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A legislação do abate de aeronaves.

Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas

A legislação do abate de aeronaves. Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas

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No dia dezesseis do mês de julho do corrente ano foi editado o Decreto nº 5.144/04 (1), que regulamentou o dispositivo do Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei nº 7.565/86, no tocante, especificamente, às aeronaves hostis e suspeitas de tráfico de entorpecentes e drogas afins.

Tais diplomas legislativos encerram em seu bojo a chamada "Lei do abate", isto é, versam sobre o regramento da possibilidade de serem derrubadas aeronaves consideradas hostis ao Estado Brasileiro.

Eis a legislação em comento, respectivamente, a Lei Nº 7.565/86, art. 303 e Dec. 5.144/04:

"Lei Nº 7.565/86 :

(...)

Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos:

I - se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim;

II - se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional;

III - para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis;

IV - para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21);

V - para averiguação de ilícito.

§ 1° A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado.

§ 2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.614, de 5.3.1998)

§ 3° A autoridade mencionada no § 1° responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório. (§ 2° renumerado e alterado pela Lei nº 9.614, de 5.3.1998)"

(...)

"Dec. 5.144/04:

Art. 1º  Este Decreto estabelece os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, levando em conta que estas podem apresentar ameaça à segurança pública.

Art. 2º  Para fins deste Decreto, é considerada aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins aquela que se enquadre em uma das seguintes situações:

I - adentrar o território nacional, sem Plano de Vôo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilícitas; ou

II - omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não cumprir determinações destes mesmos órgãos, se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de drogas ilícitas.

Art. 3º  As aeronaves enquadradas no art. 2º estarão sujeitas às medidas coercitivas de averiguação, intervenção e persuasão, de forma progressiva e sempre que a medida anterior não obtiver êxito, executadas por aeronaves de interceptação, com o objetivo de compelir a aeronave suspeita a efetuar o pouso em aeródromo que lhe for indicado e ser submetida a medidas de controle no solo pelas autoridades policiais federais ou estaduais.

§ 1º  As medidas de averiguação visam a determinar ou a confirmar a identidade de uma aeronave, ou, ainda, a vigiar o seu comportamento, consistindo na aproximação ostensiva da aeronave de interceptação à aeronave interceptada, com a finalidade de interrogá-la, por intermédio de comunicação via rádio ou sinais visuais, de acordo com as regras de tráfego aéreo, de conhecimento obrigatório dos aeronavegantes.

§ 2º  As medidas de intervenção seguem-se às medidas de averiguação e consistem na determinação à aeronave interceptada para que modifique sua rota com o objetivo de forçar o seu pouso em aeródromo que lhe for determinado, para ser submetida a medidas de controle no solo.

§ 3º  As medidas de persuasão seguem-se às medidas de intervenção e consistem no disparo de tiros de aviso, com munição traçante, pela aeronave interceptadora, de maneira que possam ser observados pela tripulação da aeronave interceptada, com o objetivo de persuadi-la a obedecer às ordens transmitidas.

Art. 4º  A aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art. 3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de destruição.

Art. 5º  A medida de destruição consiste no disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra.

Art. 6º  A medida de destruição terá que obedecer às seguintes condições:

I - emprego dos meios sob controle operacional do Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro - COMDABRA;

II - registro em gravação das comunicações ou imagens da aplicação dos procedimentos;

III - execução por pilotos e controladores de Defesa Aérea qualificados, segundo os padrões estabelecidos pelo COMDABRA;

IV - execução sobre áreas não densamente povoadas e relacionadas com rotas presumivelmente utilizadas para o tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins; e

V - autorização do Presidente da República ou da autoridade por ele delegada.

(...)

Art. 10.  Fica delegada ao Comandante da Aeronáutica a competência para autorizar a aplicação da medida de destruição.

Art. 11.  O Ministério da Defesa, por intermédio do Comando da Aeronáutica, deverá adequar toda documentação interna ao disposto neste Decreto.

Art. 12.  Este Decreto entra em vigor noventa dias após a data de sua publicação."


Diante, portanto, dessa regulamentação jurídica restam algumas indagações, sob a óptica constitucional, da validade desse ato normativo, considerando os direitos fundamentais estatuídos na Lei Maior, notadamente quanto às garantias da vida, da liberdade bem como, no viés processual, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

É sabido que o direito à vida e a liberdade estão previstos na Constituição, logo no caput do artigo 5º., donde decorrem, juntamente com o direito à igualdade, a segurança e a propriedade, todos os demais direitos fundamentais constantes do catálogo do citado artigo.

Ora, sabe-se também, pela doutrina dos direitos fundamentais, que nenhum desses direitos possuem um caráter de absoluta proteção estatal a ponto de, em momento ou circunstância alguma, poder sofrer mitigação em sua incidência e aplicação num caso concreto. É o que se convencionou chamar de princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas. (2)

Ainda nessa linha de pensamento, o autor argentino Quiroga Lavié pontifica que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem, contudo, desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito (3).

Prova cabal dessa excepcionalidade é justamente a própria previsão do art. 5º., inciso XLVII, alínea "a", da Constituição, que respalda juridicamente a existência da pena de morte, em caso de guerra declarada, conforme art. 84, inciso XIX, previsão esta em aparente afronta à garantia do direito à vida.

Outra constatação da relativização da aplicabilidade dos direitos fundamentais é a existência das chamadas prisões cautelares (4) (5) (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva e a polêmica prisão administrativa) na seara criminal e a prisão do inadimplente voluntário da pensão alimentícia e do depositário infiel, na seara cível, tudo em aparente confronto com o sagrado direito à liberdade ou mesmo em suposto desrespeito à clausula do due process of law.

Observamos, em suma, que, como foi dito, são aparentes conflitos (6) de normas, já que tais conteúdos normativos perfeitamente se compatibilizam numa coexistência harmônica no ordenamento jurídico, pois, não há abstratamente uma supressão dos direitos fundamentais, apenas, topicamente, exige-se, sob a orientação da metódica da razoabilidade (7), uma precedência hermenêutica de um sobre o outro, para dar coerência ao sistema de normas e princípios.

Desta feita, não se trata de mera antinomia, mas sim de choque entre normas fundamentais (direito à vida e a liberdade e segurança pública e soberania), de conteúdo principiológico, o que se exige, na linguagem de Konrad Hesse (8), uma concordância prática entre tais matérias, que resultará, por sua vez, tão somente na não aplicação de uma delas no contexto da crise normativa.

Dito isso, resolve-se o pseudoproblema de aniquilação das garantias fundamentais, no presente caso, restando, todavia, outras superações de considerável envergadura, pois, já que a Constituição Federal excepciona o direito à vida somente em caso de guerra declarada, como ajustar a "Lei do Abate" ao conteúdo da Lei Maior, ou seja, como conciliar a possibilidade de se atentar, legalmente, contra a vida de outrem, em tempo de paz, diante do texto maior que exige a declaração de guerra?

Percebe-se, inicialmente, que a redação original do Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA não continha nenhuma regulação acerca da destruição de aeronaves. Previam-se tão somente as medidas de detenção de aeronaves para aquelas que incidissem nas hipóteses acima mencionadas dos incisos do artigo 303.

Com a promulgação da Lei 9.614/98 é que se acrescentou a possibilidade de destruição de aeronaves classificadas como hostis. Tal medida, de natureza extrema, somente deve ser adotada, é obvio, posteriormente às tentativas procedimentais de controle de situação (medidas coercitivas de averiguação, intervenção e persuasão), bem como, após autorização do Presidente da República ou da autoridade por ele delegada (Comandante da Aeronáutica), a teor do Decreto já apresentado.

Diante dessa ambientação, lembramos, entrementes, a clássica doutrina raison d’état (9), idealizada pelo Cardeal Richilieu, no século XVII, a qual defende a sujeição dos valores internos do país à necessidade premente de sua segurança externa, ou seja, the justification of overrinding state power. (10)

Da mesma forma, caminha a doutrina do direito internacional público que trata das relações interestatais, inspirada na defesa da soberania do território nacional, com raízes na doutrina jusnaturalista de Hugo Grotius (11) ius bellis ac pacis que se subdividiu, posteriormente, em direito preventivo de guerra ius ad bellum e direito da situação ou estado de guerra ius in bello. (12)

No caso em análise, todavia, a situação fática não se amolda nas perspectivas de um estado de beligerância ou truculência armada que justificasse a invocação dos dispositivos constitucionais do Estado de Defesa (art. 136), do Estado de Sítio (art. 137) ou mesmo a declaração de guerra, razão pela qual, o estudo jurídico que ora se impõe deverá buscar suas soluções no estado da plena normalidade das instituições democráticas, e não numa situação de excepcionalidade da ordem estabelecida.

Seria, desta feita, causa suficiente para a medida extrema de destruição da aeronave recalcitrante a não obtenção do êxito nas medidas precedentes de controle da mesma, tudo sob o fundamento da proteção da segurança pública?

Imaginemos um policial dando ordem de prisão a determinada pessoa que estivesse perturbando a ordem pública, todavia, esse determinado indivíduo não atende às ordens emanadas pela autoridade pública, ao contrário, tenta evadir-se do local da prisão. Essa situação fática autorizaria o policial, encarregado que é da segurança pública, disparar contra a pessoa insolente?

Evidente que a resposta é negativa, pois, as medidas cabíveis seriam, a todo custo, deter referida pessoa. Tal conclusão adequa-se perfeitamente ao que podemos chamar de violência mínima, ou seja, o agente-Estado somente deve usar da violência nos estreitos limites para sufocar a ação injurídica, sendo, portanto, todo excesso reprovável e até criminoso.

Diferentemente seria se, no caso hipotético acima, o citado indivíduo estivesse portando, por exemplo, uma arma de fogo, em nítido indicativo de violência atual, numa situação certamente ameaçadora da incolumidade pública e mesmo da integridade das pessoas e do próprio policial, caso em que não seria razoável exigir o domínio da situação nas condições de rotina esperada, pois a violência mínima é aquela compatível para anular a ação delituosa, conforme a dimensão desta.

Bem mais complicado é o cenário acima construído, no entanto, entre duas aeronaves, sendo uma representando o Estado e a outra recalcitrante às ordens e determinações da autoridade pública competente, portanto, hostil.

Nesse caso, vencidas as condições de controle, a que já nos reportamos, a legislação do abate orienta, inspirada na violência mínima, aquela suficiente e bastante para o superação do perigo, que haja disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade precípua de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil, tudo isto após o cumprimento dos procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra, o que denota o caráter protecionista da segurança pública e do território nacional.

Ensina, entrementes, o mestre lusitano, J.J. Gomes Canotilho, que pode haver conflito entre direitos fundamentais e bens jurídicos, o que denominou de colisão de direitos em sentido impróprio, justamente por ser um fenômeno ocorrido entre um direito e um bem jurídico. Exige-se, pois, um objecto (material ou imaterial) valioso (bem) considerado como digno de protecção, jurídica e constitucionalmente garantido. Nesta perspectiva, quando se fala em bens como <saúde pública>, <patrimônio cultural>, <defesa nacional>, integridade territorial, família, alude-se a bens jurídicos constitucionalmente <recebidos> e não a quaisquer outros bens localizados numa pré-positiva <ordem de valores>. E prossegue exemplificando tais conflitos, justificando que o bem da <saúde pública> (cfr.art.64º.) pode conflituar com direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito da deslocação (art.44º.); o bem jurídico <defesa nacional> (art.273º.) pode colidir com o direito à objecção de consciência (arts. 41º./6 e 276º./4)(..) Em primeiro lugar, garante-se a protecção da existência de Portugal como Estado. A <segurança existencial do Estado> é um bem legitimador de importantes restrições aos direitos fundamentais (...) O bem <segurança pública> legitima certas restrições ao direito à liberdade e à segurança pessoal.. (13)

Nesse sentido, a legislação brasileira contemplou justamente essas restrições no ordenamento jurídico, privilegiando, pois, a segurança pública como bem jurídico constitucional a ser observado, notadamente em peculiares situações onde há forte presença estatal (14), como é o caso do tráfego aéreo ou da aeronavegabilidade.

Aliás, o próprio CBA já dispunha acerca da segurança aérea, estabelecendo a preocupação desse bem jurídico valioso em seu art. 13, senão vejamos:

"Art. 13. Poderá a autoridade aeronáutica deter a aeronave em vôo no espaço aéreo (artigo 18) ou em pouso no território brasileiro (artigos 303 a 311), quando, em caso de flagrante desrespeito às normas de direito aeronáutico (artigos 1° e 12), de tráfego aéreo (artigos 14, 16, § 3°, 17), ou às condições estabelecidas nas respectivas autorizações (artigos 14, §§ 1°, 3° e 4°, 15, §§ 1° e 2°, 19, parágrafo único, 21, 22), coloque em risco a segurança da navegação aérea ou de tráfego aéreo, a ordem pública, a paz interna ou externa."

Desta forma, caracterizar juridicamente a conduta estatal que provoca a destruição de aeronaves hostis com a conseqüente e crível provocação de morte dos tripulantes da citada aeronave é uma tarefa de suma importância para a compreensão das normas que regem a temática em questão.

De tal sorte que concebemos algumas possíveis respostas nessa tarefa de identificação da conduta acima circunscrita, como sendo, verbi gratia, um estado de necessidade, como uma legítima defesa, como um exercício regular de um direito ou como um estrito cumprimento de um dever legal. Vejamos a norma penal:

"Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - em estado de necessidade; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II - em legítima defesa;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Excesso punível

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Estado de necessidade

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. ((Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Legítima defesa

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)"

Primeiramente importa considerar que todas as espécies acima dizem respeito às causas legais (15) de excludente de ilicitude ou de antijuridicidade, isto é, são situações em que tais condutas não são proibidas, mas sim autorizadas e às vezes até incentivadas (16) pelo direito. Daí surge a máxima divulgada pelo mestre Zaffaroni de que o direito não pode punir o que ele autoriza ou, o que é mais grave, o que ele próprio incentiva (17).

Desta feita, tomando o conceito analítico e corrente de crime, como sendo um fato típico e antijurídico (18), em faltando alguns desses elementos necessários não haverá de ser considerada a conduta como criminosa.

Como lesionar ou provocar a morte de outrem são condutas tipificadas no ordenamento dos delitos, a conduta de destruição de aeronave hostil, sobretudo implicando na morte de seus tripulantes, só pode estar acobertada por uma das causas de exclusão da antijuridicidade, fazendo com que seja afastada assim uma das componentes necessárias (antijuridicidade) para a existência do crime.

Falar em estado de necessidade, no presente caso, creio que não convém haja vista que para a caracterização deste é fundamental a presença de uma situação de perigo atual de interesses protegidos pelo direito, em que o agente, para salvar um bem próprio ou de terceiro, não tem outro meio senão o de lesionar o interesse de outrem (19), o que não ocorre na espécie já que o que relevantemente o identifica e o difere da legítima defesa, em essência, é o encontro de duas causas justas, porém inconciliáveis, envolvendo bens juridicamente tutelados, numa situação que possibilitará a subsistência inevitável de apenas uma delas em detrimento da outra.

A aeronave considerada hostil é aquela que se encontra em séria situação de ilegalidade diante do Estado, por agredir as normas de navegação aérea e por, deliberadamente, não atender aos imperativos do Poder Público, oriundo da aeronave oficialmente destinada à sua interceptação, portanto, em verdade não concorrem dois interesses justos e legítimos, diversamente, concorrem um interesse justo e um injusto.

De posse de tal conclusão, seria, portanto, o Estado agindo em legítima defesa própria ou de outrem, já que estaria supostamente presente o injusto atual ou mesmo iminente?

Em tese, até poderia ser uma legítima defesa do Estado (20) (21), no entanto, entendo que, praxeologicamente, articulando a regra posta e o fato constante de seu domínio normativo, também não se trata dessa excludente, pois, tal injusto teria que estar bem caracterizado em forma de agressão, atual ou iminente, que, por si só, já se ensejaria repelir, não sendo necessária a subordinação da conduta a qualquer autorização administrativa para tal fim, conforme peremptoriamente preconiza a legislação em tela.

Doutra parte, pensar em estrito cumprimento do dever legal (22) (23) seria conceber que a lei, juntamente com sua regulamentação, conferisse diretamente o encargo a ser implementado, no entanto, verifica-se, novamente, o óbice da autorização da alta autoridade administrativa, que, frise-se, não é ordem, mas sim autorização para a destruição da aeronave.

Assim sendo, a citada autoridade administrativa está a confiar nas informações que lhe chegaram, dando conta do vencimento de todos os procedimentos regulares precedentes à medida extrema, seria como se o dever legal fosse construído pelo próprio agente solicitante da autorização.

De todo modo, a discricionariedade da autorização, o mérito reservado à máxima autoridade administrativa para tomada da difícil decisão, já traz uma polêmica quanto à aceitação da discriminante em liça, pois, a norma é clara em dizer que se trata de uma autorização e não de uma ordem, o que, neste último caso (ordem), poderiam até estar presentes as balizas demarcadoras da descriminante.

Desta feita, restou enfim a verificação do exercício regular do direito, causa de exclusão da antijuridicidade e, portanto, do próprio crime, que entendemos compatível à quadratura normativa em destaque.

À outra ilação não poderíamos chegar, pois, pela análise dos elementos doutrinários dessa excludente revela que a conduta Estatal, fulcrada na autorização da alta autoridade administrativa, que venha a culminar na destruição da aeronave classificada como hostil, amolda-se, perfeitamente, no exercício regular do direito de preservação do bem jurídico constitucionalmente tutelado que é a segurança pública, em sua dimensão nacional, ou mesmo transnacional se considerarmos o tráfego de substâncias entorpecentes em sua modalidade internacional.

Segundo lúcido ensinamento do Alexandre José de Barros Leal Saraiva, membro do Ministério Público Militar, a última descriminante prevista no art. 23 é o exercício regular de direito. Aqui já não se trata mais do estreito círculo de ação inteiramente regulada pelo ordenamento jurídico (estrito cumprimento do dever legal), ao contrário, avançamos no campo das liberdades quando, quotidianamente, os direitos se entrechocam. (24)

Sem reparo no magistério acima, entendo que a descriminante em alusão está ligada também à defesa da integridade de um direito em confronto com condutas injurídicas (que também se encontram no espectro das liberdades), situação que calha bem a idéia das ofendículas como instrumental de defesa do direito a que o patrimônio não seja violado (a violação não é um direito, ao contrário é uma conduta injurídica).

Nesse contexto a autorização administrativa para a derradeira medida de anulação do perigo da aeronave hostil, qual seja, sua destruição, é compatível, no nosso entender, com a excludente em foco, considerando que o direito que se estar preservando, é a segurança pública em seu sentido mais abrangente, incluída a do espaço aéreo e a própria pax interna e externa do Estado, nos termos do já exposto art. 13, in fine, do CBA.


Diante de todo esse raciocínio, encontramos a compatibilidade da legislação que regula o abate de aeronaves com a disciplina dos direitos fundamentais, bem como a localização topográfica no ordenamento punitivo da conduta estatal que venha a culminar no resultado morte, indesejado, em caso de aplicação da citada norma.

Não há, assim, malferimento ao devido processo legal e seus consectários (ampla defesa e contraditório), haja vista que o rito estatuído pelo Decreto em testilha se compatibiliza com a peculiaridade do contexto fático sui generis ora em análise, da mesma forma que não se trata de aplicação de pena de morte, mas, como explicamos, de um exercício regular de um direito que pode, indubitavelmente, derivar o indesejado resultado cruento.

Tal possibilidade, a prática de condutas acobertadas por uma causa de excludente de antijuridicidade, existe justamente por ser inviável a presença do Estado em toda situação em que esteja sendo molestado um determinado direito, o que, em virtude dessa realidade, fica autorizado, legitimamente, o próprio sujeito titular do direito a proteger seu patrimônio jurídico, sendo reservada, é evidente, a verificação judicial, a posteriori, de eventual abuso ou excesso praticado.

Dito isso, lembramos, a final, para depois concluir, a magnífica obra La Paix Perpetuelle de Kant, na qual, o ilustre filósofo, tecendo brilhantes comentários acerca do direito internacional, evocando ao que chamou de Direito Cosmopolítico, algo semelhante como o fenômeno da globalização, no entanto, com seu viés político (alusão a um cidadão universal), diz que, tal direito, deve limitar-se ao Direito à Hospitalidade Universal. O que compreende, de um lado, o direito de todo estrangeiro, que se encontra num Estado do qual não é nacional, não ser tratado hostilmente. E, de outro lado, o dever de todo Estado não usurpar da hospitalidade que lhe é oferecida pela população de um determinado Estado ou território e transformar o seu direito de visita num violento ato de conquista.

Desse modo o que disse Kant, noutras palavras, foi que a paz perpétua é um anseio e desejo a ser implementado, fundado no pacto do Direito, ou seja, o próprio Direito trata de albergar o modelo de conduta social esperado e os respectivos mecanismos corretivos, a ser utilizado pelo Estado, numa forma de violência autorizada pelo ordenamento, tudo em prol da paz objetivada.

Não se verifica no caso, a pretensão de se justificar atrocidades, sob a distorcida idéia maquiavélica de que os fins justificam os meios, até porque tais meios, os coercivos (violência autorizada), são a última razão e não a primeira, e mesmo sendo a última ratio, está albergada pelo Direito e legitimada, portanto, pelo axioma da justiça, o que a distingue da tirania, eis a diferença, mas o que pretendemos, no entanto, no presente estudo, é a constatação da compatibilidade ou não da legislação em pauta com o nosso sistema jurídico.

Esperamos, todavia, que o Estado brasileiro nunca precise utilizar-se dessa medida extrema de violência autorizada pelo Direito, a que tratamos especificamente neste trabalho, no entanto, essa dura realidade normatizada que legitima o sacrifício de um bem para proteção de outro, em circunstâncias excepcionais, é uma decorrência, dizem alguns, da própria susceptibilidade da natureza humana no convívio social, a que o Direito, enfim, não poderia ficar alheio. (25)


NOTAS

  1. (Vacatio Legis) Vigência a partir de 90 (noventa) dias da data da publicação, conforme art. 12 do Dec. 5.144/04 .
  2. "Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna" in Moraes. Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Atlas; p. 46. 3ª. ed.
  3. Ibidem. p. 47.
  4. Afora outras prisões que também não possuem cunho de definitividade, como a decorrente da pronúncia e a sentença condenatória recorrível.
  5. STJ Súmula nº 09 – "A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência."
  6. Verifica-se a distinção do emprego terminológico entre "colisão" e "conflito", o primeiro alude a norma-princípio e o segundo norma-regra.
  7. Tal princípio recomenda ponderação no procedimento de tomada de decisão. Exemplificando: "Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida." In Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, p. 91.
  8. Vide também: "Idéia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes" (Lerche) in Canotilho. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina. p. 1259. 6ª. ed.
  9. In http://www.politicsprofessor.com/politicaltheories.html
  10. Ibidem. David Robertson, The Penguin Dictionary of Politics (Lodon, 1986)
  11. "Grócio contribuiu, de modo decisivo, para a criação do Direito Internacional. Segundo ele, a lei natural que regula a convivência das diversas nações é o Direito das Gentes e esse direito é um fragmento destacado da lei natural" in Bittar. Eduardo C.B. e Almeida. Guilherme e Assis. Curso de Filosofia do Direito. Atlas. p. 223. 2001.
  12. Comparato. Fábio Konder. Convenção de Genebra (1864). In http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/dih/index.html.
  13. in Canotilho. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina. p. 1256 e 1257, 6ª. ed.
  14. "O Departamento de Aviação Civil (DAC) é uma organização subordinada ao Comando da Aeronáutica – Ministério da Defesa, cuja missão é estudar, orientar, planejar, controlar, incentivar e apoiar as atividades da Aviação Civil pública e privada, além de manter o relacionamento com outros órgãos no trato dos assuntos de sua competência." Vide http://www.dac.gov.br/.
  15. Digo causas legais porque admitem alguns a existência de causas supralegais de exclusão do crime.
  16. Exercício regular do direito de salvar a vida, presente na relação médico e paciente.
  17. Zaffaroni. E. Raúl; Pierangenli. J. Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. RT, São Paulo, p. 458., 1999.
  18. Para os finalistas. Já para os causalistas acrescenta-se a culpabilidade.
  19. Jesus. Damásio de. Código Penal Anotado. São Paulo. Saraiva. 8ª. ed., p. 92.
  20. "Através da legítima defesa qualquer bem jurídico pode ser protegido. A agressão pode, assim, dirigir-se contra bem jurídico de qualquer natureza, sendo irrelevante que pertença ao agente ou a terceiro, podendo tratar-se inclusive da coletividade ou do Estado."in Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. A nova parte geral. Forense. p. 187.
  21. Tal assertiva se inclui no rol dos chamados Direitos Fundamentais do Estado, doutrina jusnaturalista racionalista bastante criticada, mas que ganhou espaço no Direito Internacional. Contemplando a referida teoria "em Montevidéu (1933), na 7ª. Conferência Internacional Americana, foi concluída uma convenção onde se consagrou: a) a inviolabilidade do território; b) a existência do Estado não depende do seu reconhecimento; c) igualdade jurídica; d) direito à independência e conservação; etc." In Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, I volume. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 12ª. ed. p. 424.
  22. "Com de costume, o Código não se preocupou em definir o conceito de estrito cumprimento de dever legal, tal como procedeu com o estado de necessidade e a legítima defesa." In Greco, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Impetus: Rio de Janeiro. p. 362.
  23. "Primeiramente, é preciso que haja um dever legal imposto ao agente, dever este que, em geral, é dirigido àqueles que fazem parte da Administração Pública, tais como policiais e oficiais de justiça. Em segundo lugar, é necessário que o cumprimento a esse dever se dê nos exatos termos impostos pela lei, não podendo em nada ultrapassá-lo." Ibidem p. 363.
  24. Saraiva, Alexandre José de Barros Leal. Direito Penal Fácil. Del Rey: Belo Horizonte. p.108, 2003
  25. "(...) a lei não poderia virar as costas ao natural instinto de conservação dos homens, em razão do que admite excepcionalmente o sacrifício de interesse alheio, muito embora tal opção pareça atentar contra preceitos morais e éticos."In Saraiva, Alexandre José de Barros Leal. Direito Penal Fácil. Del Rey: Belo Horizonte. p.93, 2003.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES FILHO, José Moaceny Félix. A legislação do abate de aeronaves. Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 444, 24 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5735. Acesso em: 28 abr. 2024.