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Drogas e encarceramento feminino

Drogas e encarceramento feminino

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A política criminal de combate às drogas ilícitas no Brasil, baseada na Lei 11.343/06, tem assoberbado o sistema penitenciário do país com mulheres que praticam infrações não violentas. Não seria um sutil fenômeno discriminatório de gênero? Segue reflexão

Na passagem do mês da mulher vê-se relevante destacar tema que usualmente passa ao largo do conhecimento social. Segundo o Ministério da Justiça (BRASIL, 2015) cerca 68% das mulheres em situação de cárcere encontram-se aprisionadas por cometimento de crimes relacionados ao tráfico de drogas. Até 2005, ano anterior ao da promulgação da atual Lei de Drogas, Lei 11.343/06, tal percentual era de 34%. Essa situação de encarceramento feminino por razão de tráfico é tão periclitante que, segundo aponta pesquisa formulada na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), em alguns estados do país, o percentual nacional médio de 65% salta para 89% (RS e RR), 82% (MT), 77% (MS e RO), 75% (AM), 69% (SP) e 68% (ES). (CORTINA, 2015).

No Ceará, o número de prisão de mulheres também elevou-se nos últimos anos, chegando a triplicar entre 2014 e 2016 (O Povo, 2016), tendo como causas principais do apenamento fatores relacionados à criminalidade das drogas. Uma observação, porém, merece destaque: as autoridades de polícia locais reconhecem que, "ao contrário dos homens, as mulheres normalmente não costumam se envolver diretamente com prática de violência ou porte ilegal de armas". (TV Diário, 2016)

O estudo da UNESC citado mostra que o perfil das mulheres presas é composto de jovens, abandonadas pelo marido, com pelo menos 1 filho para criar e idoso para cuidar. São desempregadas, com histórico de uso de drogas ilícitas. Ou seja, um segmento feminino extremamente vulnerável socialmente, carente de políticas públicas e dependente de renda para manter sua casa e núcleo familiar.

Esse contingente compõe a base mais explorada e desprotegida da rede do narcotráfico, atuando, quase que exclusivamente, no ramo da preparação para a venda e na distribuição da substância em varejo (aviãozinho) para o consumidor final. Está longe de gerenciar a "boca de fumo", e, muito menos de administrar a logística do tráfico na região.

Ora, que essas mulheres cometeram atividades ilícitas, não há dúvidas. Porém, o que há de se considerar por amor a razão é que, numa teia criminosa como o narcotráfico, reconhecida como a atividade ilegal número 1 do planeta, que movimenta 1,5% do PIB mundial (RBA, 2015), mulheres como essas são muito mais vítimas do narcotráfico, e da respectiva cadeia discriminatória que lhe é adjacente, do que criminosas de relevante periculosidade. Por isso, na aplicação da Lei de Drogas para mulheres, o magistrado deve lançar ao caso, mais ainda que noutras situações convencionais, um olhar humano, para avaliar se a eventual penalização da lei, de fato, será adequada para os fins a que ela se propõe, de recuperação da interna, ou se tão-somente estará endurecendo desmedidamente uma índole punitiva, estendendo-a impiedosamente à sua família, duplamente sacrificada com a ausência de afeto da mãe reclusa e a interrupção da renda do lar pela prisão da mantenedora. Que se reflita, portanto, sobre até que ponto o Estado não estará empobrecendo, ainda mais, sua já discriminada população feminina. Importante também conjecturar sobre o assoberbado sistema penitenciário nacional, pois, diante do que se vem lendo cotidianamente nas páginas dos mais diversos jornais do país, medidas penais alternativas, que evitem a restrição da liberdade, são mais do que bem-vindas.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. CNJ. População carcerária feminina aumentou 567% em 15 anos no Brasil. CNJ, 05/11/2015. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80853-populacao-carceraria-feminina-aumentou-567-em-15-anos-no-brasil>. Acesso em: 10/03/17.

BRASIL. MJ. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEM MULHERES - JUNHO de 2014, pp. 1-42. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: 10/03/17.

CORTINA, Mônica Ovinski de Camargo. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista. Estudos Feministas, Florianópolis, 23(3): 406, setembro-dezembro/2015 761-778. Scielo. Acesso em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v23n3/0104-026X-ref-23-03-00761.pdf> Acesso em: 10/03/17.

Cresce a participação de mulheres no tráfico de drogas no Ceará. Jornal O Povo Online. Jornal de Hoje. Cotidiano, 25/01/16. Disponível em: <http://www20.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2016/01/25/noticiasjornalcotidiano,3566244/cresce-a-participacao-de-mulheres-no-trafico-de-drogas-no-ceara.shtml>. Acesso em 10/03/17.

O negócio global da droga. Rede Brasil Atual, 14/09/15. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/110/o-negocio-global-da-droga-3700.html>. Acesso em: 10/03/17. 

Número de mulheres presas por tráfico de drogas triplica em três anos no Ceará. TV Diário, 23/08/16. Disponível em: <http://tvdiario.verdesmares.com.br/noticias/policia/numero-de-mulheres-presas-por-trafico-de-drogas-triplica-em-tres-anos-no-ceara-1.1605190>. Acesso em: 10/03/17.


Autor

  • Marcelo Uchôa

    Advogado. Professor Doutor de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Ex Secretário Especial de Políticas sobre Drogas do Ceará (Adjunto e Titular interino). Ex Coordenador Especial de Direitos Humanos do Governo do Ceará.

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