que esta atribui a Caio, quer para julgar improcedente o pedido, quer para reduzir a condenação do réu Tício a menos de 80.

Se, na mesma hipótese, só Tício apela, é dado ao tribunal reformar a decisão nos limites dos 80 em que ela condenou o réu, ou julgando improcedente in totum, ou diminuindo o quantum da condenação. O tribunal violaria a proibição da reformatio in pejus se aumentasse esse quantum, para atribuir a Caio os 20 (ou parte deles) negados em primeira instância.

Suponhamos que Caio haja pleiteado quatro parcelas, no valor, respectivamente, de 100, 50, 20 e 10, e que o órgão a quo tenha acolhido o pedido somente quanto as duas primeiras. Se Caio apela para insistir nos 30 restantes, e não há apelação de Tício, os resultados possíveis do julgamento em segundo grau variam da condenação de 150 (desprovido o recurso) à condenação em 180 (provido totalmente o recurso). Se apenas Tício apela, os resultados possíveis irão variar entre a declaração da improcedência do pedido (no caso de provimento total) e a condenação em 150 (no caso de desprovimento total). Condenação inferior a 150, na primeira hipótese, ou superior a 150, na segunda constituiria reformatio in peius.

Segundo foi acentuado, caso haja recurso de ambas as partes, demandante e demandado, torna-se plenamente possível e lícita a reforma para pior – tanto em relação ao autor quanto ao réu – quando do julgamento dos recursos interpostos, eis por que a eventual "vitória" de um dos recorrentes encontra guarida no manejo de sua própria peça de recurso.

Afora esse caso de não aplicação da proibição da reformatio in pejus, constata-se a existência de outras hipóteses, segundo se evidencia da leitura dos artigos 515 e 516, do código de processo civil, senão vejamos:

Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.

§ 1º Serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro.

§ 2º Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.

(...)

Art. 516. Ficam também submetidas ao tribunal as questões anteriores à sentença, ainda não decididas.

Com efeito, nas situações preconizadas no § 1º e no § 2º, do aludido dispositivo legal, vale dizer que, nos casos relacionados às questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro e quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento, tendo o magistrado acolhido apenas um deles, observa-se a existência do efeito translativo, decorrência que é do princípio inquisitivo, razão pela qual é admitida a reformatio in pejus. Nesse diapasão, Nelson Nery Junior 50 assevera: "Tecnicamente, só se pode falar em reformatio in pejus se houver efeito devolutivo do recurso, isto é, manifestação do princípio dispositivo".

Já em relação ao artigo 516, diploma processual civil, é de se frisar que esse dispositivo é de certa forma redundante e inócuo, porquanto a matéria nele tratada já está contida no bojo do § 1º, do artigo 515, do código de processo civil, motivo pelo qual Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 51 dissertam o seguinte:

(...) o novo texto é inócuo e pleonástico, porque as decisões não decididas já estão devolvidas ao tribunal por força do CPC 515! A translação das questões de ordem pública, proposta por nós, continua a ter sentido, não pelo texto mas pelo sistema do CPC, já que não são alcançadas pela preclusão (...).

Sublinhe-se, por derradeiro, que outro caso de exceção à proibição da reformatio in pejus é no tocante às matérias de ordem pública – que podem ser conhecidas de ofício pelo julgador em qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, independentemente de manifestação da parte interessada – sobre as quais não se opera o fenômeno processual denominado de preclusão (artigos 267, § 3º e 301, § 4º, ambos do código de processo civil). Desta feita, denota-se aqui, também, uma manifestação do princípio inquisitório, aplicando-se, portanto, o efeito translativo.

3.2. Da aplicabilidade em relação à remessa necessária

Saliente-se que, conforme foi analisado nos capítulos anteriores, a remessa obrigatória é uma figura excepcional e sem precedentes no direito comparado, cuja finalidade precípua é salvaguardar o interesse público, sendo uma manifestação inarredável do princípio inquisitorial.

Ademais, foi visto também, que a remessa necessária não é uma espécie recursal, porquanto lhe faltam características e requisitos para tanto, sendo considerada pela doutrina dominante como um condição sem a qual a sentença desfavorável à fazenda pública não irá produzir os seus devidos efeitos.

Tanto é assim que, na hipótese de o magistrado não remeter os autos ao tribunal ad quem, esse, por meio da pessoa do seu presidente, deverá avocar os autos.

Denota-se, pois, que o reexame oficial é figura processual de imposição legal.

Ora, em não sendo recurso a remessa necessária, não há de se falar em efeito devolutivo (tantum devolutum quantum appelatum) – efeito esse decorrente do princípio dispositivo – mas, ao revés, aplica-se o efeito translativo, o qual autoriza a transferência integral de toda a matéria aduzida aos autos.

Deste modo, se o duplo grau de jurisdição obrigatório é uma condição de eficácia da sentença – manifestação intrínseca do princípio inquisitivo – e havendo em face disso a ocorrência do efeito translativo (transferência integral da matéria), infere-se, pois, que o tribunal destinatário do reexame obrigatório terá ampla liberdade de atuação, podendo adotar uma de três medidas possíveis, quais sejam, manter a sentença, reformar em benefício da fazenda pública e agravar a sua situação.

Vale dizer, portanto, que é perfeitamente lícito e possível a reformatio in pejus quando do julgamento do duplo grau necessário, levando em consideração os supracitados argumentos e tendo em vista, outrossim, que o princípio da proibição da reformatio in pejus aplica-se só, e tão-somente, nos casos em que há a ocorrência devolutivo, ou seja, em relação às espécies recursais, porquanto nesses meios há uma limitação ao âmbito de atuação do tribunal às razões do inconformismo (tantum devolutum quantum appelatum), sendo uma conseqüência, portanto, do princípio dispositivo.

Destarte, vislumbra-se a não aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus no que tange à remessa necessária.

Nessa linha de raciocínio, leciona José Cretella Neto 52:

O princípio da proibição da reformatio in pejus, como dissemos, guarda estreita correlação com o princípio dispositivo: ressalvados os casos especificadamente previstos na lei, em que a revisão é obrigatória por grau superior de jurisdição, podem as partes, ao seu talante, impugnar somente matéria de seu exclusivo interesse.

Se nada impugnarem, também nada lhes dará o tribunal. Em conseqüência, descabe falar em reformatio in pejus no reexame obrigatório (art. 475); é que o reexame obrigatório, que, aliás, não constitui recurso stricto sensu, é instituto informado pelo princípio inquisitivo.

Ocorre que os tribunais brasileiros têm entendido pela impossibilidade do agravamento da condenação imposta à fazenda pública, quando do julgamento do reexame oficial, aplicando, para tanto, o princípio da proibição da reformatio in pejus.

Esse entendimento está consubstanciado na súmula n.º 45 53, do colendo STJ, segunda a qual: "No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública".

Em consonância com o teor dessa súmula e com as posturas dos tribunais, digam-se, desde logo, com a devida venia, equivocadas, boa parte da doutrina vem adotando a tese da proibição da reformatio in pejus quando do julgamento da remessa necessária.

Por todos os defensores dessa idéia, tem-se o entendimento de João Carlos Souto 54:

(...) devolver ao tribunal o conhecimento de toda a matéria já decidida – efeito devolutivo.

Assim, a corte de grau superior tem ampla liberdade para reformar totalmente a sentença. Só lhe é vedado alterá-la para agravar a situação da Fazenda Pública. (...).

O argumento da doutrina e da jurisprudência para repelir a possibilidade da reformatio in pejus reside na razão óbvia de que o instituto foi concebido em favor da Fazenda Pública, de sorte que jamais poderia prejudicá-la. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já firmou entendimento nesse sentido, através da Súmula 45 (...).

Frise-se que, por ora, sem embargo do entendimento do aludido autor, se o tribunal possui ampla liberdade para reformar totalmente a sentença, como conceber a vedação para agravar a situação da fazenda pública. Onde está aquela "ampla liberdade" de julgamento do tribunal ad quem?

Contra esse posicionamento, é de precisão luminar o magistério de Nelson Nery Junior 55:

Ousamos discordar desse entendimento dominante, data maxima venia. O problema não se encontra na verificação da reformatio in pejus, mas no alcance da translatividade operada por força da remessa necessária.

Conforme já analisamos alhures neste ensaio, a remessa obrigatória não é recurso, mas condição de eficácia da sentença. Por tal razão estaria incorreto desviar-se o raciocínio de reforma da sentença sujeita ao duplo grau obrigatório, para que se a examinasse sob o ângulo da reformatio in pejus, instituto que se refere única e exclusivamente aos recursos.

De outra parte, o simples fato de a sentença haver sido proferida contra a fazenda pública faz com que seja obstada preclusão, não só com relação àquela, mas também às demais partes, transferindo-se toda a matéria suscitada e discutida no processo ao conhecimento do tribunal ad quem. Assim, a remessa obrigatória tem devolutividade (rectius: translatividade) plena, podendo o tribunal modificar a sentença no que entender correto. É como se houvesse apelação de todas as partes. Não há, para o tribunal, limitação ao reexame.

Ainda, nesse viés, é importante fazer menção mais uma vez ao posicionamento de Nelson Nery Junior 56:

Fosse a remessa necessária decorrência do efeito devolutivo em favor da Fazenda, aí sim não poderia haver piora de sua situação processual. Por esta razão é incorreto o fundamento do Verbete 45 da súmula do STJ, que diz não poder haver piora da situação da Fazenda Pública no julgamento da remessa necessária.

Diante dessas considerações, denota-se, pois, que o equívoco, data venia, da súmula n.º 45, do egrégio STJ, consiste em emprestar ao duplo grau obrigatório – o qual é uma figura processual excepcional – o efeito devolutivo recursal, quando, na verdade, evidencia-se que aquele instituto por ser uma condição de eficácia da sentença, isto é, uma obrigação legal, sendo uma decorrência lógica e intrínseca do princípio inquisitorial, aplica-se o efeito translativo.

3.3. A análise constitucional da súmula n.º 45 do STJ

Saliente-se que, quando da análise da constitucionalidade da figura jurídica da remessa necessária, foi asseverado que o presente estudo iria ser sedimentado no sentido da constitucionalidade do duplo grau obrigatório.

Com efeito, o reexame necessário por si só não defende o princípio constitucional da igualdade, porquanto essa figura excepcionalíssima está fundamentada na necessidade imperiosa de salvaguardar o interesse público que se caracteriza nos litígios envolvendo a fazenda pública, visto que essa, quando em juízo, representa interesses da coletividade, diferentemente do particular que com ela litiga, razão pela qual se exige a confirmação da sentença desfavorável à fazenda pública pelo tribunal ad quem.

Logo, a primazia do interesse público perante o interesse meramente particular só irá se perfazer na medida em que se assegurarem tratamentos iguais para os que estão em situações de igualdade e tratamentos desiguais para os desiguais, na exata proporcionalidade da desigualação.

Nesse diapasão, sendo o reexame obrigatório um fenômeno processual que tem como escopo precípuo buscar aquela igualdade substancial, afirmou-se, sem embargo dos posicionamentos em contrário, pela sua constitucionalidade.

Contudo as interpretações que se vêm atribuindo à remessa oficial, tanto em sede doutrinária, quanto em sítio jurisprudencial, importa, data venia, num desvirtuamento da finalidade para a qual foi instituída essa figura jurídica.

Deste modo, o que está eivado de inconstitucionalidade não é o duplo grau necessário por si só, mas sim as aplicações e interpretações que os tribunais vêm realizando no caso concreto, mormente pela tese da proibição da reformatio in pejus quando do julgamento do reexame oficial, tese essa consubstanciada na súmula n. 45. do egrégio STJ: "No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública".

Acentue-se, portanto, que, ao se preconizar que é proibido, quando do julgamento da remessa necessária o tribunal agravar a situação da fazenda pública, está-se reconhecendo, de forma implícita, que o tribunal apenas pode adotar duas medidas possíveis, quais sejam, a manutenção da sentença e a reforma in melius em favor da fazenda pública.

Ora, tal postura mostra-se de todo incompatível com a ordem constitucional em vigor, porque ofende o princípio constitucional da igualdade, ao atribuir que o julgamento em sede de tribunal deve-se pautar no sentido ou da manutenção, ou da reforma para melhor em benefício da fazenda.

Sublinhe-se que, dessa forma, a prerrogativa processual da remessa necessária, como vem sendo interpretada e aplicada pelos tribunais brasileiros, importa em reconhecer, na verdade, um total desvirtuamento da finalidade para a qual foi criada, qual seja o critério da segurança que deve repousar nas ações envolvendo a fazenda pública, na medida em que se exige como condição de eficácia da sentença desfavorável à fazenda pública a sua confirmação pelo tribunal ad quem.

Sobre o particular, são importantes os ensinamentos de Nelson Nery Junior 57:

Da forma com tem sido interpretado o instituto da remessa obrigatória do CPC, o art. 475, pelos nossos tribunais, notadamente pelo STJ, sua inconstitucionalidade é flagrante porque ofende o dogma constitucional da isonomia.

Ainda, nesse ínterim, disserta Cândido Rangel Dinamarco 58:

Os tribunais concorrem para a exarcebação dessa postura politicamente ilegítima, ao estabelecer teses como da impossibilidade da reformatio in pejus a dano dos entes estatais (Súmula 45 STJ) – veda portanto uma decisão mais desfavorável à Fazenda Pública em segundo grau do que em primeiro, mediante a aplicação à remessa oficial de um princípio inerente aos recursos (quando tal remessa recurso não é).

Torna-se curial, outrossim, fazer alusão às lições de Nelson Nery Junior 59quando esse se reporta à remessa obrigatória:

Com ela não se pretende proteger descomedidamente os entes públicos, mas fazer com que a sentença que lhes fora adversa seja obrigatoriamente reexaminada por órgão de jurisdição hierarquicamente superior. O escopo final da remessa obrigatória é atingir a segurança de que a sentença desfavorável à fazenda pública haja sido escorreitamente proferida. Não se trata, portanto, de atribuir-se ao judiciário uma espécie de tutela à fazenda pública, todos os títulos impertinente e intolerável.

Conferir-se à remessa necessária efeito translativo "pleno", porém, secundum eventum, afigura-se-nos contraditório e inconstitucional. Contraditório porque, se há translação "ampla", não pode ser restringida à reforma em favor da fazenda; inconstitucional porque, se secundum eventum, fere a isonomia das partes no processo.

É imperioso frisar, igualmente, que parte da doutrina acaba, de certa forma, contribuindo para essa postura inconstitucional quando da interpretação da remessa oficial, ao preconizar teses de incidência dessa figura processual nas ações rescisórias que as entidades citadas no artigo 475 do código de processo civil forem parte, segundo se evidencia, apenas a titulo de ilustração, no posicionamento de João Carlos Souto 60:

Consistindo a ação rescisória num processo autônomo em que se busca desconstituir decisão judicial transitada em julgado, a ela se aplicam as regras atinentes ao duplo grau obrigatório de modo que o tribunal, ao proferir decisão contrária aos entes públicos mencionados no art. 475. da Lei Adjetiva (ou no art. 10. da Lei n. 9.469/97), desconstitutiva de sentença ou acórdão, deve, obrigatoriamente, submetê-la à apreciação do órgão superior.

É de se notar que, em face de tal posicionamento, deixa-se de tecer maiores questionamentos, tendo em vista que foge ao âmbito do presente estudo, contudo, assevera-se apenas que, sendo a remessa necessária uma figura excepcional, não comporta interpretações extensivas. Dessa forma, ao se realizar uma interpretação extensiva a uma norma restritiva, ofensa haverá à sistemática processual.

Assim é que, em face de todas as considerações lançadas nesse capítulo, vislumbra-se a patente inconstitucionalidade da súmula 45 do STJ.


CONCLUSÕES

Urge, por ora, após os comentários acerca do instituto processual denominado de remessa necessária, fazer uma síntese dos principais pontos do presente trabalho.

1. A aparição da remessa necessária no nosso ordenamento jurídico está correlatada com as leis criminais de caráter inquisitorial que imperavam em Portugal, à época das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas e, que, de certa forma, foram transportadas para o processo civil brasileiro como um meio de salvaguardar o interesse público.

2. Em que pese haver divergências em seara doutrinária quanto à constitucionalidade do reexame obrigatório, este trabalho foi embasado no sentido da constitucionalidade da aludida figura jurídica, porquanto a devolução oficial, por si só, não ofende o princípio isonomia, tendo em vista que esse princípio, em seu aspecto substancial, apenas irá ser alcançado na medida em que forem tratados igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata proporção da sua desigualação. Esse tratamento desigualatório justifica-se nos litígios envolvendo a fazenda pública, uma vez que, quando em juízo, ela representa interesses da coletividade, diferentemente do particular que com ela litiga.

3. O duplo grau obrigatório não é uma espécie recursal – eis por que não atende e nem satisfaz os requisitos e características para tanto – mas, ao revés, é uma obrigação legal imposta ao magistrado, sendo uma condição sem a qual a sentença não produzirá os seus devidos efeitos, vale dizer segundo a doutrina, uma condição de eficácia da sentença. Tanto é assim que, na hipótese de o juiz não remeter os autos ao tribunal superior, esse, por meio do seu presidente, deverá avocá-los.

4. Sendo a devolução oficial uma figura excepcional, deve ser interpretada restritivamente, de forma que incida, tão-somente, nas hipóteses preconizadas pelo legislador infraconstitucional. Tais hipóteses encontram-se previstas nos incisos I e II, do artigo 475, do CPC; artigo 28, § 1º, do decreto-lei n.º 3.365/41; artigo 213, da lei n.º 6.739/79; dispositivo 13, § 1º, da lei complementar 76/93, dentre outras citadas, no bojo do presente trabalho.

5. Frise-se que existem situações em que, a prima facie, poder-se-ia pensar que haveria a incidência da remessa necessária, tendo em vista existência de sentença condenatória desfavorável à fazenda pública. Ocorre que o legislador achou por bem não inseri-las no âmbito do reexame obrigatório, instituindo, portanto, exceções àquela figura processual, dentre as quais se citam os §§ 2º e 3º, do artigo 475, do CPC e o dispositivo 12 da medida provisória 2180-35/2001.

6. Muito embora a remessa necessária tenha o mesmo procedimento da apelação, com ela não se confunde, já que essa é uma espécie recursal, enquanto a remessa é uma condição de eficácia da sentença – sendo uma manifestação do princípio inquisitivo – logo, constata-se que não se deve cogitar em emprestar ao duplo grau obrigatório o efeito devolutivo recursal (tantum devolutum quantum appelatum), mas, sim, a ocorrência do efeito translativo, porque, não sendo recurso a aludida figura processual, não existirão, conseqüentemente, as razões do inconformismo as quais limitam o âmbito de julgamento do tribunal ad quem e, estando atrelada ao princípio inquisitorial, justifica-se a aplicação do efeito translativo. Ainda, em relação à devolução oficial, observam-se outros dois efeitos, a saber, suspensivo e substitutivo.

7. O princípio da proibição da reformatio in pejus consiste na impossibilidade do tribunal, quando do julgamento do recurso manejado apenas por uma das partes, agravar a situação do recorrente quanto à matéria não impugnada. Desta feita, infere-se que a proibição da reformatio in pejus é uma decorrência lógica do princípio dispositivo, estando relacionada com o efeito devolutivo que se aplica às espécies recursais. São exceções àquele princípio da proibição: quando houver recursos de ambas as partes – sucumbência recíproca – as situações preconizadas nos §§ 1º e 2º, do artigo 515, do CPC e artigo 516, também do CPC (se bem que a situação prevista nesse dispositivo já está de certa forma inserida no § 1º, daquele primeiro artigo).

8. A figura processual excepcional da remessa necessária é, como já dissemos, uma condição de eficácia da sentença, manifestação inarredável do princípio inquisitivo e, em face disso, aplica-se o efeito translativo – transferência integral da matéria – logo, infere-se que o tribunal ad quem tem ampla liberdade de atuação, podendo, deste modo, agravar a situação da fazenda pública, quando do julgamento do reexame obrigatório. Vale dizer que não se aplica o princípio da proibição da reformatio in pejus em relação à remessa necessária, o qual princípio incide, apenas, e tão-somente, quando da ocorrência do efeito devolutivo, isto é, em relação aos recursos. Deste modo, o equívoco, permissa venia, da súmula 45 do colendo STJ, ao proibir o agravamento da situação da fazenda pública, quando do julgamento do reexame obrigatório, paira no viés de emprestar a tal instituto o efeito devolutivo recursal, quando, na verdade, evidencia-se que, por ser a remessa necessária uma imposição legal, ou seja, uma condição sem a qual a sentença não produzirá os seus devidos efeitos, aplica-se o efeito translativo.

9. Afirmou-se por diversas oportunidades no bojo do presente estudo que, muito embora não se concorde com a manutenção da remessa necessária no nosso ordenamento jurídico, a aludida figura processual não é inconstitucional, porquanto não se vislumbra ofensa ao princípio constitucional da igualdade. Contudo o mesmo não se afirma quanto à interpretação que se vem atribuindo à remessa oficial, mormente pela adoção da tese da proibição da reformatio in pejus, quando do julgamento de tal figura processual (tese essa consubstanciada na súmula 45 do STJ), importa, data venia, num desvirtuamento da finalidade para a qual foi criado o instituto da devolução oficial, qual seja, salvaguardar o interesse público que se caracteriza nos litígios envolvendo a fazenda pública. Logo, o que está eivado de inconstitucionalidade, ao meu ver, não é a remessa necessária enquanto instituto processual, mas, sim, as interpretações atribuídas a essa figura, quando de sua aplicação ao caso concreto. Acentue-se, portanto, que aquela tese da proibição da reformatio in pejus – súmula 45 do STJ – mostra-se de todo incompatível, permissa venia, com a ordem constitucional vigente, tendo em vista a ofensa direta ao princípio isonômico, pois, parafraseando o eminente jurista Nelson Nery Junior, o escopo precípuo da remessa necessária não é tutelar a fazenda pública, mas estabelecer como critério de segurança a confirmação da sentença desfavorável à fazenda pública pelo tribunal ad quem. Em face dessa postura inconstitucional da súmula 45 do STJ, bem como o comportamento processual da fazenda pública, utilizando-se de prerrogativas processuais com finalidades outras pelas quais foram instituídas, é que não se concorda com a manutenção da remessa necessária no ordenamento jurídico pátrio.


REFERÊNCIAS

CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

______. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2002. v.1.

LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao código de processo civil. 3. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 5.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

______. Princípios do processo civil na constituição federal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

PACHECO, José da Silva. Evolução do processo civil brasileiro: desde as origens até o advento do novo milênio. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

ROSAS, Roberto. Direito sumular: comentários às súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

SOUTO, João Carlos. A união federal em juízo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 38 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v.1.


Notas

1 PACHECO, José da Silva. Evolução do processo civil brasileiro: desde as origens até o advento do novo milênio. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 44.

2 PACHECO, 1999, p. 45.

3 Ibidem, p. 51.

4 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 54.

5 Ibidem, p. 54-55.

6 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 126.

7 PACHECO, 1999, p. 104.

8 GUEDES, Jefferson Carús. Duplo grau ou duplo exame e atenuação do reexame necessário nas leis brasileiras. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coords.).Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 313.

9 PACHECO, 1999, p. 25.

10 LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 170-171.

11 LASPRO, 1995, p. 171.

12 DINAMARCO, 2003, p. 127.

13 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 605.

14 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 21-22.

15 Ibidem, p. 39.

16 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 7. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2002. p. 64.

17 NERY JUNIOR, 2002. p. 56.

18 SIMARDI, Cláudia A.. Remessa obrigatória (após o advento da lei 10.352/2001). In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 113-114.

19 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao código de processo civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 5. p. 163.

20 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 233.

21 NERY JUNIOR, 1997, p. 60.

22 MOREIRA, op. cit., p. 233.

23 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 813.

24 SIMARDI, 2002, p. 116.

25 CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 86.

26 DINAMARCO, 2003, p. 128.

27 DINAMARCO, 2003, p. 128-129.

28 NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 813.

29 NERY JUNIOR, 1997, p. 63-64.

30 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2002. v. 1, p. 213.

31 NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 814.

32 LASPRO, 1995, p. 169-170.

33 DINAMARCO, 2003, p. 133.

34 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n.º 253. In: NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 1658.

35 ROSAS, Roberto. Direito sumular: comentários às súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 396.

36 NERY JUNIOR; NERY, op. cit., p. 81.

37 CRETELLA NETO, 2002, p. 182-183.

38 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 38 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 1, p. 23.

39 NERY JUNIOR, 1997, p. 413-414.

40 SIMARDI, 2002, p. 125-126.

41 SOUTO, João Carlos. A união federal em juízo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 233.

42 DINAMARCO, 2003, p. 130.

43 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.º 423. In: NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 1641.

44 MOREIRA, 2003, p. 433-434.

45 CRETELLA NETO, 2002, p. 292.

46 NERY JUNIOR, 1997, p. 158.

47 Ibidem, p. 156.

48 DINAMARCO, 2002, p. 663.

49 MOREIRA, 2003, p. 439.

50 NERY JUNIOR, 1997, p. 157.

51 NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 887.

52 CRETELLA NETO, 2002, p. 292.

53 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº45. In: NERY JUNIOR; NERY, 2002, p. 1651.

54 SOUTO, 2000, p. 233.

55 NERY JUNIOR, 1997, p. 162-163.

56 NERY JUNIOR, 2002, p. 65.

57 NERY JUNIOR, 2002, p. 65.

58 DINAMARCO, 2003, p. 126.

59 NERY JUNIOR, 1997, p. 163-164.

60 SOUTO, 2000, p. 234.


Autor

  • Gustavo Machado Tavares

    Gustavo Machado Tavares

    Procurador Judicial do Município do Recife. Especialista em Novas Questões do Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damas em convênio com a Escola Superior de Advocacia - ESA/OAB-PE. Pós-graduando em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco. Concluinte do Curso de Preparação e Aperfeiçoamento à Magistratura pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco - ESMAPE.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Gustavo Machado. O instituto da remessa necessária e a Súmula 45 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 408, 13 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5584. Acesso em: 20 abr. 2024.