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A imunidade das entidades beneficentes de assistência social

A imunidade das entidades beneficentes de assistência social

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O constituinte não olvidou do papel realizado pela sociedade na consecução das atividades de assistência social, razão pela qual criou a exoneração fiscal das entidades que exercem atividades paralelas com o Estado e com os mesmos fins deste.

Sumário. 1. Introdução. 2. Imunidades tributárias. 2.1 Considerações iniciais. 2.1.1 A imunidade tributária como "hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada". 2.1.2 A imunidade tributária como exclusão ou supressão da competência tributária. 2.1.3 A imunidade tributária como "limitação constitucional ao poder de tributar". 2.2 Pontos convergentes. 2.3 Os fundamentos genéricos das imunidades tributárias. 3. A interpretação e classificação das imunidades tributárias. 3.1 Interpretação da imunizante específica. 3.2 Classificações das imunidades tributárias. 4. A seguridade social e a imunidade das "entidades beneficientes de assistência social. 4.1 Da origem da exoneração tributária voltada à assisência social. 4.2 Da relação jurídica assistencial. 4.3 Da imunidade conferida pelo texto constituicional. 4.4 Do conceito de "entidade beneficiente de assistência social". 4.5 Da prescindibilidade da edição de lei complementar para regulação do texto contitucional. 5. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

            O instituto da imunidade tributária, indiscutivelmente, ainda oferece um enorme campo para se travar novas discussões. Isso acontece por se tratar de um instituto tipicamente brasileiro (1) que não encontra paralelo no direito alienígena, ficando afastada a possibilidade de se socorrer às experiências alheias, já que de pouca valia.

            Some-se a isso a falta de consenso existente na doutrina e na ausência de manifestações jurisprudenciais uníssonas e firmes acerca dos preceitos imunizantes positivados no bojo de nossa Constituição Federal, a despeito de mais de uma década de promulgação, tornando o instituto fértil para novos debates sem o temor de apenas se repisar velhas construções.

            Assim, diante da fartura de possibilidades que o tema em estudo oferece, não resta outra alternativa senão limitar-se a um ponto específico sobre as diversas imunidades existentes, mas que seja atual e não menos interessante e intrigante do qualquer outro. É por isso que se ocupa da imunidade tracejada em prol das "entidades beneficentes de assistência social" frente ao custeio da Seguridade Social, (2) já que hodiernamente os cofres da Previdência Social Pública estão dando conta de um déficit cada vez mais crescente, bem como pelo incomensurável relevo dos números (3) que envolve a "renúncia fiscal" tratada – renúncia aqui entendida como a aplicação da referida imunidade – que vem galgando crescente avanço na contabilidade fiscal do Governo Federal.

            Apesar do escopo deste singelo estudo restringir-se a um tópico dentro do instituto das imunidades tributárias, torna-se necessário traçar um breve perfil das imunidades jurídico-tributárias para que se possa destramar as dúvidas e perplexidades que circundam a interpretação e o efetivo alcance da norma imunizante inserta no artigo 195, § 7º, da Constituição Federal, que, como dito, se refere à exoneração das "entidades beneficentes de assistência social" para com o custeio da Seguridade Social.


2. IMUNIDADES

            2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

            O conceito de imunidade tributária não se apresenta definitivamente consolidado, padecendo de intensa divergência entre doutrinadores de expressivo renome. Na realidade, o instituto não encontra "uma elaboração teórica metodologicamente adequada ao conhecimento de sua fenomenologia". (4)

            Diante disso, é de bom alvitre e até recomendável que se perpasse nas considerações lançadas pelas diversas correntes existentes sobre a natureza jurídica das imunidades, a fim de que se possa traçar, com o máximo de segurança, os elementos que compõem o seu perfil jurídico.

            A doutrina pátria difunde-se em três principais vertentes que defendem a natureza jurídica das imunidades tributárias como: a) "hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada"; b) exclusão ou supressão da competência tributária; e c) limitação constitucional ao poder ou competência tributária, cujos principais argumentos passa-se a examinar sucintamente.

            2.1.1 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA COMO "HIPÓTESE DE NÃO-INCIDÊNCIA CONSTITUCIONALMENTE QUALIFICADA"

            Dentre os que concebem a imunidade tributária como "hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada", destacam-se Amílcar de Araújo Falcão e José Souto de Maior Borges. Para os adeptos de tal corrente:

            A não-incidência compreende duas modalidades: a da não incidência pura e simples e a da não-incidência juridicamente qualificada, não-incidência por disposição constitucional ou imunidade tributária. [...] A imunidade, como se está a ver, é uma forma qualificada ou especial de não-incidência, por supressão, na Constituição, da competência impositiva ou do poder de tributar, quando se configuram certos pressupostos, situações ou circunstâncias previstos pelo estatuto supremo. (5)

            Essa corrente não passa imune aos críticos. O reparo que se faz a tal posicionamento prende-se, principalmente, ao argumento de que o texto constitucional ocupa-se com os aspectos da delimitação do poder tributário, ou seja, com a outorga da competência aos entes políticos e não com as hipóteses de incidência ou não-incidência, matéria reservada ao exercício da competência tributária.

            O campo da incidência ou não-incidência liga-se ao fenômeno da conduta, refletindo típicas normas de comportamento que regulam situações fáticas, operando num segundo momento, qual seja, no plano do exercício da competência tributária e não na delimitação de sua área de atuação. As normas que disciplinam as imunidades tributárias, ao revés, são tipicamente normas de estrutura, justamente porque regulam a elaboração, organização e disposição das normas jurídicas de exercício das competências tributárias dos entes políticos.

            Ademais, ao se falar em "hipótese de não-incidência", termo polissêmico, duas possibilidades vêm à tona, a primeira quando o ente público titular da competência tributária não a exerce, valendo-se de sua facultatividade, e, a segunda, quando o fato em si não se constitui relevante para o direito. Verifica-se que em ambos os casos não há atuação positiva da norma de conduta. A norma imunizante, ao contrário, tem por escopo incidir e delimitar o exercício da competência tributária, atuando positivamente.

            Diante disso, pode-se extrair a ilação de que não é de todo irrepreensível admitir a imunidade tributária como "hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada", já que "a não-incidência é a conseqüência da vedação constitucional". (6)

            2.1.2 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA COMO EXCLUSÃO OU SUPRESSÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

            A imunidade tributária é concebida, também, como exclusão ou supressão da competência tributária. Essa é a posição adotada por Ruy Barbosa Nogueira, para quem imunidade é "uma forma de não-incidência pela supressão da competência para tributar certos fatos, situações ou pessoas, por disposição constitucional". (7)

            Admitir a imunidade tributária como supressão ou exclusão da competência tributária não leva em conta a coalescência existente entre as normas constitucionais que outorgam a competência e as que estipulam as imunidades tributárias. Não existe qualquer cronologia entre ambas.

            Ora, não existindo qualquer cronologia entre as demais regras de fixação da competência tributária e as de imunidades, não há como pressupor a exclusão ou supressão de uma pela outra. Não há como considerar esta ou aquela norma constitucional, por essência normas estruturais – por estipularem qual será o efetivo contorno da organização Estatal –, como precursoras uma das outras, mesmo no caso de Constituições analíticas, pois todas as normas existentes são componentes de um sistema que se auto-organiza instantaneamente.

            Com efeito, todas normas constitucionais que estipulam a competência tributária agem em conjunto e ao mesmo tempo – simultaneamente –, fixando estritamente qual a zona que está aberta à tributação, não se podendo, portanto, dar maior crédito a tal corrente.

            2.1.3 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA COMO "LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DE TRIBUTAR".

            A corrente mais sedutora, sem dúvida, é a que trata as imunidades tributárias como legítima "limitação constitucional do poder de tributar", pois é influenciada, atualmente, pelo fato da maioria das imunidades genéricas encontrarem-se situadas dentro do capítulo da Constituição reservado ao Sistema Constitucional Tributário, na seção intitulada "limitações do poder de tributar".

            No entanto, essa corrente também não passa impassível aos críticos mais atentos e compromissados com o rigor técnico-científico, já que padece da mesma incoerência daquela que apresenta a imunidade como supressão ou exclusão da competência tributária, pois para que se admita a imunidade tributária como "limitação constitucional ao poder de tributar", necessariamente, há de se ter como pressuposto a existência de cronologia entre o poder de tributar e a elaboração do próprio texto constitucional, o que, certamente, não vinga. Neste ponto, esclarecedora a lição de Clélio Chiesa, in verbis:

            Há doutrinadores, ainda, que se referem às imunidades como limitações ao poder de tributar. Neste caso, a impropriedade é ainda maior, pois juridicamente não preexiste um poder de tributar que antecede à confecção do texto constitucional e que passa por restrição. Juridicamente, não há um poder que antecede à sua própria criação.

            É bem verdade que o poder constituinte originário é ilimitado. No momento da elaboração da Carta Constitucional não há o que limitar, já que, juridicamente, tudo está por ser construído a partir daquele momento, criando-se uma nova ordem jurídica. Em termos jurídicos, a elaboração da Constituição é o ponto de partida da construção da ordem jurídica. (8)

            Extrai-se da lição acima que as imunidades tributárias não podem ser admitidas indistintamente como "limitações ao poder de tributar" apenas e tão-somente pelo fato de algumas delas terem sido tratadas em uma das seções do texto constitucional, reservadas à regulação do Sistema Constitucional Tributário, que detém tal denominação. A mera posição em que se situa determinado dispositivo constitucional, por si só, não é suficiente para determinar o seu regime jurídico.

            Ademais, as "limitações constitucionais ao poder de tributar" abrigam um leque de princípios e normas jurídicas constitucionais que delimitam o exercício da competência tributária e protegem os contribuintes das investidas ilegítimas do Estado. A expressão, portanto, é de contornos indefinidos e pode acolher vários outros institutos jurídicos, numa verdadeira miscigenação de conteúdos jurídicos que não permite que se aloque as imunidades indistintamente dentre as "limitações constitucionais ao poder de tributar", sem que se despreze o rigor técnico. Para melhor aclarar, basta dizer que essa corrente doutrinária não marca qualquer traço distintivo entre as imunidades e os princípios da legalidade, anterioridade, irretroatividade etc., oferecendo um tratamento por demais genérico ao instituto, que pouco lhe explica.

            Apesar disso, é até compreensível a posição daqueles que defendem que algumas das imunidades genéricas contidas na seção II ("Das limitações ao poder de tributar"), do capítulo I, do Sistema Tributário Nacional, sejam tratadas como tal, sujeitando-se as conseqüências dessa opção, como a necessidade da edição de lei complementar para sua regulação (art. 146, inc. II, da Constituição Federal), sob o fundamento de que o Poder Constituinte Originário não se preocupou, quando da elaboração do texto Supremo, com a retidão científica e, por isso, incluiu certas as imunidades dentro do espectro das "limitações ao poder de tributar".

            Contudo, esse raciocínio não pode ser feito em relação a todas as imunidades constantes do seio constitucional, ainda mais quando há disposições específicas que as regulam. Seja como for, à Constituição coube a opção pela regulação desta ou daquela imunidade, por intermédio de lei complementar ou ordinária, conforme o caso, o que, a nosso entender, deve ser respeitada.

            Essa discussão, porém, fica para linhas vindouras, cabendo nesse momento que se fixe o entendimento de que não há como enquadrar tecnicamente as imunidades tributárias, indistintamente, como "limitações ao poder de tributar", pois não se pode aplicar-lhes um único tratamento jurídico, sem que se menospreze diversas normas postas pela Constituição Federal.

            2.2.PONTOS CONVERGENTES

            Em que pese os diversos tipos de controvérsias da doutrina nacional acerca da natureza das normas imunizantes e ante o quilate de cada um de seus defensores, pode-se fixar apenas, sem qualquer embaraço e divergência, duas premissas em que são convergentes os posicionamentos, quais sejam: a) as normas imunizantes radicam-se no bojo da Constituição; e b) atuam diretamente na esfera da competência dos entes políticos.

            Diante da primeira constatação, qual seja, de que as imunidades tributárias decorrem, explícita ou implicitamente, da Constituição Federal, e como tal, normas constitucionais, devem ser interpretadas observando-se as peculiaridades que envolvem a busca da exegese constitucional.

            Nesse contexto, dentro dos diversos critérios de interpretação das normas constitucionais, cabe destacar, nesse momento, que se deve dar especial atenção ao caráter político do conteúdo da norma constitucional imunizante. (9) Isso, porém, não significa dizer que se deve afastar das significações jurídicas decorrentes da interpretação da norma posta, mas que, no entanto, o intérprete não se deve descurar do cumprimento da finalidade constitucional que circunda o dispositivo sob análise.

            Na imunidade das "entidades beneficentes" não é diferente, pois não há como delimitar o seu efetivo alcance acaso se desprenda do vetor constitucional que ensejou a inserção da norma (art. 195, § 7° ), razão pela qual há que se imprimir uma busca incessante da finalidade constitucional quando de sua aplicação, jamais podendo limitar-se a sua literalidade. (10) A correção dessa ilação fica mais evidente quando se pesquisa os fundamentos constitucionais das imunidades.

            2.3 FUNDAMENTOS "GENÉRICOS" DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS

            A nova Carta Magna surge como ponto culminante da restauração do Estado democrático de direito, rompendo com o autoritarismo do regime militar. O reflexo direito da participação de toda a sociedade civil brasileira, caracterizada pelo passado de exclusão das decisões políticas e econômicas da Nação, levou a um produto final extremamente heterogêneo e delineado com certas proteções corporativas. Aliás, nesse ponto, vale transcrever a lapidar manifestação de Luís Roberto Barroso, a saber:

            Na euforia – saudável euforia – de recuperação das liberdades públicas, a constituinte foi um amplo exercício de participação popular. Neste sentido, é inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, foi este mesmo caráter democrático que fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de interesses legítimos de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, corporativos, ambições pessoais, etc. (11)

            Assim, ante ao marcante caráter heterogêneo da Constituição Federal de 1988, o seu texto não apresenta um predomínio político dominante. Além disso, ao tentar afastar-se da experiência passada, e até por influência do constitucionalismo moderno, descreve com um grau de sutileza, miudezas casuísticas, prolixas, vindo gravada com várias inserções programáticas, com a intenção de balizar a atuação legiferante e da administração, culminando na construção de um corpo altamente analítico.

            Com efeito, esse alto teor analítico de nossa Constituição Federal, também definitivamente marcante nas disposições que regulam o Sistema Constitucional Tributário, que reparte com precisão cirúrgica a competência tributária de cada um dos entes políticos da federação, resultou, por conseguinte, na fixação expressa das exonerações tributárias. Em outras palavras: a opção do Poder Constituinte Originário em adotar uma Constituição com modelo analítico trouxe como conseqüência o surgimento das exonerações tributárias na Carta Magna.

            Como se vê, ao contrário do que assevera Regina Helena Costa a "analiticidade constitucional" não pode ser considerada fundamento da instituição das imunidades, mas uma conseqüência dessa opção política. (12)

            Do mesmo modo, a rigidez de nossa Constituição, que impõe mecanismos de mutabilidade mais exigentes para alterações em seu corpo (13), também não se presta a servir de fundamento das imunidades tributárias, senão mais uma conseqüência das propostas acolhidas pelo Constituinte Originário que, por seu turno, provém da opção política de um texto constitucional analítico.

            Na realidade não há como apontar um único fundamento ou mesmo um fundamento genérico das imunidades tributárias, já que decorrem de diversos princípios, valores e opções políticas adotadas pela Constituição Federal que estão dissipados pelo seu texto.

            Percuciente é lição de Luciano Amaro quando assevera que "o fundamento das imunidades é a preservação de valores que a Constituição reputa relevantes (a atuação de certas entidades, a liberdade religiosa, o acesso à informação, a liberdade de expressão etc.), que faz com que se ignore a eventual (ou efetiva) capacidade econômica revelada pela pessoa (ou revelada na situação), proclamando-se, independentemente da existência dessa capacidade, a não-tributabilidade das pessoas ou situações imunes". (14) Não é por outra razão que o exame das imunidades deve ser elaborado ponto a ponto, pois algumas delas contêm valores que são intangíveis, enquanto que outras são apenas fruto de meras opções políticas da época.

            O exemplo manifesto de imunidade consagrada como cláusula intangível é a chamada imunidade recíproca que se constitui verdadeiro princípio basilar da forma federalista, haja vista preservar a autonomia e a igualdade dos componentes políticos do Estado Federal Brasileiro. Logo, não seria nenhum exagero afirmar desprezível a positivação da imunidade recíproca no bojo da Constituição, pois a adoção da forma federativa pelo Constituinte Originário de 1988, implicitamente já consagrara a não intromissão tributária de um ente sobre o outro.

            Paulo de Barros Carvalho citando o posicionamento de Francisco Campos, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Geraldo Ataliba, afirma "que, senão houvesse disposição expressa nesse sentido, estaríamos forçados a admitir o princípio da imunidade recíproca, como corolário indispensável da conjugação do esquema federativo de Estado com a diretriz da autonomia municipal. Continuaria a imunidade, ainda que implícita, com o mesmo vigor que a formulação expressa lhe outorgou". (15)

            De toda sorte, não obstante as críticas à Constituição Brasileira de 1988, perdida em minúcias desarrazoadas e marcada por opções políticas de contornos corporativistas, não se nega eficácia aos valores fundamentais concretizados pelo novo texto Supremo em prol dos cidadãos brasileiros contra eventuais abusos, elevando, inclusive, alguns ao status de cláusulas pétreas (art. 60, §4º, II, da CRFB/88). Mesmo assim, com uma Constituição arraigada em seu extenso texto, com preceitos fundamentais que se espraiam do começo ao fim e, também, com normas decorrentes da articulação dessa ou daquela categoria econômica, política, religiosa ou corporativa, o difícil está em identificar e separar o que representa decorrência de parcela intangível dos preceitos fundamentais ou apenas fruto de aspirações de grupos sociais que acabaram agraciados naquele momento histórico.

            No que tange as imunidades tributárias não é diferente, pois já se viu a supressão (art. 153, §2º, inc. II, da Constituição Federal) e a inclusão (art. 149, §2º, da Constituição Federal) de dispositivos constitucionais imunizantes a depender da força política do grupo prejudicado ou beneficiado e da conveniência estatal com esta ou aquela desoneração.

            Nessa situação é que se encontram as imunidades tributárias, divididas entre as que se esteiam em princípios fundamentais e as que se escorram em fundamentos outros, o que, certamente, dificulta sobremaneira o estudo do tema e a consolidação das discussões travadas, sendo necessário, portanto, o estudo pontual de cada uma delas. É por isso que não se convence de que todas as imunidades tributárias são marcadas com o atributo absoluto da intangibilidade, simplesmente pela invocação vaga de que as exonerações tributárias são corolários de direitos e garantias fundamentais do contribuinte, especialmente a liberdade e a propriedade.

            Destarte, só a um exame detalhado e específico é que se pode dizer que este ou aquele direito fundamental restou vilipendiado, não havendo como jogar todas as imunidades na vala comum.


3. A INTERPRETAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS

            Como visto acima, as normas imunizantes encontram-se alojadas no seio Constitucional e, portanto, devem ser interpretadas levando-se em conta tal peculiaridade. A proeminência da norma constitucional, no entanto, não implica em acentuada divergência ou especificidades tamanhas que se distanciam sobremodo dos critérios de interpretação utilizados para percepção do conteúdo das demais normas, especialmente no que se refere às normas constitucionais que têm aplicação direta sob determinada situação jurídica, como é o caso do reconhecimento de uma imunidade tributária.

            Apesar disso, a interpretação constitucional é diferenciada, não a ponto de solicitar métodos interpretativos distintos, já que sua missão consiste também na determinação da verdadeira inteligência dos dispositivos que integram a Constituição, em sua acepção formal e material, o que, em essência, não se afasta do escopo perquirido pela Hermenêutica.

            Vale destacar, porém, a posição ocupada pelas normas constitucionais dentro da pirâmide jurídica instituída, exigindo apreciação peculiar e com especial atenção, na lição de Luís Roberto Barroso, a quatro pontos: "(a) a superioridade hierárquica; b) a natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político". (16)

            A superioridade hierárquica das normas constitucionais é noção essencial do processo de interpretação das demais normas jurídicas. Como as normas constitucionais ocupam o cume da pirâmide jurídica, qualquer lei ou ato normativo inferior somente se mantêm válidos acaso não arrostem seu comando. A necessária existência de compatibilidade vertical entre as normas jurídicas subalternas e as normas constitucionais encontra respaldo na superioridade destas, que, inclusive, fornecem inúmeros instrumentos de controle de sua supremacia.

            Essa supremacia das normas constitucionais desautoriza as normas primárias, editadas pelo legislador ordinário, e as normas secundárias, expedidas pelo Poder Executivo e pela Administração Pública como um todo, para fiel execução da lei de regência, de afrontar a hierarquia normativa imposta, cujo ápice de sua força normativa está na Constituição Federal.

            Nesse diapasão, cada ato normativo encontra seu fundamento de validade em ato normativo de hierarquia superior, ou seja, o decreto na respectiva lei, e assim por diante, e todos, por sua vez, devem encontrar fundamento nas normas constitucionais. Se porventura qualquer deles estiver em confronto com as normas constitucionais não podem subsistir validamente frente ao ordenamento jurídico vigente.

            Dessa supremacia das normas constitucionais resulta que não se deve interpreta-las partindo-se do entendimento colhido do teor das normas infraconstitucionais, porquanto estas encontram seu fundamento de validade justamente na Constituição Federal. Essa assertiva salta aos olhos, embora corriqueiramente defronte-se com interpretações do texto constitucional que são colhidas a vista de atos normativos inferiores, ou seja, parte-se da lei para a Constituição, sendo tal procedimento de todo inaceitável.

            De tal sorte, o intérprete não pode cochilar e deixar-se seduzir pelo entendimento extraído da legislação infraconstitucional, para só então conceber os contornos das normas constitucionais, já que assim procedendo estará invertendo a ordem natural das coisas.

            Outro ponto que se deve notar é a natureza da linguagem constitucional, que preponderantemente apresenta maior grau de abstração, sendo por vezes carregada de expressões imprecisas que dificultam sobremaneira a sua conceituação e, por conseguinte, a sua aplicação.

            Não há como negar que conceitos como os de bem-estar social, justiça social e, a nosso ver, de "entidade beneficente de assistência social" possibilitam ao intérprete considerável margem de discricionariedade, que pode ir de um extremo ao outro, mesmo em se tratando de uma Constituição analítica, embora tal ocorrência seja mais agravada no caso daquelas que adotam um modelo sintético.

            Esse, aliás, é o ponto de maior dificuldade da interpretação constitucional, pois, sem dúvida, abstrair as paixões, ideologias e convicções pessoais não é tarefa nada fácil, mas que, por mais penosa que seja, deve ser sufocada para a busca da melhor interpretação das normas constitucionais. (17)

            Outro agravante consiste na utilização pelo legislador constituinte de expressões em seu sentido vulgar e não no sentido técnico, redundando em maior dificuldade na apuração do sentido das normas constitucionais, pois sendo fruto do confronto de diferentes linhas de pensamento dos mais diversos setores da sociedade, a obra do legislador constituinte originário é marcada, vez ou outra, pela utilização de expressões que não refletem o seu exato sentido técnico. Aliás, não é por outra razão que se entende, ainda que seja apenas a minoria da doutrina, que não se pode extrair parâmetros rígidos da Constituição Federal para a definição material de cada imposto, em que pese a precisa repartição das competências tributárias. (18)

            Seja como for, o certo, único e determinável é que mais dificultoso torna-se o caminho para a escorreita interpretação constitucional e, por conseguinte, o entendimento das imunidades.

            Além disso, o conteúdo das normas constitucionais, em sua maior parte, é de organização, voltadas para a produção de outras normas jurídicas. Fundamentalmente não são voltadas para juízos hipotéticos, constituindo-se verdadeiras normas de estrutura e não de conduta. Isso também acontece com as normas imunizantes, já que têm como objetivo funcionar como delimitadoras da competência impositiva dos entes políticos tributários, fixando as balizas para a construção do normativo infraconstitucional.

            A Constituição Federal, em regra, não institui tributos, embora não exista qualquer impeditivo para fazê-lo, mas apenas outorga a competência de cada um dos legitimados para criá-los, o que demonstra, o caráter estrutural de suas normas, dentre as quais se incluem as normas que estipulam as imunidades, cujo principal norte é disciplinar a própria criação e aplicação das normas que regulam os juízos hipotéticos – normas de conduta. Não há dúvida quanto ao caráter estrutural das normas imunizantes.

            Interessante notar que essa divisão – regras de estrutura e de conduta – não é meramente acadêmica, haja vista que as regras de estrutura "possuem um efeito constitutivo imediato das situações que enunciam. Não sendo, em princípio, geradoras de direitos subjetivos, essas normas não são interpretadas e aplicadas em igualdade de condições com as normas de conduta". (19)

            Por derradeiro, há que se observar o caráter político imanente às normas constitucionais. Fato de extrema relevância na interpretação constitucional reside na circunstância de que as normas inseridas no seio constitucional estão impregnadas de concepções políticas que justificam sua ascendência normativa. Destarte, sempre se deve ter presente o sentido finalístico que serve de esteio para o preceito constitucional, buscando dar o máximo de efetividade a norma dentro de sua significação político-jurídica.

            A toda evidência, esses quatro pontos peculiares da interpretação constitucional devem ser, de igual modo, observados com rigor pelo intérprete na exata compreensão e aplicação das normas jurídicas que estabelecem as imunidades tributárias, sob pena de desvirtuamento da finalidade constitucional que sustenta cada uma das exonerações tributárias.

            3.1 INTERPRETAÇÃO DA IMUNIDADE ESPECÍFICA

            É por vezes corrente a assertiva de que a imunidade é ampla e indivisível, impondo apenas a interpretação extensiva; de outro extremo, outrossim, assevera-se que por se tratar de norma de "exceção" à competência tributária, cabe somente a interpretação literal, de cunho restritivo.

            Trata-se de posições extremadas que, a nosso sentir, não podem prevalecer. A interpretação da norma imunizante deve ter em mira o objetivo constitucional que consagrou a exoneração tributária, não se podendo partir de um critério interpretativo predeterminado. Não há como enclausurar o intérprete por intermédio de métodos estáticos. Insistir numa formulação interpretativa rígida das normas imunizantes, sob o manto de determinadas regras pré-estabelecidas, seja por aspectos preponderantemente extensivos ou restritivos, certamente, culminará em abusos, em concepções que não se aproximarão da finalidade constitucional em foco.

            A interpretação da norma imunizante deve ter seus contornos definidos na mesma medida da exoneração constitucional, ou seja, a cada preceito constitucional a interpretação pode variar, tendo em mira sempre o alcance da finalidade constitucional. A finalidade constitucional de cada norma imunizante deverá ser o vetor que conduz o intérprete no seu árduo caminho.

            Sob esse aspecto, cabe recordar a lição de Regina Helena Costa ao comentar a especificidade da interpretação das imunidades tributárias quando, citando Geraldo Ataliba, faz referência ao tênue diferencial existente na interpretação das imunidades genéricas e das específicas. Afirma que as normas que contemplam as imunidades específicas "são aquelas restritas a um único imposto ou tipo de imposto, servindo a valores limitados ou conveniências especiais, pelo quê devem ter sua interpretação condicionada à teleologia própria de cada preceito". (20) Nota-se, portanto, que a interpretação das normas constitucionais que consagram imunidades específicas, por abrigarem normas de abrangência limitada, naturalmente devem atender certas peculiaridades por força do próprio texto constitucional.

            Ora, quando a desoneração é pontual, como é o caso das "entidades beneficentes de assistência social," avulta de importância a análise da espécie tributária abrangida. Isso acontece porque os tributos vinculados estão sempre a exigir "fatos do Estado, sob a forma de atuações em prol dos contribuintes." (21) Se a Constituição Federal desonerou certas pessoas do pagamento de tributos vinculados, como é o caso das contribuições sociais voltadas para o custeio da Seguridade Social (art. 195 da CF), em razão da sua atuação específica em área de obrigatória contrapartida Estatal, razoável exigir que os beneficiários abarquem, com sua atuação, no mínimo, ao que competia ao Poder Público, sob pena de não atendimento ao fim constitucional.

            Não se trata de mera troca, mas de efetivo cumprimento da finalidade constitucional, exige-se mais do que uma atuação mínima da pessoa beneficiada, mas, ao contrário, uma atuação concreta, eficaz e, principalmente, proporcional a de que se exigiria do Estado.

            3.2 CLASSIFICAÇÕES DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS.

            Diversas classificações podem ser atribuídas as imunidades tributárias, dentre as quais procurar-se-á fazer referência àquelas que contenham maior densidade jurídica e que, de alguma forma, possam contribuir para o deslinde do objeto em estudo, analisando suas principais facetas.

            Quanto ao modo de incidência, as imunidades classificam-se em subjetivas, objetivas e mistas.

            As imunidades subjetivas ou pessoais são aquelas estabelecidas em razão da condição de determinadas pessoas. São outorgadas ratione personae, em decorrência ou da natureza jurídica da pessoa, ou em face do papel socialmente relevante que desempenha. Conquanto se possa detectar a presença de elementos objetivos, tais como, patrimônio, renda ou serviços, que tenham relação com as entidades beneficiadas, verifica-se que a nota determinante desse tipo de imunidade é o caráter pessoal.

            A título de exemplo, pode-se mencionar a imunidade consagrada no artigo 150, inciso VI, alíneas ‘a’ e ‘c’, §§2º e 4º da Constituição Federal de 1988, referente, respectivamente, à imunidade recíproca das pessoas políticas, autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, e dos partidos políticos e sua fundações, das entidades sindicais de trabalhadores e das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.

            As imunidades objetivas ou reais são aquelas outorgadas em função de determinados fatos, bens ou situações. Muito embora, dita imunidade, também possa beneficiar pessoas, não é concedida em função delas, e sim ratione materiae, como exemplo, cite-se a imunidade referente aos livros, jornais e periódicos e o papel destinado à impressão dos mesmos, nos termos do art. 150, inciso VI, alínea ‘d’ da Carta Magna.

            Por fim, vislumbra-se a existência de uma terceira categoria de imunidade em face do critério de distinção ora considerado, qual seja, a imunidade mista, na qual o legislador constitucional combinou critérios de natureza pessoal e material, para criar a exoneração constitucional. Depreende-se que tal imunidade pode ser perceptível na hipótese do Imposto Territorial Rural, consoante previsto no art. 153, §3º da Constituição Federal, em que se exige para a configuração da mesma, que se constate a existência de uma única gleba rural (critério material) e a exploração pessoal ou familiar (critério pessoal).

            Pode-se identificar as seguintes notas diferenciadoras entre imunidades subjetivas e objetivas: a) as pessoas que detêm imunidade subjetiva prescindem da objetiva, vez que a primeira automaticamente envolve a segunda, não se podendo afirmar a recíproca como verdadeira; b) as imunidades subjetivas são sempre gerais, enquanto as objetivas, conquanto possam ser genéricas, quase sempre são específicas; c) as imunidades subjetivas referem-se aos impostos diretos, enquanto as objetivas, relacionam-se aos indiretos.

            Por fim, cumpre salientar que para Roque Antônio Carrazza, a imunidade sempre é subjetiva, posto que em essência, beneficia pessoas.

            As normas imunizantes podem ser igualmente classificadas em face de serem ou não conseqüências necessárias de um princípio constitucional. Neste diapasão, pode-se dividir as imunidades ontológicas e políticas.

            As imunidades ontológicas caracterizam-se por serem conseqüências necessárias de um princípio constitucional, por conseguinte, ainda que suprimidas do texto constitucional, subsistem, vez que são decorrência dos princípios nele contidos.

            Como exemplos de imunidades ontológicas previstas em nossa Carta Magna, pode-se fazer menção à imunidade recíproca das pessoas políticas, como já assinalado acima.

            Já as imunidades políticas, por sua vez, não constituem conseqüências necessárias de um princípio constitucional. Para que sejam reconhecidas, devem estar expressamente consagradas na Constituição Federal, ainda que conferidas como forma de prestigiar outros princípios constitucionais, deles não são decorrência lógica, podendo, até mesmo, ser outorgadas a pessoas que apresentem capacidade contributiva, como é o caso da imunidade das "entidades beneficentes de assistência social". Enquadram-se aqui, também, as imunidades dos templos, das entidades sindicais de trabalhadores e dos partidos políticos e suas fundações, bem como a conferida aos livros, jornais, periódicos e ao papel destinado à sua impressão.

            Imunidades incondicionadas são aquelas que prescindem da criação de norma infraconstitucional para que venham a produzir seus efeitos. As imunidades desta natureza independem da criação de norma infraconstitucional regulamentar ou complementar que venha a estabelecer condições ou restrições para sua viabilização.

            Desta feita, a norma constitucional que versa sobre esta espécie de imunidade é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, podendo-se fazer referência à imunidade mútua das pessoas políticas (art. 150, VI, ‘a’ da Constituição Federal), para ilustrar tal hipótese.

            As imunidades condicionáveis, por sua vez, estão consagradas em normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, com possibilidade de restrição. Contudo, há que se frisar que caso haja omissão legislativa, a fruição do benéfico não estará inviabilizada.

            No entanto, neste particular, cumpre registrar a divergência doutrinária existente, vez que há quem considere que as imunidades condicionáveis (chamadas por estes de condicionadas) estão outorgadas por meio de normas constitucionais que necessitam de regulamentação infraconstitucional para sua completitude normativa, e via de conseqüência, para que reste viabilizada. Desta feita, a norma constitucional teria eficácia limitada, de natureza não auto-aplicável, a depender de integração normativa. (22)

            Ressalte-se, que qualquer que seja o entendimento acolhido, essa regulamentação infraconstitucional não diz respeito à norma imunizante, já delineada no texto constitucional, mas sim aos pressupostos formais a serem preenchidos pelos contemplados pela imunidade.

            Se considerado o critério pertinente ao grau de intensidade e amplitude, vislumbra-se a existência de imunidades genéricas ou gerais e específicas ou especiais.

            As imunidades gerais ou genéricas recebem esta denominação, vez que implicam em vedações dirigidas a todas as pessoas políticas, alcançando todo e qualquer imposto que recaia sobre o patrimônio, renda ou serviços a que se referem, encontram-se consagradas no art. 150, VI da Constituição Federal. Tais imunidades têm por fundamento de validade a proteção de valores constitucionais básicos.

            As imunidades específicas ou especiais, por sua vez, estão restritas a um único tributo e atendem a valores de caráter mais limitado. Além disso, são destinadas a uma pessoa política específica, tal como previsto no art. 153, §3º, III, da Constituição Federal e, também, da imunidade das "entidades beneficentes de assistência social".


4. A SEGURIDADE SOCIAL E A IMUNIDADE DAS "ENTIDADES BENEFICENTES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL".

            Nos dizeres do artigo 194, caput, da Constituição Federal, "a Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social".

            Neste artigo foram fixadas as áreas abrangidas pela Seguridade Social, diferenciando-as expressamente. Não há como negar que a Assistência Social é espécie do gênero Seguridade Social, que tem seus objetivos estabelecidos no Texto Constitucional (art. 203), sendo suas atividades voltadas às necessidades básicas da população carente. Não há como confundi-la com Previdência ou Saúde.

            Além disso, cuidou o parágrafo único do referido dispositivo dos objetivos basilares de organização da Seguridade Social, fixando suas diretrizes fundamentais.

            Dentre os princípios e diretrizes que informam toda a Seguridade Social cabe destacar a universalidade de cobertura e atendimento e a solidariedade contributiva. A universalidade de cobertura e atendimento significa objetivamente "que todas as situações que representam risco estão compreendidas na cobertura que o sistema brasileiro de proteção social pretende proporcionar às pessoas. [...] Já a dimensão subjetiva é revelada pelo vocábulo atendimento. Todas as pessoas são consideradas sujeito de direitos previdenciários". (23)

            A solidariedade contributiva abrigada no art. 195, caput, da Constituição Federal traduz-se na solidariedade existente entre o Estado e toda a Sociedade no custeio da Seguridade Social.

            Esses são princípios basilares no qual se insere a imunidade das "entidades beneficentes de assistência social", os quais não se podem perder de vista para exata compreensão da imunidade que se cuida.

            4.1 DA ORIGEM DA EXONERAÇÃO TRIBUTÁRIA VOLTADA À ASSISTÊNCIA SOCIAL

            Na história da humanidade é relativamente recente o direito à assistência social, embora seu nascedouro preceda a preocupação estatal na sua proteção. Nos primórdios a assistência social dava-se apenas pelas pessoas naturais, puramente por conta de influências religiosas, notadamente da doutrina Cristã, que, posteriormente, espalhou-se pelo mundo.

            Mais recentemente, sob influência das experiências humanitárias que grassaram pelo mundo, desenvolveu-se a concepção jurídica da assistência social pública que, segundo Wladimir Novaes Martinez, remonta a 1531 com a Lei dos Pobres espanhola e a Lei dos Pobres londrina de 1601. (24) Observe-se que a preocupação Estatal com a assistência social pública é muito anterior à noção de Previdência Social.

            No plano jurídico nacional, a Lei n. 91, de 1935, foi a primeira a referir-se as entidades com o fim exclusivo de servir à coletividade, sem fins lucrativos, que poderiam ser declaradas de utilidade pública, um dos requisitos fundamentais para seu o reconhecimento.

            De modo efetivo, a renúncia fiscal somente foi reconhecida com a Lei n. 3.577, de 1959, que isentou "entidades de fins filantrópicas", reconhecidas como de utilidade pública, das contribuições de previdência aos Institutos e Caixas de Aposentadorias e Pensões.

            Percebe-se, portanto, que embora nítida a preocupação Estatal em se reconhecer às entidades desinteressadas o direito a exoneração tributária, esta ficava estipulada apenas na legislação infraconstitucional. Ao nível da estrutura normativa fundamental enfatizava-se apenas a necessária correlação entre a existência da fonte de custeio e as prestações de caráter social, conforme estatuído pela Emenda Constitucional n. 11, de 31 de março de 1965, que acrescentou o parágrafo ao artigo 157 da Constituição Federal de 1946. Preocupação, essa, que também é expressamente ressalvada no atual Texto Constitucional vigente, nos termos do artigo 195, §5º.

            Havia, outrossim, previsão expressa na Constituição Federal de 1946 da exoneração tributária das instituições de educação e de assistência social apenas no tocante aos impostos, (25) não existindo, portanto, imunidade em relação às contribuições sociais.

            Como a exoneração foi fixada somente na legislação infraconstitucional, inovando totalmente a matéria, o Decreto-lei n. 1.572, de 1972, revogou a Lei n. 3.577, de 1959, fulminando a isenção outrora reconhecida, ressalvando apenas a possibilidade de certas entidades permanecerem gozando do benefício fiscal.

            Depois disso, a vigente Constituição Federal, rompendo definitivamente com todo o arcabouço jurídico anterior, acabou por determinar a responsabilidade pelo custeio da Seguridade Social a "toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,"e das contribuições previstas nos incisos I a III do artigo 195 do Texto Supremo, sem prejuízo de outras fontes residuais, desde que instituídas mediante lei complementar, inserindo no §7º do mesmo artigo a imunidade tributária às "entidades beneficentes de assistência social.".

            Merece destaque, ainda, no que se refere às fontes de custeio da Seguridade Social, a alteração introduzida pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, que determinou a vinculação dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, "a", e II, ao pagamento exclusivo de benefícios do regime geral de previdência social.

            4.2 DA RELAÇÃO JURÍDICA ASSISTENCIAL

            Apesar da ação estatal na área de assistência social ter tido início há mais de quatro séculos, é inegável que somente no início do século passado que se passou a dirigir as políticas públicas para o atendimento dos hipossuficientes. Nesse período de aproximadamente 500 (quinhentos) anos de atuação Estatal no atendimento dos hipossuficientes, em nada se alterou a base da relação jurídica instituída, marcada pela existência unívoca de unilateralidade na prestação das obrigações devidas, impingidas somente ao Estado. E não poderia deixar de ser desse modo, vez que não seria crível exigir qualquer obrigação daqueles que sequer possuem meios de subsistência. A assistência social é dirigida ao atendimento dos mínimos sociais.

            Esse é o traço marcante da relação jurídica assistencial pública, seja aquela prestada diretamente pelo Poder Público seja indiretamente, por intermédio de entidades privadas, haja vista não existir nenhuma margem para a concretização de relações sinalagmáticas. Lembre-se que a caridade não exige contraprestação, ainda mais de quem não possui meios para tanto, do contrário passa a ser exploração. Na verdade, os conceitos de assistência pública e assistência privada, independente da ordem em que tenham ingressado na história, convivem, indistintamente, no vigente sistema constitucional, norteados pela diretriz da universalidade de cobertura e do atendimento.

            A própria literalidade do artigo 203, caput, do texto constitucional não se esquiva dessa noção secular de assistência social, estipulando que "a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social". (grifos nossos) Com efeito, a prestação oriunda da atividade assistencial não permite, por essência, qualquer contraprestação do beneficiado, até mesmo por questões materiais óbvias, só se concebendo o reconhecimento efetivo do exercício de assistência social àqueles que prestam serviços de forma gratuita aos que dela necessitar.

            Essa é a noção mínima de assistência social que se deve ter para bem compreender a imunidade conferida as "entidades beneficentes de assistência social".

            4.3 DA IMUNIDADE CONFERIDA PELO TEXTO CONSTITUCIONAL

            O dispositivo constitucional que regula a matéria tem a seguinte redação:

            "Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

            ...

            §7º. São isentas de contribuições para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei. (grifos nossos)

            O dispositivo acima transcrito deixa claro que o constituinte não olvidou do papel de destaque realizado pela sociedade na consecução das atividades de assistência social, razão pela qual buscou manter a integração entre as ações públicas e as privadas voltadas para o assistencial, surgindo, então, o modelo de exoneração fiscal das entidades que exercem efetivamente atividades paralelas com o Estado e com os mesmos fins deste.

            Da letra do dispositivo constitucional surge a primeira controvérsia quanto à natureza da benesse conferida "as entidades beneficentes de assistência social", vez que o dispositivo refere-se a "isentas" e não a "imunes". A doutrina pátria delimita traços marcantes entre o instituto da imunidade e o da isenção, não passando despercebido tal ponto, até porque de nodal importância para se delimitar o efetivo alcance da norma.

            Vejamos o escólio de alguns doutrinadores sobre a questão ventilada, a saber:

            Aqui também a palavra ‘isentas’ está empregada, no texto constitucional, no sentido de "imunes".

            É que, no caso, está-se diante de uma hipótese constitucional de não-incidência tributária. Ora, isto tem um nome técnico: imunidade.

            Assim, onde o leigo lê "isentas", deve o jurista interpretar "imunes". Melhor explicitando, a Constituição, nesta passagem, usa a expressão "são isentas", quando, em boa técnica, deveria usar a expressão ‘são imunes’ (26)

            O que distingue, em essência, a isenção da imunidade é a posição desta última em plano hierárquico superior. Daí decorrem conseqüências da maior importância, tendo-se em vista que a imunidade, exatamente porque estabelecida em norma residente na Constituição, corporifica princípio superior dentro do ordenamento jurídico, a servir de bússola para o intérprete, que ao buscar o sentido e o alcance da norma imunizante não pode ficar preso à sua literalidade. (27)

            Percebe-se, portanto, que a despeito da expressão utilizada pela Constituição Federal no §7º, do artigo 195, não há como negar tratar-se de imunidade e não de isenção, haja vista que a exoneração está radicada no seio da Constituição e atua diretamente sob a delimitação da competência impositiva tributária.

            Desta forma, trata-se de imunidade e não de isenção, sendo ponto praticamente pacífico na doutrina pátria, não comportando mais discussões, inclusive, no Pretório Excelso.

            4.4 DO CONCEITO DE "ENTIDADE BENEFICENTE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL"

            A exata compreensão da imunidade conferida no artigo 195, §7° da Constituição Federal perpassa obrigatoriamente pela definição do que seja "entidade beneficente de assistência social".

            De início, vale dizer que o texto constitucional quando tratou das imunidades tributárias genéricas, especificamente no artigo 150, VI, "c", referiu-se "as instituições de educação e de assistência social", enquanto que no artigo 195, §7º, disciplinando a imunidade tributária específica das contribuições sociais para o custeio da Seguridade Social, fez menção as "entidades beneficentes de assistência social".

            Diante dessa dicotomia de expressões adotadas pela Carta Magna, não há como negar que "instituições de assistência social" não são a mesma coisa que "entidades beneficentes de assistência social". Aliás, em outros trechos, a Constituição Federal faz referência as "entidades beneficentes" e de "assistência social" (art. 204, inc. I), não havendo, no entanto, delimitação do exato conceito dessas entidades.

            Nesse passo, com a utilização de multifárias expressões no trato das referidas imunidades, surge aqueles que admitem a existência de tipos diferenciados de "assistência social" na formulação do alcance da imunidade genérica – instituição de assistência social – e da específica – entidade beneficente de assistência social. Contudo, o Supremo Tribunal Federal em recente julgado acerca da imunidade das entidades privadas de previdência complementar, por maioria de votos, acabou por firmar jurisprudência no sentido de que o conceito de assistência social deve ser extraído do artigo 203 da Carta Magna. (28)

            De toda sorte, a nosso sentir, a adjetivação "beneficente" consiste num marco diferencial que não se pode desprezar, pois permite afirmar que a assistência social a ser prestada por estas entidades para o gozo da imunidade à Seguridade Social deve, indubitavelmente, corresponder à relação jurídica de assistência social fornecida pelo Estado, ou seja, deve possuir caráter absolutamente desinteressado, de manifesto altruísmo, voltado para a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (art. 3° , III, da CF). Desse modo, somente a relação jurídica baseada na unilateralidade da prestação, fornecida exclusivamente pela entidade, pode ser considerada como efetivo exercício de assistência social para fins de gozo da imunidade tributária do artigo 195, §7° , da Constituição Federal.

            É por isso que se diz "beneficente". A entidade de assistência social não pode simplesmente dedicar-se à filantropia, deve sim "concorrer" de modo efetivo com a assistência social prestada pelo Poder Público. Deve dedicar-se a "assistência social" e ser "beneficente".

            "Quando a Constituição desejou deferir certas vantagens só às pessoas jurídicas absolutamente altruístas, ela as denominou de ‘entidades beneficentes de assistência social’ (art. 195, §7° ). Isto é, no momento em que ela desejou ir mais longe, para conceder um favor fiscal que não se limita a perder receitas, mas prestar serviços – os de assistência dos empregados, sem por isso nada receber – ela restringiu os destinatários […] Por fim, a ‘entidade beneficente’ que presta assistência social de maneira altruística, gozará do favor fiscal do parágrafo anterior e, além disso, ficará exonerada de contribuir mesmo para o custeio do sistema público de seguridade social, em razão de ter empregados". (29) Há um plus a que deve desincumbir-se a entidade de assistência social que pretende ver-se imune ao custeio da Seguridade Social.

            O trabalho desinteressado da "entidade beneficente", por seu turno, não veda a utilização de mecanismos ínsitos à iniciativa privada para auferir recursos para a consecução de seus fins, exigindo, porém, a comprovação de efetiva prestação de serviços assistenciais à parcela razoável de sua clientela. Significa dizer que a "entidade beneficente" pode, e até deve, amealhar recursos de outros clientes que não sejam os próprios carentes, para aplicá-los nos seus fins específicos, de forma razoável e proporcional aos resultados operacionais lucrativos.

            Com efeito, como a assistência social pública tem por finalidade prover à pessoa carente dos mínimos sociais, dentro dos objetivos traçados pela Constituição da República (art. 203 e 3º), fora desses objetivos não se tem a atividade de assistência social para gozo da imunidade do art. 195, §7° , da Constituição Federal. Na realidade, não há como fixar um conceito elástico para as atividades de assistência social para fins de gozo da imunidade das contribuições que custeiam a Seguridade Social, sob pena de burlar a finalidade que escora o preceito, que consiste justamente em auxiliar pessoas incapazes de prover suas necessidades básicas por conta própria ou de suas famílias.

            No mesmo sentido é a lição do professor Celso Barroso Leite, a saber:

            Repetindo, não tem sentido discutir a autenticidade ou não da alegada natureza filantrópica da entidade; só tem direito à isenção a entidade beneficente de assistência social. Em outros termos, não basta a entidade dizer-se filantrópica e praticar alguma assistência social, quase sempre apenas como truque para obter a isenção; é preciso ser, realmente de assistência social.

            O simples fato das entidades, sem fins lucrativos, prestarem algum tipo de auxílio a certas pessoas, por si só, não as credencia na qualificação de "beneficentes". A prestação de serviços gratuitos a pessoas carentes em percentuais ínfimos, se comparados ao vulto dos recursos auferidos pela entidade dita assistencial, não atende a finalidade constitucional e, com muito menos razão, à prestação de serviços gratuitos àqueles beneficiários que dispõem de recursos, ou seja, aos não carentes.

            Assim, o conceito de "entidade beneficente de assistência social" envolve, necessariamente, por força constitucional, a existência da comprovação mínima dos seguintes requisitos: a) não tenha fins lucrativos; b) preste gratuidade de forma razoável e proporcional à totalidade dos recursos auferidos; e c) atenda o princípio da universalidade de cobertura e atendimento (generalidade), especificamente aos que dela necessitar, ou seja, aos carentes, com o escopo de atender os objetivos fundamentos da República, especialmente erradicar a pobreza (art. 3° , III, da CF). Desses requisitos mínimos extraídos da Constituição e que a lei regulamentar deve buscar fundamento para estabelecer o exigido das "entidades beneficentes de assistência social".

            4.5 DA PRESCINDIBILIDADE DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR PARA REGULAÇÃO DO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL

            No que tange a norma referida pelo artigo 195, §7º, tem-se como fundamental que seus dispositivos não devem impor limites ao direito das entidades imunes, a ponto de esvaziar o comando constitucional. Isso, porém, não leva ao esvaziamento da norma regulamentar referida pela Carta Magna, já que seu conteúdo deve-se ligar ao preenchimento de requisitos inerentes a finalidade constitucional protegida pelo preceptivo imunizante. À lei em questão, complementar ou ordinária de caráter nacional, cabe cuidar dos requisitos formais "pertinentes e adequados à fruição da imunidade, sem, no entanto, frustá-lo" (30), pinçando do texto constitucional quais devem ser as características e o comportamento da entidade favorecida, sob a estrita subserviência da finalidade constitucional.

            Disso decorre a importância da norma infraconstitucional. A par dessa importante regulamentação exigida pelo texto constitucional, parte expressiva da doutrina pátria, entende exigível a edição de lei complementar, com espeque no artigo 146, inc. II, da Constituição Federal, por se tratar de matéria atinente às limitações constitucionais ao poder de tributar.

            De toda sorte, como delineado linhas atrás, não há como imputar às imunidades tributárias natureza jurídica de verdadeiras limitações constitucionais ao poder de tributar, já que se tratam de normas de jurídicas de incompetência e não limitativas ou supressivas. Além disso, ainda que se entenda que os termos utilizados pela Constituição Federal não foram utilizados com exato rigor técnico e que, portanto, quando se referiu "as limitações constitucionais ao poder de tributar" incluiu toda e qualquer norma que molda a competência impositiva dos entes tributantes, há que prevalecer a disposição específica do dispositivo constitucional, que exige simplesmente lei, e não lei complementar.

            Ora, ainda que a interpretação literal não seja a mais completa, é do léxico que se tem o ponto de partida, não se podendo simplesmente o desprezar para interpretar a norma como melhor aprouver a este ou àquele interesse. Se a Constituição não exigiu expressamente a necessidade de lei complementar, não cabe ao interprete exigir. Há, no caso, uma especificidade que não pode ser relevada, sob pena de lançar ao léu a mens legis da norma constitucional.

            Ademais, quando o texto constitucional exige lei complementar para regulamentação de seus dispositivos, o mesmo se manifesta expressamente. (31)

            Ressalte, de toda sorte, mais uma vez, que a lei regulamentar não pode limitar a fruição da imunidade, muito pelo contrário, somente se presta a dispor requisitos que contemplem a finalidade do instituto. Finalidade esta que se circunda na perspectiva legítima de que a limitação equivalerá ao espaço abarcado pela atuação das entidades beneficentes de assistência social.

            Assim, a norma exigida para a regulamentação do artigo 195, §7º, da Constituição Federal, é específica e não pode ser confundida com a norma geral que se refere o disposto no artigo 146, inc. II, do texto constitucional. Logo, não há como se valer das normas complementares editadas com fulcro no artigo 146, incisos I a III, da Constituição Federal para regulamentar a imunidade das entidades beneficentes de assistência social. Quando muito, somente em caso de omissão legislativa é que se poderia utilizar as regras do Código Tributário Nacional – CTN, atual norma geral, valendo-se da analogia, posição essa, entretanto, já rechaçada pelo Pretório Excelso no julgamento do MI nº 232/RJ em 06.02.1991, (32) não admitindo a aplicação do CTN mesmo que por empréstimo.

            Some-se a isso, ainda, o fato de que o artigo 149, caput, da Constituição Federal, que trata das contribuições sociais, inclusive, as da Seguridade Social, estabelece que a estas cabe a aplicação apenas parcial do regime jurídico tributário, referindo-se apenas e tão-somente ao inciso III do artigo 146 da Carta Magna. Não se pretende aqui, com esse argumento, embrenhar-se na discussão acerca da natureza jurídica das contribuições sociais, até porque convencido da sua vestimenta tributária, mas, no entanto, demonstrar que a própria Constituição traça-lhes um perfil diferenciado que, por seu turno, apresenta certas características peculiaridades inegáveis, impondo que se interprete o dispositivo em apreço apenas com a exigência de edição de lei ordinária para sua regulamentação. (33)

            Seja como for, o certo é que a questão não se encontra definitivamente resolvida, pois se deve lembrar que o Pretório Excelso quando recentemente instado a manifestar-se sobre qual o instrumento normativo exigido para regulamentar o artigo 195, §7º, da Constituição, em sede liminar, preferiu afastar a exigência de lei complementar, embora tenha deixado para apreciar tal tese por ocasião do julgamento de mérito. (34)

            Deveras oportuno lembrar que a norma que regulamenta o referido dispositivo já foi editada há mais de uma década, qual seja, a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, tendo sido atacada sua regularidade formal somente nos idos dos últimos anos passados, mesmo ao lado de quase uma década de sua vigência garantindo efetivo gozo da imunidade constitucional, já que o Supremo Tribunal Federal - STF (35), bem ou mal, acabou por entender que o art. 195, §7º, da Constituição Federal exige regulamentação para seu gozo – norma de eficácia limitada –, sendo certo que sua declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc acabará por manietar o gozo da imunidade, salvo mudança de entendimento na jurisprudência do STF.

            Destarte, caso o Supremo Tribunal Federal mantenha-se fiel a sua jurisprudência não acolherá a tese de que o dispositivo em apreço necessita da edição de lei complementar para sua regulação, salvo se reconhecer aplicável às disposições do Código Tributário Nacional que outrora já afastou e alterar substancialmente sua jurisprudência, em manifesto prejuízo ao princípio da segurança das relações jurídicas.


5. CONCLUSÃO

            Contudo, verifica-se que a Constituição Federal de 1988 fornece todos os parâmetros para que se possa delimitar o verdadeiro alcance e limite das imunidades, especialmente da imunidade das "entidades beneficentes de assistência social". A interpretação e aplicação do dispositivo inserto no artigo 195, §7º, da Constituição Federal devem ser examinadas sob a ponderação das observações acima articuladas, que, como visto, decorrem única e exclusivamente do próprio texto constitucional.

            Além disso, não se pode olvidar a especificidade das regras constitucionais que regem a imunidade tributária das "entidades beneficentes de assistência social", exigindo apenas a estipulação, por intermédio de lei ordinária, de requisitos e condições do seu exercício, bastantes para resguardar o custeio da Seguridade Social e, também, contemplar entidades comprometidas com a prestação da assistência social nos moldes exigidos pela Constituição, sem que haja banalização da imunidade conferida.


Notas

            1 COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias – Teoria e Análise da Jurisprudência do STF. Malheiros. 2001. p. 24.

            2 Seguridade Social está compreendido o conjunto integrado de ações positivas do Estado que asseguram o gozo dos serviços públicos voltados à Previdência, Saúde e Assistência Social.

            3 Segundo projeções da Secretaria de Previdência Social do Ministério da Previdência Social, para fins de elaboração da Lei Orçamentária, o valor da exoneração tributária das entidades beneficentes de assistência social no ano de 2003 alcançarão a importância de R$ 2.728.340.979,00 (dois bilhões setecentos e vinte e oito milhões trezentos e quarenta mil e novecentos e setenta e nove reais).

            4 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 163

            5 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 6. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 64

            6 MORAES. Bernardo Ribeiro de. A imunidade tributária e seus novos aspectos. In Imunidades tributárias, coordenador Ives Gandra Martins. São Paulo: RT/CEU, 1998, p.122

            7 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 170.

            8 CHIESA, Clélio. A competência tributária do Estado brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 111-112.

            9 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. ed. 11. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 110

            10 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 17. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 170. Esclarece que a norma imunizante "exatamente porque estabelecida em norma residente na Constituição, corporifica princípio superior dentro do ordenamento jurídico, a servir de bússola para o intérprete, que ao buscar o sentido e o alcance da norma imunizante não pode ficar preso à sua literalidade."

            11 BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. In: ______. Doze anos da Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 9

            12 COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias – Teoria e análise da jurisprudência do STF. Malheiros. 2001. p. 67-68.

            13 Ver art. 60 da Constituição Federal.

            14 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.148.

            15 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 182

            16 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 107

            17 Cabe lembrar a arguta lição de Carlos Maximiliano no sentido de que "Deve o intérprete, acima de tudo, desconfiar de si, pesar bem as razões pró e contra, e verificar, esmeradamente, se é verdadeira justiça, ou são idéias preconcebidas que o inclinam neste ou naquele sentido." MAXILIMIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 86.

            18 Apud CHIESA, Clélio. A competência tributária do Estado brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 153. Luís Eduardo Schoueri afirma que "as expressões empregadas pelo constituinte são meros nomes dados historicamente a impostos já existentes. Por isso, afirmamos que o constituinte não conceituou os impostos pertencentes a cada esfera tributante; apenas nominou-os contemplando um todo. Valendo-nos das lições da teoria geral do direito, concluímos que o constituinte apenas contemplou a realidade a partir de tipos. Tendo em vista, outrossim, que nosso sistema federal elegeu uma rígida discriminiação de competências, concluímos que é na lei complementar que se encontram os conceitos de cada imposto discriminado constitucionalmente. Em conclusão, temos que para a solução dos conflitos de competência e do campo de competência residual, encontramos na lei complementar – e não na Constituição – os conceitos de cada imposto. Tendo em vista ser o discrímen baseado os aspectos materiais dos fatos geradores, nosso tema se resolve a partir dos aspectos materiais eleitos em lei complementar."

            19 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 109.

            20 Obra citada, pág. 118.

            21 NAVARRO COELHO, Sacha Calmon. Curso de direito tributário brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 69

            22 CASTRO FILHO, Levy Pinto de. Ensino superior no Brasil e imunidade aos impostos. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002. p. 54

            23 BALERA, Wagner. Revista de direito previdenciário n° 234, Maio 2000. A interpretação do Direito Previdenciário. Pág. 234

            24 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Novas contribuições na seguridade social: entidades de fins filantrópicos. São Paulo: Ltr, 1997. p. 115-116.

            25 Art. 31, V, "b", da CF/46.

            26 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário: imunidades tributárias. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 686.

            27 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 170

            28 RE nº 202.700-6, DJ 01/03/2002.

            29 FERREIRA, Odim B.. A imunidade tributária das entidades de previdência fechada. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n° 13, p.64, out/dez 1995.

            30 CARRAZZA, Roque Antônio. Entidades beneficentes de assistência social (filantrópicas) – imunidade do art. 195, § 7° , da CF – inconstitucionalidade da Lei 9.732;98 – questões conexas. Direito tributário constitucional (Coord. Elizabeth Nazar Carrazza), São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 27.

            31 AGRRE-219874/CE; 2ª Turma; Ministro MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 4/6/99; ADIn nº 789-DF, Relator Ministro CELSO DE MELLO.

            32 RTJ 137/965. EMENTA: Mandado de Injunção. Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no § 7º do artigo 195 da Constituição Federal.Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido par declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõe para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo em que essa obrigação se cumprirá, passar o requerente a gozar da imunidade requerida.

            33 IBRAHIM, Fábio Zambitte. As entidades beneficentes de assistência social e o desrespeito à Constituição. In: Revista de Previdência Social nº 244, março de 2001. São Paulo. Pág. 175/177.

            34 Na ADIn nº 2028/DF (pendente de publicação) houve concessão de medida cautelar no sentido de suspender a eficácia do art. 1º, na parte em que alterou a redação do art. 55, III, da Lei 8.212/91 e acrescentou-lhes os §§ 3º, 4º e 5º, e dos arts. 4º, 5º e 7º, todos da Lei 9.732, de 11 de dezembro de 1998, conseqüentemente, revigorou a Lei nº 8.212/91 e determinou sua aplicação com a redação anterior. Liminar referendada pelo plenário em 11.11.1999, determinando a aplicação do art. 55 da Lei nº 8.212/91 como norma regulamentar do § 7º do art. 195 da CF/88, com sua redação anterior à edição da Lei nº 9.732/98, até julgamento final do mérito da referida ação direta de inconstitucionalidade.

            35 Nesse sentido, conferir parte dos votos proferidos no julgamento do MI 232/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RTJ 137/965.


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PEREIRA JÚNIOR, Aécio. A imunidade das entidades beneficentes de assistência social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 430, 10 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5649. Acesso em: 24 abr. 2024.